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Ciclo dos Fundadores da ABL

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� Ciclo dos Fundadoresda ABL

Alegoria de Rodolfo Amoedosobre José do Patrocínio

O grande José doPatrocínio

João de Scantimburgo

Que tenho eu a falar sobre um negro, durante a vigência daescravidão? Pode-se falar muito ou não falar nada. Pode-se

atribuir o poder à palavra, que já derrubou reinos, impérios, já des-truiu linhagens dinásticas inteiras e já elevou às alturas da glória nãopoucos de nossos semelhantes. Podem-se invocar as palavras profe-ridas por um Deus, na sua peregrinação, o Deus que deu testemunhodo sofrimento humano, da injustiça que nos rastreia os passos, seja ado sublime da poesia, seja a da blasfêmia dos réprobos, que os há emabundância em todas as raças e todas as latitudes deste mundo, quejá não sabemos como encontrar definições diante da agonia da civili-zação, a que os saltos prodigiosos da ciência não poderão dar um li-nimento até a cura.

Imagino, neste local, a Academia onde tantas vozes foram ouvi-das, menos, infelizmente, a voz de José do Patrocínio na nossa tribu-na, ele que sofreu calado, sufocando nas suas lágrimas, nos confran-gimentos de seu coração, a desgraça de sua raça, que parece ter sido

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Conferênciaproferida naABL, a 1o deabril de 2003,abrindo o cicloFundadores daABL.

fadada a viver abaixo do nível da dignidade humana, ainda que seu caráter o te-nha prestigiado. No discurso de ingresso nesta Casa, disse Mário de Alencar,seu sucessor na Cadeira 21, que “não seguiria a regra usada na biografia doshomens notáveis, de procurar nos antecedentes de família e nos atos da infân-cia a razão dos sinais e dos vestígios do destino deles”.

A biografia de José do Patrocínio, se não fosse romanceada, com abundân-cia de imaginação, como a de um Victor Hugo ou de um Sthendal, nada teriaque oferecesse ao curioso em sua história familiar e individual. Havia trabalha-do numa quitanda do interior e na casa paroquial de uma igreja de província,da qual o vigário era seu pai. Daí decidiu vir para a cidade grande, a vitrine cari-oca de seu tempo, quando o Rio de Janeiro projetava inteligências brilhantesou desfazia reputações duvidosas.

Segundo Mário de Alencar, de quem me valho, Patrocínio deixou Campos,onde vivia a vida pachorrenta das cidades do interior, ainda hoje semelhante,sob muitos aspectos, ao seu tempo, e arranjou um emprego como aprendiz defarmácia na Santa Casa de Misericórdia, para ganhar a ínfima quantia de doismil réis, a moeda da época. Tinha casa e comida, mas esse dinheiro não lhe vi-nha da instituição, porém dos companheiros aos quais substituía em domin-gos e dias feriados. Era com o trabalho, enquanto os companheiros folgavam,que podia ter abrigo certo e a mesa na qual se alimentava. A essa quantia mise-rável, acrescentaria dezesseis mil réis recebidos de seu pai, vigário de Campos.Tinha portanto uma escora na qual se ampararia enquanto durasse a munifi-cência obrigada pela consciência do vigário de Campos e a ajuda dos compa-nheiros da farmácia da Misericórdia do Rio de Janeiro.

Homem sem passado de legenda, desses fulgurantes nomes que enchem aspáginas da história, e ou são heróis, ou santos, ou poetas, ou escritores, ou ar-tistas em vária arte, que deixam nome à posteridade, para serem julgados,como o Aleijadinho em Minas Gerais, para citar o nome mais dramático emais genial de quantos perambulam pelas páginas da nossa história.

Para estudar, Patrocínio procurou o Externato Aquino, e lá obteve o queem nossos dias se chama bolsa de estudo. Começou a estudar. Aguilhoado pela

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vocação, queria ser médico. Estava inclinado a ser um desses seres que Deus es-colheu para minorar a desgraça que colhe um ser no curso da vida. Não conse-guiu por uma série de fatores que o impediram de chegar à Faculdade de Me-dicina. Mas, contentou-se com a de Farmácia, graças aos colegas que conquis-tou com sua inteligência, sua lhaneza, e às lições particulares que ministravanas horas vagas. De seus estudos superiores, formou-se, portanto, em Farmá-cia, vindo a ser colega do grande poeta parnasiano Alberto de Oliveira. Nãoexerceu a profissão. Não era a sua vocação. Conformou-se, resignado, com aimpossibilidade de chegar a médico, e deixou na gaveta o diploma de farma-cêutico, indo para outras atividades, numa das quais seria um dos grandes no-mes do Brasil, o jornalismo.

Discreto ou envergonhado, Patrocínio não revelava seu passado, de restosobre não ter muito o que revelar de dias idos de sua infância e juventude namodesta cidade de Campos, onde passou essa quadra de sua vida. Mas não in-teressa nesta evocação de um dos grandes nomes desta Casa e, mais ainda, umdos grandes nomes do Brasil de sua época, sobretudo na época agitada da pro-paganda abolicionista, na qual seu brilho não foi ofuscado pelo de Rui Barbo-sa, Joaquim Nabuco, pela poesia de Castro Alves, e de quantos tomaram partena vigorosa campanha pela Abolição, que tardou, mais de vinte anos depoisque a Guerra de Secessão americana, com seiscentos mil mortos e feridos, li-bertou na grande nação do Norte os seus escravos, que, de resto, deixou-osabandonados, cada qual escolhendo o caminho que desejasse seguir na vida.

O negro José do Patrocínio não precisou esconder nada de seus dias deCampos e dos primeiros tempos no Rio de Janeiro, pois que foram tão límpi-dos quanto sua alma, uma alma clara como um cristal, servido de um carátercristalino como um brilhante. Sem dúvida, José do Patrocínio teve dias amar-gos e dias alegres em sua vida de menino pobre, jovem sem um horizonte aatraí-lo para atividades que enaltecem a pessoa.

Dotado de uma inteligência viva, dessas que captam os acontecimentos, dis-tantes ou próximos, com lucidez, José do Patrocínio não se lançou na poesia,embora tenha poetado, nem na procura de um emprego que desse para o seu sus-

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tento. Iludindo-se a si próprio, preferiu a via do jornalismo, organizando um ve-ículo, a que deu o nome de Os Ferrões – um panfleto, com o qual esperava desven-dar o que fosse acessível aos leitores de jornais, principalmente no estilo com queprocurou se fazer notar numa cidade onde proliferavam os panfletos, os jornaisde quatro páginas sobre debates políticos. Lembra Mário de Alencar, com razão,em seu discurso de ingresso nesta Casa, que José do Patrocínio procurou imitarEça de Queirós e Ramalho Ortigão, que lançaram em Portugal As Farpas, imita-ção, em terras lusas, como os Ferrões no Brasil, das Les Guêpes, de Alphonse Kar,em Paris. Evidentemente, haveria enormes diferenças entre uma e outra publica-ção, mas, o jovem negro, no seu ímpeto de conquistar um lugar de relevo nomeio jornalístico do Rio de Janeiro, fez de seu jornal um baluarte de criticas po-líticas, sociais e econômicas, em suma, o que interessasse ao público. Patrocíniofoi mesmo aguerrido, tantas vezes feroz nas suas críticas, mas Os Ferrões não al-cançaram o prestígio com o qual ele sonhara – pois fora um sonho o seu ímpetode jornalista na linha de Les Guêpes ou de As Farpas – e o jornalzinho, depois dedez números, sem progresso de venda que o sustentasse no Rio de Janeiro e umpouco em São Paulo, acabou suspendendo a tiragem, morrendo de inanição,com decepção amarga do fundador sobre a sua ambição

O jornal serviu, porém, para chamar a atenção dos diretores de jornais comtiragem assegurada e freqüente no Rio de Janeiro e assinantes em São Paulo, ePatrocínio foi contratado pela Gazeta de Notícias, um dos grandes órgãos de im-prensa do Rio de Janeiro, no qual pontificava Ferreira de Araújo, até hoje umdos maiores jornalistas do Brasil, especialmente nos comentários editoriais so-bre a política e suas excentricidades, numa cidade frondeuse e politizada comosempre foi o Rio de Janeiro, ao menos até a mudança da capital para Brasília,quando Juscelino Kubitschek quis manter a palavra dada aos assistentes de umcomício de sua campanha de candidato à Presidência da República.

José do Patrocínio foi, em tudo, um justo. Daí, como vem num salmo, terflorescido como a palmeira, isto é, retamente, entre os seus contemporâneos.Negro, num país que fizera da escravidão a base da força econômica da qualnecessitava nas lavouras de café, no ouro e outros produtos, teria que ser alvo

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de preconceito. Foi, sem dúvida, uma das vítimas desse terrível mal que assolaas sociedades, mas soube superar os entraves que se lhe opunham, como de-monstrou, com rara tenacidade, na sua vida livre. Mostrou-o optando pela far-mácia, por não ter podido cursar a Medicina. Não se deixou abater quando oseu jornalzinho de gossips políticos não passou de dez números, portanto, deuma tremendo malogro, ele que punha na sua publicação a esperança de queviesse a ocupar no Rio de Janeiro um lugar de honra, portanto, destaque den-tre os órgãos de imprensa que circulavam na antiga capital do país.

Patrocínio não era, porém, de desanimar. Reuniu todas as forças com asquais contava, inclusive a que o fez impor-se na sociedade do Rio de Janeiro, econtinuou a sua jornada. Homem tranqüilo, consciente de seu destino, nãopossuía uma psicologia complexa, dessas que levam os mestres, sobretudo oDr. Freud, a longas meditações sobre a sua composição e seus reflexos no com-portamento humano. Patrocínio era o perfeito homem de caráter e de convívioameno. Não havia quem se lhe aproximasse ou viesse a conhecê-lo, que delenão se tornasse amigo. A amizade levou-o para o positivismo, que floresceu noBrasil com ampla atração e conquistou inúmeros adeptos, para influir na pro-clamação da República e na formação dos chefes de governo ao menos durantea primeira República, na qual predominou. Nos antecedentes do golpe de 15de novembro de 1889, o positivismo era a filosofia que, inexplicavelmente,dominou a classe alta da política, das faculdades, da imprensa, enfim, de quan-tos estudassem o pensamento que predominava de Augusto Comte e seus cau-dalosos livros (que estão sendo reeditados, sob a direção, até há pouco tempo,até a sua morte, pelo filosofo e acadêmico francês Henri Gouhier). Mas essadecisão, tomada sem muita convicção, custou-lhe o corte dos 16 mil réis do vi-gário de Campos, evidentemente antipositivista. Também o nosso compatrio-ta Paulo Carneiro estava reunindo todos os seus papéis, sobretudo a corres-pondência, para publicá-los em livro, ainda que o positivismo, como filosofia,não mais tenha seguidores, nem as novas gerações querem saber da lei dos trêsestados, de resto não querem de nada saber de filosofia, que nas faculdades estásendo lecionada gratuitamente, para mantê-la no currículo.

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Mas, Patrocínio desencantou-se com o positivismo e passou-se para o catoli-cismo, no qual se integrou. Estudou-o a fundo, tanto quanto o permitisse a épo-ca, e se tornou um súdito sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não foi, no en-tanto, em religião, um grande espírito, um desses astros que brilham no firma-mento da inteligência, e logo esmaecem. Manteve-se na altura a que chegou, e foiadmirado e aplaudido, como escritor, como expositor e como cultor da apologé-tica cristã. Era, como disse eu acima, um modelo de sinceridade e de conduta ir-repreensível, qualidades com as quais conquistou definitivamente seus contem-porâneos no Rio de Janeiro e em outras cidades do país. Conquistou São Paulo,por exemplo, até onde chegavam os ecos de suas conferências, de seus discursos,de sua luta por seus irmãos de raça, onde era aplaudido e seguido.

Se Patrocínio vivesse hoje seria, certamente, autor de novelas de uma dasemissoras dedicadas a esse filão de audiência. Era folhetinista, embora não osassinasse. Mantinha-o por terem todos os jornais o indefectível folhetim,como o têm hoje algumas televisões, para segurar audiência, que, de outra for-ma, debandaria para outras emissoras ou desistiria da tela fascinante.

Observando-o no seu trabalho, em que era a eficiência, Ferreira de Araújoaproveitou Patrocínio como cronista parlamentar. Foi mandado para a Câma-ra dos Deputados, com ordem para colher tudo quanto necessitasse a fim deatrair leitores. Patrocínio alcançou sucesso, porquanto sabia colher, no seuexato sentido e na oportunidade que se lhe apresentava, a intenção dos deba-tes, as intrigas entre os deputados, que as havia, como há ainda hoje, a atmosfe-ra geral da Câmara. Foi um verdadeiro sucesso. Daí ter Patrocínio se voltadopara o romance, a fim de conquistar uma posição que lhe garantisse um lugarde relevo dentre os mestres da ficção no Brasil da época.

O primeiro romance de Patrocínio foi Mota Coqueiro ou a Pena de Morte. O en-redo: a condenação de um suspeito de crime. Executado, verificou-se que eraum inocente. Patrocínio deveria ter dividido com outros redatores a redaçãodo romance. Mas como se saiu admiravelmente bem, seus colegas o deixaramsozinho para, sozinho, colher os louvores de uma vitória na imprensa e na crí-tica que se fazia na época.

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Conquistada a simpatia da imprensa e dos críticos, Patrocínio escreveu Pe-dro Espanhol, que alcançou igual sucesso, pois o nome do autor já estava feito nacrítica contemporânea. Depois, o seu maior romance, provavelmente, um dosque resistiram ao tempo e pode ser lido hoje com proveito. Trata-se de Os reti-rantes, escrito em 1879, quando da grande seca do Ceará, seca tão violenta queaté mesmo levou o grande poeta português Guerra Junqueiro a dedicar-lhe umpoema, “A seca do Ceará”, em que ele fala da candente abóbada de um forno.

Patrocínio excedeu-se nas páginas, mas o número delas não impediu o seuêxito, e a crítica não deixou de elogiá-lo, embora se referisse à extensão de seunúmero de páginas. Patrocínio aproveitava-se dessa posição, alcançada com oseu talento, para acudir aos interesses de seus irmãos de raça, à abolição.Deu-se inteiro à campanha nas suas várias fases. Em 1888, saiu-se vencedor.

A eloqüência do tribuno, que ele veio a ser, do escritor, que ele era, do jor-nalista, comentarista dos fatos cotidianos, sobretudo da política, o seu mister.Patrocínio elevou-se acima do nível dos homens de seu tempo, formando naclasse dos homens de pensamento, do que, em nossos dias denominamos, fa-zedores de opinião. Era isto o que distinguia Patrocínio dos demais compa-nheiros, com a exceção das grandes figuras de seu tempo, dentre elas as de Ruie Joaquim Nabuco, este que já despontava e se elevava como um dos grandesnomes do nosso liberalismo e do pensamento nacional.

Patrocínio era dotado de rara eloqüência, e como falava sobre a Aboliçãosua eloqüência como que se robustecia, e os auditórios aos quais ele se dirigiaempolgavam-se, voltando-se, desde logo, contra a escravidão. Foi com essenome de eloqüente, de orador fulgurante, de apóstolo de uma grande causa,contra a qual se opunham milhares de brasileiros, com interesses econômicosvinculados à escravidão, que entrou para a História. José do Patrocínio de-monstrou estar possuído de um fogo sagrado, não lhe importando mesmo avida, pois que a ameaça poderia sair de alguma obscura fazenda do Nordeste,ou do interior de mina de ouro de Minas Gerais, ou do bolso de um pagante dematador profissional, numa época de justiça próxima apenas dos grandes cen-tros, e eliminá-lo.

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Mas Patrocínio nem cogitava que poderiam lhe tirar a vida. Até mesmo sedava conta que sua vida, abatida por um sicário, valeria mais para a causa daAbolição do que em luta para alcançar o seu ideal, que era a libertação de seusirmãos de raça e de cor. Num poema famoso e formoso, citado por Mário deAlencar no seu discurso de posse na Academia, deixou Patrocínio expressa nacausa por que se batia, as lágrimas de seu coração de combatente pela invectivacontra a da Abolição:

E levantam-se mudos, taciturnos,Os mártires sombrios da avareza.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

E vão postar-se em quietação de estátuasAnte o feitor, submissos, alinhados;Os cães podem, latir ante os seus donosMas eles devem estar sempre calados.

Eis a revista! Um ato de miséria,De escárnio e de vileza acerbo misto,E que termina o escravo murmurandoJunto ao senhor: louvado seja o Cristo.

Louvado seja o Cristo! – mas Seus lábiosEnsinavam doçura e piedade;Não mandavam que o déspota chumbasseUma grilheta aos pés da humanidade.

Louvado seja o Cristo! – mas nas sombrasDaquela angústia longa e sobre-humanaIrisava-se um arco de aliançaPor todo o céu da consciência humana.

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Louvado seja o Cristo! – Ele era doceComo aos domingos o romper da aurora;Escravo! Não é ele quem sustentaO homem torpe e vil que vos explora?

Quando se há de curar essa medonhaChega hedionda e fatal do cativeiro;E há de o trabalho sacudir os braçosLançando dos grilhões os estilhaçosLonge dos céus formosos do Cruzeiro?!

José do Patrocínio, o Zé do Pato, como carinhosamente o chamavam seusamigos das letras e do jornalismo, foi um rugido que ecoou pelo Brasil inteiro,abalando a escravidão. Era um letrado, que se fizera por si mesmo, que apren-dera com sacrifício, que se formara farmacêutico com os maiores esforços pes-soais e econômicos, pois que era pobre, e como letrado fez reboar pelo Brasil asua voz tonitruante, que, finalmente, ajudou a mover montanhas, as monta-nhas da opressão, da insensibilidade dos interessados no eito dos escravos, enão os queiram alforriados, pois que se veriam desfalcados do valor dessa forçahumana, que deveria ser livre, como livres vieram a ser os escravos americanos,pela Guerra Civil, que fez de Lincoln o herói nacional, a maior figura da histó-ria dos Estados Unidos.

A vida de José do Patrocínio não teve lances heróicos. Não se pode compararcom os heróis da Guerra do Paraguai, ou com grandes vozes, ricas economica-mente e ricas de amor à pátria, como a de Rui e de Joaquim Nabuco. Não se lhepode comparar Machado de Assis, mestiço, portanto, de origem africana, comoo fogoso Patrocínio, mas o nosso grande combatente, o nosso orador de grandesrecursos oratórios, o nosso combatente da justa causa da Abolição foi um dosnomes que ficaram na História do Brasil, para edificação das gerações vindou-ras, e fez mais do que o Zumbi, por ter se exposto, de peito aberto, contraeventuais assassinos, de pena afiada, como os mais corajosos combatentes da

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imprensa, como os pobres que se erguem acima dos ricos, enfrentam o poderioda fortuna, e acabam vencendo quando justa é a causa que abraçaram.

José do Patrocínio viveu pobre, mas com meios suficientes para se manterdecentemente. Nos seus últimos dias na Terra, empobreceu mais, e já não ti-nha com que se manter, senão com o apoio de alguns amigos e com os jornaispara os quais escrevia, a fim de obter algum dinheiro, com que se alimentava ese vestia pobremente, não raro próximo da indigência.

Concluindo, tenho a maior satisfação em proclamar aqui José do Patrocí-nio um dos maiores brasileiros de seu tempo, um grande compatriota nosso,que teve uma vida aventurosa, inteiramente dedicada às grandes causas, amaior das quais a Abolição. Bendito seja o nome de José do Patrocínio.

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Patrocínio: Umjornalista na Abolição

Murilo Melo Filho

Desejo que minhas primeiras palavras sejam do maior e domais sincero agradecimento ao Acadêmico Ivan Junqueira,

pelo honroso convite para fazer hoje, aqui, esta alinhavada palestrasobre José do Patrocínio, na celebração do sesquicentenário do seunascimento, que se completará no dia 9 de outubro deste ano, e noprosseguimento de um Ciclo de Conferências sobre os Fundadoresdesta Academia. Agradeço também as generosas palavras do Acadê-mico Ivan Junqueira, com as quais aqui fui apresentado, e que meemocionaram profundamente.

João Carlos Monteiro era o nome de um vigário da Cidade deCampos dos Goitacazes, no Norte Fluminense, debruçada à mar-gem direita do rio Paraíba, famosa pela sua goiabada e pela sua ca-na-de-açúcar.

Conferênciaproferida naABL, a 8 de abrilde 2003, duranteo ciclo Fundadoresda ABL.

João Carlos formara-se em Direito pela Universidade de Coimbra, era vere-ador de sua Cidade de Campos e já fora promovido a cônego.

Naquele tempo, a Igreja Católica permitia que seus clérigos fossem maçonse João Carlos era o Venerável da Loja “Firme União”, coabitando as suas fun-ções de pastor das almas com os prazeres de duas mesas: a dos jogos de azar e ados banquetes gastronômicos.

Elegera-se deputado provincial, sendo também um fazendeiro e senhor de 92escravos, que ele havia “reescravizado” como “africanos livres”. Ele já tinha 54anos de idade quando se enfeitiçou por uma negrinha, de 13 anos, chamada Justi-na Maria, que engravidou e que, no dia 9 de outubro de 1853 – há 150 anos, por-tanto – deu à luz um bebê, com o nome de José Carlos do Patrocínio, batizado nodia 8 de novembro, dedicado ao Patrocínio da Virgem Santíssima, e que era maisum fluminense, conterrâneo aqui do Acadêmico Marcos Almir Madeira.

� Na “roda dos expostos”

Filho da escrava Justina Maria e do padre João Carlos Monteiro, Patrocíniopropriamente não nasceu, porque, segundo informa o poeta campista AntônioRoberto Fernandes, diretor da Biblioteca Municipal Nilo Peçanha, simples-mente foi “exposto” numa janela do Hospital da Santa Casa de Misericórdia,na época situada à Praça das Quatro Jornadas, de Campos.

Na calada da noite, ele foi depositado no peitoril da janela e empurrado demodo a que ela girasse em torno de um eixo central, num movimento que cha-mava a atenção da enfermeira de plantão. Foi então recolhido, medicado eabrigado, até que aparecesse alguém – neste caso a sua própria mãe – para oadotar. Aquela “roda dos expostos” tinha sido um recurso adotado para quenão se tornasse pública a sua origem incestuosa.

Filho de uma união tão ilícita, tão incomum e criado numa senzala, Patrocí-nio muito cedo se revoltou contra os açoites impostos pelo padrasto aos seusirmãos negros.

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Sua mãe, Justina, já não era mais a preferida do Cônego João Carlos. E Josédo Patrocínio – o Zeca – sofria com aquela discriminação, que levara sua mãea transformar-se numa quitandeira, envolvida com o comércio de frutas e delegumes.

Aos 15 anos de idade, o menino Patrocínio não se conformava com as hu-milhações sofridas pela sua mãe, na qualidade de mais uma das muitas amásiasdo seu padrasto poligâmico, que sequer o havia reconhecido como filho.

Aquele era um lar sem afeição, simplesmente insuportável, sob o guante deum vigário impulsivo e violento.

Certo dia, o menino confessou a Justina Maria:– Mãe, quero ir embora daqui. Não agüento mais vê-la tão submissa, tão in-

sultada e tão ofendida justamente por uma das outras amantes de João CarlosMonteiro.

Todos quantos, algum dia, tiveram também de romper com suas famílias esuas cidades, para irem em busca de um lugar ao sol, como deve ter acontecidocom alguns aqui presentes, podem imaginar facilmente o impacto causado nacabeça de Justina Maria, com aquela separação.

Afinal de contas, o jovem Patrocínio era uma das poucas entidades que ain-da lhe prendia à vida. Seria muito duro e difícil para ela privar-se dele e ficardesamparada na solidão do seu cativeiro. Ia perdê-lo, mas resignava-se por verque aquela decisão do filho era certa e lógica.

� Fugindo de campos

Patrocínio fugiu de Campos e veio para o Rio. Empregou-se na Santa Casade Misericórdia, aqui bem perto, na Rua Santa Luzia, trabalhando na sua far-mácia, como aprendiz e como servente, a braços com remédios e purgantes e,na enfermaria, como ajudante, às voltas com cadáveres pobres e indigentes.

Vai trabalhar no jornal A República, de Salvador de Mendonça, o fundador,nesta Academia, da minha Cadeira no 20, que acabara de publicar o “Manifes-to Republicano”, de Quintino Bocaiúva. E na Gazeta de Notícias, onde faz sua es-

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Patrocín io : Um jornal i sta na Abol ição

tréia como o grande e admirável jornalista que viria a ser pelos anos afora. Pu-blica também seus primeiros versos, contra a inauguração de uma estátua debronze, em homenagem ao Imperador:

Aí vês, oh! nefando aviltamento,De um despotismo cruento.Neste solo americano,Nas abas do régio bronze,Ou seja, escárnio ao invés,Os escravos curvos aos seus pés,Aos pés dum rei, dum tirano.

Patrocínio é aí amparado por João Vilanova e pelo Capitão Emiliano Rosade Sena, que o convida para morar em sua casa e para ser o instrutor de suas fi-lhas, uma das quais, Maria Henriqueta, viria a ser justamente sua mulher ecompanheira pelo resto da vida.

Na Gazeta de Notícias, começa a escrever artigos políticos, já pregando o abo-licionismo e usando o pseudônimo de “Proudhomme”, em homenagem a Pi-erre-Joseph Proudhom, o pai do anarquismo.

Era a época em que Manuel Antônio de Almeida começava a publicar os ca-pítulos do seu Memórias de um Sargento de Milícias e José de Alencar fazia o mesmocom o seu O Guarani.

� O primeiro livro

Nesse meio tempo, um fazendeiro rico, Mota Coqueiro, e mais três capata-zes da região de Campos, eram executados com a pena de morte, sob a acusa-ção de terem assassinado uma família humilde do local. Um ano depois, Pa-trocínio recebe a carta de um padre que, às vésperas de morrer, escuta a confis-são de um lavrador, assumindo a autoria do crime.

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Murilo Melo Filho

Uma onda de protestos e de revolta toma conta do Rio e Patrocínio apro-veita a história para publicar em capítulos o seu primeiro livro: Mota Coqueiro e apena de morte.

Pela Gazeta de Notícias, vai ao Ceará e, em candentes reportagens, narra o dra-ma da seca que assolou o Nordeste em 1877, com Pedro II declarando que asjóias da Coroa deviam ser vendidas, contanto que nenhum cearense morressede fome – um assunto, aliás, que hoje, mais de 100 anos depois – continuaatualíssimo e desafiante.

Durante quatro meses, Patrocínio convive com os flagelados, sua miséria,pobreza, doenças, falta d’água, abandono, prostituição e morte.

Voltando de lá, escreve Os retirantes, que, localizado no Nordeste, tem umpadre como seu personagem central: um padre devasso e desonesto, que nãoera outro senão o próprio Cônego Monteiro, pai de Patrocínio.

Esse Os Retirantes é o nosso primeiro livro sobre o drama das secas, precursore pioneiro do romance regionalista do Nordeste, assim saudado pelo crítico eAcadêmico Araripe Júnior: “O Autor de Os retirantes é um escritor apaixonado,que chora e se sensibiliza quando escreve e que se exalta e se enfurece quandofala.”

Já fazia dez anos que Patrocínio estava longe de sua mãe e dedica-lhe umpoema:

Como outrora, ligou-se à minha infância,Liguei também a ti a mocidade,Não pela glória, que não tive nunca,Mas pelo coração, pela saudade.

Patrocínio não nutria os mesmos sentimentos pelo padrasto, e escreve a po-esia “O Padre”:

É preciso lançar por terra esse espantalhoQue se diz intérprete divino.

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Patrocín io : Um jornal i sta na Abol ição

E, sob a máscara de moral austera,Esconde a negra vocação do abutreE os instintos sangrentos da pantera.

Patrocínio já era aí um corajoso jornalista, um panfletário, engolfado nascampanhas contra a escravatura e a favor da República.

Casa-se com Maria Henriqueta, a Bibi, que tinha sido sua aluna, uma jovembranca e bonita, dez anos mais moça do que ele.

O jornalista Apulcro de Castro, de péssima reputação, não perdoa Patrocí-nio. E escreve em O Corsário:

“Casou-se o preto cínico da Gazeta e está muito ancho o manganão. Mas,com quem ele foi casar-se? Procurou por acaso fazer a felicidade de uma preti-nha, sua parenta? Escolheu uma dama de sua própria raça? Não. Nessa, nãocaiu o nosso moleque, um espertalhão, um negrinho que quis por força umanoiva, dengosa, alva e branca.”

� No Ceará, novamente

Ao Ceará, onde estivera anos antes, testemunhando a tragédia da seca, vol-taria depois, já então alcunhado de “Marechal Negro”, para solidarizar-se comos bravos jangadeiros cearenses, que, sob a liderança de Chico da Matilde, ha-viam bloqueado o porto de Fortaleza ao desembarque de qualquer navio ne-greiro.

Vai à Europa, explicando sua ausência da campanha abolicionista pela ne-cessidade de conseguir informações e documentos para o seu folhetim PedroEspanhol, que realmente lançaria pouco depois, e também em busca de melhorescondições de saúde. Patrocínio estava em Paris, sendo homenageado por im-portantes intelectuais franceses, quando recebe a notícia de que a escravidão

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fora abolida no Ceará. E ali mesmo faz um apelo para que Victor Hugo apóieos abolicionistas brasileiros, recebendo dele, 48 horas depois e por escrito, aseguinte mensagem:

“Uma província brasileira acaba de declarar extinta a escravatura, desfe-chando nela um golpe decisivo. Esta é uma grande notícia. Porque, antes dofim deste século, a escravatura terá desaparecido sobre a face da Terra.”

No auge da popularidade, Patrocínio resolve visitar Campos. E aí é sauda-do por um combativo orador local, muito popular e de muito sucesso, chama-do Carlos de Lacerda – (que pelo nome não se perca) – um homônimo e ante-cessor do futuro lutador e líder Deputado da Banda de Música udenista, com-panheiro aqui, do nosso estimado Acadêmico Oscar Dias Corrêa.

Aí em Campos, Patrocínio experimenta uma das maiores emoções de suavida. Tinha 32 anos e estava afastado há 17 anos dos seus conterrâneos. Du-rante um grande jantar que lhe foi oferecido, o mestre-de-cerimônias chamoupara presidir a mesa uma escrava de nome Justina Maria, justamente sua mãe,com a qual ele se reencontra, em meio a muitos beijos e muitas lágrimas.

Justina já estava sofrendo as dores de um quisto surgido quando ainda erajovem. Trazida pelo filho para o Rio de Janeiro, interna-se na Santa Casa deMisericórdia, em cuja farmácia, Patrocínio, aos 14 anos, tivera, como já vimos,o seu primeiro emprego.

É então operada daquele quisto, já então transformado num perigoso tu-mor cancerígeno, do qual viria a falecer, cinco meses depois. Mas, pouco antesde morrer, Justina Maria ainda tem chance de embalar nos braços o seu neto:José do Patrocínio Filho, recém-nascido, e que mais tarde seria também um te-atrólogo e um razoável cronista (meio boêmio).

Aquela escrava, humilhada e repudiada pelo Cônego João Carlos Monteiro,teve no seu enterro a presença de grandes homens, correligionários do seu fi-lho: Campos Sales, Prudente de Morais, Olavo Bilac, Coelho Neto, Rui Bar-

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Patrocín io : Um jornal i sta na Abol ição

bosa, Joaquim Nabuco, Olegário e José Mariano, Aristides Espínola, LopesTrovão, Paula Ney e André Rebouças.

A morte e o enterro de Justina abalam Patrocínio, mas não o fazem desistirda luta. Afinal, sua mãe não vira em vida o fim da escravatura, mas muitas ou-tras mães não morreriam sem assistir à sua Abolição.

� A abolição, em ascensão

A seguir, Patrocínio elege-se vereador da Cidade do Rio de Janeiro, con-quistando uma nova tribuna para a sua pregação abolicionista, que, por sinal,naqueles primeiros dias de maio de 1888, atravessa uma fase de crescente ex-pansão.

Fazendeiros de São Paulo e de Minas, até então conhecidos por suas arrai-gadas convicções escravagistas, começam a alforriar seus negros.

Multiplicam-se os casos de escravos fugitivos, logo recolhidos e protegidosem locais seguros.

Já enfermo, Dom Pedro II embarca para a Europa, em busca de saúde, e dei-xa no trono sua filha, a Regente Isabel, aconselhando-a no embarque: “Faça aAbolição, antes que algum aventureiro a faça.”

Na Gazeta de Notícias, Patrocínio escreve:

“A escravidão é um roubo. E todo dono de escravo é um ladrão. Ela é o nos-so opróbrio, que o Brasil simplesmente não merece.

O mais depressa possível, devemos varrê-la do nosso cenário.Não há liberdade nem independência em uma terra com 1 milhão e 500 mil

escravos. De que valerá a pena instalarmos uma República numa pátria de tan-tos cativos?”

As lendas brasileiras sobre negros já eram aí enriquecidas pelo heroísmo deHenrique Dias contra os holandeses, em Pernambuco; por Zumbi dos Palma-

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res, em Alagoas; pelo Quilombo Arraial dos Crioulos, em Minas; pelo esplen-dor de Chica da Silva, no Arraial do Tijuco; pela resistência de Antônio Con-selheiro na epopéia de Canudos, na Bahia; e pela tradição de “Negrinho doPastoreio”, no Rio Grande do Sul.

O abolicionismo passou então por duas fases bem distintas: uma até 1879,romântica, idealista, teórica, reflexiva; e outra, até 1888, bem mais prática, ob-jetiva, com os pés no chão.

Funda-se aí a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, com duas alas bas-tante definidas: A primeira: aristocrática, formada por Nabuco, no Parlamento,com apoio de Joaquim Serra, André Rebouças, Coelho Neto, Luís Murat,Raul Pompéia e outros intelectuais cultos e refinados, meio filósofos e teóri-cos. A segunda: popular, constituída por Patrocínio, na rua e no meio do povo,com Lopes Trovão, Luís Gama, Paula Ney, Pardal Mallet, Ferreira de Mene-zes, e outros líderes de ação prática e extremada, tribunos populares, que se ali-mentavam na reação dos comícios.

� Uma oratória diferente

Ao revés de Nabuco, a oratória de Patrocínio nada tinha de elegante. Pelocontrário: não seguia os modelos clássicos, não fora educada pela Retórica, eradesengonçada e feia, bamboleante, de gestos descoordenados. Mas, compensa-va esse desacerto com uma emoção que emanava de dentro daquele negro bai-xo, grosso, rechonchudo, quase calvo – de barba espessa e cerrada, no figurinode José de Alencar e de Alcindo Guanabara, uma barba predecessora da de Fi-del Castro e do nosso Lula – com um turbilhão de frases curtas e contunden-tes, que falavam de perto aos corações e às mentes de um público vibrátil acada frase sua.

Dir-se-ia uma centelha que se acendia e que inflamava. As palavras jorravamcomo se estivessem num turbilhão, em catadupas, de uma cachoeira, com uma es-plêndida faculdade criadora, imagens improvisadas e comparações imprevistas.

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O Acadêmico Olavo Bilac confessa que nunca esquecerá aquela cabeça queassomava à tribuna, transfigurada e olímpica, parecendo crescer, inchar, dila-tar-se, num torvelinho de rompantes geniais.

Essas imagens brotavam do fundo de sua alma, espontâneas e repentinas,que captavam o auditório, mudo e quedo, submisso e silencioso, perplexo e derespiração suspensa, num estado de êxtase, como se estivesse bebendo cadauma de suas palavras.

Os epítetos e as metáforas brotavam em cintilações de fulgores e de relâm-pagos.

As multidões prostravam-se aos seus pés, dóceis e obedientes, domadas, di-ante daquele Deus de ébano.

Era um tumulto feito homem, como bem definiu o Acadêmico Araripe Júnior,um orador diferente, um misto de Cícero, Mirabeau, Danton, Lincoln e Robespi-erre, que parecia estar num palco, como um ator, representando um personagemimportante, que no fundo era ele mesmo. Recorda o Acadêmico Coelho Neto:

“Quem uma vez o viu na tribuna, guarda, por certo, na lembrança, a ima-gem de uma estranha figura semibárbara, quase grotesca. Não era um tribunode escola, disciplinado e ordeiro.

O seu discurso não tinha melodia: era um silvo ou um rugido. O seu gestoera desconexo. O seu olhar despendia fagulhas. Avançava, recuava, girava, re-traía-se, ficava na ponta dos pés e despejava as suas bombas.”

Há poucos minutos, o Acadêmico Marcos Almir Madeira contou-me queCoelho Neto definia Patrocínio como “um desmantelo de tormenta”.

A batalha pela Abolição da Escravatura já tinha mais de meio século e se ini-ciara antes mesmo de Patrocínio nascer.

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Retrato de José do PatrocínioDesenho: anônimo, s.d.

Retrato de José do Patrocínio na juventude.Desenho: anônimo, c. 1870.

Primeiro. Ela começara no dia 7 de novembro de 1831, com a chamada“Lei Feijó”, assinada por Diogo Antônio Feijó, um sacerdote paulista, Minis-tro da Justiça da Regência Trina, que libertava os africanos chegados depoisdela.

Segundo. Prosseguira com a Lei Eusébio de Queirós, sancionada em 4 desetembro de 1850, que tomou o nome em homenagem ao seu Autor, nascidoem Angola, Ministro da Justiça no primeiro Gabinete do Marquês de Olinda eque acabava com o tráfico dos escravos.

Terceiro. Continuara com a Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de1871, apresentada pelo Visconde do Rio Branco e promulgada pela PrincesaIsabel, então na Regência do Império, que libertava os nascituros, filhos nasci-dos de mãe escrava.

Quarto. Seguira adiante com o Projeto Saraiva, apresentado em 13 de maiode 1885 e transformado na Lei dos Sexagenários, que tornava livres os escra-vos com mais de 60 anos.

E quinto. Era concluída, a seguir, com a Lei Áurea, que tomou o no 3.353,–redigida, apresentada, discutida e aprovada na Câmara e no Senado, no espa-ço de uma semana, apenas – para ser promulgada pela Princesa Isabel, no dia13 de maio de 1888, que assim cumpria o conselho deixado pelo seu pai e que,por completo, extinguia finalmente a escravidão no Brasil.

� 13 de maio: dia histórico

Numa crônica, Machado de Assis assim descreveu aquele 13 de maio: “Eraum belo dia de sol claro e fulgurante. O povo em delírio acorreu à Rua do Ou-vidor para aclamar os líderes da campanha pela Abolição, que apareciam na sa-cada dos edifícios e aí recebiam os aplausos populares.”

No interior do Paço Imperial, a cena fora rápida. Em companhia do seumarido, Gaston d’Orleans, o Conde d’Eu, um francês impopular, a PrincesaIsabel entra na sala, senta-se à mesa e, com letra firme – usando uma caneta deouro comprada numa subscrição popular – sanciona o projeto que ela própriaremetera ao Parlamento, e que abolia para sempre a escravatura no Brasil.

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Patrocínio, que entrara na sala carregado nos ombros de populares, aproxi-ma-se da Princesa, ajoelha-se, beija-lhe as mãos e proclama:

– Vossa Alteza é a querida mãe branca dos escravos e a mãe loira dos brasi-leiros.

Não menos emocionado, o monarquista Joaquim Nabuco chega à janela doPalácio, esforça-se para discursar, mas, com a voz embargada, consegue apenasdizer:

– Está abolida a escravidão. Não há mais escravos no Brasil.Aplausos, flores e palmas festejam suas palavras. O povo dançava nas ruas.

E a Abolição chegava finalmente ao seu feliz desenlace, como o mais belo mo-vimento democrático de toda a História brasileira.

Aquela conquista, que nos Estados Unidos custara o preço de uma sangren-ta guerra de cinco anos – a Guerra da Secessão – entre o Norte e o Sul, aqui noBrasil era obtida com risos e festas.

As comemorações do triunfo não atraíam Patrocínio, nem o fascinavam.Não gostava das vitórias, que costumam decepar os adversários. Atingido oobjetivo, preferia recolher-se.

E, na companhia de Paula Ney, refugia-se na redação do seu jornal. Estácansado e exausto. Precisa dar um cochilo, mas é interrompido:

– Está aí fora o Dr. Benjamim Constant, com um grupo de cegos do seuInstituto, para cumprimentá-lo.

Mesmo a contragosto, Patrocínio manda-os entrar. E Benjamim Constantos apresenta:

– Patrocínio, trouxe-lhe aqui os meus cegos. Eles também te querem ver. Mui-to de propósito, emprego o verbo: os meus cegos te querem ver.

Patrocínio tenta agradecer a homenagem. Gagueja algumas palavras, masnão as termina. Está comovido e começa a chorar.

Benjamim Constant percebe o desconforto da situação e explica:– Meus queridos filhos cegos. Nem sempre as palavras conseguem exprimir

o que sentimos. Chorando, este grande homem e orador, que é José do Patro-cínio, acaba de pronunciar o seu mais belo discurso. Não o vistes nem o ouvis-

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tes falar. Mas o vosso coração deve tê-lo sentido. Basta de emoções. Vamosembora.

E dando o braço a cada um deles, lá se foi Benjamim Constant, com os seuscegos, cortando a multidão.

� A libertação, em vez da coroa

Dizia-se que, sancionando aquele decreto, a Princesa imaginava salvar aMonarquia, primeiro para seu pai e em seguida para ela mesma, embora o Ba-rão de Cotegipe a tivesse advertido, poucos meses antes, de que ela poderia ga-nhar a batalha da Abolição, mas seguramente perderia a guerra da Coroa. Nodia 13 de maio, quando mostrou o decreto da libertação ao Conde d’Eu, seumarido, a Regente ouviu dele o seguinte conselho:

– Não assine esse papel, Princesa. Este é o fim da Monarquia. V. Alteza estáperdendo o trono.

E ela respondeu com uma pergunta:– Que direito tenho eu, livre e batizada, de permitir que meus irmãos negros

continuem escravizados, eles que, para libertá-los, só têm a mim?Não fora à-toa, nem um mero impulso pessoal, aquele beijo de Patrocínio

na mão da Princesa Isabel. Por algum tempo, triunfará nele o abolicionista,mas nele também, durante algum tempo, morrerá o republicano. Sua gratidãoà Princesa era total e apaixonada, a ponto de incentivar a organização de umaGuarda Negra, constituída de ex-escravos, dispostos a defender a Princesa Re-gente, contra tudo e contra todos.

Segundo Patrocínio, aquela Princesa de nome extenso: Isabel, Cristina, Le-opoldina, Augusta, Micaela, Gabriela, Rafaela e Gonzaga de Bragança, quandoassinou a Lei Áurea, já estava conformada de que trocava o seu Império pela li-bertação dos escravos.

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Minhas Senhoras e meus Senhores.Peço-lhes agora licença para descrever aqui – com mais detalhes – um epi-

sódio a que o Acadêmico Ivan Junqueira se referiu, de passagem, na terça-feirada semana passada.

Eram 20 horas do dia 17 de junho de 1889. Estávamos, naquela noite, noTeatro Lucinda, aqui no Rio, quando Patrocínio se vê surpreendido e é pro-vocado por outro grande orador, Silva Jardim – que depois morreria tragica-mente na cratera do Vesúvio – e que, naquele momento, com dureza, o acu-sava de ser um traidor do movimento republicano, rendido aos encantos daPrincesa Isabel.

Patrocínio estava no camarote em frente, murcho e cabisbaixo, semiderro-tado por aquela enxurrada de ataques. À certa altura, ensaiou uma resposta tí-mida, sem brilho e sem calor.

� A surpresa de um aparte

Paula Ney, seu fraternal amigo, esgueirou-se de sua companhia e foi lá parao meio do povão, na platéia, de onde, escondido, desferiu um aparte:

– Cala a boca, negro sem-vergonha. És o último negro vendido e sujo.Aquela interrupção feriu Patrocínio intensamente. Sem saber de onde ela

vinha, cuidou de respondê-la.Já agora era a fera ferida, de olhos esbugalhados, narinas acesas, o corpo trê-

mulo de indignação, que se agigantava na resposta, não apenas a Silva Jardim,mas também ao desconhecido aparteante:

“Negro, sou, sim, com muito orgulho. Deus deu-me a cor de Otelo, paraque eu sempre honrasse os negros, dos quais tenho a honra de descender.

Sim, sou um negro de nascimento, filho de um padre com uma escrava.Nada mais sou do que uma pessoa de três pês: preto, pobre e plebeu.”E prosseguiu com tanto brilho, que saiu do Teatro carregado em triunfo.

Depois, no camarim, de acordo com relato do Acadêmico Osvaldo Orico, Pa-trocínio reclamou:

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Patrocín io : Um jornal i sta na Abol ição

– Eu só queria saber quem foi o patife que me atirou aquele desaforo.E Paula Ney, presente:– Fui eu, este seu criado.– Foste tu, mesmo?– Fui eu, sim. Querias então que eu assistisse, indiferente e omisso, à tua

derrota? Os amigos são mesmo para essas ocasiões.Estavas dormindo no teu discurso. Eu vibrei um raio para te acordar. Só

com os raios se despertam os titãs.”

� Desterro e ostracismo

Meus amigos.Acusado de monarquista, Patrocínio é esquecido na organização do Minis-

tério republicano, que conta com seus amigos: Quintino Bocaiúva, Rui Barbo-sa e Benjamim Constant.

A República já tinha mais de um ano. E não se lembrava do seu nome. So-bretudo os militares fecham a questão contra ele, por causa de sua fidelidade aNabuco e Hilário de Gouveia, dois monarquistas radicais.

Patrocínio resolve candidatar-se à Câmara pelo 2o Distrito do Rio de Janei-ro. Recebe 713 votos e é derrotado por Timóteo da Costa.

Floriano rebela-se contra Deodoro e termina conquistando o poder, parainiciar uma implacável perseguição aos adversários.

Patrocínio é desterrado para Cucuí – lá no Alto Rio Negro – onde ele e seugrupo enfrentam doenças, febres, fome e esquecimento.

Anistiado, volta ao Rio, mas não abranda o combate a Floriano, acusan-do-o de trair a República e reaproximando-se de velhos companheiros: Rui,Bilac, Pardal Mallet, Prudente, Campos Sales, Quintino e Seabra.

O seu novo jornal A Cidade do Rio é fechado pelo governo, que o persegue e oameaça de prisão.

Com a posse de Prudente de Morais, Patrocínio reabre o jornal, fiel aos seusideais republicanos, porém sem o mesmo sucesso de antes.

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A fim de ocupar seu tempo, lança um projeto para construção de um ba-lão dirigível – como aqui já narrou o Acadêmico Ivan Junqueira – cheio deum gás mais leve do que o ar, e que, por isto mesmo, podia elevar-se e man-ter-se na atmosfera. Era uma réplica e um invento mais ou menos seme-lhantes ao “Pax” de Augusto Severo e ao “Demoiselle”, de Santos Du-mont, que exigia investimentos pesados e inacessíveis ao seu bolso de jor-nalista desempregado.

Aprofunda seus estudos sobre aerostática, aeronáutica, mecânica e física.Aperfeiçoa o seu projeto, consegue uma patente, mas não obtém o dinheironecessário para executá-lo.

Mais uma vez, candidata-se a um cargo político, agora ao Senado, na vagadeixada por Lopes Trovão.

Tem uma plataforma socialista, de apoio às camadas mais pobres. E nova-mente é derrotado.

Pela terceira vez, também, afasta-se de Rui, por causa de Prudente de Mora-is: Rui, o Tartufo, contra Prudente; e Patrocínio, chamado de Aretino, a favor dePrudente.

Eram dois gigantes e dois ícones do jornalismo brasileiro, que se bica-vam com muita facilidade e que iriam hostilizar-se e reaproximar-se vezessucessivas.

Também com Carlos de Laet Patrocínio nunca teve muitas afinidades. Vi-viam brigando. Certa tarde, quando os fundadores desta Academia – entre osquais ele próprio – ainda se reuniam na pequena sala do escritório de RodrigoOctavio, à Rua da Quitanda 47, Patrocínio ali chegou e só havia uma cadeiravaga, justamente bem ao lado de Laet.

Patrocínio olhou, dirigiu-se para ela, mas antes quis saber:– Afinal de contas, nós dois, hoje, estamos de bem ou estamos de mal?– Estamos de bem.– Então, posso sentar-me. Boa-tarde.

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� A cadeira 21

José do Patrocínio foi o fundador da nossa Cadeira no 21 – depois chamadade “a Cadeira da Liberdade” – que teve como patrono Joaquim Serra e, comosucessores, acadêmicos de direita e de esquerda, em eleições pendulares, quebem atestam a nossa índole apartidária: Mário de Alencar e Olegário Mariano,de direita; Álvaro Moreyra, de esquerda; Adonias Filho, de direita; Dias Go-mes, de esquerda; Roberto Campos, de direita, até o atual ocupante, Paulo Co-elho, enfim, um radical de centro.

Patrocínio não foi o que hoje se chamaria propriamente de um escritor. Alémdos romances Mota Coqueiro e Os retirantes e do folhetim Pedro Espanhol, não tevepretensão nem tempo de produzir uma obra literária realmente importante.

Esses seus três livros estão esgotadíssimos; deles existem hoje talvez dois outrês exemplares e bem que se poderia encontrar um editor interessado em re-publicá-los.

Seria desejável também que se reunissem os seus artigos publicados nas três“Gazetas” da época: a “de Notícias”, a “da Tarde” e a “do Rio”, e se editassem os seusdiscursos pronunciados na campanha da Abolição.

Os seus discursos, pronunciados por um dos maiores “meetingueiros” e“palanqueiros” de toda a oratória brasileira, poderiam até servir como subsí-dios para ilustrar a nossa variada bibliografia sobre a escravidão, que teveseus pontos altos em Castro Alves, com “Navio Negreiro” e “Vozesd’África”; em Bernardo Guimarães, com Escrava Isaura; em Machado, com opoema “Sabina”; em Artur Azevedo, com A escrava”; em Aluísio Azevedo,com O cortiço e O mulato, passando por Júlio Ribeiro, com A carne; por CoelhoNeto, com A conquista e O rei negro; por Luís Guimarães Júnior, com “Os es-cravos”; Raimundo Correia com “O banzo”; Vicente de Carvalho, com“Fugindo ao cativeiro”; até chegar a Jorge de Lima, com “Essa nega Fulô”; aCassiano Ricardo, com “Sangue africano”; a Leonardo Mota, com “Violei-ros do Norte”; a Luís da Câmara Cascudo, com Lendas brasileiras; e a PedroCalmon, com História de Castro Alves.

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Minhas Senhoras e meus Senhores.Revoltado porque Sílvio Romero não cumprira a promessa de fazer uma

conferência a favor da Abolição, Patrocínio não o desculpa e mantém com eleuma das mais violentas polêmicas de toda a nossa literatura. Escreveu então:

“Trata-se de um ‘teuto maníaco’ de Sergipe, que se chamava Sílvio Vascon-celos da Silveira Ramos, mas que depois passou a chamar-se Sílvio Romero.Há vinte dias, encontrei-me com ele e ouvi dos seus lábios grossos e arroxea-dos, apesar de arianos, a confirmação de que não fizera a conferência por aindaestar doente.

– Você é um miserável, um traste, um vilão muito ordinário, um pedantecom fumaças de filósofo, um “chichisbéu” da literatura, um belchior da juris-prudência, um macaco de Tobias Barreto e um Satanás do materialismo, quese ajoelhou diante do catolicismo triunfante no Colégio Pedro II.

Chamou-me ignorante, porque não tenho o hábito de andar citando auto-res alemães. O que hei de discutir com o Sr. Sílvio ex-Vasconcelos da Silveira?

Este é o juízo que faço a seu respeito, oh! lazarento. Está respondido.”

� 52 anos de uma vida

Patrocínio viveu apenas 52 anos. Atravessou toda a segunda metade do sé-culo XIX, porque, tendo nascido em 1853 – portanto, há um século e meio –morreu em 1905, sendo contemporâneo da sucessão dos vários gabinetes par-lamentaristas, naquela gangorra que movimentou a maior parte do SegundoReinado de Pedro II: os gabinetes conservadores chefiados pelo Visconde doRio Branco, pelo Marquês de Olinda e pelo Duque de Caxias, sucedidos pelosgabinetes liberais de Sinimbu, Saraiva, Lafaiete, Martinho Campos, Parana-guá, Sousa Dantas e novamente Saraiva, que devolveram o poder aos conserva-dores Cotegipe e João Alfredo, culminando com o gabinete liberal de OuroPreto, já nos estertores da monarquia parlamentarista e no advento do presi-dencialismo republicano.

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Quando começou o novo século, em 1901, Patrocínio tinha apenas 47anos de idade. Mas, já estava velho e cansado. Suas colaborações para a Gazetado Rio eram cada vez mais raras e esparsas.

Ele já se transformara também num boêmio notívago, amante das madruga-das e aproveitador de sua imensa popularidade junto às mulheres, sobretudo ascharmosas francesas de então.

Enquanto Santos Dumont tem êxito em Paris com o seu “14-Bis”, o barra-cão de Patrocínio, no qual estava sendo construído o seu avião, aqui no Rio, édestroçado por violenta tempestade. O projeto do seu invento era reduzidopelo temporal a uma sucata de ferros retorcidos.

Sua situação financeira é cada vez mais grave. E mais difícil. Vende sua casana Rua Riachuelo, faz empréstimos, torna-se novamente um escravo, destavez, dos agiotas.

Vai morar numa humilde casinha no Engenho de Dentro e volta a escrever,já então usando novo pseudônimo, que não era mais o Proudhome, o ZecaPato, o Notus Ferrão, o Pax Vobis ou o Pombo Correio, mas sim JustinoMonteiro, uma combinação do nome do seu padrasto João Carlos Monteirocom o de sua mãe Justina Maria. E escreveu: “Cheguei a ser um conviva da ge-nialidade e um íntimo da realeza. Fiz-me à custa de muita luta e de muita per-sistência. Mas, não merecia o fim que estou tendo.”

O jornal O Estado de S. Paulo faz uma campanha de donativos em seu favor,que José do Patrocínio Filho repele com uma carta altiva, dizendo que seu painão estava precisando de esmolas.

Com o assunto nos jornais, o quitandeiro suspendeu o fornecimento de fru-tas e o farmacêutico já não mais lhe fiava os remédios.

� A saúde de mal a pior

Seu estado de saúde vai de mal a pior. Uma tuberculose, que há mais de umano e meio se instalara em seus pulmões, agrava-se por uma vida desregrada eextravagante e o torna fraco, magro e anêmico.

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Minhas Senhoras e meus Senhores.Não quiseram os desígnios da vida que Patrocínio tivesse uma origem feliz.

Ele foi extraído de uma barriga humilde e escrava, dando-lhe à pele uma cor es-cura, cercando-lhe a infância de todas as desgraças, com a privação da paterni-dade legítima e os sofrimentos do seu povo escravizado.

Quiseram que no seu sangue e nos seus nervos se acumulassem as revoltasda gente martirizada, contra a maldade dos opressores, toda a longa e trágicaodisséia do sacrifício africano.

O Acadêmico Olavo Bilac escreveu:

“A raça negra viu aparecer o profeta esperado, dentro de um furacão de trovõese de flores, acendendo cóleras, cicatrizando feridas, despedaçando grilhões, fulmi-nando orgulhos e ateando a fogueira em que o Brasil haveria de purificar-se.

Ao chegar a hora da erupção daquela cólera vingadora, os brasileiros estre-meceram, abalados e tomados de uma comoção entontecida. Nunca houvera,até então, no Brasil, uma voz que soasse tão alto e que ferisse tão fundo.”

� Incontida força da emoção

Senhores Acadêmicos.Informa o Osvaldo Orico que, a Patrocínio, “pouco importavam amizades,

estimas, conselhos e advertências. Na hora do combate, ele se transformavanuma visão animalesca do combatente. E só retornava a si mesmo, quando tra-zia, da arena áspera e crua, o troféu da vitória preso nos dentes”.

De acordo com Raymundo Magalhães Jr., Patrocínio “era uma incontidaforça emotiva, singularizando um destino. Cessada a luta, voltava a ser o ho-mem bom e hospitaleiro, simples e cordial, em cujo espírito brincavam a doçu-ra de uma criança e a indulgência de uma etnia afetiva. Seus braços levanta-vam-se em protestos e em agradecimentos. Numa das mãos, um raio. Na outramão, uma rosa.”

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Dele disse o nosso confrade Joaquim Nabuco: “Ele foi a alma da Abolição,uma alma democrática, aliada a uma outra alma dinástica, que foi a PrincesaIsabel.”

Filinto de Almeida, o grande amigo lusitano, consagrou Patrocínio em be-los alexandrinos, como esta quintilha:

Ó luz sonora, luz articulada e viva,Que pelos tempos vens clamando e iluminando.Luz espiritual que da alma se deriva.Verbo, libertador de uma raça cativa.Mesmo depois de morto, tu continuarás vibrando.

Senhor Presidente.Senhores Acadêmicos. Senhoras Acadêmicas,Senhores Acadêmicos de Campos. Meus Amigos.

Concluindo, devo dizer que corria o dia 30 de janeiro de 1905, um domin-go de sol vibrante e de verão senegalesco.

Patrocínio, que tinha pouco mais de meio século de idade, estava escreven-do para A Notícia, a mão, em cinco tiras, um artigo sobre a organização de umaSociedade Protetora dos Animais. E dizia: “Tenho pelos animais um respeitoegípcio. Penso que eles têm alma e que sofrem conscientemente as revoltascontra a injustiça humana, porque...” Aí, interrompeu a escrita e não terminoua frase. Levantou-se e correu para o banheiro, já engolfado no sangue da sua úl-tima hemoptise.

O médico legista atestou-lhe a causa mortis: uma ruptura no aneurisma daaorta.

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� Do enterro ao despejo

Seu enterro foi custeado pelo governo, que pagou funerais solenes, cochesde gala, cavalos cobertos de luto, marchas fúnebres, embalsamamento do cor-po e crepe nos lampiões.

Oito dias depois – segundo me informou há pouco tempo o AcadêmicoCarlos Heitor Cony – sua família tinha de desocupar a casa em que ele morre-ra, escorraçada por um mandato de despejo.

Patrocínio morreu como vivera, batendo-se por uma Sociedade Protetora edefendendo os fracos, num último apelo em favor dos animais.

Ele não se arrependia do bem que fizera e transformou em piedade o pró-prio sofrimento, para se compadecer da sorte de todas as criaturas que sofrem.

Nasceu padecendo, mas morreu amando, perdoando e sorrindo.Assim, morria o campeão de duas grandes bandeiras: a da Abolição e a da

República. Morria, talvez, um dos maiores oradores brasileiros de todos ostempos.

Morria um plantador da Liberdade, um defensor do Direito, um apóstoloda Lei, um advogado das causas populares, um jornalista de batalhas memorá-veis, um líder contra a ditadura de Floriano, um inimigo das oligarquias e dossenhores de engenho, um liberal dos direitos sociais, um paladino dos negros edos escravos, o redentor de uma raça, um entusiasta de temas heróicos, umabravura de procedimento, um ribombar de protestos, um poço de eloqüência ede talento.

Morria o sonhador de um Brasil forte, próspero, industrialmente rico e so-cialmente justo.

Morria um inesquecível brasileiro, chamado simplesmente: JOSÉ CAR-LOS DO PATROCÍNIO.

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Inglês de Sousa (1853-1918)Acervo o Arquivo da ABL

O ficcionista Inglêsde Sousa

Oscar Dias Corrêa

Avida de Herculano Marcos Inglês de Sousa é marcada porduas fases distintas: na primeira, o ficcionista, o primeiro

naturalista brasileiro, publicando seus livros no período que começaem 1876, estudante de Direito em São Paulo, com O cacaulista e seencerra com os Contos amazônicos, em 1892; e o segundo, o jurista dosestudos de Direito Comercial, em 1897, com Os Títulos ao Portador,no Rio de Janeiro.

Barbosa Lima Sobrinho, a quem citei no meu discurso de possenesta Academia, lembrando Renan disse, em prefácio ao discurso deRodrigo Octavio Filho, no centenário de Inglês de Sousa:

Renan falava da má vontade com que se considerava a manifes-tação de mestria em domínios opostos, e poderíamos estender oseu conceito a domínios apenas diferentes. A crítica, ou o aplausopúblico, não parece favorecer os regimes poligâmicos, em matériade atividade intelectual. Prefere, ou parece preferir, a disciplina e

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Conferênciaproferida naABL, a 29 deabril de 2003,durante o cicloFundadores daABL.

a rigidez da monogamia, o gênero único, a atividade uniforme, que valorizae prestigia o conjunto da obra realizada.

Aconteceu isso com Inglês de Sousa, grande ficcionista, de quem se esque-ceram os romances, ignorados hoje do grande público, e o grande jurista, queacabou por predominar, talvez, digo eu, porque os juristas sejam menos desu-nidos e menos senhores de sua glória do que os ficcionistas.

Olívio Montenegro comenta:

Com Inglês de Sousa verifica-se um caso que não é comum na históriados literatos brasileiros – foi literato, jurista e homem de Estado, ao mes-mo tempo, tendo exercido o governo das províncias do Espírito Santo edo Sergipe. E ainda hoje o seu nome é mais conhecido como jurista doque como autor de ficção. Talvez porque a ficção no Brasil nunca fosse le-vada tão a sério como as letras jurídicas. Até pelo contrário: no homempolítico do Brasil o gosto pela ficção literária sempre foi olhado com asmaiores reservas, quase depreciado, como uma falta de compostura, umaespécie de boemia do espírito que não se casasse bem com a circunspecçãoe a dignidade das altas funções administrativas.1

Prefiro não aquilatar da justeza da afirmação, mas o certo é que Inglês deSousa não teve o reconhecimento que sua obra merecia.

Nesta oportunidade e nesta Academia, não nos ocuparemos, senão de pas-sagem, com o grande jurista, que inovou com seus estudos em Os Títulos ao Por-tador no Direito Brasileiro. A obra, que se inicia com alentada Introdução, “síntesehistórica” da matéria, desde os hebreus até o século XVII, tem configuraçãode obra moderna e, mais, pela fluência e exatidão da linguagem, excede o co-mum dos livros jurídicos.

A exposição é viva e atual, e vêem-se alusões a temas modernos, ressaltandoaspectos econômicos (Seção 1a), como os problemas do crédito e da poupan-

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1O romance brasileiro, J. Olympio, 2a ed., pp. 99-100.

ça, expressamente referidos (item 60) e todos os mais que o aprofundamentodo tema exigia, demonstrando, demais disso, amplo e apurado conhecimentoda bibliografia alienígena então existente.

Do grande jurista, disse Rodrigo Octavio, depois de apresentar-lhe o filho:“Este é um padrão de sabedoria e austeridade.” E o biógrafo assim remata:

Eu bem conheci o Mestre Inglês de Sousa. A aparência fria, reservada,distante e severa, que, aliada ao seu grande saber e autoridade, a todos infun-dia respeito, vinha, dir-se-ia, de uma possível e remota ascendência britâni-ca, que o nome de família – Inglês – faria presumir. Entretanto, um melhorconhecimento de suas origens revela que a família – Inglês – é portuguesa,argárvia (sic) de quatro costados e já conhecida nas Espanhas muito antes dodescobrimento do Brasil.2

Do grande advogado disse Xavier Marques, que lhe sucedeu nesta Casa:

Advogado durante cerca de quarenta anos, Inglês de Sousa não conhe-ceu a estreiteza e secura da inteligência profissional. [...] A advocacia nãofoi para ele o ato quase maquinal que se passa entre a banca e o foro, entrea clientela e o mundo judiciário; [...] Ela não o privou do convívio nobili-tante dos belos ideais; tampouco lhe afrouxou a austeridade ou diminuiua tensão aos escrúpulos com que discernia as causas propostas ao seu pa-trocínio. O causídico admirado pelo talento e a proficiência, ainda maisporventura se impunha pela ética irrepreensível. Da advocacia, tão larga-mente exercida, desde o consultório em Santos até o Rio, onde se estabe-leceu com a fundação da República, havia ele de tirar elementos para umaalta reputação, que veio a culminar, por saber, moralidade e consciência,na fama do jurisconsulto.3

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O ficc ionista Inglês de Sousa

2 Rodrigo Octavio Filho, Inglês de Sousa – 1o centenário de seu nascimento. Rio de Janeiro, EditoraCompanhia Brasileira de Artes Gráficas, p. 11.3 Discursos Acadêmicos, v. 5, pp. 98-99.

A publicação de Os Títulos ao Portador assegura-lhe projeção nacional e o tor-na jurisconsulto de fama e prestígio, sendo indicado para Diretor da Faculda-de de Ciências Jurídicas e Sociais e Presidente do Instituto da Ordem dosAdvogados Brasileiros, qualidade na qual presidiu o Primeiro Congresso Jurí-dico Nacional.

Convidado, mais de uma vez, para o Supremo Tribunal, não aceitou a indi-cação, “por motivos de ordem pessoal”. E “convidado pelo Ministro Rivadá-via Correia para organizar o novo Código Comercial, apresenta-o, dentro de11 meses, com notáveis emendas aditivas, que o transformam em Código unode Direito Privado, de que era convicto partidário. Realiza Inglês de Sousa aprimeira codificação integral de todo o direito privado”.4

Isto, podemos dizer agora, com o novo Código Civil, em vigor a partir de1/1/2003, que, em parte, a realiza, efetivamente.

Representou o Brasil no Congresso Pan-Americano, em maio de 1916, comPandiá Calógeras, e depois presidiu o Conselho Diretor da Caixa Econômica.

Depois de exercer o jornalismo em São Paulo, sobretudo em Santos, onde mo-rava o pai, Dr. Marcos, Juiz de Direito da Comarca, o Conselheiro Saraiva nome-ou-o, aos 27 anos, Presidente de Sergipe. Rodrigo Octavio Filho narra episódiodas eleições quando um chefe político do interior, Coronel Fraga, lhe diz:

“– Vim buscar a força.– Que força? – perguntou Inglês de Sousa.– A força militar; é preciso mostrar aos eleitores que estamos de cima. Ago-

ra o prestígio é nosso. É ou não é?Inglês de Sousa, muito mais moço do que o Coronel Fraga, achando graça

no pedido, manifestou-lhe o seu respeito, e disse, incisivo:– Não dou força nenhuma. As instruções do Presidente do Conselho

são claras. Nada de força, nada de violência. As eleições devem ser as maishonestas...

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4 Ob. cit., p. 28.

O coronel ficou bestificado. Podia esperar tudo, menos aquela resposta.Mas não desistiu e disse:

– Está bem, Presidente. Se o senhor não me pode dar força, eu quero, aomenos, um clarim.

Diante do espanto do Presidente, o Coronel Fraga acrescentou:– Eu não quero um homem que toque clarim, não senhor. Eu quero somen-

te o clarim, o instrumento...Inglês de Sousa ordenou fosse entregue um clarim ao desapontado coronel,

que mandou ensinar os principais toque militares ao pajem que o acompanha-va. E quando este se manifestou perito em clarinadas, o coronel retornou via-gem para a sua cidadezinha natal, onde precisava impor, definitivamente, o seuprestígio político. Calculou as coisas para chegar às portas da cidade antes dodia amanhecer. E mandou que o improvisado corneteiro soprasse a plenos pul-mões o clarim da vitória... A população acordou espantada com aquela inter-venção militar. O coronel escondeu o clarim numa moita, entrou em sua cida-de e foi dizendo a todos, amigos e inimigos políticos:

– A força aí está cercando a cidade. Vocês não ouviram os toques de clarim?Pois é: o prestígio agora é nosso. E havemos de realizar a mais honesta das elei-ções...

Parece, conclui Rodrigo Octavio Filho, que a terra do Coronel Fraga foi aúnica, de Sergipe, que não deu, naquela eleição, um único voto a candidatooposicionista...”5

Tendo-se demitido da Presidência de Sergipe, foi nomeado Presidente doEspírito Santo; e, eleito novamente deputado provincial por São Paulo, profe-re seu parecer, “obra monumental”, sobre o Código Comercial; volta a Santos“e entrega-se de corpo e alma à advocacia”. Em 1891, publica, em Santos, Omissionário, na tipografia do Diário de Santos, “de que era proprietário”.6

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5 Ob. cit., pp. 25-26.6 Ob. cit., p. 26.

A passeio no Rio de Janeiro, é convidado pelo Marechal Deodoro para go-vernador do Amazonas. E Silva Jardim e Aníbal Falcão o indicam para gover-nador de Pernambuco, recusando Inglês de Sousa ambas as indicações.

Volta para São Paulo; morrendo-lhe uma filha de seis anos, tem a saúdeabalada e, a conselho médico, muda-se para o Rio de Janeiro, em julho de1892. Aqui exerce ativamente a cátedra e a advocacia, e, em 1893, publica osContos amazônicos.

Mas, nesta Academia, dedicar-nos-emos ao ficcionista, dos mais poderososde nossa literatura, ainda que, pela ausência de seus livros nas estantes das li-vrarias e bibliotecas, tudo ajudado pela grande, irremediável e trágica desme-mória nacional, seja um desconhecido, nem mesmo ilustre... se lhe não guar-dam o nome e as obras.

Nascido em 28 de dezembro de 1853, faz 150 anos, em Óbidos, Pará, erafilho do Desembargador Marcos Rodrigues de Sousa (que, quando juiz noAmazonas, hospedou Agassiz, em viagem ao Brasil, na sua passagem por Pa-rintins; terminou a carreira como desembargador da Relação de São Paulo) ede D. Henriqueta Inglês de Sousa, de nobre ascendência algarvia, como assina-la Rodrigo Octavio Filho.

A ascendência paterna, não menos ilustre, inclui, no século XVIII, Pedro e Ma-ria Dolzani, do norte da Itália, que se dedicaram, em Óbidos, à criação de gado.Sua filha, Carlota Dolzani, casou com Silvestre José Rodrigues Sousa, de sangueportuguês, envolvido com sua fazenda e a política local (e que aparece como Capi-tão Silvestre no conto “O Donativo do Capitão Silvestre”, dos Contos amazônicos),que são os pais de Marcos, e avós de Inglês de Sousa, o que explica que seus livrostenham sido publicados com o pseudônimo de “Luiz Dolzani”, estudante aindana Faculdade de Direito de São Paulo, quando surgiu O cacaulista, em 1876.

De Óbidos, onde passou os primeiros anos da infância, Inglês de Sousa foipara o Maranhão, matriculando-se no Instituto de Humanidades, diz RodrigoOctavio Filho (a quem estamos seguindo na lembrança de seus dados biográfi-cos), onde sentiu o primeiro contato com a literatura, quando um colega lheleu algumas passagens do Dom Quixote. “Foi realmente esse o seu primeiro con-

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tato com a literatura de ficção. Ficou fascinado.” A propósito, convém lem-brar, Taunay cuidou ver no O missionário de Inglês de Sousa, senão reminiscên-cia, alguma afinidade com a maior de todas as novelas. “O Dom Quixote foi paraInglês de Sousa o livro revelação.”7 E a nós nos parece que o estilo de O coronelSangrado lembra o “ingenioso hidalgo de la Mancha”.

Em 1867 veio para o Rio de Janeiro, e matriculou-se no Colégio Perseve-rança, começando aí sua inclinação pelas letras. Adoecendo, convalesce na casado Conselheiro José Vicente Jorge, Diretor Geral da Secretaria do Império.“Leu então e de um trago, sofregamente, muito de Shakespeare, Hugo e Her-culano. [...] Em 1870 viajou para Recife, onde completou os preparatórios ematriculou-se na Faculdade de Direito.” Aí viveu “intensíssima vida inte-lectual, vastas leituras, freqüência aos teatros, longas conversas e intermináveisdiscussões sobre religião, filosofia, exegese, história, sociologia e literatura. Oromantismo dos seus 18 anos não teria forças para resistir ao choque das novasidéias”. Já no segundo ano de Direito, “combatendo as pieguices de A moreni-nha, de Macedo, e o indianismo de Alencar”, escreveu o primeiro romance, Ocacaulista, nos moldes do alsaciano Erckmann-Chartrian (1872). Seguiram-se-lhe a História de um pescador e O coronel Sangrado, escritos em São Paulo, em cujaFaculdade cursou o quinto ano de Direito e se formou em 1876.

No ano seguinte casou-se com D. Carlota Emília Peixoto, sobrinha-bisnetade José Bonifácio, dedicada companheira de toda a vida.

Diplomado em Direito, em 1876, nesse mesmo ano publica História de umpescador e O coronel Sangrado; em 1891, O missionário (escrito em 1888); e, em1892, Contos amazônicos.

Esses livros firmaram-lhe a reputação literária, à época, e com eles conquis-tou lugar nos meios intelectuais do Rio de Janeiro. Aqui chegando, em 15 denovembro de 1896 comparece à primeira sessão da Academia Brasileira de Le-tras, na redação da Revista Brasileira, e em 1897 participa da fundação da ABL,“de cujos Estatutos foi o principal Redator”.8

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7 Rodrigo Octavio Filho, ob. cit., p. 20.8 Josué Montello, O presidente Machado de Assis, p. 34.

O mais interessante e estranho é que, a partir daí, sua obra é toda jurídica:em 1898, Títulos ao Portador; em 1903, Projeto de Código Comercial e Projeto de DireitoPrivado; talvez porque, abrindo banca de advogado, lecionando Direito Co-mercial e Marítimo, e presidindo o Instituto dos Advogados Brasileiros, a vidalhe impunha dedicação a esses temas, aos quais se entregou, até vir a falecer, em6 de setembro de 1918.

Não foi, pois, sem razão que Inglês de Sousa entrou para a ABL: era ele, àépoca, reconhecida expressão da ficção brasileira, e sua obra, ainda hoje, emboraesquecida, o recomenda como uma das figuras mais admiráveis do romance bra-sileiro. E que se elegeu Tesoureiro da Academia, ao lado do Presidente Machadode Assis. A impressão causada pela riqueza dos seus romances amazônicos se es-pelha na afirmação de Josué Montello, de que de “suas obras O coronel Sangrado,embora correspondendo a uma narração completa, entrosa-se com O cacaulista,de que constitui desdobramento. História de um pescador, conforme indicação deseu prefácio, articular-se-ia a outros romances da série Cenas da Vida do Ama-zonas, sem prejuízo de sua ação distinta”.9 O curioso, continua Josué, é que,“apesar de terem como cenário a Amazônia, esses romances fixam mais o ho-mem que a selva, como se esta, com a sua opulência, não interessasse ao roman-cista, que desejava apenas surpreender e apreender o elemento humano, nas suaslutas e nas suas fraquezas, nos seus caracteres e nas suas determinações”.10

Aí está, a meu ver, a grande virtude, sobretudo de O coronel Sangrado, que,com Montello e Lúcia Miguel-Pereira, considero a obra fundamental da fic-ção de Inglês de Sousa: a intensa vida das figuras do romance prepondera sobrea força da natureza.

Mas a preparação dele está em O cacaulista, escrito em Recife (é datado deRecife, 24/06/1875) e publicado em Santos, em 1876. Volume de estréia,experimenta a pena na fixação da trama do romance, no desenho da paisagem eno debuxo das personagens. O próprio autor, Luiz Dolzani, pseudônimo queadota, em 23/12/76 apresentando a obra, diz que “o romance que se vai ler

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9 Ob. cit., p. 74.10 Idem, p. 74.

foi escrito em 1875, na cidade do Recife, quando o autor cursava o quarto anoda Faculdade de Direito”. E completa: “Fazendo parte da coleção – Cenas daVida do Amazonas – não é completo, como verá o leitor, e os episódios quenele se narram hão de ter o seu complemento no Coronel Sangrado, romanceque brevemente sairá à luz.”

O Amazonas é o cenário, sobretudo as plantações de cacau, onde se desen-volve a história e onde se movem as figuras que criou. Já se pressente a força daintrospecção do romancista e o seu poder descritivo e narrativo.

Dedica-o ao pai, Marcos Antônio de Sousa, “Cavaleiro da Ordem de Cris-to, Juiz de Direito da Comarca de Santos (Ao primeiro amigo a primeiraobra)”. Conta a história das lutas dos cacaulistas, em especial da Fazenda S.Miguel, propriedade de D. Ana, viúva do português João Faria e, sobretudo,mãe de Miguel de Faria, filho do casal, centro do romance.

Em torno dele se tece o enredo, que serve ao autor para os cenários da vidaamazônica, as terras do cacau, e envolve a disputa da fazenda de João Faria,onde mora a viúva Ana, mãe de Miguel, e sobre as quais avança o Tenente Ri-beiro, padrinho de Ritinha, amiga de infância de Miguel.

A duplicidade da situação deste, tendendo para Ritinha e detestando o Tenen-te; a esperteza deste, valendo-se dessa duplicidade, enriquecem a história e permi-tem a Inglês de Sousa pintar a vida da região, ao mesmo tempo em que lhe possibi-lita como que a introdução à cena política de O coronel Sangrado. Esse cenário lhe ser-ve ao largo uso de suas virtudes literárias e à urdidura da trama romanesca.

Segue-se-lhe O coronel Sangrado. É lê-lo, ainda hoje, e gozar-lhe a malícia dojogo político, que descreve com ironia e sarcasmo, movendo as personagenscom argúcia e finura, com tal realismo que se pode sentir a presença palpitantedelas nas cenas do livro.

Romance de costumes políticos, nada fica a dever aos que vieram depoisdele; pelo contrário, nos personagens mistura a esperteza e o sarcasmo, conju-ga a ignorância e a arrogância, a graça e a matreirice, a timidez e a pureza, econsegue, no meio da disputa política, insinuar a paixão amorosa agressiva edominadora. Espanta, a quem viveu a comédia política, a história da luta entre

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conservadores e liberais por volta de 1870, como Inglês de Sousa pôde retra-tá-la no Amazonas, com as mesmas tintas com que se pintariam no Sudeste. E,mais ainda, a riqueza da vida subjetiva dos personagens, figuras brasileiras detodas as regiões: o Coronel Sangrado, chefe ignorante e arrogante, julgando-sesuperior a todos, “dono do pedaço” (como se diz hoje), Napoleão, que pre-tendia não ter Waterloo; o Capitão Matias, o boticário Anselmo, o escrivãoFerreira e toda uma paisagem humana conhecida e atuante.

A filha do Coronel Sangrado, a “feiarrona” Mariquinhas, alvoroçada com oretorno de Miguel de Faria, escorraçado pelo chefe liberal, Tenente Ribeiro; oreencontro de Miguel com Rita, filha ou afilhada de Ribeiro, a “cunhantã” dameninice de Miguel, e já então mulher do Alferes Pedro Moreira Bentes; esobretudo o Capitão Antônio Batista, suplente de juiz municipal, de grandeinfluência no partido conservador da localidade, todos concorrem para a ines-timável importância do desenrolar da história.

A partir desses personagens desenvolve-se o romance, que inclui todas as ar-timanhas, malícias, petas, traições que a luta política local pode oferecer: ondeos ódios são mais enraizados, e o vizinho é amigo ou inimigo do vizinho, etudo faz por ele ou contra ele.

Inglês de Sousa tece o romance com estilo vivo, fluente, veste-o de verve eironia, aflorando os sentimentos mais nobres e as atitudes mais chãs, ingredi-entes da autêntica farsa eleitoral daquela época.

Dele diz Bella Jozef, na excelente “Apresentação” que escreveu para o volu-me 72 da coleção Novos Clássicos:

Seu estilo é, na maioria das vezes, escorreito e sóbrio, compraz-se na esco-lha do termo justo e do vocábulo preciso, o que lhe dá encanto e espontanei-dade. [...] É uma linguagem coloquial, procurando cingir-se ao vocabuláriovivo da região. Freqüentemente recorre ao estilo indireto livre no diálogo emonólogo mental como meio favorito de fazer ouvir, falar e pensar seuspersonagens.11

11 Agir, 1963, p. 12.

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E assinala que Aurélio Buarque de Holanda, lembrando Eça de Queirós,afirmou ter Inglês de Sousa “o mesmo ritmo sereno e ondulante, o mesmo es-praiamento das palavras com breve estação nos incidentes para terminar comdois adjetivos de sentido e efeito sônico bem contrastante, a aliança do trivial edo raro, o jogo dos elementos díspares”.

Josué Montello, no estudo que dedica a “A ficção naturalista”, em A históriada literatura no Brasil, coordenada por Afrânio Coutinho, discorda em parte,quando assinala:

Aluísio Azevedo, Inglês de Sousa, Júlio Ribeiro e Adolfo Caminha, asquatro figuras representativas do Naturalismo brasileiro, inclinaram-se pelacópia da realidade, com um ou outro traço de tinta violenta e crua. Aos qua-tro faltou a ironia corrosiva com que Eça, na pintura da sociedade portugue-sa, atendeu a seus propósitos de demolição. Em compensação, souberamdispor da observação meticulosa, por vezes apaixonada, que, se não serviu aatrair a atenção para a reforma do mundo burguês, pelo menos fixou indele-velmente alguns instantes brasileiros, com aquela fidelidade nítida que fazdo romance o espelho do tempo e da vida.12

Se a apreciação, a nosso ver, colhe quanto a O missionário, em O coronel Sangra-do há passagens do melhor de Eça, no tom e no estilo.

No Inquérito promovido por João do Rio no Momento Literário, “Inglês deSousa afirmou que os autores que mais contribuíram para a sua formação lite-rária foram Erckmann-Chartrian, Balzac, Dickens, Flaubert e Daudet”. E Joãodo Rio acrescenta: “Nessa relação não figuram, assim, Émile Zola, que pareceter-lhe inspirado o argumento de O missionário, e Eça de Queirós, que o impres-sionou com o ritmo de seu estilo”. E Josué pergunta: “Por que Erckmann-Chartrian?” Ele mesmo responde:

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12 Ob. cit., p. 68.

Hábeis fixadores de tipos e costumes alsacianos, Erckmann-Chartriandeixaram obra copiosa no conto, no romance e no teatro. Antes que Zolaempolgasse o público parisiense, eram eles que dominavam esse público,com o Realismo comedido de suas narrativas singelas. Seu mérito derivavada fidelidade com que transplantavam da vida real para o papel literário aspaisagens e as figuras da Alsácia.13

Mas, o romance tido como marco na obra de Inglês de Sousa é O missionário,que lhe assegura o lugar na coorte dos nossos primeiros naturalistas, como lhechama Peregrino Júnior, “literatura de índole regionalista na Amazônia”: “Naprimeira fase, de Inglês de Sousa e José Veríssimo – a dos homens da terra –mais fidelidade ao real, mais autenticidade, um comovido amor à gente e aosseus costumes.”14

Explica-se: como não haveriam Inglês de Sousa e José Veríssimo, por coin-cidência, ambos de Óbidos, de espelhar o sentimento nativo? O Missionário pa-rece a Peregrino Júnior “romance denso e forte, mas prolixo, monótono, enfa-donho, sem grande vivacidade. Contudo, um documento exato e minucioso davida amazônica”. Considera que “sem dúvida, mais palpitantes e concisos, sãoos seus Contos da Amazônia”.15

Parece que o crítico não teve à mão O cacaulista, nem O coronel Sangrado, mashá muito de verdade no seu comentário quanto a O missionário, quando lhe ex-proba o excesso naturalista de pormenores, ainda que se exceda quando o con-sidera cansativo e tedioso.

O próprio Inglês de Sousa, tempos depois, em resposta a inquérito de Joãodo Rio, no Momento Literário, escreveria, textualmente:

Das poucas obras que hei publicado, prefiro O missionário, ainda que a suafatura não corresponda ao meu modo atual de ver e sentir a natureza. O O

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13 Ob. cit., p. 73.14 In: Coutinho, Afrânio, A literatura no Brasil, t. III, p. 227.15 Ibidem, p. 228.

missionário é espesso e palavroso; tem, pelo menos, cem páginas a mais. To-davia, ainda hoje escreveria alguns capítulos como o da viagem do Padre, odia do Chico Fidêncio, o enterro do Totônio Bernardino.

O que acontece é que, à época, Inglês de Sousa, depois de ter elaborado,com êxito, o romance vivo, ligeiro, mordaz, que é O coronel Sangrado, julgou de-ver comprovar sua aptidão para a expressão mais densa, carregada, ao gostonaturalista do momento, o que fez em O missionário.

Josué Montello diz que o “livro é grande e derramado”, vendo na preocu-pação naturalista a influência de Zola e do anticlericalismo de Eça em O crimedo Padre Amaro.

Bella Jozef, ao contrário, afirma que “não há sentimento anticlericalista n’OMissionário, apesar da idéia fixa no romance naturalista. Neste sentido afasta-setotalmente de Zola e outros romancistas da época. Ao contrário deles, o cléri-go é ser humano e não obrigatoriamente repulsivo”. Suas intenções, envenena-das desde a origem por um sentimento anticristão, a saber, o orgulho e a pre-sunção (conforme assinalou Sérgio Buarque de Holanda, baseado, aliás, nopróprio texto do livro) teriam de ruir em face dos imperativos da herança e domeio. “Sua queda não decorre tanto da impossibilidade de cumprir aqueles de-veres sagrados em condições adversas do meio social, como das bases fragíli-mas em que eles realmente assentavam, o que evidencia, a nosso ver, a religiosi-dade de Inglês de Sousa. Um ímpio não teria problemas de fé, como o autor. Oque faz o Padre Antônio de Morais pecar é sua pouca fé, o falso conceito desantidade e misticismo, produto a ambição e da vaidade.”16

Na verdade, pode dizer-se que haverá n’O Missionário a inspiração de Cer-vantes para as figuras do Padre Antônio de Morais e de Macário, o sacristão,que lembram o Quixote e Sancho. Padre Antônio, cavaleiro da fé, que a pre-tende ver implantada na terra dos Mundurucus, à margem do Canumã, e idea-liza a conversão dos silvícolas, “conquistando fama imorredoura, que levaria

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16 Bella Jozef, ob. cit., p. 17.

seu nome à remota posteridade, com os de Francisco Xavier e José de Anchie-ta”.17 Macário, assombrado e enfatuado pela proximidade do Padre, fica bemno papel de fiel escudeiro, como aliás lembra José Veríssimo: “... um SanchoPança bem local, bem original, uma boa criação do Sr. Inglês de Sousa.”

De passagem se diga que a crítica de Veríssimo é das mais exatas, porque aliaao conhecimento crítico a visão da vida local, também ele, como Inglês de Sousa,nascido em Óbidos. Analisa o romance detidamente, recorda-lhe os cenários e aspersonagens, para dizer: “O livro è um dos melhores, ao meu parecer, da nossaficção em prosa,” embora lhe assinale um defeito: “A desproporção entre o as-sunto e o desenvolvimento que lhe deu o autor. O drama parece-me pequenopara tão grande cenário, o painel demasiado vasto para a pintura.”

A análise de Veríssimo parece-nos consistente, quando conclui:

Não creio que o naturalismo tenha produzido no Brasil obra superior aesta; mas nela mesma, estou em que o reconhecerá o próprio autor, deixouos vícios inerentes aos preconceitos das escolas. Na explicação, por exem-plo, dos motivos do Padre Antônio de Moraes, há talvez demasiada minú-cia, rebuscada análise, sobeja interpretação. Recorre também o romancista anoções científicas para robustecer a sua análise psicológica da alma e dosmóveis da ação do seu protagonista, o que se me afigura um erro.18

Olívio Montenegro (ob. cit., loc. cit.) começa o estudo da obra de Inglês deSousa dizendo que “há livros que são como certa espécie de gente: tem umdestino caipora. Livros cheios das melhores virtudes, do ponto de vista inte-lectual e artístico, e não se sabe porque não se apercebem deles. Não apanhama menor popularidade”, para concluir que O Missionário é “o romance mais or-ganicamente vivo e completo de quantos podemos filiar à escola naturalista doBrasil”, embora mal tratado pela crítica, o que comprova no exame percucienteque faz, concluindo:

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17 O missionário. Ed. Topbooks, 1998, p 133.18 Estudos de literatura brasileira, vol. III. Garnier Editor, p. 31.

No livro de Inglês de Sousa o homem não sofre no meio da paisagemque o cerca: nem a paisagem parece diminuída ao contato do homem. Elecolocou a paisagem no seu justo plano, no plano que lhe cabe em todo oromance que é o fundo de quadro. O plano alto e que domina o resto davida do homem é o da vida do padre Antônio Ribeiro de Morais, o missio-nário.

Mas nada como ler a obra. Ou melhor, as obras, porque não há como nãoler O cacaulista, História de um pescador, O coronel Sangrado, O missionário e os Contosamazônicos.

Os Contos amazônicos, de 1893, reeditam o estilo mais livre de O cacaulista e Ocoronel Sangrado, sem a densidade da linguagem de O missionário, nas longas di-gressões que o Padre Antônio, de Silves, estabelece consigo mesmo, até a re-gião perdida dos Mundurucus.

Dedicado a Sílvio Romero, misturam fatos e abusões da região, não faltan-do os lances patrióticos de “Voluntário”, na guerra contra o Paraguai, e de“Rebelde”, nas lutas da cabanagem, reaparecendo em “Feiticeira”, em perso-nagens de O cacaulista e O coronel Sangrado, como Miguel de Faria, Padre João e oboticário Anselmo; ou no “Acauan”, na intensidade da narrativa, que sublimao drama da antiga Vila de S. João Batista de Faro.

O estilo toma, às vezes, o tom irreverentemente delicioso de O coronel Sangra-do, quando anatematiza, no conto “Amor de Maria” a “maldita política” que,diz ele, dividiu a população, azedou os ânimos, avivou a intriga, e tornou insu-portável a vida nos lugarejos à beira do rio”, para afirmar:

Depois que o povo começou a tomar a sério esse negócio de partidos,que os doutores do Pará e do Rio de Janeiro inventaram como meio de vida,numa aldeola de trinta casas as famílias odeiam-se e descompõem-se; os ho-mens mais sérios tornam-se patifes refinados e tudo vai que é de tirar a cora-gem e dar vontade de abalar destes ótimos climas, destas grandiosas regiõesparaenses, ao pé das quais os outros países são como miniaturas mesqui-

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nhas. Sem conhecerem a força dos vocábulos, o fazendeiro Morais é liberale o capitão Jacinto é conservador.19

Ou refere: “Alma generosa do povo brasileiro, quão mal apreciada és peloseternos faladores da Câmara dos Deputados!”20 E não poupa os ingleses:

Saindo do seu mutismo tradicional, o escrivão Ferreira contava numaroda de senhores que os ingleses não querem saber de santos, que adoramuma cabeça de cavalo, e se divertem socando as ventas aos amigos, para lhesaliviar com essa amistosa operação o cérebro sujeito a congestões violentas,pelo vapor da cerveja que sobe do estômago.21

Mas, não falta a Mariquinhas,a mais gentil rapariga de Vila Bela! Era uma donzela de dezoito anos, alta

e robusta, de tez morena, de olhos negros, meu Deus! de cabelos azuladoscomo asas de anum! Era impossível ver aquele narizinho, bem feito, aquelamimosa boca, úmida e rubra, parecendo feita de polpa de melancia, as mão-zinhas de princesa, os pés da Borralheira, impossível ver aquelas perfeiçõestodas sem ficar de queixo no chão, encantado e seduzido!...22

E vai num crescendo que só a leitura de “Amor de Maria” propicia.Mas, não devo exceder-me mais. Quaisquer tenham sido as influências que

recebeu, sua obra merece, ainda hoje, ser lida, porque poucas existem, em nossaliteratura, com as qualidades que apresenta, e tão bem espelhando a terra e agente.

É interessante dizer que, por mais longínquas possam ser as origens e fontesdos seus romances, topamos, no Sudeste, com algumas das personagens quebrotaram no cenário amazônico e que ressurgem com a nitidez das que Inglêsde Sousa nos legou.

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Oscar Dias Corrêa

19 Contos amazônicos, Laemmert & C. Editores,1893, pp. 59-60.20 Ibidem, p., 103.21 Ibidem, p. 104.22 Ibidem, pp.57-58.

Àquelas influências confessadas acrescentaria Cervantes, como lembrou Tau-nay, nas figuras do Padre Antônio de Morais e do sacristão Macário, Quixote eSancho, bem como no estilo fluente, mordaz, satírico de O coronel Sangrado.

Mas, prezados Confrades, são críticos literários muitos dos que aqui estão,consagrados pela obra; eu, leitor de muitas leituras e algum proveito, lhes direiapenas que é hora de reeditar Inglês de Sousa, para que se lhe faça justiça, dan-do-lhe lugar na galeria dos grandes autores brasileiros.

Repetirei o que disse Rodrigo Octavio Filho, ao final de sua conferência, hácinqüenta anos:

A maior homenagem que se poderia prestar à sua memória seria o ree-ditar-lhe a obra. Esperemos que isso aconteça, para que o seu espírito dehomem de letras e jurista recupere o lugar que lhe compete em nossa vidacultural.23

Este o nosso objetivo ao resumir, nestas notas, nossa apreciação, renovandoas homenagens que todos os brasileiros devemos a Inglês de Sousa, pela obraliterária e jurídica que nos deixou, e que a posteridade, estou certo, não se es-quivará de preservar e honrar, como esta Academia Brasileira de Letras, hoje,com ufania, faz.

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O ficc ionista Inglês de Sousa

23 Ibidem, p. 40.

Valentim Magalhães (1853-1909)Acervo do Arquivo da ABL

O fundadorValentim Magalhães

Alberto Venancio Filho

AAcademia Brasileira de Letras prossegue na série de conferênci-as dedicadas ao centenário de falecimento dos fundadores, am-

pliando a iniciativa da gestão do saudoso Presidente Austregésilo deAthayde de homenagear o centenário de nascimento dos acadêmicos.

Se examinarmos a relação dos quarenta fundadores de nossa Insti-tuição, veremos que eram na época figuras expressivas do meio inte-lectual, mas o decorrer do tempo acarretou o esquecimento de algunsdeles, cuja obra não teve permanência para chegar aos nossos dias. Noano passado ocorreu o centenário de morte de Urbano Duarte, funda-dor da Cadeira no 12, que passou no esquecimento, e o mesmo acon-teceria com Valentim Magalhães, não fosse a feliz iniciativa do Presi-dente Alberto da Costa e Silva e do Secretário-Geral Ivan Junqueira.

Desses fundadores, duas exceções se apresentaram então, a con-firmar a escolha, Carlos Magalhães de Azeredo, com apenas vinte e

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Conferênciapronunciada naAcademiaBrasileira deLetras, a 15 deabril de 2003,durante o cicloFundadores daABL.

sete anos, que mal iniciava uma dedicada carreira literária, e Graça Aranha, queaté então não escrevera nenhum livro, apenas o prefácio para a obra de FaustoCardoso Concepção monística do Universo, porém vivia no ambiente da Revista Brasi-leira e cinco anos depois despontaria com a publicação de Canaã.

� O acadêmico

Antônio Valentim da Costa Magalhães foi o fundador da Cadeira no 7 eescolheu como patrono Castro Alves. A escolha dos patronos se deu emfase posterior, muitas delas por critério de mérito, como Machado de Assisa José de Alencar, e outros por caráter pessoal que atendia também o crité-rio do mérito, como o de Junqueira Freire por Franklin Dória. Outras fo-ram de caráter regionalista, como a de Maciel Monteiro por Joaquim Na-buco, e Luís Murat escolheu por pura amizade Adelino Fontoura. É curio-so que Rui Barbosa, ao invés de escolher um jurista afinado com suas ativi-dades principais, tenha se voltado para um jornalista – Evaristo da Veiga –e há o caso de Raul Pompéia, escolhido por dois fundadores: Domício daGama e Rodrigo Octavio, cabendo àquele a preferência e Rodrigo Octaviooptando por Tavares Bastos.

Valentim Magalhães escolhe um poeta, um dos maiores, Castro Alves, dan-do a entender que na atividade intelectual gostaria de ser considerado comopoeta.

Na fase prévia de organização da Academia, fundada por Lúcio deMendonça, Valentim Magalhães não consta entre os dez acadêmicos queseriam nomeados pelo Governo, nem nos vinte a serem eleitos, e nem nosdez restantes que seriam correspondentes. Afastada a criação da Casacomo órgão do governo, reúnem-se na sala da Revista Brasileira para a fun-dação, em 15 de dezembro de 1896, quinze pessoas, entre as quais Va-lentim Magalhães. É de supor que sua presença tenha sido por influênciade Lúcio de Mendonça, de quem era particular amigo e com quem mante-ve extensa correspondência.

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Alberto Venancio Filho

Na segunda reunião de 23 de dezembro a que comparecem apenas onzepessoas, está presente novamente Valentim Magalhães. E na terceira reuniãoem 28, Rui Barbosa, Filinto de Almeida e Valentim Magalhães justificam aausência em carta, quando é aprovado o projeto de estatuto.

Na sessão de 4 de janeiro de 1897, da eleição da diretoria, não esteve pre-sente Valentim Magalhães, nem na sessão de 18 de janeiro, mas na sessão de28 de janeiro, em que se completa a eleição dos quarenta acadêmicos, compa-rece Valentim Magalhães.

Curiosamente nem Lúcio de Mendonça nem Valentim Magalhães assistemà sessão inaugural de 20 de julho de 1897 e justificaram a ausência por carta,alegando enfermidade. Ocorreu algum incidente que magoou o fundador, sen-do acompanhado por Valentim Magalhães?

Valentim Magalhães passa a freqüentar a Casa a partir da sessão de 16 demaio de 1898 e as sessões de 6 e 16 de junho, e nessa sessão é nomeado, juntocom Graça Aranha e Lúcio de Mendonça para compor comissão que iria estu-dar as propostas de sócios correspondentes. Comparece a várias sessões de1898, 1 de julho, de 8 de agosto, 1 de outubro, 3 de outubro, eleição do Barãodo Rio Branco, 30 de outubro, e 2 de dezembro. Há um período de ausência,incluindo a posse de Domício da Gama em 1 de julho de 1900, que se inter-rompe com a presença na sessão de 15 de maio de 1902, última a que compa-rece. E na sessão de 27 de maio de 1903 a ata declara laconicamente: “O Presi-dente Machado de Assis abriu a sessão e comunicou à Academia o falecimentode Valentim Magalhães.”

Dos membros fundadores pode-se concluir que foram pessoas dedicadas àatividade literária, e muitos deles jovens, como Valentim Magalhães que em1897 teria trinta e sete anos, mas já apresentava uma produção literária signifi-cativa, o mesmo ocorrendo com a grande maioria dos fundadores, embora nofuturo muitos, como Valentim Magalhães, tivessem ficado na obscuridade.

Valentim Magalhães foi sucedido por Euclides da Cunha, que no discursode posse traçou-lhe o perfil completo e exaustivo, que guardaria parelha na su-cessão da cadeira, em idênticos estudos, com os discursos de Afrânio Peixoto

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O fundador Valentim Magalhães

sobre o autor de Os sertões, e o de Afonso Pena Júnior sobre o autor de A esfinge,ambos sem qualquer referência ao fundador.

Coube ao meu mestre e nosso saudoso confrade Hermes Lima, sucedendo aAfonso Pena Júnior, traçar na síntese primorosa do seu estilo o retrato de nos-so homenageado de hoje:

O fundador Valentim Magalhães, morto na casa dos quarenta anos, foitão vário e dispersivo que sua existência lembra uma torrente sem caminho.Prógono da “Idéia Nova” que na época vagamente sintetizava o movimen-to renovador da cultura, das letras e das artes, dotado de talento e ardendona ânsia de viver, gozou de notoriedade e prestígio, produziu muito, porémimprovisou demais. Ao sabor de solicitações contraditórias, cedo por elas édevorado como se não lhe tivesse sobrado tempo para colocar na faixa deseu destino a quota pessoal de realismo e disciplina que seu nome e sua vo-cação de escritor estavam a exigir.

O sucessor Pontes de Miranda limitou-se à reduzida síntese biográfica, e anossa colega Dinah Silveira de Queiroz vinculou a figura do patrono CastroAlves ao fundador:

É ele, é Castro Alves, aquele jovem tão belo com sua larga testa, seusolhos fundos, seus cabelos fortes como se tivessem movimento, vivos nadisparada de seus poemas, de sua “Vozes d’África”, que estaria agora in-fluindo com sua profunda vocação todos os que se abrigaram à cadeiranúmero sete desta Academia como patrono. E por um desses prodígios dabênção de padrinho imprimiria a nós, seus pupilos, uma direção. Eis aquiValentim Magalhães, um dos fundadores da Academia que, em 1879, re-cita: “Ó luz, Ó liberdade! Não estás longe, não! Vens perto da verdade.Pois que o trabalhador começa a meditar!” O espírito revolucionário quepoderia defluir também do sentido da obra de Castro Alves, acrescentaValentim certa maneira satírica para estudar os escritores que lhe foram

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Alberto Venancio Filho

contemporâneos e... “Entre nós, quando um poeta e um prosador, ao cabode haver-se arruinado a editar-se a si próprio, e de haver obrigado bomnúmero de cidadãos incautos a ficar com as suas obras... de graça e de estarfarto de se ouvir chamar célebre pelas gazetas – julga-se em caminho danotoriedade, para fora do reposteiro negro da obscuridade, passa um dia,inesperadamente, pelo amargo desengano, pela decepção de ouvir pergun-tar-lhe um dos seus colegas de repartição ou um dos seus habituais com-panheiros do café, do bonde ou da charutaria: – Como? Pois também vocêé literato? Não sabia. Aquele ‘também’ é característico e, como sintoma,vale bem um império.

E o nosso confrade e amigo Sergio Corrêa da Costa, atual ocupante da ca-deira, vinculou-o aos objetivos da Academia:

O fundador da cadeira – Valentim Magalhães – revelou sempre intensapreocupação com o Brasil e sua cultura, seja na liderança intelectual queexerceu, seja na continuada prática do jornalismo, em que fixou temas e as-pectos da nossa realidade social e política, até então escassamente aprecia-dos. Seu empenho junto aos demais fundadores desta Academia, no sentidode dar à Instituição um cunho nacional, eminentemente representativo dastendências e características de todas as regiões do País, confirma esse traçomarcante que procuro assinalar.

� O início

Valentim Magalhães era filho legítimo de Antônio Valentim da CostaMagalhães e de D. Maria Custódia Alves Meira, aquele de nacionalidadeportuguesa e esta carioca e filha de negociantes abastados do Rio de Janeiro.

Nasceu nesta capital, a 16 de janeiro de 1859, na antiga Rua Conde d’Eu,hoje Frei Caneca, 58, num domingo, e alguns meses depois era batizado naIgreja de Santo Antônio dos Pobres, e recebeu o nome de Antônio.

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O fundador Valentim Magalhães

Tinha um ano de idade apenas quando se viu órfão de mãe, mas não lhe fal-taram os cuidados do pai, por ele criado e educado; e com seus tios Dr. JoãoAlves Meira e D. Maria Quitéria Alves Meira aprendeu as primeiras letras.

Depois de cursar por algum tempo as aulas do Colégio Fábio Reis, fez osseus estudos preparatórios no antigo internato de São Francisco de Paula, sitono Largo do Rocio (atual Praça Tiradentes), no mesmo edifício onde funcio-nou mais tarde o Clube Naval.

No livro Alma há uma página evocativa da figura bondosa do Cônego Bel-monte, velho diretor do Colégio, recordando com saudades aqueles primeirostempos. Os jornais tinham noticiado o falecimento do mestre, e isto despertouna alma do antigo discípulo uma recordação da infância.

Valentim Magalhães manifestou desde cedo pendor para as letras e já aostreze anos colaborava em alguns jornais de província.

Em 1876, com dezessete anos, seguiu para São Paulo e no ano seguintematricula-se na Faculdade de Direito. Rui Barbosa, chegando a São Paulopara concluir o curso de Direito, escreveu a um parente na Bahia: “Estou en-golfado na vida acadêmica.” A vida acadêmica não era a freqüência às aulas eo estudo dos manuais, mas sobretudo a participação nos clubes literários,nos jornais estudantis, nos grêmios abolicionistas e republicanos, nas lojasmaçônicas. Foi essa vida acadêmica que Valentim Magalhães encontrou aofixar-se em São Paulo.

Logo no primeiro ano foi eleito redator do Labarum, com Eduardo Prado,e colaborou na República, órgão do Club Republicano Acadêmico, a que sehavia filiado. Nessa última folha, dirigido então por Lúcio de Mendonça eManhães de Campos, publicou Valentim os seus primeiros folhetins chisto-sos e críticos.

Nesse mesmo ano, além de um poemeto elegíaco sobre o general Osório,publicou ele, em colaboração com Silva Jardim, um livro em prosa e verso, Idéi-as de moço, rematando com um conto fantástico “O grito na treva”, escrito aduas penas, no gosto byroniano, à maneira da Noite na taverna de Álvares deAzevedo.

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Os poetas mais festejados na Academia naquele tempo eram Teófilo Dias,Afonso Celso, Assis Brasil e Valentim Magalhães; mas em 1879 a nomeadadeste último superara o estreito círculo acadêmico com a publicação dos Can-tos e lutas, livro de poesias que a imprensa acolheu com aplausos. E desde então,integrando o jornalismo, começou a escrever nos jornais de maior importânciae maior circulação de São Paulo e da capital: a Província de S. Paulo, o Correio Pau-listano, a Gazeta de Notícias, a Gazeta da Tarde, o Globo.

Em 1880 colabora com a Evolução, folha republicana e federalista, dirigidapor Júlio de Castilhos e Assis Brasil, com cooperação de Pereira da Costa,Alcides Lima, Antônio Mercado, Teófilo Dias, Homero Batista, Pedro Lessae outros estudantes. Tendo ido a São Paulo em março apenas para se matricu-lar no quarto ano, permaneceu toda a época letiva fora daquela cidade. Publi-cou então vários contos e poesias e escreveu folhetins na Gazeta de Notícias, e estalhe editou o poemeto “Colombo e Nenê” para distribuição como prêmio aosassinantes; freqüentou as rodas literárias da capital, onde o espírito e o talentolhe fizeram adquirir inúmeros amigos e admiradores; e, gozando das larguezasproporcionadas pela recente lei do “ensino livre”, só voltou a São Paulo emnovembro, para prestar os exames, nos quais foi plenamente aprovado, apesarde não haver assistido às respectivas aulas.

Em 1881, Valentim Magalhães fundou em São Paulo a Comédia, de que foiredator, primeiro com Silva Jardim, e depois com Eduardo Prado. A Comédiaera de publicação diária e durou pouco menos de três meses, de 2 de março a23 de maio.

A turma que se formou em 1881 contou figuras expressivas: Francisco dePaula Paiva Baracho, juiz em São Paulo; Aristides de Araújo Maia, deputadoà Constituinte Republicana; Job Marcondes de Rezende, advogado, ManoelJosé Villaça e Arlindo Ernesto Ferreira Guerra, magistrados de alto concei-to; Estevam Leão Bourroul, justamente cognominado o Veuillot Brasileiro; Jú-lio Prates de Castilhos, o político rio-grandense; Raphael Corrêa da SilvaSobrinho e João Braz de Oliveira Arruda, lentes da Faculdade; João Passos,que, por muitos anos, exerceu com brilho as funções de procurador-geral do

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O fundador Valentim Magalhães

Estado de São Paulo; João Antônio de Oliveira César; Isaías Martins de Alme-ida e Leopoldo Teixeira Leite, advogados afamados; Manoel Ignácio Carva-lho de Mendonça, eminente civilista, a quem se devem a Doutrina e Prática dasObrigações, Rio e Águas Correntes e Contratos no Direito Civil Brasileiro; Theófilo Diasde Mesquita e Eduardo Paulo da Silva Prado. Diz Euclides:

Destacara-se (Valentim) notavelmente, granjeando invejável nomeadaentre conterrâneos que se chamavam Júlio de Castilhos, Silva Jardim, Bar-ros Cassal, Teófilo Dias, Eduardo Prado, Raul Pompéia, Lúcio de Men-donça, Assis Brasil, Afonso Celso, Fontoura Xavier, Augusto de Lima,Alcides Lima, Alberto Sales, Pedro Lessa, Luís Murat, Júlio de Mesquita,Raimundo Correia.

Ora, Valentim foi a figura representativa no meio de tão díspares ten-dências, por isto mesmo que lhe faltou sempre uma diretriz à atividade dis-persiva.

Spencer Vampré, falando dessa fase, diria: “Valentim Magalhães, espíritovibrante e combatido de poeta, de jornalista, e de crítico”, e dele transcreve:

A nau da vida

Veleja a nau da Vida... De repente :– “Mais um!” brada Saturno, e às ondas lançaO cadáver de um ano... DocementeDesliga o barco, ao sopro da Esperança.Canta, na tolda, a Juventude ardente;Chora a Velhice, e invalida descansa;E a Morte, – nuvem negra –, indiferente,Por sobre as águas pérfidas avança.– “Mais um!” repete o nauta apavorado;Como um fúnebre pêndulo, oscilando

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Na dúvida, que o punge e que o tortura;– E enquanto ao sol da vida, rutilando,Lhe aquece e beija o crânio atordoadoVai-se-lhe abrindo aos pés a sepultura.

Sá Viana, nos Esboços críticos da Faculdade de Direito de São Paulo em 1879, relatoucom ironia a situação do corpo discente, falando dos “estudantes que são to-dos que vão diariamente ao convento ou mesmo que lá não vão, mas pagam amatrícula à Fazenda Nacional. Classe que representa poucos, pois a aridez eforça dos estudos fazem recuar grupos numerosos que se limitam a adquirirconhecimento geral. Nesse grupo está Valentim Magalhães”.

Considera Sá Viana que, de todos os ramos da literatura na Faculdade deSão Paulo, era a poesia que merecia o devido cultivo e aponta dois estudantesque pensavam na mesma coisa, a poesia, Raimundo Correia e Valentim Maga-lhães. E deste último comenta: “É moço inteligente, podia ser bom estudantede direito se se dedicasse com mais seriedade ao estudo, mas não, é poeta.” DizEuclides da Cunha:

Os primeiros quinze anos de Valentim Magalhães coincidem com umafase de profundas mudanças da nossa existência política. De 1860, ao le-vantar-se o preamar democrático, simbolizado em Teófilo Otoni e rugindona “Mentira de Bronze” de Pedro Luiz, a 1870 e 1875, quando a monar-quia perdeu, uma após a outra, as muletas da aristocracia territorial e daIgreja – foi tão intensiva a decomposição do antigo regime que o simplesenfeixar as frases acerbas dos maiores chefes de seus partidos é uma missãode Tácito, e não se compreende que se perdesse tanto tempo para reali-zar-se o passeio marcial de 15 de novembro de 1889.

Assim, a juventude do escritor aparelhava-se para a vida, quando emtorno à sociedade se alterava, apercebendo-se de novos elementos paraexistir; e isto precisamente no cenário mais revolto de uma tal meta-morfose.

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O fundador Valentim Magalhães

A geração de que Valentim Magalhães foi a figura mais representativa,devia ser o que foi: fecunda, inquieta, brilhantemente anárquica, tonteandono desequilíbrio de um progresso mental precipitado a destoar de um esta-do emocional que não poderia mudar com a mesma rapidez; e a sua vida, asua carreira literária vertiginosa, toda disposta a nobilíssimas tentativas re-duzidas a belíssimos preâmbulos, a nossa própria vida literária, impacientee doidejante, brilhando fugazmente à superfície das coisas, inapta às análi-ses fecundas pelo muito ofuscar-se com as lantejoulas das generalizaçõesprecipitadas.

Formado, volta ao Rio. Em carta a Lúcio de Mendonça diria: “No dia 15de maio de 1882 devo partir com a família – mulher e filho – para a cidade dePiraí que V. conhece bem; aí vou trabalhar com o meu grande, com meu maioramigo, o tio José Alves Meira, que V. também conhece e estima, certamente.”

A estada foi curta e retornou em pouco tempo para se desdobrar em váriosempregos. Em dezembro de 1883 mudava de planos: “Tomei uma decisãoheróica. E aqui me tens. Mudei-me do teu berço para o meu berço. Não éque eu lá não arranjasse a vida às 500 maravilhas (mil seria exagero) o foroainda rende bastante, além disso eu trabalhava como o Meira, meu protetor emeu amigo.”

E queixando-se da profissão: “Aquilo de só ver o nariz dos escrivães, as ore-lhas dos juízes, as unhas dos colegas, a cauda dos políticos – aquilo matava-melentamente. Não trepidei, abracei o Meira, disse um adeus ao teu berço e cá es-tou. Fiz bem? Fiz mal? Não o sei.”

E falando das novas atividades: “É preciso que saibas que ganhando dez réisde mel coado, sou entretanto um dos homens apensionados desta cidade he-róica. Tenho a Gazeta, tenho a Semana, tenho a Escola Normal (onde finjo ensi-nar pedagogia); tenho os exames de português na instrução pública, tenho umaadvocacia manhosa, tenho inúmeros cacetes, tenho o diabo.”

Em confidência a Lúcio: “Se eu tivesse ficado em tua terra, ganharia a mes-ma importância, mas não pude suportar aquilo. Voei de lá para aqui e, embora

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Alberto Venancio Filho

não folgadamente, vou indo. Trabalho muito, é verdade, mas ao menos andocom o espírito arejado, leve, satisfeito.”

Fundou em 1885 A Semana e este periódico, estritamente literário, fez o mi-lagre de durar numa primeira fase três anos. Mas para isto, à parte um concur-so notável, em que se extremavam Urbano Duarte, Raul Pompéia, AlfredoSousa e Luís Rosa, despendeu o melhor da sua atividade e quanto lhe advierada herança paterna. Mas não vacilou ante a ruína. “Iludia-se quem lhe medissea fortaleza pela volubilidade. Era um caráter varonil blindado de uma joviali-dade heróica. Tinha esse recato do sofrimento que é a única expressão simpáti-ca do orgulho. Os seus melhores amigos jamais lhe divisaram desânimos.”

Tive ocasião de compulsar a coleção quase completa que a Biblioteca daAcademia possui de A Semana e verificar a alta qualidade do periódico, com ex-celente apresentação gráfica, publicação certa, seções variadas, sem falar no ex-celente corpo de colaboradores.

Ao lançar o primeiro número da A Semana em 3 de janeiro de 1885, diriaValentim Magalhães:

Dissemos nos prospectos com que anunciamos a criação desta folha: “ASemana constitui uma novidade para o público. E acreditamos não havermosenganado o público.” As razões que tínhamos e temos para pensar que A Se-mana é uma novidade são as seguintes, apontadas nos prospectos: Não épropriamente uma revista, como as que até hoje tem havido. Publicaçãohebdomadária, terá, no entanto, o caráter de um jornal diário.

O seu fim único será este: – fazer a história completa e fiel da semana, de-corrida, dando a nota do dia. Para isso terá seções em que se ocupará comtudo quanto tenha sido feito na semana em ciências, artes, letras, comércio,indústria, costumes, religião, etc., oferecendo aos leitores uma curta notícia,satisfatória e imparcial, de todos os fatos que em todos esses ramos de ativi-dade se tiverem realizado nos sete dias decorridos.

No intuito de auxiliar os jovens escritores de talento, aceitará A Semanaqualquer trabalho literário em harmonia com a sua índole e o seu programa,

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O fundador Valentim Magalhães

publicando-o e pagando-o ao seu autor, de conformidade com a tabela dafolha. A primeira das condições para a aceitação desses trabalhos será a res-ponsabilidade de seus autores.

Sobre o andamento de A Semana escrevia Valentim a Lúcio de Mendonçaem junho de 1885: “Estamos precisadíssimos de dinheiro. A coisa vai bem,mas de fora das províncias, onde contamos grande número de assinantes, su-perior aos da Corte, pouco dinheiro tem vindo. E isto é o diabo atualmente emque nos metemos em grandes despesas: tipografia, casa na Rua do Ouvidor,etc. Tem paciência meu velho, e arranja-me esse par de botas ... pecuniárias.”

Em dezembro de 1897 comentava o fracasso em carta ao mesmo destinatá-rio: “Obrigado pelos teus pêsames pela degringolade da A Semana. Apesar dospesares, ainda me julguei feliz vendendo tudo por uma tuta e meia, assumindoa responsabilidade das dívidas passivas, que são muitas, e perdendo todo o di-nheiro que ali enterrei, porque mesmo assim, não me estourou a folha nasmãos, passei-a adiante, desobriguei-me com os assinantes e não fiz inteiro fias-co. Ao contrário, parece-me que consegui sair-me bem de tão terrível aperto.Agradeço-te cordialmente, meu bom e bravo Lúcio, o muito que pela minhapobre Semana fizeste. Rei morto, rei posto. Vou meter-me noutra!”

Desde o primeiro número havia uma seção História dos sete dias, comen-tando os fatos da semana, inicialmente sempre assinada por Valentim Maga-lhães e em números subseqüentes com outras assinaturas, que parecem ser pse-udônimos do diretor, como Valmor N.N., José Reis Filho.

A revista teve vários endereços: a Travessa do Ouvidor, 36, sobrado; Ruado Ourives, 51; e afinal Rua da Quitanda, 34, bem próximo do escritório deRodrigo Octavio nos altos da Farmácia Araújo Pena, onde se realizaram asprimeiras sessões da Academia.

Valentim Magalhães era o redator chefe e seus redatores, todos futurosacadêmicos: Filinto de Almeida, Aluísio Azevedo, Luís Murat e Urbano Du-

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arte. A colaboração era a mais variada. Machado de Assis foi um colaboradoreventual e Capistrano de Abreu escreveu sobre temas históricos.

A Semana realizou um concurso sobre o maior poeta brasileiro, sendo vence-dor Gonçalves Dias e em segundo lugar Castro Alves, e manteve por certo pe-ríodo a seção Galeria de Elogios Mútuos, em que um escritor escrevia a bio-grafia do outro.

A Semana reaparece em julho de 1895, sob a direção de Valentim Maga-lhães e Max Fleiuss (1868-1943). O prospecto de lançamento, assinado peloprimeiro, dizia, entre outras coisas:

O que foi este periódico, que, sob minha direção, existiu nesta capital dejaneiro de 1885 a novembro de 1887, sabe-o todo o Brasil, cujo movimen-to literário representou durante aquele período [...] A sua influência sobre omovimento literário e artístico do Brasil foi tão patente [...] que acreditoque a notícia do ressurgimento d’A Semana será recebida com vivo júbilo egeral aprovação.

Afirmava então ser oportuno o aparecimento:

Há quatro anos que o espírito público vive absorvido, ocupado, oprimi-do pela Política, com opor uma obsessão pesada e funesta.

As letras retraíram-se quase completamente e o nível intelectual tem des-cido de modo inquietante, perceptível aos olhos menos sagazes [...]

As incertezas e atribulações do atual momento político vão produzindosobre a alma nacional uma depressão tão funda e penosa, que é tempo deabrir-lhe um respiradouro, de rasgar-lhe uma janela, aonde ela venha haurirum ar puro, álacre, oxigenado vigorosamente pelas serenas produções da li-teratura contemporânea.

A Semana terá agora os mesmos colaboradores de então, além dos escrito-res novos que a queiram honrar com as suas produções. Não terá preven-ções, nem coteries, nem preconceitos literários. Procurará ser moderna, sem

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acompanhar contudo as extravagâncias e despropósitos nascidos na sede deser novo, de ser original por qualquer modo.

A Semana apareceu em 1885 pela mesma razão por que vai reaparecerem 1893: porque o estado cultural dos espíritos determinava esse fato na-quele momento histórico.

Ao reiniciar a nova fase de A Semana em 1895, já contando com um eficienteadministrador, Valentim Magalhães atribuía o insucesso da fase anterior à fal-ta de capital para os melhoramentos: “Não chegavam as assinaturas e os anún-cios para fazer face às despesas excessivas. Tive de sacrificar o meu bolsinho.Esgotado ele e sem elementos novos para a luta, desanimei e passei a folha adi-ante. Poucas semanas depois finava a probrezinha.” Mas afirmava ser A Semana“a única de minhas obras de que imodestamente me orgulho”.

Nessa nova fase, o periódico vai durar até junho de 1897. Entre as suas pro-moções de 1895 figurou o concurso entre os leitores para saber quis “os seismelhores romances escritos em língua portuguesa”, com o seguinte resultado:

1o lugar – Os Maias2o lugar – O primo Basílio3o lugar – Memórias póstumas de Brás Cubas4o lugar – A relíquia5o lugar – A mão e a luva6o lugar – O Ateneu

Vendo na Semana uma capela de elogio mútuo, tacitamente antipática aosvalores emergentes das novas gerações, Luís Murat e Artur Azevedo fundarama Vida Moderna, episódio relatado por Coelho Neto, anos mais tarde, nas pági-nas de A conquista.

Valentim Magalhães tinha uma produção febril. Em 1886 escreveu Vintecontos; em 1887, Horas alegres; publicou, refundidas em 1888, as Notas à margem;em 1889, Escritores e Escritos... “Vede: não há a solução mais breve no duodecê-

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nio que percorremos. Não se pula uma data sem pular-se um livro. O escritorviolou doze vezes seguidas o nonum primatur in anno...”

Diz Euclides, comentando o período:

De 1889 a 1895 houve aparente descanso. A República, feita numa ma-drugada, criara a ilusão de grandes coisas feitas da noite para o dia. Valentim,como todos, vacilou na vertigem geral. Ordinariamente se acredita que o em-polgasse o anseio da fortuna fácil, naquela quadra que a ironia popular ferre-teou com o nome de ‘encilhamento’. Com efeito, salvante alguns artigos es-porádicos, o incansável homem de letras parecia mudado num infatigável ho-mem de negócios. E fundou – como toda a gente – uma companhia.

Mas considerai como o sonhador desdenhou as voltas retorcidas dos ci-frões e alinhou parcelas como se alinhasse versos; aquela ‘Educadora’, que setransformou depois numa vulgar companhia de seguros, era uma fantasiacomercial. Não segurava vidas, segurava inteligências; e o segurado, ao invésde um ajuste sinistro com a morte, a troco de alguns contos de réis, garantiaa educação dos filhos.

O devaneio mercantil não vingou.

Na expressão de Caio Prado Júnior sobre o Encilhamento:

A quase totalidade das novas empresas era fantástica e não tinha existên-cia senão no papel. Organizavam-se apenas com o fito de emitir ações e des-pejá-las no mercado de títulos, onde passavam de mão em mão em valoriza-ções sucessivas. Chegaram a faltar nomes apropriados para designar novassociedades, e inventavam-se as mais extravagantes denominações.

A transformação terá sido tão brusca e completa que revemos as própriasclasses e os mesmos indivíduos mais representativos da monarquia, dantes ocu-pados com a polícia e funções similares, e no máximo com uma longínqua e so-branceira direção de suas propriedades rurais, mudados subitamente em ativosespeculadores e negocistas. Ninguém escapará aos novos imperativos da época.

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O fundador Valentim Magalhães

Assim ocorreu com Valentim Magalhães, que dedicado à literatura e ao jor-nalismo, se abalançou a criar uma companhia de seguros, “A Educadora”, comfins de garantir a educação dos jovens. Não é preciso dizer que esse empreendi-mento teve completo fracasso. Também o futuro Acadêmico Emílio de Mene-zes empenhou-se nessa aventura, da qual redundou apenas um sólido prejuízo.

Cabe relatar episódio curioso ocorrido com nosso confrade e decano, o Acadê-mico Josué Montello. Certa vez Afonso Pena Júnior, diretor de bancos e de com-panhias de seguros, pediu-lhe que falasse a um grupo de empresários no Dia Inter-nacional do Seguro. Josué Montello fez então uma explanação da vida e obra deValentim Magalhães, com grande espanto dos presentes, para afinal declarar queescolhera essa figura, pois fora fundador de uma companhia de seguros.

Passado este interregno Valentim reavivou-se, e no qüinqüênio de1895-1900 continuou a marcar os anos pelos livros e opúsculos: em 1895, Fi-losofia de algibeira; Bric-à-Brac, em 96; em 97, o seu primeiro romance, Flor de san-gue; Alma e Rimário, em 98-99 – deixando prontos quatro outros: Fora da Pátria,Na brecha, Novos contos e Outono, que lhe demarcariam, na mesma progressão, osquatro últimos anos de existência...

Valentim Magalhães foi jornalista, escritor, poeta, contista, teatrólogo, ro-mancista e deixou uma vasta produção literária, nesta conferência só sendopossível analisar as principais.

� O poeta

Na juventude e especialmente na poesia foi o mentor da Idéia Nova, movi-mento que não teve grande repercussão, mas que representava uma idéia de re-novação do ambiente intelectual.

No ensaio A Nova Geração, refere-se Machado de Assis a dois poetas, Fon-toura Xavier (de que cita poesias avulsas e um opúsculo, “O Régio Saltimban-co”) e Valentim Magalhães, que já a essa altura havia publicado os livros Idéiasde moço (1878), em colaboração com Silva Jardim, a quem pertence a parte emprosa, e Cantos e lutas (1879), nos quais seguira a corrente socialista. RegistrouMachado de Assis:

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Alberto Venancio Filho

O primeiro livro de Valentim Magalhães sabemos já que na opinião dele,a Idéia Nova é o céu deserto, a oficina e a escola cantando alegres, o mal se-pultado, Deus na consciência, o bem no coração, e próximas a liberdade e ajustiça. Não é só na primeira página que o poeta nos diz isto; repete-o no“Prenúncio da aurora”, “No futuro”, “Mais um soldado”, é sempre a mes-ma idéia, diferentemente redigida, com igual vocabulário. Pode-se imaginaro tom e as promessas de todas essas composições. Numa delas o poeta afi-ança alívio às almas que padecem, pão aos operários, liberdade aos escravos,porque o reinado da justiça está próximo.

Noutra parte, anunciando que pegou da espada e vem juntar-se aos com-batentes, diz que as legiões do passado estão sendo dizimadas, e que o dog-ma, o privilégio, o despotismo, a dor vacilam à voz da justiça. Nessa contra-dição, que o poeta busca dissimular e explicar, há um vestígio da incertezaque, a espaços, encontramos na geração nova, – alguma coisa que parece re-mota da consciência e nitidez de um sentimento exclusivo. É a feição destaquadra transitória.

Quer o Sr. Valentim Magalhães que lhe diga? Essa idéia, a que empres-tou alguns belos versos, não tem por si nem a verdade nem a verossimilhan-ça; é um lugar-comum, que já a escola hugoísta nos metrificava há muitosanos. Hoje está bastante desacreditada.

Tem o Sr. Valentim Magalhães o verso fácil e flexível; o estilo mostrapor vezes certo vigor, mas carece ainda de uma correção, que o poeta acaba-rá por lhe dar. Creio que cede, em excesso, a admirações exclusivas. As idéi-as dele são geralmente de empréstimo; e o poeta não as realça por um modode ver próprio e novo. Crítica severa, mas necessária, porque o Sr. ValentimMagalhães é dos que têm direito e obrigação de a exigir.

Silva Jardim, com quem escreveu Idéias de moço (1868) afirma: “ValentimMagalhães é um petroleiro, vive embriagado pelas idéias modernas, roncandocontra o obscurantismo, a inquisição, os reis, e os padres, seduzido pela castaidéia, a liberdade.”

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O fundador Valentim Magalhães

Como poeta, segundo Raimundo Corrêa, “Valentim Magalhães, em segui-da ao lirismo dos verdes anos e da primeira adolescência, fez-se adepto fervo-roso da escola social. Esta escola poética que, com vários corifeus ilustres noBrasil e em Portugal, tentou substituir ao subjetivismo exagerado dos românti-cos o seu objetivismo abstrato e por demais palavroso, esteve muito em vogaentre nós, até à época do centenário de Camões, acontecimento que veio dar àliteratura nacional uma nova e mais segura orientação.

Por esse tempo foi que Valentim publicou os seus Cantos e lutas, obra adap-tada aos moldes daquela escola. Três são as poesias que a crítica destacou aícom mais vivos elogios: “Os dois edifícios”, “O herói moderno” e “Prenúnciode aurora”.

A primeira delas acabou por figurar em várias antologias escolares, pare-cendo que a este fim mesmo é que estava destinada; a segunda foi excluída,pelo autor, do seu Rimário; e a última é ainda hoje um dos melhores spéci-mens da escola.”

Sílvio Romero, na História da Literatura Brasileira, adotando espírito classifica-tório, trata dos vários períodos da poesia, e aponta na reação ao Romantismo(1872 ou 1873 em diante) uma poesia realista, uma vez social, revolucionáriaoutras, e incluía junto com Valentim Magalhães, Carvalho Júnior, FontouraXavier, Lúcio de Mendonça, Augusto de Lima, aos quais se prende Medeiros eAlbuquerque.

Descrevendo a Idéia Nova, Euclides esclarece:

Não maravilha que a nova geração, do avançar aforrado, não soubesse,afinal para onde seguir.

Apenas um exíguo grupo se destacou: arregimentou-se em torno de umfilósofo; e afastou-se. Ninguém mais o viu – e mal se sabe que ele aindaexiste, reduzido a dois homens admiráveis, que falam às vezes, mas que senão ouvem, de tão longe lhes vem a voz, tão longe eles ficaram no territórioideal de uma utopia, no dualismo da positividade e do sonho...

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Alberto Venancio Filho

O resto ficou numa fronteira indecisa a tatear dentro de uma miragemque, à falta de melhor nome, se chamou durante muito tempo a Idéia Nova.Que era a Idéia Nova? Eu poderia responder-vos que era uma coisa muitovelha, uma curiosa infantilidade de cabelos brancos, ou uma novidade decem anos – mas prefiro a palavra de um poeta do tempo.Escutemo-lo:

Está deserto o céu. No grande isolamento,Palpita ensangüentado o sol – um coração...Mas os deuses de Homero, o Jeová sangrento,Alá e Jesus Cristo, os deuses onde estão?Morreram. Era tempo. Agora encara a terra:Ressoa alegre a forja e sai da Escola um hino.O gênio enterra o mal em uma negra cova.Deus habita a consciência. O coração descerraAos ósculos do Bem o cálix purpurino.Vem perto a Liberdade. É isto a Idéia Nova.

Os versos são de 1879 e o poeta, à volta dos vinte anos, chamava-seAntônio Valentim da Costa Magalhães.

Valentim, na nota final de Rimário, último livro de poesia (1900), escreveu,referindo-se à esposa: “Nos Cantos e lutas, em Alma e neste livro encontram-se,palpitantes, os vestígios e os influxos de minha ventura doméstica, hoje extin-ta. Não é à memória d’Ela própria, viva, presente, inapagável, como existe eexistirá, sempre, no meu espírito e no meu coração. Este livro abre por um ade-us, em 1878, o de um curto afastamento, e termina com um adeus, em 1899, oda Morte, o do afastamento infindável. Estas datas marcam a alvorada e a noi-te de um dia de primavera luminoso e flóreo, e, por isso mesmo, demasiado rá-pido, – a minha mocidade!”

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O fundador Valentim Magalhães

O que finaliza aí, porém, não é somente a mocidade do poeta, é a sua pró-pria vida, pois ele não tardou muito em seguir ao túmulo a esposa idolatrada.

Rimário (1878-1899), publicado em 1900, último livro de poesia, é a sínte-se da produção poética de mais de vinte anos, escoimada dos versos que exclu-iu. Nas notas fala do sucesso do primeiro livro, Cantos e lutas, da absorção pelaprosa:

Fui sendo esquecido como poeta, passei de moda. [...] A princípio fui gê-nio, mas tarde coisa nenhuma, hoje César, João Fernandes amanhã.

Passaram muitos anos e passaram alguns lustros. Bons ou maus, os meuslivros de prosa foram sucedendo-se, empilhando-se. Ultimamente lem-brou-me juntar-lhes, para que não houvesse essa falha na minha obra total,o livro, ainda por fazer, dos meus versos feitos.

Não alimento ilusões sobre a sorte deste livro. Nele vai a minha mocida-de, a melhor porção da minha existência, o mais forte do meu cérebro, omais puro do meu coração. É a minha vida que passa cantando, cantandosuas aspirações e seus sonhos, seus desenganos e suas paixões, seus gozos eseus martírios.

É desse livro o poema a Machado de Assis:

Honremos altamente esse que ensinaA subjugar os metros revoltosos;Esse que torna os ares sonorosCom a doce voz da lira peregrina;Esse que da poesia os puros gozosLiberalmente aos corações propina;E tem da forma a religião divinaApostolado aos crentes sequiosos;Esse que arranca aos rígidos vocábulosA música rebelde e fugidia;

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Alberto Venancio Filho

Que da língua os diamantes corta e lavraE tange à rima os áureos tintinabulos.Honra ao mestre da Prosa e da Poesia,Ao vencedor da Idéia e da Palavra!

� O contista

Em 1882 publicou os Quadros e contos, segundo Euclides “livro promete-dor, onde refulgem páginas descritivas de excepcional colorido, avivadas to-das daquela galanteria do escrever, que raro o abandona – e que se acaso oabandona é para tornar maior. Realmente, joeirando-se todos os seus versosescritos em 1883, talvez nos restassem apenas três sonetos; mas estas 42 li-nhas perduram nas nossas letras como a expressão mais eloqüente de uma sa-udade ao mesmo passo excruciante e encantadora na sua tocante singeleza.Falecera-lhe o pai extremosíssimo, e Valentim, que até então escrevera paratoda a parte, num insofregado anelo da consideração coletiva, – surpreendi-do pela desdita, confiou, chorando, a alma da sua esposa, aquele poema deduas páginas, ‘O nosso morto’.”

Quadros e contos é, na opinião de Wilson Martins, uma reunião de contospropriamente ditos (nenhum deles “naturalista”, no sentido exato da pala-vra, mas todos de intenção “realista” evidente) e de páginas que poderíamosdenominar de crônicas, na acepção mais vaga do vocábulo. Dentre estas últi-mas, a mais impressionante é a desmistificação da vida acadêmica e, em parti-cular, da legendária Academia de São Paulo, a propósito da cerimônia de co-lação de grau:

A colação de grau não se realiza em um só dia para todos os bacharelan-dos; mas dia a dia, e a quatro, depois de haverem prestado no derradeiro atoas derradeiras parvulezas jurídicas.

Para essas festas acadêmicas não interrompe os seus deliciosos hábitos deinveterada porcaria.

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O fundador Valentim Magalhães

O velho convento conserva as suas vidraças bordadas a pedra, trabalho da re-volução de 71, a negra e abundante varíola que lhe sarapinta as paredes, traba-lho do tempo, as suas fealdades clássicas, as suas enfermidades sujas e legendári-as [...] Continua, – isto agora quanto ao interior – a estender sob as arcarias de-gringolantes e gafadas o mesmo estilo de corredores: preciosos depósitos dosescarros de 20 gerações de bacharéis, que aí se acumulam – os escarros e não osbacharéis – em gloriosas máculas escuras [...] A sala designada para o ato não seenfeita, não se apelintra, não se lava; não é varrida ao menos [...].

Escapou-me observar que não há em todo o edifício da academia umasala especial, que digo eu?... um banco, um reles banco de pinho, para rece-ber as famílias que concorrem ao ato, enquanto o esperam. As senhoras, emgrande tenue, conservam-se de pé, gentilmente alinhadas à parede, sendo for-çadas a ter suspensas pelas pontas dos dedos as pomposas traînes dos vesti-dos ricos, a fim de não inutilizá-los, pousando-os no chão [...].

Enquanto com todo o vagar, a portas fechadas, se lavra a ata e se prepa-ram as coisas para a cerimônia, toda essa pobre gente amarrota-se, abafa, de-sespera e sua; os homens sinistramente vermelhos, abotoados na suas redin-gotes, enforcados nos seus colarinhos novos e nas suas gravatas brancas,dessorando mau humor e péssima pomada húngara.

E assim prossegue a página terrível, com que nos curar para sempre de to-das as idealizações póstumas que se vieram acumulando desde o período ro-mântico sob as “arcadas” do Largo de São Francisco; período estudado comidênticas conclusões em meu livro Das Arcadas ao bacharelismo. “Os contos dovolume são convencionais e indecisos entre o sentimentalismo romântico ealgumas ‘notações’ que se querem realistas, mas pertencentes, na verdade,àquele ‘realismo’ do monstruoso e do grotesco em que o romantismo tam-bém se comprazia.”

Notas à margem – diz Euclides – recordam uma escaramuça agitadíssima, es-tonteadora, sem rumos, à caça do imprevisto, onde não há triunfos nem reve-

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Alberto Venancio Filho

ses, e os recontros e os adversários se travam e se distinguem fugitivos, a relan-ços e aos resvalos, um reconhecimento armado que não para… Porém, o queali falta no compasso das idéias, sobra na propriedade do dizer e num desvela-do apuro de linguagem, que influíram consideravelmente em nosso meio. Mu-ita gente, entre nós, começou a escrever melhor, sob as reprimendas gráceis da-quele infatigável caçador de solecismos e persistente fiscal de pronomes insu-bordinados. Ao mesmo passo na imprensa diária acentuou-se melhor esta for-ma literária facílima, que é o artigo do jornal, onde a medida e a intensidadedas idéias têm de ceder, não já aos dúbios contornos, capazes de ajustá-las aomaior número possível de critérios, nos limites de uma atenção de quartos dehora, senão também à fluidez de expressão, que lhes permita insinuarem-se nasnossas preocupações, encantando-nos um momento um momento – e passan-do sem deixarem traços.

Vou agitar alguns conceitos falíveis. Revendo estes volumes, o que paralogo se põe de manifesto é uma falta de unidade pasmosa.

O escritor muda no volver das páginas.

Novamente Euclides:

Nos Cantos e lutas, escuta-se, ao toar solene dos alexandrinos, o lirismohumanista que Pedro Luís divulgara desde 62.

De feito, a inspiração não lha diluem lágrimas: é robusta, impessoal, re-fulgente – e a sua

[...] grande musa austera e sacrossanta,que para o céu azul os olhos a levantabanhados no fulgor virgíneo da verdade,era sem dúvida sincera.

Mas esta linguagem, cantando herculeamente as odes imortais, nuncamais se repetiu. Ao contrário, a poesia filosófica (e falo assim por obedecerà moda, porque uma tal poesia se me afigura tão absurda quanto uma geo-

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O fundador Valentim Magalhães

metria lírica ou a astronomia romanceada de Flammarion), a poesia ‘social’,em que tanto importa o subordinar-se a expressão à verdade, teve depois emValentim um irrequieto adversário.

No livro Notas à margem, Valentim Magalhães incluiu uma crônica, lamen-tando que ao enterro do grande jurista Teixeira de Freitas só tenham compare-cido quatro pessoas. Machado de Assis glosou o comentário, dizendo tambéma escassez de amigos e colegas no enterro de José de Alencar, que “também erajurisconsulto, romancista, orador e político. Não era só isto: era o chefe danossa literatura”. E atribuía a ausência com ironia à falta de calças pretas.

De Alma, livro de contos, diz Raimundo Corrêa:

Mas para os que, como eu, preferem a todos os trabalhos de ValentimMagalhães os que ele escreveu no estilo familiar, as suas melhores páginasestão talvez nesse encantador livrinho – Alma. “O primeiro dente”, “O pri-meiro nome” e “Noites eternas” são com efeito três peregrinos poemas emprosa; e, quando os leio, suponho que o autor seria inimitável, inexcedívelnesse gênero íntimo. Pondo de lado todos os discursos e conferências quefez, didáticas e literárias, muitos artigos de polêmica e inúmeros escritosdispersos por vários jornais, para considerar exclusivamente o que ele che-gou a reunir em volume, não se pode negar que, com respeito ao prosador,este seu legado, só por si, constitui uma obra vasta e multifária, pela infini-dade de assuntos que abrange.

� O ensaísta

José Veríssimo, escrevendo no início da República, diz que as letras nãoexerciam qualquer influência nos movimentos de idéias: “Em nosso país osmovimentos de ordem espiritual, longe de atuarem sobre os fenômenos sociais,destes recebem impulsão e vida.” Havia, registra ele, “uma sensível atmosferanacionalista depois da proclamação da República, mas o movimento literárioera pobre”. E acrescentava Valentim Magalhães:

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Literatura sem livros, literatura de folhetos, posso também chamar àquelaque ora temos. Escassíssima, a nossa produção literária quase que se resumehoje exclusivamente no conto, na fantasia ligeira e desvaliosa, na poesia, oumelhor, em alguns versos publicados nas folhas diárias ou em efêmeras revis-tas. O romance, a crítica, a filosofia, a história, os estudos literários, o drama,este principalmente, morrem verdadeiramente à mingua de produção. A mes-ma literatura política [...] não dá senão raros e mesquinhos frutos.

Segundo Wilson Martins:

Constituído, como os Estudos brasileiros de José Veríssimo, de artigos es-critos para diversos períodos desde 1881, o livro Escritores e escritos de Valen-tim Magalhães oferece curioso documento sobre a nossa vida intelectualnesse período. Mencionemos, antes de mais nada, que começa com um elo-gio da Forma – “Ninguém que almeje passar por poeta tem mais o direitode ignorar os preceitos gerais da arte do verso.”

Adepto do culto da forma, dizia Valentim Magalhães:

“Essa religião não tem entre nós mais que meia dúzia de sacerdotes. Eesses mesmos celebram as cerimônias do seu culto, praticam os divinosmistérios de sua seita no meio de uma multidão de ignorantes, que lhesnão entende o Latim, e que só aplaude os versejadores pesadões, aquelesque apenas conhecem da Poesia este princípio: escrever em linhas curtas.Felizmente ainda temos alguns descendentes da raça divina dos helenos,ainda temos alguns poetas... que se dão à árdua e deliciosa tarefa de procu-rar a forma perfeita. Pesam as palavras em balanças microscópicas, me-dem-nas, estudam-nas, combinam-nas, como um alquimista fantástico fa-zendo ouro; estudam Lecomte (sic), Gautier e Banville, como se foramtratados de botânica e de mineralogia, e fazem o que tanto aconselhavao poeta da Comédia da Morte e tanto recomenda o Artur de Oliveira –lêem os dicionários.

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O fundador Valentim Magalhães

Nos Escritores e escritos, afirma Euclides, “desponta-lhe o antagonismo em di-zeres concisos, golpeantes”: “Em literatura a forma é quase tudo. Especial-mente em poesia. É preciso ter como Teodoro de Banville o sentimento daspalavras... A Forma! Eis o grande, o milagroso talismã! Quem o possui atraves-sa a vida sem conhecer impossíveis caprichos do seu gênio.”

A “Forma” lá está com F maiúsculo. É o fetichismo do vocábulo. Comefeito, poucas vezes na língua portuguesa a palavra foi tão voluntariosa noviolentar idéias, transfigurado-as ou emparelhando-as nas mais bizarrasantíteses.

� O romancista

Em 1897 Valentim de Magalhães publicou seu único romance: Flor de san-gue. Diz no prefácio:

Nesses quatro lustros de atividade mental, tenho feito um pouco de tudo– versos, folhetins, contos, panfletos, crítica, biografia, artigos de todo gê-nero, teatro, que sei eu? e tenho construído com parte desses materiais paramais de uma dúzia de livros.

A crítica tem me reconhecido, com munificência que me há penhorado,um espírito vivaz, variável, curioso; uma atividade indefesa; um certo amorà língua vernácula, e daí pronunciado carinho no escrevê-la e um estilo cor-reto e agradável; porém não tem ocultado o seu pesar por me não ver aba-lançar-me a isso que chamam os críticos “obra de fôlego”, ou “trabalho sé-rio” – um poema, um romance, um livro de crítica profunda. Ora, eu devoconfessar que essa censura me calou sempre no espírito por havê-la formu-lado muitas vezes a mim próprio. Mas as necessidades inadiáveis da vidamaterial, tão pesadas para um pai de família pobre neste terra em que das le-tras ainda não se pode viver exclusivamente, impediram-me sempre de levarpor diante esse projeto, cem vezes formulado e não poucas começado a exe-

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Alberto Venancio Filho

cutar. O tempo que me deixavam livre as ocupações de que provinha o pãoquotidiano e o meu estado de saúde, precário sempre, chegavam apenaspara escrever o conto, a notícia crítica, a crônica faceta, o artiguinho diário aque me comprometera em um ou vários jornais; não havia possibilidade derealizar o meu sonho, satisfazendo a exigência dos críticos – escrever umaobra de fôlego.

Sem parágrafo escrevi-o sempre de uma assentada, capítulo por capítulo,e, acabado, relia-o, corrigia-o, mandava copiá-lo por um secretário, conferiaa cópia e remetia-a aos tipógrafos.

Se conto este pormenores é para explicar as muitas imperfeições de for-ma que sou o primeiro a reconhecer, tais como a vulgaridade de algumasfrases, a fraqueza de certas expressões, o banal de vários títulos de capítulos(e dei-lhes títulos por uma conveniência pessoal: para orientar-me em cadacapítulo do estado, do ponto em que ficara o enredo, a composição), um ououtro galicismo, como “golpe de vista”, e outros defeitos mais.

O capítulo que primeiro escrevi, com a intenção de fazê-lo o primeiro li-vro, foi o quinto da segunda parte – um dos últimos: eu havia principiadopelo fim!

Não resolvi fazer um romance naturalista, nem de aventuras, nem de psi-cologia, nem simbolista, nem idealista; resolvi simplesmente fazer um roman-ce. E ele foi-me saindo dos bicos da pena com um certo feitio, uma certa fisi-onomia, um certo caráter, que não tentarei definir e ainda menos explicar.

Se todavia me interpelasse alguém sobre tal ponto, diria que para o seuautor é o meu romance filiado à escola da verdade, a única, que como osGoucourt, acredito real e fecunda em Arte. Todos os tipos que nele fiz mo-ver-se, e não sei se viver, encontrei-os na vida social, não só fluminense, nãosó brasileira, mas de todos os países.

O romance Flor de sangue descreve a vida amorosa de uma senhora da altaburguesia, Corina, e está dividido em duas partes, cada uma terminando comum suicídio, o primeiro, do amante, que era filho adotivo do marido, e o se-

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O fundador Valentim Magalhães

gundo, do marido ao saber muito mais tarde da relação da esposa com o filhoadotivo. O suicídio está presente também no “Soneto de um suicida”:

(A Lucindo Filho)Mata-me a dura lei da vária NaturezaQue nos faz desejar o que nos é proibido;O fruto do pecado e o mais apetecido,E o crime é um belo ornato as graças da Beleza.

O dístico – Mão toque e do mal a certezaSão dois imãs fatais, a que anda o amor vencido;Os direitos cruéis do amante e do maridoAumentam da paixão a tempestade acesa.

Morro porque te quero e não podes ser minha,Separa-nos um muro estúpido e fatal,Quando, no entanto, o amor, a rir, nos avizinha.

Suplício sobre-humano e delícia infernal,Que todos podem ver mas ninguém adivinha:– Morro porque és o bem e desejar-te é o mal.

É interessante salientar que o personagem principal do livro, Fernando Go-mes, é um beneficiário do Encilhamento, o autor certamente transmitindo aexperiência pessoal para descrever os episódios, e é curioso apontar o teor daerrata: em lugar de “bosque nemoroso”, “bosque umbroso”; ao invés de “es-tourar os miolos”, “cortar o pescoço”.

José Veríssimo, em Estudos de literatura brasileira coloca o livro no Naturalismopelo tema e à literatura apressada de folhetim pela execução, aponta “indecên-cias e imoralidades” e “quase nenhuma qualidade literária”.

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Com outro julgamento, Euclides contesta: “Nada direi do livro malogrado,onde, entretanto, um velho tema se remoça com uma cativante originalidadede desfecho. Considero apenas que a crítica desaçaimada, que o estraçalhou atéà errata final, não disse mais do que o próprio romancista, no prefácio.”

Raimundo Corrêa viu injustiça, por vezes, na severidade dos críticos, a qualse acrescentava à “diatribe malévola dos desafetos”.

Escreve Machado de Assis:

Flor de sangue pode dizer-se que é o sucesso do dia. Ninguém ignora queValentim Magalhães é dos mais ativos espíritos da sua geração. Tem sidojornalista, cronista, contista, crítico, poeta, e, quando preciso, orador. Hávinte anos que escreve, dispersando-se por vários gêneros, com igual ardor ecuriosidade. Quem sabe? Naturalmente nem tudo o que escreveu terá omesmo valor.

Tudo é que as obras sejam feitas com o fôlego próprio e de cada um, ecom materiais que resistam. Que Valentim Magalhães pode comporobras de maior fôlego, é certo. Na Flor de sangue o que o prejudicou foiquerer fazer longo e depressa. A ação, aliás vulgar, não dava para tanto;mal chegaria à metade. Há muita coisa parasita, muita repetida, e muitaque não valia a pena trazer da vida ao livro. Quanto à pressa, a que o au-tor nobremente atribui os defeitos de estilo e de linguagem, é causa ain-da de outras imperfeições.

Não insisto; aí fica o bastante para mostrar o apreço em que tenho o ta-lento de Valentim Magalhães, dizendo-lhe alguma coisa do que me parecebom e menos bom na Flor de sangue. Que há no livro certo movimento, é forade dúvida; e esta qualidade em romancista vale muito. Verdadeiramente osdefeitos principais deste romance são dos que a vontade do autor pode cor-rigir nas outras obras que nos der, e que lhe peço sejam feitas sem nenhumaidéia de grande fôlego.

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Na classificação do romance e do conto, Sílvio Romero, na História da litera-tura brasileira, indica o meio naturalista da cidade (1860/1884), inicialmentecom Manuel de Almeida, Carneiro Vilela e Celso Magalhães, ao qual se pren-dem com Valentim Magalhães, Afonso Celso, Xavier Marques e Domício daGama. Finalmente, ao tratar da crítica comenta:

Em nosso quadro esquemático, foram somente contemplados os críticospor temperamento os que fizeram da difícil arte de Sainte-Beuve a sua pro-fissão espiritual, e postos fora os pretensos críticos de arribação, sujeitosadventícios, que por capricho de momento, confundindo crítica com des-forra ou desabafo ocasional, foram levados alguma vez a exercer a discussãopolemista, sempre com desaso.

É o caso de Alencar nas Cartas sobre a Confederação dos Tamoios, Franklin Tá-vora nas Cartas de Simprônio a Cincinato, Joaquim Nabuco no que escreveucontra Alencar, e Valentim Magalhães no que publicou contra os Últimos ar-pejos, livro de poesias de Sílvio Romero.

� O polemista

Na arena jornalística, Valentim Magalhães digladiou com intrépidos pole-mistas, como Ferreira de Araújo, Carlos de Laet e Sílvio Romero, adversáriosdignos dele. Mas de permeio se metiam, às vezes, indivíduos que só desejavamganhar fama à sua custa, e outros que aproveitavam covardemente o ensejopara o ferirem pelas costas. E, quantas vezes, por quem nem sequer o conheciade perto foi ele gratuitamente agredido! Entretanto, Valentim não esmoreceujamais.

Diria a Lúcio de Mendonça: “Tenho pintado o bode como tens visto. Ulti-mamente com o Sílvio (Romero) era preciso sová-lo. Sovei-o e me parece queem regra.” Tratava-se do livro Notas à margem dos “Últimos arpejos” – crítica ao li-vro de versos de Sílvio. Eis a resposta de Sílvio Romero:

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Valentim Magalhães! – Famoso homem de letras em verdade... Foi du-rante mais de vinte anos o porta-bandeira da oposição tenaz, implacável, ir-redutível, contra tudo que se pensou e se fez na Escola do Recife nas últi-mas décadas do século passado. Guerra foi essa cuja constância, nunca des-mentida, só podia rivalizar com a sua própria sem razão, sempre provada. –Os serviços prestados às letras e ao pensamento nacional por uma legião in-teira de combatentes da idéia, entre outros, os Tobias Barretos, os Viveirosde Castro, um Martins Júnior, um Sousa Pinto ... não têm chegado para de-sarmar a odiosidade sistemática a uns, as censuras infundadas a outros, osesquecimentos calculados a estes, as meias simpatias àqueles, e até os feste-jos suspeitos de certos renegados que por qualquer motivo caíram nas gra-ças de determinados críticos, que se arrogam nesta boa terra a função de dis-tribuir os títulos e louvores espirituais.

Adolfo Caminha, no romance Tentação, fez o louvor da província, o casalde provincianos que se desloca para o Rio e aqui só encontra a falsidade e ahipocrisia. Nessa obra, Adolfo Caminha quis vingar-se de Valentim Maga-lhães, ao “fazer-lhe a caricatura, freqüentemente insultuosa e desafiadora,no tipo de Valdevino Manhães, diretor da Revista Literária e autor de muitís-simos livros, de muitíssimas obras, entre as quais o poema herói-cômico“Juca Pirão”, paródia ao Y-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias. A intenção dedesforra fez reviver o polemista que parecia espreitar em Caminha os movi-mentos do romancista, com o intuito de atenuar-lhe a força e desviar-lhe avocação”.

� O teatrólogo

Valentim Magalhães também se dedicou ao teatro: Doutores e Inácia do Couto,paródia à tragédia de D. Inês de Castro, incluídas no livro Teatro (1888); O im-pério da lei e O país do café, incluídas no livro Horas alegres, e em colaboração comFilinto de Almeida O Grão Galeoto e No seio da Morte, ambas tradução de D. JoséEchegaray, também em colaboração com Filinto de Almeida, e A mulher-homem,

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entre outras. As peças eram mais para serem lidas do que representadas, e nãotiveram grande repercussão. Este comentário é confirmado pela análise de Ro-nald de Carvalho:

A literatura dramática brasileira, depois de Martins Pena, Macedo Alen-car, França Júnior e Agrário de Menezes, se não deixa de existir pelo volumeda produção, minguou pelo caráter cênico das obras aparecidas. O ato ligeiro,a burleta, a comédia trivial, a revista popular e anedótica de Artur Azevedo,Valentim Magalhães, Moreira Sampaio e muitíssimos outros, todos empe-nhados, aliás, em “educar” o gosto do nosso público, “envenenado pelo dra-malhão romântico” não conseguiram qualquer processo sensível para o nossoteatro decadente. Ficamos, ao contrário, com um teatro fútil e parasitário,imitado ou simplesmente traduzido do francês, menos nacional que nunca,apesar dos propósitos e das intenções regeneradoras de que estava inçado.

Afinal, cabe o comentário de Raimundo Corrêa sobre o diletante:

Há bastantes anos que ele abrilhanta assiduamente as colunas do nosso jor-nalismo; a sua pena destra e nervosa não só pelo folhetim chistoso tem volatea-do, mas também pela poesia, pela sátira, pelo teatro e pela crítica, deslizandosem dificuldades nos assuntos mais graves, como nos mais leves assuntos, equase que não há esfera de atividade literária para a qual se não ache voltada al-guma das múltiplas faces do seu belo talento, nem departamento nenhuma dasletras onde a sua passagem não tenha ficado mais ou menos assinalada por al-gum bom serviço.

Essa complexidade cerebral, rara e invejável aliás, é, no entanto, por unsvisos de puro diletantismo, o que mais do que tudo o tem prejudicado, de-primindo aos olhos da crítica mal prevenida o seu real e contestável mereci-mento.

Que é que o faz não persistir por muito tempo e mais atiradamente num sóterreno? Será aquele suposto diletantismo, ou bem uma outra causa que me-

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Alberto Venancio Filho

lhor se pode investigar no próprio temperamento do escritor. Dir-se-á que, emtratando um assunto qualquer, logo o desvia dele a sugestão de um novo e di-ferente assunto em que também não persiste mais do que no primeiro. O exer-cício ansioso e febril de uma atividade assim distribuída em tão várias direçõessimultaneamente lhe não permite, ao incansável trabalhador, levantar edifíciobem sólido em terreno nenhum.

Quantos há, porém, de merecimento inegável embora, que cultivando umsó gênero exclusivamente, não têm conseguido neles êxito igual ao de Valen-tim Magalhães no cultivo simultâneo de muito?

Acrescenta Euclides:

Resumo o meu juízo: toda a obra literária de Valentim Magalhães podeter o título único de um de seus livros – Bric-à-brac. E a este propósito ouça-mo-lo na esplêndida volubilidade de seu estilo disserto, referindo-se àquelelivro sem cuidar que fazia toda a sua psicologia literária:

[...] Pois esta obra é isto mesmo; é um amontoado de curiosidades literá-rias, e objetos de arte escrita... Junto a um conto comovido e sincero, umtrecho da sátira mordaz e irreverente; em seguida a um grito de entusiasmo,uma caricatura a traço largo; depois de um surto amplo de fantasia capri-chosa, um quadro exato e minucioso da vida social – Bric-à-brac. De manhãà noite, em um só dia, o homem percorre toda a gama sentimental – enter-nece-se e lacrimeja; encoleriza-se e ruge; alegra-se e ri; enfara-se e boceja;enamora-se e canta; indigna-se e satiriza...

� A figura humana

A esse respeito diz Euclides:

Expressiva é aquela admiração delirante. Valentim Magalhães era excep-cionalmente afetivo. Tudo lhe denuncia um nobre espírito impropriado aagir sem os estímulos de uma ardente simpatia, vinculando-o às outras almas.

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O fundador Valentim Magalhães

Esta literatura associada que, em geral, a exemplo dos Goncourts, exige abase da consangüinidade, ele a praticou como nenhum outro, reunindo um ir-mão legítimo, Henrique Magalhães (com quem escreveu uma paródia à Mortede D. João), a Silva Jardim, a Filinto de Almeida e Alfredo Souza, nos laços damesma fraternidade. Não se conhece um livro sem uma dedicatória. São rarís-simos os seus escritos dispersos, cujos títulos não tenham logo abaixo um pa-rêntesis guardando o nome de um amigo. A admiração, que é o sintoma maislisonjeiro de um caráter, rompia-lhe sempre num enorme exagero. Admiroudaquele jeito Guerra Junqueira; admirou Camilo Castelo Branco, “polígrafoindefeso, formidável, único”; admirou Ramalho Ortigão, “um mestre, senhorde todas as verdades do mundo moderno...”; admirou Machado de Assis,

esse que arranca aos rígidos vocábulosa música rebelde e fugidia...

admirou os seus próprios companheiros. Sendo preeminente na “nova gera-ção”, não desdenhou fazer-se o garboso mestre sala, para apresentá-la ao país.E o país conheceu-a, em grande parte, através da sua palavra carinhosa. Nãopreciso exemplificar. No círculo daquela afabilidade irradiante e avassaladoracaíram os que chegavam pouco depois, desde Coelho Neto, Medeiros e Albu-querque e Olavo Bilac até aos mais obscuros escrevedores da província. A al-guns cantou em verso, desde Carvalho Júnior, desaparecido tão moço e a quemconhecemos apenas como um meinsinger loiro, alegre e extravagante, até alguémque não preciso nomear, tão conhecido nosso é o

... que esculpidoTem, sonhos, dores, alegriasE é príncipe do Reino UnidoDas Harmonias.”

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Da capacidade de fazer amigos, mesmo à distância, aponte-se o depoimentode Xavier Marques no discurso de posse nesta Casa:

Um dos fundadores desta Casa, Valentim Magalhães, cuja memória nestaocasião me é grato evocar, fez que eu, certa vez, cativo de sua insistência, lhe pro-metesse candidatar-me à primeira vaga que se abrisse na Academia. De ânimoleve, um tanto fascinado, prometi. Mas apenas acabara de fazê-lo, tamanhos seme afiguraram os óbices por vencer na íngreme subida a que me convidava oamigo, que achei conveniente ir-me logo afeiçoando à idéia de uma evasiva, comqualquer pretexto, no momento oportuno, isto é, no momento crítico.

Valentim Magalhães possuía, aprimorado, no melhor sentido da expres-são, o espírito de camaradagem. Nunca lhe pude ouvir as razões que o in-duziram a considerar plausível a minha entrada, desde aquela época, para aAcademia. Pessoalmente nunca nos conhecemos. E somente em honra doseu caráter afetivo assinalo a simpatia com que sempre me distinguiu o au-tor que, dezenove anos antes, estreara nas letras sob os auspícios de sua bri-lhante nomeada.

O tempo, para quem eu, com tão pouca fé pessoal e desvalido de “estro” ha-via apelado, deu a mais desconcertante resposta aos meus desígnios. Em marçode 1903 dizia-me em carta o saudoso acadêmico: “Escreva-me, dando-me no-tícias suas, e decida-se a apresentar-se à primeira vaga da Academia Brasileira.”Em menos de dois meses, em 17 de maio, verificava-se a vaga. Era a de Valen-tim Magalhães...

Assim é que fui candidato, sem ilusões, quando razão não tinha para esperarsenão um junto revés: candidato por um desses motivos irraciocinados do sen-timento, que às vezes nos levam a arcar com aparências audazes e emprestamcolorido extravagante, pretensioso, no caso, às ações mais inocentes.

Esta reminiscência é uma homenagem do coração devida àquele que, embo-ra trocando pela justiça a liberalidade, primeiro cogitou de franquear-me esteegrégio cenáculo. Por exígua que seja, eu não a podia negar-lhe.

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O fundador Valentim Magalhães

E para EuclIdes:

A linha acentuada do caráter de Valentim ia de uma alevantada altivez auma robusta alacridade que o forrava aos rancores – embora não lhe faça agrave injustiça de acreditar que ele fosse incapaz do ódio, que é muitas vezesa forma heróica da bondade.

Mas este nunca lhe repontou nas polêmicas acirradas que travou e nomais aceso das quais lhe refulgia a graça amortecendo ou falseando os maisviolentos golpes.

Foi, porém, o mais breve dos triunfos. Não que ao escritor diminuísse oengenho, senão porque o surpreendeu um período anômalo da existênciapolítica.

Dele citemos, afinal um auto-retrato aos vinte e seis anos:

Mas o que queres tu, meu Lúcio? Eu sou um nervoso, vivo pelos nervos;preciso de atividade, de vibração, de variedade de aspectos, de área larga eprincipalmente de carne fresca, de carne de vaca. Sofria de uma dispepsiaatroz, que a absoluta ausência de meio literário e de distrações agravavammedonhamente.

� Conclusão

No dia 13 de maio de 1903, à tarde, Raimundo Corrêa foi a Santa Teresaem visita a Filinto de Almeida, e a esposa deste velho camarada recebeu-o, tris-te e apreensivo, com a notícia de que Valentim Magalhães estava gravementeenfermo. Momentos depois chegou Filinto e partiram juntos, inquietos, para acasa do comum amigo, que morava no Rio Comprido. Aí viram-no prostradono seu leito, vindo a falecer no dia 17 de maio.

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Silva Ramos (1853-1930)Acervo do Arquivo da ABL

Silva Ramos:mestre da língua

Na passagem do sesquicentenário deseu nasc imento (6 . 3 . 18 5 3 – 15 . 12 . 1930)

Evanildo Bechara

Oúltimo 6 de março assinalou a passagem do sesquicentená-rio de nascimento de um dos fundadores desta Casa, José

Júlio da Silva Ramos, vindo ao mundo, como quase tudo parece in-dicar, na cidade do Recife, em 1853.

Digo ‘como quase tudo parece indicar’ sua naturalidade recifense,porque assim sempre a proclamou Silva Ramos, diante da curiosidadede netos, intrigados que estavam do carregado sotaque lusitano que oavô conservou pela vida fora. Para corroborar essa pequena ponta dedesconfiança existem alguns dados relevantes que um futuro biógrafoseu terá de examinar com mais profundidade, entre os quais trago àluz dois. Do arquivo da Universidade de Coimbra chegou-me a certi-dão de batismo do nosso homenageado,1 onde se declara que o ato re-ligioso ocorreu aos 19 de junho de 1853, na Igreja da ConceiçãoNova de Lisboa e que o pequerrucho José Júlio, filho de João da SilvaRamos e de Emília Augusta Apolinário Ramos nascera em Lisboa.

1 Devo a pesquisa à minha colega Maria Aparecida Ribeiro, professora da Universidadede Coimbra e diretora do Instituto de Estudos Brasileiros.

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Conferênciaproferida naABL, a 6 demaio de 2003,durante o cicloFundadores daABL.

O outro dado, não intrigante como o anterior mas também não desde-nhável, consiste na omissão do nome do nosso acadêmico no Dicionário Bibli-ográfico Brasileiro de Sacramento Blake, que não deixa de arrolar, em dois mo-mentos, o pai pernambucano. É bem verdade que contamos com possível in-completude, lembrada pelo próprio operoso bibliófilo; mas estranha quefaltasse informação de um já professor do Colégio Pedro II (1898), de cujopai se ocupara Sacramento Blake com boa largueza de informações.

Mas não fostes convidados a esta sessão para uma escavação de ordem bi-ográfica do nosso ilustre homenageado, e sim para revivermos juntos osconsagrados méritos que o guindaram ao quadro dos trinta primeiros quepensaram e arquitetaram a construção deste cenáculo acadêmico, cada vezmais respeitado e amado do povo brasileiro, como síntese harmoniosa desua pujança cultural e literária.

Acostumado e afeito às tertúlias literárias de sua longa permanência emCoimbra e em Lisboa, e causeur cintilante que era, as reuniões da Academia,ao lado de poetas, romancistas, críticos e jornalistas, traziam-lhe à lembran-ça e à saudade os doces momentos de convivência com João de Deus, GuerraJunqueira, Cesário Verde e muitos outros. De tal modo lhe eram gradas assessões acadêmicas, que se inscreve entre os mais assíduos. Para terdes umaidéia dessa assiduidade, basta-vos dizer que das 89 realizadas entre 1896 e1908, sob a presidência de Machado de Assis, assistiu a 69, juntamente comJoão Ribeiro, só atrás de José Veríssimo, com 79, e do presidente, com pre-sença quase integral.2

Sua doação à Casa e o talento que seus confrades lhe conferiam devem,certamente, ter pesado para que fosse, na sessão de 18 de janeiro de 1897,eleito para ocupar o cargo de 2o Secretário com vista a integrar a primeira di-retoria completa, juntamente com o 1o Secretário, Rodrigo Octavio.

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2 Estatística levantada na tese de Cláudio Cezar Henriques Atas da Academia Brasileira de Letras –Presidência Machado de Assis. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2001. (ColeçãoAustregésilo de Athayde, vol. 2.)

Nas homenagens que justamente lhe foram tributadas in memoriam, no seufalecimento, ocorrido em 1930 e no transcurso do 1o centenário de nascimen-to, em 1953, os pontos de exaltação incidiram na sua produção de poeta, jor-nalista e tradutor, embora não lhe fossem esquecidos os méritos de excelentefilólogo e exímio professor de Língua Portuguesa.

Sobre Silva Ramos recaíam os votos da crítica de então elogiando o delica-do poeta romântico com ressalto de sua veia lírica, denunciada na epígrafe deAlfredo de Musset “L’amour est tout... Aimer est le grand point...” com queabria seu único livro de versos, Adejos, publicado em Coimbra, em 1871, regis-trando-lhe os arroubos juvenis dos dezesseis aos dezoito anos. Ressalta-va-se-lhe também o cronista encoberto no pseudônimo Julio Valmor de A Se-mana e outros órgãos da imprensa fluminense e, com não menos ênfase, o pro-fessor de nomeada, estimulador de estilistas e incentivador de futuros cultoresdo idioma.

Os dotes de sua poesia, é bem verdade, foram exageradamente exaltadospelo paulista que lhe sucedeu nesta Casa, o inspirado autor de Vida e Morte doBandeirante, Alcântara Machado. Outro ocupante da mesma cadeira n.º 37, ses-senta e sete anos depois, com o peso de sua autoridade de excelente poeta, me-lhor os ajuizou. Eis as palavras do nosso confrade Ivan Junqueira no seu dis-curso de posse, acerca de Adejos:

[...] esses versos de Silva Ramos, além de irremediavelmente datados, re-fletem antes, ou tão-somente, os arroubos de um espírito ainda em ebuliçãoe as fundas influências que recebeu em Coimbra, as quais seriam decisivaspara a sua sólida formação de gramático e filólogo.3

Todos os discípulos que tiveram a honra de lhe assistir às aulas são unâni-mes em aludir ao amor ao idioma que inoculava em seus ouvintes, à interpreta-

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Silva Ramos : mestre da l íngua

3 Discurso de Posse de Ivan Junqueira e Discurso de Recepção de Eduardo Portella. Rio de Janeiro:Academia Brasileira de Letras, 2000, p. 11.

ção reveladora das excelências lingüísticas escondidas nos textos literários e avivacidade com que, no sotaque lusitano, emprestava à leitura de trechos lite-rários recolhidos na mais clássica e de bom gosto seleta escolar, a Antologia Na-cional de Fausto Barreto e Carlos de Laet.

Silva Ramos perscrutava os meios estéticos de expressão utilizados nos tex-tos literários, reconhecendo-lhes e decifrando-lhes ‘a indocilidade com queeles recebiam a rigidez de normas inflexíveis’, para trazermos aqui uma frasefeliz do saudoso Barbosa Lima Sobrinho, em saudação à passagem do centená-rio do ilustre filólogo.4

Neste sentido são extremamente reveladores os depoimentos de seus nume-rosos alunos, entre os quais lembrarei apenas dois, o de Manuel Bandeira e ode Sousa da Silveira, ambos filólogos que, já adultos, recordavam as aulas donosso homenageado a crianças do 1o ano da turma de 1897 do Ginásio Nacio-nal, denominação, àquela fase republicana, do Colégio Pedro II.

Ainda hoje recordo – diz-nos Bandeira – a maravilhosa lição que foi aleitura que fez da “Última corrida real de touros em Salvaterra”: não só te-nho bem presente na memória o quadro objetivo da sala de aula, a atitudedos colegas, a figura subitamente remoçada do mestre, a voz com todas assuas inflexões mais peculiares, como também todas as imagens interioresevocadas pelo surto eloqüente da leitura: o garbo e esplendor da ilustre Casade Marialva ficou para sempre dentro de mim como um painel brilhante.Na verdade em um ponto da minha consciência quedou armado um redon-del definitivo para essa última corrida de touros em Salvaterra, a qual nuncadeixou de ser uma das festas preferidas da minha imaginação. A tal ponto,que longe de ser a última, passou a ser a eterna corrida de touros, eterna eúnica, pois foi a primeira que vi – porque positivamente a vi! – e me fezachar insípidas, mesquinhas, labregamente plebéias as verdadeiras touradas

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4 Discurso do Presidente, Sr. Barbosa Lima Sobrinho. Sessão de 28 de maio de 1953. In: Revista daAcademia Brasileira de Letras, ano 52, vol. 85. Anais de 1953. Rio de Janeiro: ABL, 1953, pp. 237-240.

a que assisti depois com os olhos do corpo e não com os da imaginação ex-citada pelo gosto literário do mestre.5

O testemunho de Sousa da Silveira revela-nos o filólogo que aceita aquelaindocilidade à rigidez de regras inflexíveis a que atrás referi. Falando a Home-ro Senna acerca do mestre, lembra Sousa fatos de língua que já denunciam a ar-gúcia do futuro comentador de textos:

Nesse primeiro ano do Ginásio encontro, entre os professores, Silva Ra-mos, de saliente e forte personalidade, embora disfarçada pela sua modéstiae encantadora simplicidade. Posso dizer que foi ele quem primeiro me cha-mou a atenção para as belezas do idioma que falamos e para os recursos doestilo. Lembra-me, por exemplo, que em classe fazia ressaltar as onomato-péias que se encontram na célebre página de Camilo referente ao suplício daMarquesa de Távora. Na “Última corrida de touros em Salvaterra”, de Re-belo da Silva, entre muitas outras coisas, o velho mestre salientava a impres-são de ansiedade que, em certa altura, se traduz pela sucessão de períodoscurtos. Também não me esquecerei jamais de que nos versos de Gonçalvesde Magalhães, relativos à descrição do Amazonas, indicou-nos o efeito dosdois proparoxítonos usados pelo poeta para sugerirem a idéia de largura evastidão do rio:

Baliza natural, ao norte avultaO das águas gigante caudalosoQue pela terra alarga-se vastíssimo.

Ora... outro professor, a respeito de tais versos, nos teria dito que os nos-sos românticos não se preocupavam muito com a correção da língua e colo-cavam desordenadamente os pronomes. Censuraria, com certeza, Maga-

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5 Manuel Bandeira, Poesia e Prosa. Vol. II, Prosa, pp. 1167-1168. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar,1958.

lhães por ter colocado o pronome átono depois do verbo na oração subor-dinada relativa e ainda por cima depois de um adjunto adverbial. E não seriade admirar que, se fosse versejador, sugerisse aos alunos uma emenda, subs-tituindo um verso, como o de Magalhães, belo e sugestivo, por outro corre-tíssimo, do ponto de vista gramatical, mas sem nenhum poder de expressão.Foi com Silva Ramos que adquiri o gosto do gênero de comentários que te-nho feito à obra de alguns autores nossos e portugueses, de que pode servirde exemplo a edição crítica que organizei das poesias de Casimiro deAbreu... Esses comentários têm suas raízes nas lições do querido professor,o qual lançou em meu espírito sementes que frutificaram... Sabia fazer comque os alunos tomassem gosto pelo estudo da língua. E o mais importante...é que lecionou à nossa turma apenas durante o ano de 1897. Mesmo assim,pôde influir fortemente em meu espírito.6

Na oportunidade deste sesquicentenário desejo mostrar-vos, em modestobosquejo, um Silva Ramos eminentemente filólogo, no mais amplo sentido deque se reveste o termo, com um embasamento teórico que raramente se encon-tra nos seus contemporâneos, numa época de formação superior autodidatadentro de um momento histórico altamente renovador nos métodos de estudo

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6 Apud Maximiano de Carvalho e Silva, Sousa da Silveira. O Homem e a Obra. Sua Contribuição à CríticaTextual no Brasil. Rio de Janeiro: Presença / Pró-Memória / Instituto Nacional do Livro, 1984, pp.11-12. Também a este mesmo propósito se manifesta M. Bandeira em carta a Alphonsus deGuimaraens Filho, de 21 de fevereiro de 1942: “Não tenho no entanto a felicidade de estar fazendosonetos tão bonitos como esses que você me mandou. Imperfeições e deficiências? Sinceramente nãoencontro nenhumas. O primeiro verso do primeiro soneto tem onze sílabas; e o quarto verso doprimeiro e do segundo soneto só tem nove. Mas depois da minha antologia romântica e da edição deCasimiro, do Sousa da Silveira, um grande poeta e grande versejador como você não tem que darsatisfações a ninguém: nós é que temos de descobrir, como eu e o Silveira fizemos, os motivossecretos intuitivos que levam os poetas de verdade a pôr versos de 11 e 9 sílabas no meio dedecassílabos. No caso dos seus sonetos estão transparentes os tais motivos, e quando você morrer (oque espera seja daqui a uns sessenta e tantos anos) e se fizer uma edição crítica de suas obras poéticashá de aparecer um Sousa da Silveira para o interpretar e defender das possíveis cavalgaduras do fimdo século XX ... (Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Itinerários. Cartas a Alphonsus de Guimaraens Filho.São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1974, pp. 84-85.)

científico da linguagem e das línguas, especialmente modernas, cujo marco de-flagrador, nas pegadas de Frederico Diez, se acha assinalado, em Portugal, apartir de 1869, com a produção pioneira de Francisco Adolfo Coelho e, noBrasil, em 1878, com a Gramática Histórica, de Pacheco da Silva Júnior e, em1881, com a Gramática Portuguesa, de Júlio Ribeiro.

Silva Ramos, sem nos deixar uma obra orgânica sobre nossa língua, estava apar dos princípios metodológicos mais correntes no seu tempo, princípios me-todológicos a que chamava “estudos positivos dos fatos da linguagem [...] queconstituem a ciência das línguas”.7 Sabia a posição mais correta e operacionalem que deviam ficar tais princípios na tarefa de ensinar a língua a jovens estu-dantes ginasianos: por trás do mestre, orientando e disciplinando seu discursolingüístico e metalingüístico, e não fazendo desses princípios e das questõescomplexas que envolvem o assunto da aula.

Graças ao empenho e iniciativa editorial de Laudelino Freire, podemoscontar hoje com uma coletânea de prosa, poesia e algumas lições de LínguaPortuguesa, vinda à luz em 1922, intitulada Pela Vida Fora. Caberá à Academia,no prosseguimento da homenagem de hoje, reeditar em breve essa coletânea,acrescida de outras lições esparsas em jornais e revistas, além de um opúsculoque pouco parece na sua bibliografia, A Reforma Ortográfica e a Academia Brasileirade Letras (1926).

Expôs seu ideário didático-pedagógico em mais de uma oportunidade; lem-brarei uma de suas lições no artigo que escreveu para o número inicial da Revistade Cultura, do Padre Tomás Fontes, em 1927, com o título de “Em ar de con-versa”:

Toda nação tem o seu código de bem falar e escrever em que se instruemos naturais até aos quinze ou aos dezesseis anos, e cada qual procura expri-mir-se de acordo com ele, abandonando os problemas da língua aos filólo-gos e aos gramáticos a quem compete destrinçá-los.

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Silva Ramos : mestre da l íngua

7 Silva Ramos, Pela Vida Fora. Rio de Janeiro: Edição da Revista de Língua Portuguesa, 1922, pp. 75.

Entre nós, que sucede? Os estudantes de português e muitos dos que es-crevem para o público descuram inteiramente da gramática elementar parase interessarem pelas questões transcendentais: a função do reflexivo se, seele pode ou não figurar como sujeito, o emprego do infinitivo pessoal e doimpessoal, qual o sujeito do verbo haver impessoal e outras que tais cousasabstrusas que nada adiantam na prática.

O apuro científico de Silva Ramos está presente em muitas de suas declara-ções sobre fatos da língua; um mergulho nelas, por superficial que seja, nos re-vela o princípio ou os princípios em que se assentam. Quando se alude ao mes-tre, logo acodem à lembrança palavras suas que se tornaram clássicas e assumi-ram até certo ar anedótico, como aquela afirmação: “Eu não sei como se colo-cam os pronomes, pela razão muito natural que não sou eu quem os coloca,eles é que se colocam por si mesmos, e onde caem, aí ficam.”8

Por trás deste comentário aparentemente inocente, há um punhado de prin-cípios metodológicos que cabe trazer à luz para análise. O primeiro deles é,novidade àquela quadra dos estudos de linguagem, a introdução dos fatores defonética sintática e de entoação frasal como motivadores de fatos de distribui-ção de termos oracionais, especialmente do jogo de vocábulos tônicos e átonosno boleio da frase. Não se tratava mais da famosa explicação por atração dessaou daquela palavra, mas sim pelos fenômenos de entoação, tema então recenteentre estudos de fonética praticados especialmente pelos lingüistas alemães,revelados de maneira inovadora por M. Said Ali, em artigo na Revista Brasileira,a 1 de março de 1895, de cuja lição só Silva Ramos soube extrair orientaçãopara seu magistério, pois não a vemos exarada nas melhores e mais correntesgramáticas da época, que ainda insistiam na improdutiva e falsa teoria da atra-ção vocabular.

Ainda nas pegadas de Said Ali e como corolário da nova teoria da entoaçãofrasal, pôde Silva Ramos compreender que, estando a distribuição dos prono-

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8 Id., ibid., p. 119.

mes oblíquos sujeita ao ritmo frasal e que esse ritmo era diferente entre brasile-iros e portugueses, natural seria que a colocação não coincidisse nos dois espa-ços geográficos – o americano e o europeu. E mais: que o brasileiro teria direi-to a esse uso, recriminado pelos portugueses. Eis lição de Silva Ramos, em1914, comentando os Novíssimos Estudos da Língua Portuguesa, de Mário Barreto:

Acreditamos, entretanto, que, quando o professor Mário Barreto se dis-puser a tratar o assunto com a amplitude que ele comporta, a conclusão aque terá de chegar, necessariamente, em face dos princípios da ciência quetanto acata e venera, é que a situação do pronome átono na proposição, tan-to no Brasil como em Portugal, é determinada exclusivamente pelo ritmo,diferente numa e noutra região, consoante a tonicidade e o valor dos fone-mas que não condizem aquém e além-mar.

O fenômeno é puramente de som, daquela fonética de que fala Brug-mann, que considera a frase como “uma unidade fonética completa em simesma.9

Em 1907, na prova escrita do concurso a que se submeteu para preenchi-mento de cátedra do Colégio de Pedro II, não fora diferente a sua lição:

Seja como for, o regulador único da distribuição dos pronomes átonosna locução brasileira é igualmente o ritmo, governado por princípios de queos naturais do Brasil não têm a mínima consciência, como os que nasceramem Portugal não a têm dos que regulam a cadência da locução portuguesa.Ora, tentar reduzir o ritmo, o número, a cadência da linguagem brasileira aoritmo, ao número, à cadência da linguagem portuguesa é irracionável em-preendimento. [...]

Ora, dependendo exclusivamente a situação dos pronomes átonos brasi-leiros da fonética peculiar ao Brasil, como se pôde originar essa preocupa-

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9 Id., ibid., p. 82.

ção dos gramáticos e mestres do vernáculo, entre nós, de estabelecerem re-gras para a colocação daqueles elementos, de acordo com os hábitos do fa-lar português, a ponto de ter o assunto servido de tema para uma tese deconcurso no Colégio de Pedro II?

Essa singularidade veio a gerar-se da maneira seguinte: José Feliciano deCastilho, português, a cujo ouvido mal toava a construção brasileira, lem-brou-se de censurar a José de Alencar pela forma por que ele usava colocaros pronomes. Ora, se o ilustre escritor e crítico se tivesse limitado a afirmarque a fraseologia do autor de Iracema se afastava, nesse particular, dos bonsmodos da língua vernácula, nada haveria que lhe opor: ele, porém, não se fi-cou por aí: pretendeu sustentar, de clássicos em punho, que sempre elesobedeceram a uma norma, na maneira como colocavam os pronomes; e en-trou a deduzir regras. Foi o que o perdeu. Alencar defendeu-se galharda-mente. Choveram de todos os lados contestações. A autoridade contrapu-nha-se autoridade, a citação retorquia-se com citação. Castilho quase perdea cabeça [...] Os nossos gramáticos correram açodados a sancionar a doutri-na de Castilho, estabelecendo regras que todas padeciam de fraqueza orgâ-nica, visto como repousavam todas em considerações reportadas à sintaxe eà morfologia, que nada têm que ver com a espécie: atração para o sujeito,afinidade para as subordinativas, solicitação por parte das negativas, e que-jandas relações, que deviam embaraçar muito seriamente [...] os que têm porofício manipular os acepipes literários.10

A visão científica com que Silva Ramos investigava a linguagem e os fatosda língua portuguesa habilitara-o a tratar com a superioridade que não se en-contrava nos gramáticos da sua época, ainda os mais bem informados, a exis-tência das variedades de uma mesma língua histórica, diversificadas em dife-renças cronológicas, regionais, sociais e estilísticas, em todas as dimensões deconcretização dos seus atos de língua. Está claro que se encontram em estu-

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10 Id., ibid., pp. 222-224.

diosos de todas as épocas percucientes intuições dessas variedades, mas nãofazem delas emprego operacional e funcional. Considerar uma língua nãocomo um bloco homogêneo e unitário, mas como um diassistema, vale dizer,um complexo conjunto de variedades, é conceito bem moderno na ciênciadas línguas. Silva Ramos, estilista e funcionalista avant la lettre, tirava partidodessa realidade nos artigos sobre que doutrinava os adultos e nas lições emque instruía os alunos.

Como as grandes figuras, estava a par das doutrinas em que se havia educa-do, mas não deixava de procurar aperfeiçoar conceitos e métodos. Assim é quea lingüística antes do seu tempo se caracterizara pelas raízes do método evolu-cionista e naturalista, segundo cujos preceitos as línguas eram emparelhadasaos organismos vivos, sob a égide das ciências naturais, que nasciam, cresciam,se desenvolviam e morriam independentes da vontade dos homens.

Recebeu também Silva Ramos as luzes do método histórico-comparativoalemão e a ele acrescentou o ideário sociocultural da escola do americanoWhitney. E mais avante acrescentou, já no final da vida e da ocupação magis-terial, os ensinamentos incipientes do psicologismo francês de FerdinandoBrunot, em La Pensée et la Langue, saído em 1922.

Registrem-se diferenças de visão da linguagem e das línguas nos dois excer-tos seguintes; o primeiro, datado de 1918, tipicamente fiel a um ideário natu-ralista em que a linguagem é uma proprietária biológica do homem. Neste sen-tido, vê como um processo fatalista de evolução as diferenças que se vão crian-do entre o português do Brasil e o português de Portugal, que haverão de favo-recer o surgimento de um dialeto brasileiro independente:

O que particularmente nos poderia interessar a nós brasileiros, como sedepreende das consultas endereçadas freqüentemente aos professores deportuguês, era saber se está próxima ou remota a emancipação do dialetobrasileiro, a ponto de se tornar língua independente.

A dialetação, como bem sabeis, é um fenômeno natural que a ninguém édado acelerar ou retardar, por maior autoridade que se arrogue; ao tempo, e

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Silva Ramos : mestre da l íngua

só ao tempo, é que compete produzi-lo. As línguas românicas foram diale-tos do latim, um dos dialetos por sua vez do ramo itálico, dialeto ele pró-prio da língua dos árias; não pode haver, portanto, dúvida mínima, paraquem aprendeu na aula de lógica a induzir, que o idioma brasileiro, de diale-to português que ainda é, chegará a ser um dia a língua própria do Brasil.

Que poderão, entretanto, fazer os mestres neste momento histórico davida do português na nossa terra?

Ir legitimando pouco a pouco, com a autoridade das nossas gramáticas,as diferenciações que se vão operando entre nós, das quais a mais sensível é adas formas casuais dos pronomes pessoais regidos por verbos de significa-ção transitiva e que nem sempre coincidem lá e cá; além da fatalidade foné-tica que origina necessariamente a deslocação dos pronomes átonos na fra-se, o que tanto horripila o ouvido afeiçoado à modulação de além-mar.

Consentiremos que os nossos alunos nos venham dizer que assistiramfestas, responderam cartas, obedeceram ordens, perdoaram colegas e que, em compen-sação, assegurem aos mestres que lhes estimam, que se lhes não visitam comfreqüência, é que receiam incomodar-lhes e que se lhes não saudaram na rua,foi que lhes não viram?

Por mim, falece-me autoridade para sancionar tais regências, nem acredi-to que qualquer dos meus colegas se abalance a tanto. E, contudo, o que ne-nhum de nós teria coragem de fazer, hão de consegui-lo os anos que se vãodobando lentamente.11

Em outro tom é o seguinte comentário, de 1919:

A língua não é um ser independente, não se pode desagregar de todos osoutros aspectos da atividade social a que está intimamente ligada, para seconsiderar em abstrato; é uma resultante necessária da vida coletiva nas suasinfinitas modalidades. Se conseguirmos, portanto, assimilar as virtudes das

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11 Id., ibid., pp. 178-179.

atenienses, ático será o nosso dizer; se persistirmos em importar, à misturacom os hábitos de elegância, os vícios, elegantes ou não, dos bárbaros e civi-lizados, proliferarão os barbarismos [= estrangeirismos], e se levarmos adesídia ao extremo de nos abandonarmos, como os habitantes de Soles, se-gregados da Grécia culta num recanto da Cilícia, não há fugir aos solecis-mos e acabaremos todos por falar como a mucama que tanto me irritou. Éfatal.12

Por fim, cabe-nos falar da maior batalha que Silva Ramos travou nestaCasa: a batalha da ortografia, a cuja vitória final chegou muitos anos depois demorto, pelo peso científico dos princípios defendidos nos recuados anos de1915.

Todas as discussões havidas nesta Academia sobre sistematização orto-gráfica, iniciadas com a proposta de Medeiros e Albuquerque aprovada nasessão de 11 de junho de 1907, se caracterizaram por um empirismo e, comoconseqüência, por soluções que transgrediam muito do progresso já conse-guido lá fora sobre os fundamentos científicos em que se deveria assentar umtão razoável quanto possível sistema de representação na escrita do plano fô-nico da língua.

As primeiras luzes no domínio do português vieram com o aparecimento,em 1904, da Ortografia Nacional, elaborada pelo competente foneticista e ortó-grafo lusitano Gonçalves Viana. Aperfeiçoadas as suas recomendações com aeliminação de alguns exotismos, as propostas de Viana serviram de base para areforma oficial da ortografia portuguesa de 1911. No Brasil, esta reforma sim-plificadora recebeu o beneplácito de Silva Ramos no seio da Academia, e nomagistério pela acolhida de Mário Barreto, Sousa da Silveira, Antenor Nas-

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12 Id., ibid., pp. 119-120.

centes, Clóvis Monteiro e Jaques Raimundo, para ficarmos apenas com osmais representativos professores do Rio de Janeiro.

Aceitando os argumentos técnicos do nosso homenageado, acolhe esta Casasua proposta de adoção da reforma portuguesa na sessão de 11 de novembrode 1915. Essas núpcias entre as duas Academias duraram pouco, pois, em1919, resolveram nossos confrades de então abandonar o acordo, pondo porterra tudo o que se havia deliberado sobre a magna questão ortográfica. O re-trocesso muito magoou a Silva Ramos, que resolveu não mais tratar do assun-to com seus pares.

O argumento que nesta Casa se levantou contra a proposta incidia numafalsa razão ainda hoje trazida à baila em debates dessa natureza: a lusitanidadeda pronúncia respeitada pelo acordo e tão natural ao autor de Pela Vida Fora.Havendo diferenças visíveis na pronúncia de brasileiros e portugueses, era im-possível um sistema gráfico único para as duas nações, justificavam.

Ora, falso o argumento, porque o sistema ortográfico não é essencialmentefonético mas fonológico, isto é, só leva em conta as unidades fônicas que têmvalor lingüístico distintivo. Vale isto dizer que um vocábulo como menino, dire-tor ou também pode ser proferido diferentemente nas diversas regiões do Brasil ede Portugal, mas só será representado na escrita, cá e lá, de uma única maneira.E aí reside efetivamente a só responsabilidade de um sistema ortográfico. Ofato ocorre com toda língua espalhada no vasto território nacional ou entrenações diferentes – como o espanhol, o francês, o inglês, o russo ou o árabe,por exemplo –, mas para esses idiomas existe apenas um modo de se grafar agrande maioria de seus vocábulos.

Entre brasileiros e portugueses ainda não se chegou a uma razoável unidadeporque se tem insistido em que o sistema ortográfico – argumento nem sem-pre verdadeiro – com a utilização excessiva de notações gráficas (como acen-tos, consoantes mudas e até o hífen) leva o falante a pronunciar “corretamen-te” as palavras dentro da diversidade fonética existente em todo o espaço dalusofonia. Aqui está o calcanhar de Aquiles que tem impedido a tão sonhadaunidade gráfica no seio da Academia Brasileira de Letras e da Academia das

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Ciências de Lisboa: quer-se uma unidade e se ameaça ela com os fatores da di-versidade.

A proposta de 1915 de Silva Ramos e dos confrades que a subscreveram,adotando o sistema oficial português, assinalaria o primeiro passo no sentidoda pretendida unificação. Posta em prática por largo tempo, viriam fatalmenteas emendas para se alcançar a unidade a que tanto aspiramos como um dos fa-tores de difusão da língua portuguesa no mundo.

Os argumentos de Silva Ramos contra propostas menos científicas acaba-ram vitoriosos com a aprovação do Formulário Ortográfico de 1943, revisto empequenas alterações de 1971, que consubstanciava a velha lição de GonçalvesViana.

De todo este percurso intelectual e acadêmico de Silva Ramos como filólo-go abalizado e como mestre da língua exemplar resta-nos, nesta passagem dosesquicentenário de nascimento, assumir o compromisso de levar avante suaobra e suas lições.

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