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5 - danações (1969)

a) Danações * por Antônio Houaiss

A literatura brasileira goza de maioridade há já algum tempo. Não se trata de voltar à discussão de quando deixou ela de ser mera expressão na América da própria literatura portuguesa - problema , é claro , que importa , mas noutro con­texto que não é afim das considerações seguintes. Aqui, o que quer se afirmar é a mera evidência , extensiva , por sinal , a toda a América Latina, mas com uma van­tagem singular para o nosso caso específico, a política, já que os azares inerentes à história nos propiciaram sermos desde os fins do século XVIII uma nacionali­dade e um Estado , em que os particularismos regionais ou locais, mesmo quando fomentados inerte ou deliberadamente , não assumiram feição separatista incon­troversa: foram pontas de lança inovadoras que, malogradas no tempo, vingaram depois na composição geral do nosso quadro nacional .

Dentre outros traços relevantes de nossa maioridade literária há o da floração de uma notável quantidade de poetas que vêm assumindo impressionante varie­dade de posturas , de apreensões, de antenaçoes vitais do poético : os poetas de há muito deixaram de fazer da poesia um prurido episódico de seu crescimento bio­lógico deles, poetas, ou uma esporádica manifestação de sua deles vivência. Dão­nos , em verdade , pela primeira vez, colegiadamente , uma visão do mundo que é (embora virá a ser ainda mais) brasileira e, por isso mesmo, universal no que há de universal em cada sociedade nacional .

A mera presença , quantitativamente registrável, de um número crescente de pessoas que se dedicam , como postura essencial ou vocacional de seu viver , à

• Publicado como estudo introdutório da coletânea Danaçõet, José Alvaro Editora, Rio de Janeiro , 1969 ; Co"eio do Povo , Porto Alegre, 21 de fevereiro de 1970.

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poesia na-o nos deve induzir a precipitados julgamentos de valor : é bem possível que o percentual de "poetas" em relaça-o à população não seja crescente , se con­siderados os três últimos séculos e o incremento demográfico correspondente . Mas a mera continuidade deste percentual , se confirmada , seria a um tempo um índice óbvio de aumento absoluto e um índice demonstrável de aprimoramento qualitativo . E este é o ponto . Ser poeta entre nós, nos dias que correm, é repto cada vez mais vital . Cada vez mais se exige mais do poeta , e , isso não obstante , cada vez mais brotam em todos os quadrantes do Brasil (e do mundo) os que ten­tam trazer algo de novo como poesia . E algo de novo que é cada vez menos, mes­mo que tentativamente, um mero devanear gratuito incompromissado com inda­gações básicas ou radicais (que é poesia?, como exprimi-la?, que recursos ousar? , até onde não abandonar uma das faces ontológicas?, como inovar? , que existe na tradição de não abjurável? , como formalizá-la sem conformá-la?) . Pois que de fa­to um índice de maturidade, superado ou em vias de sê-lo , era o de planger públi· co factício de corações em cio, que se calavam tão pronto encontravam cami­nhos ou recantos de acasalamento , dois dos quais eram conspicuamente : ou a dona d 'algo relutante que mais caro que as outras dar queria o que deu par dar-se a natureza, ou o favor da notoriedade de campanário ou da res publica, graças aos quais os outros reais objetivos do cursus honorum seriam atingidos, um de­grau mais na magistratura , ou na judicatura, ou na generalatura, ou na politicatu­ra, ou na economicatura, ou na financiatura, et on en passe.

Essa exigência maior dos (aos, ante , contra, em favor) poetas é um fato social , cuja explicação não se saberia ou pelos menos não se tentaria fazer aqui. Mas é visível: ser poeta , nas condições do mundo moderno e nas condições não podres do nosso subdesenvolvimento específico, é , na imensa maioria dos casos, uma sa­crifício permanente de interesses pessoais imediatos, por algo que é uma flechada lançada contra o azul (ou cinza) de um céu deserto que acaso cruze um pássaro flechável. O poeta é um mediador não apenas entre a vida vivida e vivitura , e a vida vivível e vivenda da sociedade, sena-o que também e sobretudo mediador de si mesmo (de mim mesmo, de ti mesmo, se congeminamos). t que o seu poetar , se o (me , te) torna menos ilúcido para si (mim, ti) mesmo , menos dessituado no

caos do presente e dos futuros, torna~ ser que se prorroga, adia, transfere , sa­ciando~ de impossíveis e esfomeando~ de cotidiano . E, abstraídos o silêncio e a camoniana ufania da milícia e da polícia, um dos mais doídos esfomeamentos que lhe traz o cotidiano é a realidade, mercantil ou contábil ou computatorial­mente programada das empresas de análise de viabilidade de aplicabilidade de ca­pital e trabalho: ser poeta nlfo é negócio, pois, dá, nos casos máximos aleatórios de grande sucesso de público, ou a parca féria para um viver que apenas não é incondigno ou, por abjuração, a porta para outros negócios. Negócio por negó­cio, pois, é mais viável ir direto aos viáveis. Mas continua a haver poetas, e os grandes a serem-no enquanto vivam, sexagenários, septuagenários, octagenários em flor, flor justificadamente amarga ou ressentida, mas flor necessária cujos

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frutos de ouro (de outro ouro, de nã'o~uro) se colhem nos jardins das Hespérides das nossas esperanças e utopias .

Mas a exigência social maior aos (dos , contra, ante) poeta nlio está desse lado só : está dentro também da corporaçã"o. I: nela, mais que alhures, que brotam os protestos contra a asfixia da repetitividade , mas é nela , mais que alhures , que se formam as correntes que tendem a fulminar o que nã'o é poesia, indo mais peri­gosamente além, resolvendo ou ditando o que é poesia e quais os caminhos de obtê-la, exprimi-la , formulá-la. Às rotinas instauradas por inércia no corpo, me­lhor , no módulo fundamental dessa coisa sem a qual o homem não é homem - a tradição - , àquelas rotinas , reais e atuais, opõem-se rotinas potenciais. (f temeri­dade usar da palavra "tradição", que se instaura como condiçao humana de hu­manização do homem pelo homem , numa transmissão acumulada de saberes e fazeres acrescentáveis, quando a pobrezinha é colateralmente usada como instru­mento político de conserva e perd uraçã'o do caduco e da coonestaçã'o do supera­do pela própria tradição . Fique , porém , o esclarecimento.) Medievalmente, conti­nuam poetas e poetas-críticos a patrocinar , perante seus congéneres e perante seus convivais leitores aliciados, certo só (são várias é óbvio, cada uma, porém, a só verdadeira) deriva da poesia . Não se trata, sejamos precisos de prescrever elec­tuários ou preceptuários ; mas há , por contrapartida, formulários : proscrevem-se formas , temas , problemas , conteúdos , processos , recursos, relações, meios , fins; mostra-se que poesia se obtém assim ou não-assim ; que certo tipo de poesia per­tence ao passado; que certo tipo de poesia é espúrio ; que a poesia do presente e do futuro só pode ser segundo certa tendência que buscam provar haverem des­coberto no presente , a fim de que ela possa ser do futuro ; que a poesia como coi­sa feita, objeto , arte, produto , criação , visão do mundo totalizante , catarse, uto­pia , protesto, anseio, desejo , voto, esperança, compreensão, apreensã"o, antena­ção, tendência , vivência, existência, essência , crença, convicça-o , dúvida, hetero­doxia , é coisa caduca ; quer ser ou aspirar a ser poeta é caduco ; que, em suma, o poeta é o Ersatz, o que faz algos que na-o encerram nada daquilo, pois sã'o coisas que não são coisas, pois são a formalização de inconteúdos que sã'o o só seu con­teúdo , reiações de irrelações, zero vetoriado no infinito potenciado ao infinito, através de sinais sensuais (por ora visuais, por impotência dos media; como estes se enriquecera-o, em breve os outros sentidos se ensaiara-o , até o nirvânico do si­nestético umbilical telepático insubjetivo e inobjetivo ) .

(Opositivamente, os galos cantam pré-manhã'zinha; e o nosso galinício é obje­to de especulações, lindíssimas aliás , de se, ocorrendo horas antes da aurora so­lar , nã'o encerra no âmago da espécie a hora dos fusos horários de origem ... ) Opo­sitvamente , no Brasil como no mundo, segundo a enorme dagradaçã'o cultural que nos dão os estratos sociais (ah! as palavras proscritas!), a poesia continua em romances , histórias , estórias, trovas, canções , versinhos de escola ou pra namo­rada (ainda os há?), epopéias, odes , epodos, rapsódias, gestas , e essa coisa que -por inominável - se chama poema .

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Ora, o que parece admirável (não é , pois é vital) é que, malgrado os muitos pólos figurados acima, haja poetas que , conhecendo esses pólos e podendo (co­mo capacidade artesanal) aderir a algum ou alguns deles, procuram exprimir-se sem adesões de correntes ou escolas, e sem deixar de sofrer-lhes alguma influên­cia (pois o poeta sofre todas e tudo, na medida do seu alerta}. Esses obstinazes autônomos se capacitam talvez (não saberia dizer por que vias) de que a única regra eterna em poesia é a que deve ser cumprida: uma eterna que é a sua própria negação, pois que é feita de duas realidades absolutamente irrepetitivas e irrepeti­tíveis : a realidade objetiva e subjetiva e interativa mesma, perpetuamente móvel a engendrar emergentes, potencializantes e atualizantes, e a linguagem perpetua­mente aberta a dizer o inédito, o inaudito, os futuríveis , os impossíveis, com o que o seu código e sistema jamais são fechados e jamais tão abertos que sejam a própria negação do intersubjetivismo. A única afirmação que parece válida é que a poesia apresenta hoje em dia espectros ou pólos insuspeitáveis no século XVIII , insuspeitados no século XIX, insuspeitandos no século XX, insuspecturos no sé­culo XXI. A essa afirmação poder-se-á acrescentar uma segunda : espectros e pó­los da poesia hoje em dia vão desde expressões no tempo, crônicas, as expressO'es fora do tempo, acrônicas, a expressões do tempo pretérito, anacrônicas , a expres­sões do tempo futuro , precônicas, a expressões que neguem o tempo, ucrônicas . E o mesmo se diria em relação ao espaço , poesias tópicas , atópicas, anatópicas , protópicas, utópicas , diatópicas, metatópicas. E o mesmo com relação à física , à mimese, à ergia , à lógia, à patia: afísica, anafísica , profísica, ufísica , diafísica , metáfísica; animética , anamimética , promimética, umimética, diamimética , me­tarnimética; anérgica, proérgica, unérgica, dianérgica , metanérgica ; alógica , analó­gica , prológica, ulógica, dialógica, metalógica ; apática, anapática, propática, upá­tica, simpática, empática, diapática, metapática- e os combinatórios que se qui­serem.

Este é um poeta já amadurecido na faina diuturna de poetar - pertence àque­les que já tem um saber de experiência feito, o único que concilia teorias e práti­ca, pois esta é ainda (quando não o será?) o critério da verdade .

Ponho-me a imaginar algumas coordenadas que me levam a intuir algum sen­tido- não um claro sentido . Carlos Nejar nasceu em Porto Alegre, de cepa levan­tina, em 1939. Fez-se advogado, é promotor público e professor secundário , em São Jerônimo. Já publicou quatro livros de poesias - Sélesis (Ed . Globo , 1960), LivrodeSibion (Difusão de Cultura, 1963). Livro do Tempo (Champagnat , 1965) e O Campeador e o vento (Ed . Sulina, 1966). Que é que faz esses "turco" -brasi­leiros , já em primeira geração - como tantos outros que eu poderia citar e nos quais (i) modestamente me incluo - sejam ou tão polarmente avessos à lingua­gem (quando em geral prosperam no comércio, indústria ou ... jornalismo) , ou ((ainda quando cristãos: maronitas, greco-ortodoxos , e os vindos raro não o são) tão, quase coranicamente , adictos a ela? Sua função social no nosso meio, como mascateantes esparzidores de mercancias por todos os confins pátrios , já foi obje-

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to de um belo ensaio de ilustre gaúcho . Sua vocação miscigenante com a massa brasileira também - e, em segunda geraç:ro , o que lhes resta do passado é um tal­vez vestígio de orgulho étnico , um prazer gastronômico para com certos pratos que tendem a vulgarizar-se entre nós e , ademais , esse algo ligado ã língua, ou oposto a ela que deles faz ou péssimos usuários , consuetudinários, ou razoáveis teóricos de suas formas , ou até , por vezes, escritores que acrescentam algo ao nosso meio. Carlos Nejar está por certo entre os do último caso - e como poeta , o que o singulariza , pois poetas dessa ascendência temos ainda tido uns poucos apenas.

A leitura de sua obra , a releitura e a degustura da-o-nos motivo para certos oti­rnismos . O primeiro refere-se a esse fato notável - o de , já de alguns anos , a vin­da para a capital cultural (que já não temos ; temos várias) n:ro é condiç:ro para conhecimento do que acontece no mundo das letras . Essa aristócrática república, ela pelo menos , democratiza-se e está em todos os recantos imagináveis do país: no Nordeste , com foros quase autônomos ou pelo menos autógenos no Ceará, na Para1ba, em Alagoas , em Pernambuco e além ; na Bahia , no Espírito Santo ; Minas e São Paulo vão ao requinte , principalmente a primeira , de terem escolas localistas universalitíssimas (Cataguases , Divinópolis , por exemplo) . E assim por diante. O segundo refere-se ã quase total ausência de defasagem : os poetas desses recantos embebem-se na circulaç:ro universal , estão dentro da gratosfera terres­tre , e podem aderir aos -isinos que quiserem , pois deles têm conhecimento.

Em Carlos Nejar isso é patente . A matéria-prima de suas elaboraçOes é de pri­meira mão , porque é a vida , mais dos outros em que se inclui a,sua, do que a sua em que a dos outros se espelharia ; mas é também (e nisso vai mérito) de segunda, terceira , quarta , n ma-os , porque recua ao conhecimento de poesias pregressas e está a par dos experimentos presentes . Entretanto , sem fil iar-se a um -ismo (im­poss ível qualificá-lo a esse respeito), ela se apresenta informada , seletiva , aberta e despreconceituosa . Ver-se-lhe-á , por isso , ora aqui , ora ali , ora acolá , uma influên­cia : mas é natural, e bom, que assim seja: não há rios sem fonte , ou fontes , ou tri­butários ou afluentes. O que nele não há é o pastiche, a tentativa de molhar leito ou talvegue já indundado e ainda corrente .

A prática lhe tem aumentado densidade e rigor. De maneira que os livros seus se vêm sucedendo em crescendo qualitativo , situando a sensibilidade gaúcha - e suas afinidades psíquicas beduínas ou nomáticas ou daruesas - no quadro físico de uma natureza e sociedade que , com terem tanta cor local , nem por isto é vista em exotismos fáceis (é sempre usuário da língua comum , explorada não raro , quando a mentação o quer , em recursos normativos).

O que , porém , marca o poeta Carlos Nejar são dois traços que cumpre ressal­tar : de um lado , a fluência e variedade rítmica , e a sabedoria da repetição (alite­rante , assonante , cognata , refranesca , eventualmente rimante, anafórica), que dá ao corpo poético potencialidade mnemônica de nova rapsódia . Mas , substancial­mente , o outro lado é mais poderoso. Carlos Nejar postula desde cedo uma ética ,

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que atinge, nestas Danações, o ápice. Ética moral - de onde vem ela e como se insere ela em poesia, sen o risco de ser didática, setenciosa, acaciana ou victoria­na? Creio que provém do orgulho humilde, ou da humildade orgulhosa, do fraco forte consciente que se rebela e insurge contra o forte inconsciente, seja ele natu­reza, Deus, Diabo ou Sociedade. Há algo de podre no reino da Dinamarca. Mas isso - que é universalmente óbvio: Dinamarca, Danamarca, Mundidina , Mundi­dana - na-o lhe suscita ambiguidades hamletianas , nem opositivamente, asserçoes partidárias; leva-o - e já é muito - a revelar-nos a potência do protesto, mesmo que sem sequela, pois só ele, reiterado, se fará Verbo.

Este é, assim, um livro ascendente, numa poética que é, pelo consenso de mui­tos gaúchos, das mais representativas dos nossos pampas de hoje em dia. É, assim, poderosamente brasileiro e universal. E prenuncia novos cantos - pois Danações abrem um ciclo em que o social pervade e pede novos cantos, ao cantor que já soube cantar (episodicamente) de amores, freqüentemente de buscas e perdiçOes, e que, com neoprofetismo, se faz vindicativo e anunciador:

Nada sou, nada tenho, senão o que me exime do veneno ( ... )

Assim resisto

Vivo explosivo, áspero mas vivo E sou meu próprio alvo ( ... )

O que sou é dar socos contra facas cotidianas E é pouco.

porque

Baixa-me, se o quiserdes, com nojo. Também na morte preciso de vosso engodo.

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b) O depoimento do homem * por Nelly Novaes Coelho

" Se buscais suprimento ao processo corrido entre o chegamento e o pousar intemporào, desisti da oblaçào.

Se buscais suprimento ao ato de banir-me, vendido e condenado, sem aviso e valia, apeai-vos da montaria.

Nada sou, nada tenho, senão o que me exime do veneno".

B com esta "Advertência" viril, prenhe de segurança e certezas, que se abre Danações 1, volume que , publicado em fins de 69, simultaneamente com Orde­ções I e II, inicia um novo momento na poesia do gaúcho Carlos Nejar, uma das presenças mais marcantes da "geraçlfo de 60" brasileira.

Poesia que revela a presença de uma consciência de fundo sentido histórico , a de Carlos Nejar apresenta-se como um dos exemplos mais vivos da fus:ro essencial , " tradição - ruptura" , que tem marcado a poesia criadora de todos os tempos. Em seus primeiros momentos , procede da grande linhagem mítico-mística de um Jorge de Lima, somada à nitidez concretizadora e rígida de um Jolfo Cabral de Melo Neto. Nestas recentes produções, arraiga no húmus épico-medieval do Fernando Pessoa de "Mensagem" e no anti-épico Drummond de sempre(= o in­sulado numa vida adubada pela morte).

Fluindo inicialmente no nível da linguagem sagrada , fora do Tempo e doEs­paço , mas sem naufragar em momento nenhum no misticismo religioso ou no li­rismo da prece que define a grande poesia de J . de Lima, a poesia nejariana surge imersa no Mito , mergulhada na "noite imemorial", no caos primordial que ante­cedeu ao cosmos (Sélesis, 60 e Livro de Si/bion , 63). Gradativamente passa para o "plano do Tempo" construído pelo homem (O Livro do Tempo , 65) ; deste pa­ra o "plano do Homem inserido no tempo (O Campeador e o Vento, 66) e final­mente nestas duas recentes publicações entra no "tempo histórico" e testemunha o Homem que construiu esta nossa civilização em julgamento .

• Publicado in Co"eio do Povo, Caderno de Sábado , Porto Alegre, 23 de maio de 1970.

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De O Campeador e o Vento para estas recentes Danações e Ordenações, dá-se como que uma explosão da essência épica que, desde as primeiras horas , perma­necerá como uma corrente subterrânea a alimentar sua poesia . A intenção de de­poimento e afirmação do homem denuncia-se desde logo três epígrafes colocadas como pórtico .

"E vós cujos corpos/do mar processo e julgamento sofrerão". (Eliot) "Na verdade, cada um é um pouco culpado". (Sófocles) "Eu me recordo/que havia em meio a ilha um tribunal ". (J. de Lima)

Assim , em Danações, comparece resoluto o "homem da queda" , o condenado pelos deuses e pelos homens de todos os tempos ... Mas contrariamente ao que fizera até hoje , ele comparece para afirmar-se, para assumir desassombrado sua fraqueza e limitaçoes . Comparece em sua arrogância de construtor de mundos , a a despeito de sua irredutível precariedade. Em linguagem embebida nos tempos arcaicos, fortalecida pela força da entonação jurídica e pela cadência do verso onde ecoa o "tonus" dos cronistas, a poesia última de Carlos Nejar depõe pelo Homem .

Saio de mim e do convés onde padeço. Escusas não as peço porque vim. (. . .) Assim resisto (Reconhecimento)

Poesia máscula , sem humor ou ironias a pôr um travo de amargura na denún­cia do negativo , do torto e do escuro . .. mas que , com destemor , aceita a condi­ção humana em todos os seus contrastes ... a de Carlos Nejar expressa bem a nova reaçlfo do homem em face um mundo que lhe cabe redimensionar.

Iniciada nos anos 58/59, sua poesia primeira é bem significativa do confluir de águas que marcava a criação poética brasileira na década de 50: a que arraigava na "tradiçlfo humanística" e a que se lançava no "projeto de ruptura" . De com­plexa gênese , Sélesis e Livro de Silbion se erguem da essência milico-mística do Jorge de Lima de Miraceli (50) e Invenção de Orfeu (52) e do rigor artesanal de João Cabral; fundindo assim num novo húmus poético a espiritualidade que vem da "tradição" com a severa disciplina formal imposta pela "ruptura".

Ao se levar em conta as flagrantes dissemelhanças de "matéria" e de "estilo" entre J. de Lima e João Cabral, pode parecer estranha essa simbiose apontada na poesia nejariana . Pois, entender-se a fusão do "barroquismo verbal", de raízes b1blicas , da mística poesia do primeiro (tão fluída e impalpável, a despeito de todo resplandente visualismo de "espetáculo" que a marca) , com a rígida "con-

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tenção verbal e rítmica" da poesia cabralina (ta-o anti~spiritualizante , tão apega­da ao concreto, ao nítido, ao esculpido em pedra)? A verdade é que existe um denominador comum aos dois : a funda consciência do poeta como testemunho clo homem, e do Poema como criador de realidades . Em J . de Lima , temos o "va­te" , o revelador de essências, e a poesia cristocêntrica" ... Em Cabral o "cons­trutor" de realidades , o severo e exigente intérprete, de cujo poder se duvida (" Fábula de Anfion "), mas a quem cabe , afinal , redescobrir o mundo aos ho­mens, pela redescoberta da palavra que o exprime ( "Psicologia da Composiça-o" ).

(1. . . ) Eu te vejo e te pressinto em mim/como elemento de meu sangue/A vi­da em ti se forma/como a noite se forma no Caos").

Teria sido esse, talvez o fator comum que permitiu ao jovem poeta realizar a fusão dos contrários e , sem cair num mimetismo servil , criar uma poesia que , de livro para livro , mais e mais afirma sua individualidade marcante de criador e a nova posiça-o do homem frente à vida ; a redescoberta da poesia como gesto hu­mano e a reconquista da "dimensa-o épica" da "geração da terra" , dimensa-o dila­cerada pelo nosso século .

Compareço

do leito ou da pedra,

com pólvora em todos os sentidos. (. . . ) Aqui estou

por própria culpa. Possuo o desespero residente naquilo qtce construo (. . .) Não pretendo ser salvo

Vivo explosivo, áspero, mas vivo .

E sou meu próprio alvo. (Comparecimento)

Eis a nova face do "homem da queda '' afirmada agora com desassombro pela poesia nejariana.

Face que , a nosso ver , é uma das contribuiçoes essenciais da "geraçcTo de 60" aos sulcos criadores abertos pelas geraçoes anteriores desde 22. Nela se amplia aquilo que Rui Mourcfo chamou de "herança maior que os modernistas legaram às gera­ções mais novas" isto é , "a instituição da pesquisa como a própria razéTo de ser da atividade criadora e a vontade de construir uma arte viva sintonizada com a pro­blemática mais atualizada e com a realidade brasileira" . 1

1 Rui Mourão , "A Instauração de uma vanguarda brasileira" II , Supl. Lit. de O Estado de São Paulo. 7/2/70

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Carlos Nejar é , pois , o poeta que testemunha o seu "instante", o que constrói o tempo de sua geraçlfo , realizando uma das fus~es mais decisivas para o gênio "nado r: amalgar Tradição e Renovação.

"Louco ou não", ébrio sempre/avarento com as lamúrias.j"prescrevo estas ordenações ''i para que afvcadas sejam". ( "Ajuste")

Nesta nova reação do homem, já estamos longe daquela nostalgia de Pureza e de Unidade que impregna a grande poesia de Jorge de Lima : nunca fui senlro uma coisa hJbrida/metade céu , metade terra,/com a luz de Mira-Celi dentro das óbi­tas". Longe estamos, também , da impassibilidade de Cabral ; e mais ainda da imo­bilidade que contempla a " pedra no meio do caminho" ... Nesta poesia última de Carlos Nejar , a face "drummondiana" do homem (que tanto vem marcando a poesia brasileira e portuguesa ... ) surge como se tivesse sido virada pelo avesso .

Desapareceu aquele homem que trabalha "sem alegria para um mundo cadu­co". (Sentimento do Mundo-40). Quem se apresenta agora , assume a grandeza do homem que se afirma criadoramente, naquela dimenslro eternizada por Pessoa em "Mensagem". ("Louco, sim, louco , porque quis grandeza/Qual a sorte nlro dá./Minha loucura , outros que me a tomem/Com o que nela ia./Sem a loucura que é o homem/Mais que a besta sadia ,/Cadáver adiado que procria?") E desta li­nhagem, o homem "nejariano" ... aquele que encontra agora este mundo cadu­co" ...

"Decidi, alcaide ou não ",/"recolher a intempérie ",j"o bastardo em mim"./ recolher as redes/da descida./Sem tripulação a bordo,jcom mastreação e brios,/"alcaide ou não, decidi./( . . . ) O homem/em julgamento sempre,/ "roda e rota",j"em julgamento e medo ", jo corvo, a raposa, o termo.j"Em julgamento todos"./"Alcaide ou não, decidi". (''Resolução")

Como vemos , na nova palavra poética trazida por Nejar, nada mais resta da "inatuaçlfo" drummondiana , do homem que imóvel contempla "o tempo de homens partidos" (Rosa do Povo-45) e, cheio de uma ternura frustrada, com os anos vai-se voltando para o passado e lucidamente passa a "caminhar de costas" (Boitempo-68), numa declarada demisslro do "agir. .. " O novo homem tece con­sideraç~es sobre a morte, procede ao arrolamento do mundo e da vida, mas nlro se demite da açlro. O gesto criador da "geraçlro 60" mostra que os tempos já slro outros, embora ainda nlro estejam evidentes ...

"Até aqui cheguei"./vivente, ileso ainda"./apresentando as trilhas/que só eu caminhei/amamentadas filhas./( ... ) Exaurido, remando/ou sem remos./ Amando ou desamando,j"desconheço quando ''l"os pés na mesma via"/ ''atingirão o dia". /"Caminharei". ( "Chegando")

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O homem enfrenta cara a cara a sua condiçlro . Sem ilusões que disfarcem suas fraquezas e limitações, sem saber o que ralmente o espera adiante , ele assume o seu ser , quase como um desafio": "Caminharei".

Note-se ainda que, por detrás desses "eu" que fala , não é Carlos Nejar-indiví­duo que encontramos , mas sim a voz do Homem .. . é a nossa voz , a voz da con­dição humana que se faz ouvir, reagindo contra a condenação milenar que pesa sobre ela. Uma nova dimensão do "homem da queda" é trazida à tona daconciên­cia pela poesia nejariana : a "queda" não foi fator negativo para o homem, foi po­sitivo .. . pois, graças a ela, ele destacou-se do Todo , perdeu a Unidade, e doloro­samente vem conquistando a consciência de que se o é? É, pois , pela "queda" que o homem vem tomando consciência de sua existência e grandeza , e principal­mente da importância de seu gesto no tempo histórico que lhe cabe viver. ..

A par do reequacionamento estético da palavra poética , é nesta reaçlro ética que vemos uma das mais importantes dimensões da poesia de Carlos Nejar : a va­lorização do Homem e o impulso de integraçlro do Indivíduo na Humanidade .

Nesse sentido, observe-se que Jorge de Lima fala, quase sempre , "nós" ( = cons­ciência da individualização de cada um .. . ), e quando diz , "eu", é sua própria presença que se revela por detrás. Jotro Cabral é predominantemente impessoal, mas quando uso o "eu" também se identifica claramente consigo mesmo (Cf. po ex., "O Rio"). De maneira mais aguda Carlos Drummond , desde Alguma Poesia ( 1930) até Boitempo ( 1968), vem-se revelando exacerbadamente individualizado pelo "eu" que , como invisível fronteira e isola dos homens à sua volta .

Rompendo, pois , o "insulamento" que, em essência marca os poetas anterio­res, e com a mesma consciência com que Fernando Pessoa usou o "eu" em Men­sagem, Carlos Nejar e com ele sua geração) se afirma pela "integração" .

"Vós me haveis de dar lugar"/nesta hora semfereza"/por mais que tenhais guardado,fpor mais que o tenteis guardar. f"Armeiro, vim desarmar "/os agravos;fo que for/será de amor e passagem./"Pousada me haveis de dar"/e aos meus cavalos pastagem".

O "homem-gemido" cantando em sua primeira poesia, nos idos de 60, hoje assume, desassombrado, o "signo do Rei" e afirma seu lugar na História .

Que nos trará amanhã a poesia nejariana? A julgar pela evoluçtro que ela vem apresentando, suas Ordenações III e IV (já anunciadas) virtro ampliar o seu depoi­mento do homem e essa resoluta afirmação da "geração da terra" . Teremos ra­zão? O tempo dirá . ..

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c) Danações *

por Ernani Reichmann

Danações, de certa maneira , está para Ordenações como Livro do Tempo está para Livro de Silbion. À exuberância deste último, coloca-se o despojamento de Livro do Tempo - idêntico despojamento que Danações apresenta-se em relaça-o a Ordenações. Também o aprofundamento do trágico em Danações, como a cap­tação mais pronunciada do tempo do Livro de Silbion acentuam essa relaça-o -embora; é claro, só seja absolutamente válida a remissão de qualquer livro a seu autor, isto é, a Carlos Nejar , no caso específico dos livros que acabamos de citar.

Inicialmente , gostaria de dizer algumas palavras sobre o trágico, não obstante minha intenção de tratar do assunto mais tarde, quando verdadeiramente eu tiver - tanto quanto possível - devassado o mundo do poeta de Danações. Contudo , uma breve referência ao trágico neste momento não poderá vir a constituir-se num obstáculo futuro , mesmo que meu entendimento das coisas venha a modifi­car-se com o decorrer do tempo.

Ao dizer-se que a existência é trágica tudo está dito , desde que não se faça da existência um mero conceito â maneira dos filósofos da existência. O fato de se recusarem a conceituá-la em poucas pala'\lras , como são em geral os conceitos, na-o quer dizer que a conceituam. Qual , a rigor , a diferença entre descrever e con­ceituar? Como praticantes do método fenomenológico , dizem que não concei­tuam , que descrevem a existência. Na verdade , porém, bem analisada a coisa, per­cebe-se que partem sempre de uma conceituação , que está é que dá limites e con­torno à sua descritiva e que esse conceito , assim , sempre é prévio , embora oculto . Basta saber-se ler entre as linhas e perceber no fundo de tudo procedimentos e atitudes para que se revele o conceito que tem da existência os seus filósofos . Existir é uma coisa, conceituar a existência, outra. O que importa é existir , mas toda a existência é trágica . Quando Nejar existe enquanto poeta trágico , existe em seu ser mais profundo, em sua verdade. e isto que se revela em sua poesia , é claro, e não podia ser diferente .

Max Scheller pode vir em auxllio de nossa colocaça-o quando diz: "Ele (o trá­gico) é, ao contrário , um elemento essencial do universo . O assunto no qual se inspiram a obra trágica e o autor dramático já deve conter em si mesmo este ele­mento sombrio". Para que o trágico possa manifestar-se , segundo o pensador ale­mlro , é preciso que um valor seja destruído . e preciso que alguma coisa no ho­mem seja destruída , como um projeto, uma vontade, uma força , um bem, uma crença. Mas as forças que destroem o seu valor positivo superior devem elas con -

• Excerto do livro Poética de Carlos Nejar, Imprensa da Universidade Federal do Paraná ,Cu ri­

tiba, 1973.

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ter valores igualmente positivos, para que o trágico possa surgir. A arte suprema do poeta trágico consiste pois antes de tudo em iluminar a uma plena luz os valo­res das partes em luta e a colocar em relevo o direito intrínseco de cada persona­gem. Em poucas linhas, é esta a concepç:ro de Max Scheller, que parece confir­mar o que dissemos sobre o trágico em indicaçoes anteriores. Contudo a análise do problema na poesia de Carlos Nejar exige mais do que uma simples indicaç:ro de seus livros (na-o obstante o quadro existencial em que a procuramos situar).

Os conflitos que encontramos em Ordenações aprofundam-se em DanaçtJes, de maneira que o homem sente a sua condenaç:ro, como réu do crime de existir. Existência e culpa (tema bastante acentuado pelos filósofos da existência) signi­ficam no fundo a mesma coisa porque toda existência é culpada. Mas só pode ser culpada quando referida a algo que a transcede . Em Nejar o que transcende a cul­pa é a vida. Mas a vida, por sua vez, é terrível. Daí o sentido do poema "Roda" {de "Ordenaç:ro 5 ~"),que expressa de uma maneira lírica o trágico dessa circula­ridade:

Tudo é um relógio circular e ávido, sem ponteiros (quem pode merecê-los?) como uma tolda única, um enredo a deslindar-se noutro. Onde a corda (que aos poucos enforca}, venda, solda de sons que não entendo? Quem entorta o andar, mas não empe"a como se"a sempre a cortar, mortalha? E sempre a circular, per.zetro nele -o relógio ou a sorte - que trabalha, sendo o próprio rodar, o próprio espelho que a nossa brevidade não demarca.

Outras referências também existem em Nejar como uma espécie de experiên­cia acumulada pelos séculos, experiência que constitui a circunstância humana, mas este é um problema muito complexo que ainda na-o temos condiçoes de exa­minar (e que remetemos, assim, para mais tarde).

Voltemos a "Danaçoes", que é o objeto desta indicaç:ro. O poeta começa seu livro dirigindo-se aos homens, numa verdadeira advertência. Que apeiem do cava­lo aqueles que pretenderem achar justificativas para o ato de bani-lo, vendido e condenado, sem aviso e valia, porque:

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JVadasou,nadatenho senão o que me exime do veneno

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Assim, seu banimento, sua condenação n!o é dos outros que depende. Que cada um cuide de si mesmo (o poeta não diz, mas entende-se). Essa advertência vale também para Platão e todos aqueles que, depois dele, condenaram os poetas ao banimento .

Ao flm de Ordenações o poeta dissera que :

Todos os passaportes e cartas de viagem passaram na embaixada.

Agora em Danações, nos dá conta de sua nova situação:

Ultrapassei a fronteira, sem passaporte ou visto, sem porte de arma para o que trago comigo.

É certo que em Ordenações não poderia romper certas regras que os homens inventaram. Em "Danações", porém, o poeta confessa que se desfez do passapor­te e ultrapassou a fronteira levando consigo apenas a poesia. Mas também é dessa maneira que resiste.

Em "Comparecimento" diz o poeta :

Aqui estou por própria culpa. Possuo o desespero residente naquilo que construo.

Dissemos, a propósito de Livro de Silbion que fora dos limites da fé não resta ao homem senão assumir uma forma qualquer do desespero. Que a transparência não é possível , a não ser em silêncio - silêncio que é a negação da poesia. E que só por isto Nejar não é a poesia em carne e osso (algo impossível, pois poesia é expressão). Agora sabemos que ele aqui está (isto é, que ultrapassou a fronteira) por sua própria culpa e que, por isso, o desespero está em tudo o que constrói, o que mostra a coerência inacreditável de Nejar. O poeta na-o recua dos deuses . A lucidez, que o levar a ver as linhas da loucura que nele lutam, não o permite. Re­jeita a luz e o erro, isto é, rejeita todo julgamento. Não pretende ser salvo por ninguém, se não puder ser salvo por si mesmo, em si mesmo. Aceita a sua própria danação. E vive, na condição de poeta que é:

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Vivo explosivo, áspero mas vivo E sou meu próprio alvo.

~ inútil chegar a ele com razões e palavras estreitas:

O que sou sustenta o que não sou. Por mais grave a doença, a dor já me curou.

Sabe que o cotidiano é como faca em pontas. Não importa! Continuará a dar socos contra essas facas , e isso é pouco.

O que ama é o sangue que o crucia e doma seu ferro . Não espera dos deu­ses , pois engendra o deus que transfere para ele a solida-o de ser o seu próprio universo, porque :

Sou poeta, formo o ciclo do tempo , onde me ente"o.

E os outros, quem sífo?

Vós que desprezais do canto, a mina; do tear da vida, a linha, quem sois?

O poeta nífo responde . Simplesmente preferem que o odeiem profundamente. Mas não pactua com eles . Danado , réu? Sem dúvida , mas também :

Sou vosso vómito profundo.

Réu? Sim, réu . Procede-se a apreensão do chapéu, com idéias impassíveis sob a aba e a velha máscara , que se gruda contra a cara (e esconde nossa própria ver­dade) ; o casaco e a camisa que escondem o peito , onde há pássaros e inferno (a própria condiçlTo humana) , os livros . .. e por fim os vazios da fé , aguçada , calci­nada, mas em pé .

Não , o poeta não quer deliberação . Os conceitos são mortos , os filósofos ro-tos e a idéia de deus gerou o exHio . E mais , como filho da terra :

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Não quero deliberação. Quero a vida sem refrão ou bandeira, companheira.

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Neste poema: "Deliberaçllo Improfícua" pode-se perceber porque a terra se fez mundo. São palavras futuras, verdades escritas, signos e escuros, onde dor­mem ladroes, que dão à terra o sentido que a transforma em mundo. Por isso, sllo necessários os gestos . Só dentro do mundo os gestos adquirem significado e expressllo.

No mundo, é como no tribunal . Tribunal em que comparece com a escura co­ragem de um réu antigo e selvagem:

O que me prendeu lutou comigo e venceu. Vacilava em me reter, mas eu que me entregava, por saber que minha chaga estava exposta na lei.

O poeta vai ao e vem do Tribunal. Por isso, condenou-se (é réu, mas também juiz) a permanecer aqui no mundo.

Os dois poemas seguintes tratam da morte e do morto (tema reiterado na poé­tica de Nejar, como vimos) .

Em "O Revés", topamos novamente com a compreensllo da loucura. Em "Comparecimento", ele dissera :

Não oculto as linhas de loucura que me lutam.

Agora, outra imagem recria a imagem anterior : Ca"ego dentro do engenho a barcaça da loucura.

Tudo é revés porque : O revés é o ende~eço do voraz sobrevivente e talvez, a recompensa que lhe renda.

Se o revés é o endereço , o sortilégio é trincar, com o garfo , as esperanças e as altas estrelas :

e devorar, devorar, devorar os contornos da morte.

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É ele sua própria comida ou o ente que , na matéria , revela seu próprio ser ­revela e esconde . A liturgia contrafeita dessa refeiça-o consiste num assentar-se e levantar , mas como quem viaja e sempre torna ao mesmo lugar. Nada importa , sem saber a serventia das coisas, nem encarcerar-se na rotaça-o da vida , mas dige­rir a argila de onde viemos . Ele , como os outros homens , nã"o viceja entre talhe­res a sóbria altura dos sonhos. O que faz , farto e nunca farto , é renunciar ao abis­mo no prato .

As asas nlfo trabalham , ele não tem peso, mas :

Demente, o mecanismo da morte me alcança - trape! -como um chicote, no tribunal ou em qualquer parte.

E tem início o interrogatório , há muito principiado . Mas agora o interrogató­rio vem específico , em perguntas claras e respostas precisas :

Eu te inte"ogo, réu. Ou me interrogas? A"anca teu disfarce e a minha toga. Quem ressurge no átrio e me escarmenta, com palavras, ações e fe"amentas ? E ressurge montado nos meus e"os, na minha obsessão, surdo camelo ? E sou eu em cada eúlio . Homem ou réu , responde ao julgamento.

E remete tudo ao julgamento , mesmo na-o sabendo onde estão suas culpas e suas sandálias :

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Ao julgamento a sede, ao julgamento a fome, o orgulho, a ambição , o sonho em julgamento. O homem em julgamento sempre, roda e rota, em julgamento o medo, o corvo, a raposa, o termo. Em julgamento todos. Alcaide ou não decidi.

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Aos senhores da ocasião e da guerra, o poeta pergunta:

Aazso devo ajoelhar-me e bendizer as cadeias ?

E ele mesmo responde :

A vós que me despejastes nesta loucura sem telhas e neste chão de desastres, com a resistência das penas, aceitarei o combate.

Aos senhores do tributo responde :

Não vim para oferendas, nem para impor a lei e sua lava, temores e espadas. Vim para dar ao homem sua morada.

Sobre os amigos e inimigos ele diz :

De amigos e inimigos Fui servido, e com tão finada vida e alegados motivos, que ao dar por eles, já partira e quando dei por mim, não estava vivo.

E se de todos o mister for servir de testemunha contra o poeta ou a favor de­le, pede que deixem seus interesses e desconcertos à porta do tribunal , pois não se recusa a receber o que deve receber. Há um enredo nisso tudo e a dor é fugir desse enredo, que algum deus tramou. E, muito claramente, insiste:

Testemunhai a respeito do vagão de passageiros desvencilhado do trem, onde apertados seguimos desesperados e firmes , desconhecendo o que vem.

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Mas que testemunhem também a respeito deles mesmos, nã"o só do poeta . Quanto a ele:

E eu, réu, recebo o que for.

No poema: "O Ganho" diz que não espera nada dos deuses . Mas nem sabe mesmo:

Qual a réstia que os distingue? Qual a torre? Qual o sino ? Vestem blusas, vestem nuvens? São humanos ou divinos? De que tempo o seu declive? De que sarro ?

Mesmo assim nã"o poupa os deuses :

Não poupo, embora sabendo que sua fonte é de água pura.

A maior danação é a dúvida, que leva sob o braço , como um fardo ou no bol­so . Que importa?

Guardo-a, dúvida , intacta numa caixa, com infância e demais seres e haveres até que a morte me faça soltá-la, com as borboletas da caixa.

Maior ainda do que a dúvida é a danação do nome da dúvida :

A maior danação é o próprio nome da dúvida, não ela , volumosa fera .

Seguem-se as danações contra a usura . Aqui, como em outros poemas de Da­nações, o poeta responde a uma pergunta próxima ou remota (num verso repeti­do como um mote) :

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Não sei a que vos leva . . .

perplexo a cada estrofe pelas próprias condiçaes porque se manifesta a usura. E compreende também:

Não se a"epende nunca esta fera na usura , digere o que no homem é a parte mais pura.

No poema : "A Doma e sua Danaçlro" acentua-se novamente a condição huma­na. O homem é um animal doméstico preso a si mesmo pela cauda ridícula e pre­so aos outros pelo movimento da pata . Nossos pais nos engendraram para sermos animais domésticos , uma estrela guiou nossa vida para sermos domésticos . Cres­cemos além da sede e da fome para sermos domésticos . E quando pensamos atin­gir o infmito com as têmporas, ficamos enterrados num sótlro doméstico. E o poema termina , com estes versos trágicos :

Animal doméstico dormes nos calendários e a morte te desperta no melhor da sesta. Doméstico, até na morte doméstico.

E impae-se a necessidade de uma acareaçlro , ordenada pelo julgador (ou pelo juiz). Cena terrível, morde o amor como a um osso. O poeta tropeça em vocábu­los. A ferida sempre se reabre em seu peito quando vê a parte adversa . E cai entre palavras e pesados brinquedos. ~inútil melindrar a outra parte de sarcasmo:

Só se fecha esta ferida , quando partes.

Em "Emendas e Consertos", o que se destaca nlro s[o propriamente as emen­das e consertos , mas o fato de permanecer como um todo :

Onde estou? Jonas, atravesso-me no bojo de um provável domingo. E a morte, cada dia, se resguarda sob o estojo. Assim pretendo caber-me.

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No poema que se segue, descobrimos que o juiz não é outro senão aquele ge­rado pelo próprio poeta - por ele mesmo, contra ele mesmo . Cuidou de não ter calado o juiz nos dias em que viveu, até que finalmente separou-se do encargo, isto é, deixou de julgar-se. E, agora , no tribunal, surgirá o julgador mais terrível , o julgador não parido. Assim:

Nenhuma parte de mim se esconde, no foro de quem reparte o ruim.

Ao fim nada lhe resta a não ser esperar a sentença :

Espero a sentença como quem já pós a mesa. Espero a sentença, apenas.

Contudo , antes da sentença , o poeta faz uma parada e se detém na trama , ao mesmo tempo perguntando e respondendo :

Onde começa a trama e onde termina ? Roldana sobre roldana a trama se configura.

Quem dirige a montaria do ser que me abomina? Roldana sobre roldana, eis a nuíquina da vida.

Na sentença , o tempo do réu é desconhecido , o que significa que só pode ser o tempo do poeta porque é o poeta este réu. Nascido sem explicação ou sentido, como quem diz uma palavra, como se planta um figo ou ameixa e (não podia ignorar) como se planta um grito na garganta . Viajar por profissão (viajar de lívro a livro, extraordinária maneira de viajar), inquilino das coisas . E ele, poeta, jul­gador ao mesmo tempo que réu - considerando o réu (ele mesmo) resolve con­dená-lo a viver em danação. Mas :

Depois suspendo-lhe a pena, para que pereça como veio.

Segue-se o mandado de prisão , a que o julgador determina contra ele, no me­nor tempo e ocasião . E o mandado lhe chega :

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ovelha pega em surpresa, cardada sob a tesoura do nada.

Em "Repúdio" pede que o desterrem , pois ele (que pede) é o sinal que elimi­na a nossa parte de fera . Pede mais que usemos de concisão ao colocar o tampão ou ao colocá-lo qual pão para o consumo do Todo , em torno do qual ele gira e por isso é mais ele. E :

Baixai-me, se o quiserdes, com nojo. Também na morte, preciso de vosso engodo.

"Desígnio" nos traz de volta o tema do cão que se repete (se na-o forem três cães) :

Um cão farejou a minha sorte . .. Um cão me farejou no insondável . . . Um cão me negreja em toda parte . . .

Sélesis? Talvez, pois este cão late no peito onde o poeta se agita. Suas patas depositam-se sobre a rocha do não (o poeta jaz no grito) . E a última estrofe mos­tra que é o ser que nele depõe para encontrar-se . Citemos a estrofe:

Um cão me negreja em toda a parte e morde minha paz e a eterna face do ser que em mim depõe para encontrar-se, enquanto a barca vem e a barca parte.

E o poeta (quero dizer: o réu) , depois de pagar o imposto exigido de existir , não existindo e ser deposto no reino morto e punido sem apelação:

O réu, com os sonhos e os pés vergados e os desvãos, vive de estar embarcado.

Não pertence a esta corte , o rei governa sem ele. Sua alma está costurada à nau, a estas cargas (da vida), a esta duração sem falha na esperança (que sempre surge nos livros de Nejar como uma revelaçã'o súbita , isto é , que não poderíamos sequer suspeitar) :

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Gastei a roupa, o gibtlo, a retirada a minha alma costurada a esta nau, a estas cargas, a esta duraçtfo sem falha na esperança.

Minha alma afe"ada a este corpo, dama e escrava. Minha alma governada na maré que não acaba. Na maré que só termina noutras águas.

No momento de partir , o poeta faz a sua inscriç:ro :

Aqui estou, aberto o pórtico. Serei breve no amor e no transporte. O óbolo está pago, o dia resgatado e a barca pronta, como seu barqueiro amargo.

Aos deuses não ouso nada, nem compro , senão o intervalo de meu próprio espanto. Ca"egai-me barca. E ainda canto.

Não chega a ser estranho, mas é um fato repetido como uma constante : ao fim de cada livro, Nejar aponta de uma maneira irrecorrível o salto para a nova experiência (o novo livro) . Assim em Sélesis, a pergunta? "Qual o destino do ho­mem?" Em Livro de Silbion, sua opção pela terra. Em Livro do Tempo o pró­prio tempo que se constrói e se avoluma no sangue. Em Campeador e o Vento, é o vento que prossegue sempre . Nos dois , a continuidade do tempo e do espaço . Ao começo de Danações transpôs a fronteira e, agora ao fim , está novamente pronto para partir .

Acho conveniente , para encerrar esta indicaç:ro , que voltemos ao trágico . Fa­çamos assim um pequeno confronto entre o mundo grego e o mundo crista-o e , em seguida , procuremos ver se o trágico de nosso dias n:ro será uma persistência do trágico grego , como de certo modo se observa em Nejar.

Paul Ricoeur fazendo um confronto entre a culpabilidade trágica e a culpabi­lidade bíblica, encontra dois traços que as diferenciam : "O primeiro traço da ex-

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periência b1blica - e mais precisamente hebraica - do pecado , concerne ã situa­ção do pecador diante de Deus . O pecado tem desde logo uma grandeza religiosa e nlfo moral. Nã:o é a violaçcro de um mandamento abstrato , né'fo é uma desobe­diência a valores , mas uma lesão na relaçcro pessoal com Deus.( ... ) é aquilo do qual o penitente se arrepende . No ato do arrependimento , o pecado surge retros­pectivamente como uma agresscro contra Deus : contra Ti pequei , só contra Ti ... " O segundo traço do pecado b1blico - continua Paul Ricoeur - comparado à fal­ta trágica é de se apresentar como um acontecimento primordial que sucede na inocência . Pouco importa que para nós este relato né'fo seja mais a história do co­meço e o começo da história , mas somente uma história exemplar. Para cada ho­mem, o pecado começa· e recomeça. Ele sobrevem e entra no mundo ... " Tanto para os gregos quanto para os cristãos , contudo , a responsabilidade é colocada na consciência . Consciência de um pecado cometido contra Deus , diante de quem o homem sempre é culpado (Kierkegaard) e consciência de uma falta da qual se pode não ser responsável (no helenismo) . Neste último caso , a consciência da fal ­ta cometida (caso de Orestes) pode vir a destroçar o homem mesmo né'fo respon­sável , vítima da desumanidade dos deuses . O homem nã'o passa de um brinquedo nas maos das divindades , cumprindo suas decisões as mais extravagentes e crimi­nosas.

O que mais nos interessa contudo é a diferença entre o trágico antigo e o mo­derno, diferença esta muito bem colocada por Kierkegaard . Este vê a diferença no fato de que o herói trágico moderno é subjetivamente refletido em si mesmo e esta reflexã'o não só o leva para fora de todo contato direto com o Estado , a fa­m11ia e o destino , mas muitas vezes também para fora de toda sua vida anterior. O que deve nos ocupar é um momento preciso de sua vida considerada como re­sultado de sua própria ação. É por esta razé'fo que a situaçcro e a réplica são sufi­cientes para esgotar o trágico , porque nada resta daquilo que é espontâneo . A tragédia moderna né'fo possui nenhum primeiro plano épico , nem qualquer heran­ça épica. O herói se mantém ou cai por força de seus próprios a tos .

Mais de cem anos se passaram desde que Kierkegaard escreveu essas palavras. Não poderia ele prever que o homem se tornaria cada vez mais objetivo e sujeito , a forças que , mesmo enraizadas no século 19, só neste século alcançaram pleno desenvolvimento . Novamente o Estado , nã'o somente o Estado totalitário , mas o próprio Estado democrático (através de sua organizaçã'o que penetra em todos os recantos , mesmo os mais privados de nossa vida) é uma força terrível de pressã'o sobre o destino de cada um . Por outra parte , novas forças surgiram substituindo o destino e os deuses gregos , muito bem descritas por Kafka em suas obras (qua­se proféticas) . Que os deuses ou o destino tenham outros nomes , essa diferença já nã'o é suficiente para distinguir o trágico de nossos dias do trágico grego pro­priamente dito . Nejar , assim como Kafka , nã'o obstante possuído de uma rebel­dia quase selvagem , como o réu de "Danações, topou com os deuses (poderia tê­los chamado por outros nomes, se tivesse querido), mas procurou manter sua li-

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herdade diante deles, nã"o obstante saber que estamos condenados só pelo fato de existir. E possível e sou levado a acreditar que a distância entre o trágico grego e o moderno , na colocaçã"o de Kierkegaard , só é dada pela reflexa-o . A existência, sem reflexa-o , subjuga-nos, faz de cada homem um escravo , submetido a todas as forças cegas do nosso tempo (que procuram converter o homem num andróide). A reflexa-o , porém , liberta-nos , pela consciência que adquirimos dessas forças e sua cegueira , ãs quais nos submetemos ou contra as quais lutamos, verdadeiros rebeldes . Daí o sentido maior da poética de Carlos Nejar , um dos mais lúcidos poetas do nosso tempo!

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