abordagens e visões da pré-história através do livro ... · da história, arqueologia,...

14
1 Abordagens e visões da Pré-história através do livro didático de História: uma breve análise em três escolas nos municípios de Itapé, Itacaré e Ilhéus, Bahia. Darcivaldo José dos Santos 1 Elvis Pereira Barbosa 2 Resumo Esta proposta de trabalho tem como objetivo situar o ensino de Pré-História nos currículos escolares de História no ensino médio na Escola Comunitária Alzair Martins da Silva em Itapé, no Colégio Estadual Aurelino Leal em Itacaré e no Colégio Estadual do Salobrinho em Ilhéus, Bahia. Procura-se também, expor a realidade educacional destas três unidades e como os alunos veem a Pré-História partindo da premissa de que uma abordagem generalizante e um pouco deturpada a respeito do tema contribui para a fixação de conceitos errôneos e confundem a interpretação que os discentes têm sobre este período particular da História da humanidade. PALAVRAS-CHAVE: Pré-História. Livro Didático. Ensino de História. Introdução Este texto reflete uma série de preocupações e debates travados ao longo de algumas discussões com os meus colegas de História, em especial aqueles que hoje seguindo caminho oposto a maioria dos licenciados pelo curso de História, se dedicam exclusivamente aos estudos arqueológicos através da realização de trabalhos de pesquisa envolvendo a chamada Arqueologia de Contrato. A problemática levantada aqui, reflete, em parte, um velho debate promovido por historiadores e arqueólogos e que visa em última instância tentar estabelecer alguns parâmetros mínimos para o entendimento do significado de 1 Graduando do curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual de Santa Cruz UESC, Ilhéus, Bahia. 2 Professor Orientador, Curso de Licenciatura em História, Departamento de Filosofia e Ciências Humanas DFCH, Universidade Estadual de Santa Cruz UESC, Ilhéus, Bahia.

Upload: others

Post on 03-Jul-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Abordagens e visões da Pré-história através do livro ... · da História, Arqueologia, Pré-história, Antropologia, Etnologia e Sociologia – e o foco principal deste debate

1

Abordagens e visões da Pré-história através do livro didático de História:

uma breve análise em três escolas nos municípios de Itapé, Itacaré e Ilhéus,

Bahia.

Darcivaldo José dos Santos1

Elvis Pereira Barbosa2

Resumo

Esta proposta de trabalho tem como objetivo situar o ensino de Pré-História nos

currículos escolares de História no ensino médio na Escola Comunitária Alzair

Martins da Silva em Itapé, no Colégio Estadual Aurelino Leal em Itacaré e no

Colégio Estadual do Salobrinho em Ilhéus, Bahia. Procura-se também, expor a

realidade educacional destas três unidades e como os alunos veem a Pré-História

partindo da premissa de que uma abordagem generalizante e um pouco

deturpada a respeito do tema contribui para a fixação de conceitos errôneos e

confundem a interpretação que os discentes têm sobre este período particular da

História da humanidade.

PALAVRAS-CHAVE: Pré-História. Livro Didático. Ensino de História.

Introdução

Este texto reflete uma série de preocupações e debates travados ao

longo de algumas discussões com os meus colegas de História, em especial

aqueles que hoje seguindo caminho oposto a maioria dos licenciados pelo curso

de História, se dedicam exclusivamente aos estudos arqueológicos através da

realização de trabalhos de pesquisa envolvendo a chamada Arqueologia de

Contrato. A problemática levantada aqui, reflete, em parte, um velho debate

promovido por historiadores e arqueólogos e que visa em última instância tentar

estabelecer alguns parâmetros mínimos para o entendimento do significado de 1 Graduando do curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual de Santa Cruz –

UESC, Ilhéus, Bahia. 2 Professor Orientador, Curso de Licenciatura em História, Departamento de Filosofia e Ciências

Humanas – DFCH, Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC, Ilhéus, Bahia.

Page 2: Abordagens e visões da Pré-história através do livro ... · da História, Arqueologia, Pré-história, Antropologia, Etnologia e Sociologia – e o foco principal deste debate

2

Pré-história, envolvendo as suas dificuldades de análises e principalmente as

inúmeras tentativas de periodização de um passado que vai além da

compreensão temporal da História. Entretanto, as divergências de como deve ser

analisada a Pré-história tem produzido muitas dúvidas e interpretações errôneas

para de fato entender o tempo e o passado da história da humanidade,

principalmente entre estudantes do ensino fundamental e médio.

A nossa cronologia histórica vem sendo discutida e analisada ao longo

das últimas décadas por especialistas de diversas áreas acadêmicas – a exemplo

da História, Arqueologia, Pré-história, Antropologia, Etnologia e Sociologia – e o

foco principal deste debate continua sendo a tentativa de se estabelecer limites

entre a História e a Pré-História, quando e como e as nossas dificuldades de

interpretá-las, perante as diferentes formas de fontes utilizadas, como por

exemplo os vestígios de cerâmica, de material lítico ou de restos fósseis, o uso da

escrita ou do registro oral feita por diversas gerações no local a ser pesquisado e

a sua origem.

Perante essa problemática, a pré-história engloba uma série de

períodos geológicos e pré-históricos diferentes, como cita Chris Gosden:

A pré-história trata de conjuntos de lugares, artefatos e paisagens do

passado que tentamos compreender no presente, colocando os indícios

que temos no contexto de seu ambiente na época, tanto físico quanto

social. (GOSDEN, 2012, p. 9, Apud HEINZELMANN, 2004).

Entretanto a periodização histórica converge em diferentes teorias,

analisadas por diversos especialistas, defendendo as suas análises, sobre a

existência da humanidade e de seus grupos formados, através das suas

hierarquias e das suas linhagens genéticas e de como se deslocaram, se

alimentaram e caçavam os animais para sobreviverem, a depender da quantidade

de indivíduos de determinado grupo.

Esta periodização é ao mesmo tempo absoluta, relativa e também

linear para poder determinar se os documentos históricos e/ou os vestígios de

cultura material coletado nos sítios arqueológicos são concretos e confiáveis.

Perante esse dilema, é relevante a citação de Chris Gosden:

Os estudiosos da pré-história precisam estar sempre atentos, com

relação a si mesmos e também aos demais, para saber quando saem do

Page 3: Abordagens e visões da Pré-história através do livro ... · da História, Arqueologia, Pré-história, Antropologia, Etnologia e Sociologia – e o foco principal deste debate

3

terreno das certezas razoáveis e passam a fazer inferências não tão

embasadas. As questões que somos levados a entender estão sempre

nas áreas de menor incerteza e, portanto, uma abordagem cautelosa,

demais nos deixara atados ao mundo fascinante, mas essencialmente

trivial das tecnologias das ferramentas de pedra ou das praticas de

carniçarias. Podemos abrir mão da cautela, sobretudo em um volume

sintético como este, em busca do grande panorama, afastando-nos cada

vez mais das inferências seguras que os analistas de pedras ou ossos

podem fornecer e despertando, não sem motivo, seu desprezo: não há

como ter certeza sobre isso. (GOSDEN, 2012, p.17, HEINZELMANN,

2004).

Apesar de não estarem abalizados os estudiosos das questões

embasadas nas suas respostas, estarem certas ou erradas, durante as suas

análises do material coletado, até chegar o resultado relativo ou absoluto do sítio

arqueológico pesquisado e definir, em qual tempo da pré-história, pertence e o

seu acontecimento, como cita Chris Gosden:

A pré-história termina pouco a pouco, por vários motivos. O impulso por

explicar as coisas desconsiderou a maior parte da existência, de modo

que há pouca documentação histórica real de muitos aspectos da vida

da maioria das pessoas. A vida doméstica a natureza da infância, as

relações entre homens e mulheres ou entre as pessoas e seus deuses, a

rotina diária de trabalho e lazer só podem ser reconstruídas para

períodos posteriores e usadas para ajudar a entender os anteriores.

(GOSDEN, 2012, p. 23, HEINZELMANN, 2004).

Mas, sem esses aspectos do nosso cotidiano, como poderemos

reconstruir a nossa história, se não sabem da nossa história de vida, o que as

mulheres faziam, durante o dia, enquanto os homens, caçavam a longa distância

para proverem de alimentos os membros das tribos.

Opções de limites entre Pré-História e História

A passagem da Pré-História para a História é complicada e bastante

difícil de ser estabelecida. E, contrariando alguns livros didáticos, não existem

subsídios concretos para estabelecer esta passagem, daí a importância da

fixação de marcos referenciais tão diferentes como a escrita, a organização

social, o processo de urbanização, entre tantos outros. Ao mesmo tempo que

Page 4: Abordagens e visões da Pré-história através do livro ... · da História, Arqueologia, Pré-história, Antropologia, Etnologia e Sociologia – e o foco principal deste debate

4

tentam construir os limites, diversos pré-historiadores e principalmente algumas

correntes de historiadores, reforçam a ideia de Pré-História como parte da História

humana, próxima às ciências naturais e como sendo uma ponte entre a Geologia

e a História (DANIEL, 1968).

Sendo assim, é possível elencar três pontos de estrangulamento entre

o conceito de Pré-História e o de História: o primeiro, o que toma a escrita como

referencial; o segundo, que procura valorizar o aparecimento do Estado e toma-o

como referência; e o terceiro, o que busca no processo de urbanização ou outras

estruturas sociais a característica desta passagem.

a) a escrita

Desde o surgimento dos primeiros grupos sociais organizados, a

humanidade tem a necessidade de estabelecer certos padrões de mensuração

para a compreensão de determinados fenômenos que acontecem no seu dia a

dia. Sendo assim, o Homem passou a formular alguns destes padrões que

atendiam a finalidades diversas como o plantio, a urbanização, a dominação de

classes, o sobrenatural, etc.

Daí decorre o fato de criar formas de registros gráficos com a finalidade

de facilitar a compilação dos bens materiais adquiridos ou produzidos e de poder

manuseá-los a qualquer momento. Esta seria então uma das prováveis hipóteses

para o aparecimento da escrita entre a humanidade, qual seja, a de atender uma

necessidade de mensuração por parte de um ou de vários grupos sociais. É

justamente a partir do aparecimento da escrita que alguns historiadores passam a

classificar o que seria História e Pré-História.

Mais do que um mero divisor de águas, a escrita tem de ser vista como

uma das etapas do processo de desenvolvimento sociopolítico nas diversas

sociedades do passado, e além do mais ao considerar a História como sendo o

período pós-escrita, estaria assim, dando um sentido cientificista à mesma, coisa

que já fora superada pelos historiadores do século XX, em outras palavras, isto

pode ser considerado um retrocesso na pesquisa histórica.

Page 5: Abordagens e visões da Pré-história através do livro ... · da História, Arqueologia, Pré-história, Antropologia, Etnologia e Sociologia – e o foco principal deste debate

5

Ao tomar-se a escrita como marco referencial para caracterizar a

passagem da Pré-História para a História, o historiador (ou o pré-historiador),

passa a estabelecer, novamente, um sentido cientificista à sua análise, pois a

noção que se transmite é a de que sem o documento escrito não se pode

trabalhar sob a ótica da ciência, de que os dados necessários para se

transformarem em História precisam de uma confirmação, e esta somente seria

possível através da escrita.

Ao colocar a escrita como sendo o início da História, os historiadores

do século XIX buscavam justificar a supremacia europeia – intelectual,

econômica, etc – sobre as demais regiões do planeta. Um exemplo típico é a

ocupação neo colonial na África e Ásia. Como a grande maioria dos povos

africanos possuíam apenas uma tradição oral, ficava difícil impedir a dominação

estrangeira ou até mesmo manter as tradições locais. Nos poucos territórios onde

prevalecia uma escrita local, a anexação fora justificada sob o ponto de vista

religioso – este é o caso do Egito, anexado como protetorado pela Inglaterra, e de

todo o norte da África onde utilizaram o cristianismo para combater o Islã.

Atualmente, ao colocar a História como sendo o momento em que

aparece a escrita, o erro que se comete é o de recusar as recentes contribuições

feitas por arqueólogos e pré-historiadores que trabalham com vestígios materiais

anteriores a esta. Assim sendo, torna-se necessário elaborar uma nova forma de

divisão da História da Humanidade, pois o modelo que existe – tomando-se por

base estas considerações expostas – está há muito tempo superado.

Portanto, a interpretação dos diversos tipos de documentos, que não

apenas o escrito, pode dar uma nova feição àquilo que se chama de História,

embora a separação desta da Pré-História continue sendo algo difícil de

demonstrar de maneira prática dentro das ciências sociais. A análise dos

vestígios por diversos cientistas sociais – arqueólogos, antropólogos,

historiadores, etc – pode aumentar o leque de informações a respeito do passado

remoto da humanidade como, suas formas de organização social, suas relações

econômicas, sua complexidade religiosa, sua interação com outras comunidades,

entre tantas outras variáveis de interpretação.

Page 6: Abordagens e visões da Pré-história através do livro ... · da História, Arqueologia, Pré-história, Antropologia, Etnologia e Sociologia – e o foco principal deste debate

6

b) o Estado

Os historiadores que tomam esta estrutura como referencial de

interpretação, procuram dar um tom mais abrangente à História, na medida em

que repudiam completamente o caráter cientificista utilizado pelos chamados

positivistas, mas, ainda assim, apresenta limitações à compreensão da

passagem. O aparecimento do Estado ocorre de uma maneira bastante complexa

e em condições onde algumas de suas organizações fundamentais, como as

classes sociais, a divisão do trabalho, a formação de cacicados, entre outras, já

estão consolidadas ou em processo de formação. Isto porém, não significa dizer

que todas as sociedades passarão por este processo.

A formação de um Estado varia muito de um grupo social para outro.

As estruturas que darão origem ao futuro Estado nem sempre se encontram em

pleno desenvolvimento. Em algumas sociedades, as estruturas sociais anteriores

a este, como por exemplo as comunidades aldeãs da Baixa Mesopotâmia,

empreenderam um grau de desenvolvimento político, econômico e social bastante

elevado mas não transpuseram a barreira que separava estas de um Estado

unificado e pleno.

É interessante notar que estas comunidades aldeãs já possuíam

indícios de escrita mas não conseguiram formar um Estado unificado, ficaram

apenas dentro do conceito de Cidades Estado e que não necessariamente podem

ser vistas como modelo de Estado na antiguidade. Este enfoque, que toma o

Estado como marco referencial, peca a partir do momento em que passa a excluir

todos os grupos que não conseguiram evoluir para esta forma social, e mesmo

assim a linha de separação adotada pelos seguidores deste modelo é bastante

variável nas diversas partes do mundo.

Portanto, a diferença entre o Estado e o não-Estado é muito grande.

Yoffee (1994, p. 17) aponta para o (...)surgimento de certos papéis sócio-

econômicos e governamentais que são desvinculados de relações de parentesco

reais ou fictícias; (...), colocando-os em um nível maior de complexidade como por

exemplo a inclusão da autoridade suprema vigente além da dependência do

acréscimo cumulativo de poder disponível para aqueles que possam exercer

Page 7: Abordagens e visões da Pré-história através do livro ... · da História, Arqueologia, Pré-história, Antropologia, Etnologia e Sociologia – e o foco principal deste debate

7

cargos governamentais. (YOFFEE, 1992, p. 17).

Como o conceito mais abordado sobre o aparecimento do Estado é o

marxista, muitas das considerações feitas por Marx e Engels a respeito do

assunto foram revistas no decorrer do século XX. As interpretações para as

sociedades pré-capitalistas feitas pelos dois, foram realizadas a partir de

trabalhos pioneiros de alguns antropólogos – no caso de Engels, foi tomado por

base os escritos de Morgan – num momento em que a pesquisa em antropologia

e principalmente a arqueologia ainda estavam em formação.

Os dados referentes à organização social das comunidades do

passado remoto, somente foram comprovados através de pesquisa sistemática no

decorrer do século passado. Além do mais, a interpretação de determinados sítios

a partir das novas teorias arqueológicas, possibilitou a ampliação desta visão,

uma vez que os novos caminhos trilhados pela arqueologia procuram ampliar o

espaço interpretativo com o auxílio de técnicas empregadas por algumas ciências

exatas, como a datação radiocarbônica ou a interpretação estratigráfica. Somente

com estas novas abordagens em arqueologia e também em antropologia, foi

possível ao historiador refazer parte dos seus escritos teóricos a respeito do

aparecimento do Estado entre as comunidades primitivas.

Algumas das afirmações feitas por Marx nos seus manuscritos (MARX,

1972) e que durante muito tempo foram tidas como dogmas imutáveis pelas

diversas facções de marxistas existentes entre as ciências sociais, passaram por

uma reinterpretação na medida em que os resultados das pesquisas

arqueológicas e principalmente as de cunho antropológico foram sendo

publicadas. As passagens do nomadismo à sedentarização, a utilização da

cerâmica e da pedra, a disposição espacial das aldeias, tudo isto contribuiu para

uma revisão a respeito das teorias do aparecimento do Estado entre as

comunidades primitivas.

Da mesma forma que as comunidades aldeãs tiveram um papel

importante para a formação do Egito Antigo, as generalizações que se faziam no

século XIX em relação ao Estado foram caindo por terra. Atualmente tem-se a

noção de que o processo não pode ser identificado como natural. As estruturas

Page 8: Abordagens e visões da Pré-história através do livro ... · da História, Arqueologia, Pré-história, Antropologia, Etnologia e Sociologia – e o foco principal deste debate

8

sociais anteriores, como as relações de parentesco, a divisão do trabalho, as

relações entre jovens e velhos, e os cacicados, entre tantas outras estruturas

sociais ditas primitivas, são extremamente complexas e o processo não é tão

simples como se imaginava, tomando-se como exemplo algumas das sociedades

europeias e tentando universalizá-las, procurando mostrar que nas outras áreas a

formação ocorreu da mesma maneira.

c) processo de urbanização

Uma terceira vertente, mais contemporânea que as demais, adota o

processo de urbanização como referência para se compreender o que viria ser a

História. As diversas sociedades humanas do passado, após um longo período de

nomadismo, atravessaram um período de sedentarização. Para alguns grupos,

esta se desdobrou posteriormente na urbanização. Mas o processo de

urbanização é muito mais complexo do que uma simples referência ao fim do

nomadismo. Significa conseguir exercer domínio sobre os vegetais, estabelecer

áreas de plantio e de caça, estar próximo das zonas de coleta de barro para

fabricação da cerâmica, enfim uma série de etapas cuja a urbanização, quando

ocorre, seria a última.

No decorrer do século XIX e também ao longo do século XX, alguns

cientistas tentaram formular leis gerais para o processo de urbanização

(MUMFORD, 1965). Os pesquisadores ligados à História urbana, identificaram

alguns pontos contraditórios nesta tentativa de dar um sentido lógico ao processo

de aldeamento e posteriormente de urbanização. O processo de urbanização não

segue um padrão único, qual seja, primeiro a aldeia depois a cidade, e sendo esta

a maneira de separação entre a História e a Pré-História.

Os primeiros sítios urbanos da humanidade são encontrados em locais

considerados inóspitos e pouco favoráveis à formação de um núcleo urbano,

como Jericó na Palestina ou os centros urbanos localizados na costa peruana,

próximos ao deserto de Nazca. Estas áreas apresentavam algumas

características comuns, como a escassez de matérias-primas básicas, a

rusticidade do meio físico e principalmente as estruturas sociais mencionadas

Page 9: Abordagens e visões da Pré-história através do livro ... · da História, Arqueologia, Pré-história, Antropologia, Etnologia e Sociologia – e o foco principal deste debate

9

acima – o Estado e a escrita – que somente se formaram posteriormente à

formação do núcleo urbano.

Ainda sobre a urbanização, não se pode estender este conceito e

caracterizá-lo de forma universal. Nos primeiros núcleos urbanos da Baixa

Mesopotâmia, existia um forte domínio da estrutura templária sobre o palácio, e

basicamente quem determinava as relações comerciais era o Templo e decorre

desta necessidade de manter relações comerciais a criação de um sistema de

mensuração dos dados, neste caso a escrita. Contudo, a estrutura do Estado

ainda não estava fortemente estabelecida, principalmente em função da

existência de comunidades aldeãs que conseguiam competir com estas duas

outras estruturas sociais e impedir a formação de um Estado Teocrático – na sua

denominação clássica (BOUZON, 1990) – ou até mesmo da dominação do

Palácio sobre o Templo.

Da mesma forma, os historiadores que tentaram fugir aos modelos

expostos acima, procuraram em outras formas de organização social a explicação

para caracterizar a passagem. Aqui, tomaram como padrão de medida, os

cacicados (estes ainda pouco utilizados pelos historiadores), a cerâmica, os

metais (que da mesma forma que a cerâmica, continua sendo objeto de estudo

dos arqueólogos), a agricultura (pouco enfocada no decorrer do processo de

urbanização levado a cabo pelos historiadores e analisada de forma estanque).

Mas todas estas demonstram um enorme grau de complexidade e as

características que faltam em uns, sobram em outros, tornando difícil a

compreensão do que seria História e o que seria Pré-História.

A posição da Pré-História no livro didático

Toda esta explicação prévia a respeito da Pré-História foi necessário

para entender a posição deste conceito no livro didático. Desta maneira foram

observados como os alunos de três escolas (Escola Comunitária Alzair Martins da

Silva em Itapé, no Colégio Estadual Aurelino Leal em Itacaré e no Colégio

Estadual do Salobrinho em Ilhéus) conseguiam enxergar a Pré-História a partir

dos capítulos encontrados no livro didático utilizado por eles. O livro em questão é

Page 10: Abordagens e visões da Pré-história através do livro ... · da História, Arqueologia, Pré-história, Antropologia, Etnologia e Sociologia – e o foco principal deste debate

10

de autoria de Ronaldo Vainfas, Sheila de Castro Faria, Jorge Ferreira e Georgina

dos Santos (2013).

O primeiro ponto de destaque, diz respeito ao espaço dedicado à Pré-

História. O assunto está contido em apenas uma unidade e dois capítulos, onde

procura-se explicar sucintamente conceitos amplos como: teoria do Big Bang,

Idades da Terra, origem das espécies, a descoberta do fogo, as glaciações,

dinossauros, hominídeos, arqueólogos e Homo sapiens. Este primeiro capítulo

possui seis páginas de conteúdo e duas páginas dedicadas ao Roteiro de

Estudos, uma espécie de resumo geral do tópico, questões sobre o assunto,

relações entre a História e outras ciências, como a Biologia e Antropologia.

Chama a atenção a reflexão a respeito do significado de Pré-História e a

comparação com os povos sem escrita. Observa-se aqui que os alunos são

conduzidos a aceitarem a definição de que a Pré-História é a História dos povos

sem escrita.

Algumas tentativas de explicação dos assuntos confundem mais do

que elucidam. Como exemplo, duas imagens que chamam a atenção: a foto de

uma cena do filme A guerra do fogo, onde aparecem alguns homens acendendo

uma fogueira e na página seguinte a ilustração de dois dinossauros lutando entre

si. Mesmo com a explicação na lateral da imagem, passa-se a ideia geral de que

dinossauros e homens conviveram no mesmo tempo, pelo menos foi o observado

entre alguns alunos nas três escolas. Há uma breve confusão de tempo e espaço

nestas duas imagens.

Além destas imagens, outro ponto que conduz a confusão é quando os

autores se propõem a explicar a teoria da evolução e tentam provocar um debate

entre criacionismo e evolucionismo. Para esta questão, observou-se que nas três

escolas o número de estudantes que professam o cristianismo com

características evangélicas são os mais resistentes em debater o assunto e a

negar o criacionismo por completo, não admitindo m hipótese alguma – devido ao

seu posicionamento religioso – sequer obter um conhecimento inicial a respeito

da teoria.

A confusão do capítulo ainda é observada quando a imagem do filme A

Page 11: Abordagens e visões da Pré-história através do livro ... · da História, Arqueologia, Pré-história, Antropologia, Etnologia e Sociologia – e o foco principal deste debate

11

guerra do fogo aparece logo no início, mas a explicação da importância do fogo

para a humanidade só é abordada – e de maneira bastante superficial – quatro

páginas depois. Há ainda explicações para as linhagens do Homem, como Homo

erectus e Homo sapiens, mas o texto escorrega novamente quando faz a

abordagem do Homo neanderthalensis pois não explica se era uma espécie

diferente ou se fazia parte da mesma linhagem do Homem moderno. Estudos

recentes apontam que o Homo neanderthalensis compunha uma espécie à parte

e que o processo de seleção natural levou-o à extinção.

Por último, fazem a divisão da Pré-História conforme o modelo já

bastante superado das três eras: Idade da Pedra; Idade dos Metais; e Idade do

Ferro.

O segundo capítulo tem oito páginas e a distribuição dos assuntos

segue semelhante ao primeiro. Mas neste há uma ênfase voltada ao continente

americano e também à Arqueologia e as falhas aqui são menores. Mesmo assim,

inda é possível encontrar a mistura explosiva de ciência e religião quando os

autores tentam explicar que a América é o único continente onde não há

população alóctone, ou seja, nativa, mas sim que aqui ocorreu uma série de

migrações ao longo dos tempos e que estes povos formaram posteriormente o

que fora chamado pelos colonizadores europeus de índios.

Entretanto, observa-se mais uma vez a confusão com as definições e

conceitos, a exemplo da afirmação de que as levas migratórias atravessaram o

estreito de Bering entre 15.000 e 10.000 anos (VAINFAS, 2013, p. 19) e de que

as cerâmicas da Serra da Capivara no Piauí possuem 9.000 anos e são as mais

antigas do continente (VAINFAS, 2013, p. 20). Sabemos que são definições

diferentes, mas para um adolescente é difícil observar a pequena diferença entre

as levas migratórias que provavelmente trouxeram apenas artefatos de material

lítico (pedra lascada e/ou polida) e a cerâmica produzida em São Raimundo

Nonato.

O Roteiro de Estudos tem as mesmas características do capítulo

anterior.

Page 12: Abordagens e visões da Pré-história através do livro ... · da História, Arqueologia, Pré-história, Antropologia, Etnologia e Sociologia – e o foco principal deste debate

12

Conclusões

Como é possível observar, a linha de separação entre História e Pré-

História, além de bastante tênue é relativamente difícil de ser estabelecida. Todas

as ideias desenvolvidas, tanto pelos historiadores quanto pelos arqueólogos,

demonstram que este limite é fictício e portanto desnecessário. Observa-se que a

finalidade de tal discussão até o momento foi a de aumentar as diferenças entre

os pressupostos teóricos e metodológicos de arqueólogos e historiadores, no

sentido de cada um procurar afirmar as suas ideias e renegar as contribuições

que juntos podem dar para o desenvolvimento tanto da História quanto da

Arqueologia. Mais que uma discussão teórica e interessante, a explanação da

problemática visa trazer à tona uma situação pouco abordada pela História e

pouco explicada pelos profissionais que lidam com a disciplina em sala de aula.

Nos manuais didáticos do ensino fundamental e médio, observa-se que

o espaço dedicado ao tema é por demais exíguo, afastando assim o aluno do

assunto e jogando-o no campo das especulações e das complicações fantasiosas

como a da existência de dinossauros junto com mamíferos e seres humanos. Por

trás disto, observa-se mais uma vez a influência das ideias religiosas que

continuam a reforçar junto à sociedade o sentido da criação e de

descaracterização da ciência, haja vista que esta não consegue ainda responder

a todas as questões levantadas pelo homem no decorrer de sua existência.

Além do mais, pontos que são abordados apenas pelos pré-

historiadores e arqueólogos – como as culturas humanas da idade do bronze ou

do ferro, o princípio de difusão cultural, etc – poderiam também compor parte do

vocabulário específico do historiador, desde que os mesmos fossem divulgados e

passassem por um processo de análise e interpretação em congressos e

simpósios acessíveis aos diversos historiadores. Sendo assim, acreditamos que a

História poderia tornar-se bem mais dinâmica ao aluno – principalmente aquele

dos níveis médio e fundamental – que cada vez mais se sentem afastados do

processo histórico e não conseguem compreender pontos importantes, como a

Pré-História do Brasil e da América e apenas vislumbram o assunto na Europa e

na África.

Page 13: Abordagens e visões da Pré-história através do livro ... · da História, Arqueologia, Pré-história, Antropologia, Etnologia e Sociologia – e o foco principal deste debate

13

As discussões abordadas neste artigo foram observadas nas três

escolas durante o acompanhamento das disciplinas Estágio III e Estágio IV.

Observou-se o comportamento dos alunos em sala de aula diante do tema Pré-

História e como eles reagiam a algumas das questões apresentadas pelo livro.

Inicialmente, pensou-se na aplicação de formulários com questionários a respeito

do tema, mas diante da obrigatoriedade do encaminhamento de projeto junto ao

Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UESC, optou-se pela

simples observação das impressões junto aos alunos.

A análise do livro didático, em especial os capítulos que tratam do tema

Pré-História, foram essenciais para entender como este período da História da

humanidade é vista pelos alunos e observou-se que existem mais confusões que

o imaginado inicialmente. No diálogo com os alunos a respeito de assuntos

correlatos, como Arqueologia, Paleontologia, fósseis e cultura material, a

confusão é generalizante e normalmente eles não conseguem perceber as

diferenças entre estas duas ciências.

O livro reforçou algumas ideias errôneas junto aos alunos, como a de

que os dinossauros e os seres humanos conviveram na mesma época. Desta

maneira, muitos alunos nas três escolas, não conseguem compreender o

significado do termo evolução.

A simples discussão teórica, de maneira mais clara a respeito do que

seria Pré-História e História, poderia contribuir para evitar que erros grosseiros,

como os explanados acima, fossem praticados principalmente pelos professores

que lidam com o assunto nas salas de aula do ensino fundamental e básico,

aumentando o leque de compreensão da realidade que cerca os alunos de

História.

Referências:

BOUZON, E. Os modos de produção na Baixa Mesopotâmia do Terceiro e Segundo Milênios da era pré-cristã. In: CARDOSO, C. F. S. (Org). Modo de Produção Asiático: nova visita a um velho conceito. Rio de Janeiro: Campus, 1990. P. 17-35.

DANIEL, G. El concepto de prehistoria. Barcelona: Editorial Labor, 1968.

Page 14: Abordagens e visões da Pré-história através do livro ... · da História, Arqueologia, Pré-história, Antropologia, Etnologia e Sociologia – e o foco principal deste debate

14

HEINZELMANN, M. R. Entre conceitos e preconceitos: o discurso de pré-história nos livros didáticos de 2°grau nas décadas de 1970 e 1980. Florianópolis: UDESC, 2004. (Dissertação de Mestrado).

MARX, K. Formaciones economicas precapitalistas: introducción de Eric J. Hobsbawm. 2 ed. Buenos Aires: Ediciones Pasado y Presente, 1972. (Cuaderno de Pasado y Presente, 20).

MUMFORD, L. A cidade na História. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965. V. I.

VAINFAS, R. História. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. Vol. 1.

YOFFEE, N. Caciques demais? Ou, textos seguros para os anos noventa. In: MÉTODOS arqueológicos e gerenciamento de bens culturais. Rio de Janeiro: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1994. P. 1-34.