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1 ABERTURA DO PROCESSO JUDICIAL AOS MILITARES ARGENTINOS NA ESPANHA E O DEBATE SOBRE JUSTIÇA TRANSICIONAL E REPARAÇÃO Ana Carolina Balbino Doutoranda do departamento de história da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) bolsista Fapesp [email protected] 1. Reparação e justiça transicional na Argentina no imediato pós-ditadura (1983-1990) Em dezembro de 1983 a Argentina se redemocratizou após sete anos de ditadura militar (1976-1983), o que trazia enormes esperanças, mas também postulava problemas práticos que exigiam respostas rápidas: que democracia se buscava construir? Como lidar com os enormes crimes cometidos pelas Forças Armadas nos anos anteriores? Como responder às demandas dos movimentos de direitos humanos? Pontos importantes de todas as transições democráticas, esses questionamentos eram imediatos na Argentina devido ao importante papel social das organizações de familiares de vítimas, além do chamado show de horrores exposição midiática sobre os métodos repressivos que ganhou as páginas da imprensa no final da ditadura, colaborando para engrossar as vozes do movimento de direitos humanos. As palavras de ordem eram verdade e justiça (JELIN, 2018: 112) pontos fundamentais da chamada justiça transicional, processo existente desde a Antiguidade, mas que ganhou maior relevância após as graves violações de direitos humanos no século XX. Para quebrar a ordem anterior se inter-relaciona um conjunto de processos que passam por rendição de contas, difusão de verdade, abertura de processos judiciais, reparação dos danos sofridos pelas vítimas e reformas institucionais. Contudo, sua instalação nem sempre é fácil, especialmente quando os repressores ainda mantem uma base de apoio social e política. Ao assumir como presidente democrático, Raúl Alfonsín tentou responder a essas demandas, criando a CONADEP (Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas) cujo objetivo era receber denúncias e provas sobre as desaparições, remetendo-as à justiça, investigar o destino das pessoas e crianças desaparecidas, denunciar as tentativas

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ABERTURA DO PROCESSO JUDICIAL AOS MILITARES ARGENTINOS NA

ESPANHA E O DEBATE SOBRE JUSTIÇA TRANSICIONAL E REPARAÇÃO

Ana Carolina Balbino

Doutoranda do departamento de história da Universidade Estadual de Campinas

(UNICAMP) – bolsista Fapesp

[email protected]

1. Reparação e justiça transicional na Argentina no imediato pós-ditadura

(1983-1990)

Em dezembro de 1983 a Argentina se redemocratizou após sete anos de ditadura

militar (1976-1983), o que trazia enormes esperanças, mas também postulava problemas

práticos que exigiam respostas rápidas: que democracia se buscava construir? Como lidar

com os enormes crimes cometidos pelas Forças Armadas nos anos anteriores? Como

responder às demandas dos movimentos de direitos humanos?

Pontos importantes de todas as transições democráticas, esses questionamentos

eram imediatos na Argentina devido ao importante papel social das organizações de

familiares de vítimas, além do chamado show de horrores – exposição midiática sobre os

métodos repressivos – que ganhou as páginas da imprensa no final da ditadura,

colaborando para engrossar as vozes do movimento de direitos humanos.

As palavras de ordem eram verdade e justiça (JELIN, 2018: 112) pontos

fundamentais da chamada justiça transicional, processo existente desde a Antiguidade,

mas que ganhou maior relevância após as graves violações de direitos humanos no século

XX. Para quebrar a ordem anterior se inter-relaciona um conjunto de processos que

passam por rendição de contas, difusão de verdade, abertura de processos judiciais,

reparação dos danos sofridos pelas vítimas e reformas institucionais. Contudo, sua

instalação nem sempre é fácil, especialmente quando os repressores ainda mantem uma

base de apoio social e política.

Ao assumir como presidente democrático, Raúl Alfonsín tentou responder a essas

demandas, criando a CONADEP (Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas) –

cujo objetivo era receber denúncias e provas sobre as desaparições, remetendo-as à

justiça, investigar o destino das pessoas e crianças desaparecidas, denunciar as tentativas

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de ocultar ou destruir provas e emitir um informe final, que foi intitulado de Nunca Más

(CRENZEL, 2008: 18) – e assinando os Decretos 157 e 158, que determinavam a abertura

de processos criminais contra os líderes das três primeiras juntas militares – período de

maior repressão –, e contra os chefes das organizações guerrilheiras que atuaram no país

nos anos 1970.

A proposta judicial de Alfonsín assumiu a validade da teoria dos dois demônios,

criada ainda na ditadura e presente no prólogo do Nunca Más, que afirmou ter sido a

repressão estatal uma resposta as guerrilhas armadas, males que atingiram a sociedade

argentina (FEIERSTEIN, 2018: 11). Para além do problema da equiparação entre

violências desiguais, essa ideia acabou por demonizar toda forma de ação política, já que,

no seu limiar, “justificava” a perseguição a certos grupos – os “subversivos” – e os

culpava pela instalação do terror que atingiu os outros, inocentes. Para contornar essa

visão, o movimento de direitos humanos optou, muitas vezes, por esconder as relações

político-sociais das vítimas, despolitizando também a repressão (NOVARO e

PALERMO, 2007: 647).

Dois problemas se colocavam aqui: primeiro, criava a falsa impressão de que as

Forças Armadas agiram aleatoriamente contra a sociedade, ignorando o projeto de

eliminação dos classificados como opositores e dissidentes (PALACIOS, 2018: 159).

Segundo, colaborava para criar desconfianças sobre algumas vítimas que não podiam

“apagar” as vinculações com os grupos de esquerda – não necessariamente armada –, o

que muitas vezes levou ao silenciamento dessas histórias, processo especialmente

doloroso para exilados, que já haviam sido classificados como “subversivos em fuga” e

“antiargentinos” pelos militares (JENSEN, 2004: 304). Diante de pessoas que apontavam

até mesmo a participação em organismos de denúncia como prova do extremismo de parte

do exílio argentino, o debate sobre essa modalidade repressiva – não reconhecida como

tal pelo governo – praticamente não existiu no início da democracia.

Alfonsín ainda pretendeu limitar a culpa pela repressão aos líderes das juntas

militares. Contudo, para o movimento de direitos humanos, essa política era inaceitável.

O embate entre esses dois grupos levou a uma política regressiva nesse campo,

precipitando o encerramento da política de justiça transicional argentina.

A democratização abrira a esfera pública para um amplo debate sobre os

principais problemas da Argentina, colocando o legado das violações de

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direitos humanos no centro da agenda pública. Não havia consenso acerca

desses problemas entre militares e civis, nem tampouco entre os próprios civis.

A política original do governo Alfonsín jogava dos dois lados. Retórica e

simbolicamente, parecia ser tão progressista quanto a exigida pelas ONGs e,

realmente, o relatório da Conadep e o próprio fato de membros das juntas

militares terem sido levados a julgamento cunharam a agenda democrática com

uma visão progressista da responsabilidade pública e domínio da lei. No fim,

a intenção do governo de tratar apenas dos crimes cometidos pelos líderes das

juntas acabou por ter efeito contrário ao desejado. ONGs e familiares de

vítimas mobilizaram-se em protesto, enquanto as recomendações dos

magistrados no julgamento dos membros da junta abriram as portas dos

tribunais para um extenso número de causas. Ao estabelecer um limite de prazo para a apresentação dos processos, a Lei do Ponto Final apenas criou um efeito

de bola de neve. A reação dos militares levou à interrupção dos movimentos

progressistas, dando início a um estágio regressivo no ciclo de tratamento das

violações passadas dos direitos humanos. Sem conseguir levar em

consideração toda a força e o impacto do debate aberto numa esfera pública

democrática, o primeiro governo civil perdeu a iniciativa sobre as questões dos

direitos humanos. A política tornou-se reativa por causa de uma situação

deteriorante, e depois regressiva a fim de evitar a possibilidade de um novo

colapso da democracia. (RONIGER e SZNAJDER, 2004: 84-85)

As leis de Ponto Final1 e Obediência Devida2 praticamente impossibilitaram

qualquer nova ação judicial contra os repressores. Eleito em 1989 com um discurso que

prometia a reconciliação nacional, Carlos Menem encerrou a primeira fase da justiça

transicional argentina indultando todos os militares e líderes guerrilheiros3. Se essa

política retroativa enfraqueceu o movimento de direitos humanos (LVOVICH e

BISQUERT, 2008: 54), não foi capaz de calá-lo completamente.

2. A Espanha abre processo aos militares argentinos (1996)

Em meados dos anos 1990, uma nova conjuntura favoreceu a retomada dos

debates sobre a justiça transicional argentina, agora numa escala transnacional. Primeiro,

o aparecimento da H.I.J.O.S. chamou a atenção para a segunda geração de vítimas, que

questionava a teoria dos dois demônios, ao mesmo tempo que lembrava os apoios civis

ao golpe e à repressão. Fundada também em países de acolhida do exílio, a organização

1 Publicada em dezembro de 1986, estabeleceu o prazo de 30 dias para a apresentação de novas denúncias

contra repressores e 60 dias para o início dos trâmites judiciais. A intenção governamental, de limitar os

processos, não teve êxito devido a ação de juízes de Bahía Blanca, Córdoba, Tucumán, Rosario, Mendoza

e La Plata, que cancelaram o recesso de final de ano para atender as demandas no prazo estipulado 2 Na Semana Santa de 1987 membros das Forças Armadas se rebelaram, e ameaçaram a democracia caso a

justiça não fosse impedida de levar a cabo os processos judiciais abertos. Sem meios de barganha, o governo

Alfonsín sentiu o golpe. Em junho desse ano foi editada a Lei de Obediência Devida, que proibiu a

responsabilização de todos os repressores com patente inferior à de tenente-coronel. 3 Numa série de indultos assinados entre 1989 e 1990, Menem perdoou e libertou todos aqueles que haviam

sido condenados por violações de direitos humanos desde o início da democracia.

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dava visibilidade aos filhos de exilados, jovens que reivindicavam seu espaço como

argentinos.

Outro ponto que modificaria o clima social foi o aparecimento de militares

“arrependidos”, cujas confissões relembravam o horror da repressão. O depoimento do

capitão de fragata Adolfo Scilingo ao jornalista Horácio Verbitisky foi, sem dúvida, o

mais chocante, não tanto pela novidade – os voos da morte já eram conhecidos desde o

Nunca Más –, mas sim pela crueza com que foi relatada (VERBITSKY, 1995: 138;

RONIGER e SZNAJDER, 2008: 133-134). Foi nesse contexto que a marcha organizada

para o 24 de março de 1996 ganhou enorme repercussão (LORENZ, 2002: 83-84), tanto

dentro como fora da Argentina.

Acompanhando as mobilizações pelos jornais, o promotor Carlos Castresana

inteirou-se a respeito da repressão no país do Cone Sul, que havia atingido dezenas de

emigrantes espanhóis e da impunidade reinante desde o início da década. Membro da

União Progressista de Fiscais (UPF), Castresana redigiu uma denúncia contra os militares

argentinos, acusados de genocídio e terrorismo, apresentada a Audiência Nacional de

Madrid4 no dia 28 de março. Começou assim o processo responsável por reabrir os

debates sobre justiça transicional e reparação na Argentina e no Cone Sul.

Nos dias seguintes se juntaria a causa, como acusação, a Associação Argentina

Pró-Direitos Humanos, presidida naquele momento por Carlos Slepoy, advogado

argentino que chegou ao exílio em 1977, depois de sair de um centro de detenção5. Carlí,

como era conhecido, se tornou figura essencial do processo ao lado de Castresana. A ação

de ambos tomou por base a Carta de princípios de 1948 da ONU, as definições

internacionais de genocídio e a jurisprudência espanhola existente à época dos crimes.

Aceita, a denúncia foi destinada ao juiz Baltasar Garzón6, que passou a receber os

4 Formada na transição democrática espanhola, a Audiência Nacional é responsável por julgar os casos de

terrorismo, corrupção, falsificação de moedas e aqueles que envolvam tratados internacionais, como narcotráfico e genocídio. É composta por foros penal, contencioso, comercial e trabalhista. No foro penal

há seis tribunais de instrução, que são destinados por sorteio às causas. Os juízes que ali trabalham devem

investigar os fatos, determinar a existência dos delitos, tipifica-los e acusar eventuais responsáveis. 5 Preso antes do golpe de 1976, Carlos Slepoy não tinha causa aberta, apesar de ter atuado como advogado

trabalhista para o PRT-ERP. Diante das incertezas do país, Slepoy aderiu a chamada opção, que convertia

a pena de prisão em exílio (ANGUITA, 2001: 56-58) 6 O juiz Baltasar Garzón é uma das figuras públicas mais conhecidas da Espanha. Em seu tempo como

membro da Audiência Nacional (1988-2010) atuou contra o narcotráfico e grupos terroristas, como o ETA

e o chamado caso GAL, no qual desvelou a repressão ilegal do Estado aos etarras. Sua atuação na causa

contra os militares argentinos e chilenos lhe rendeu projeção internacional. Em 2010, após a abertura de

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testemunhos e provas que não apenas corroboravam a tese da acusação, como também

davam conta da união das ditaduras latino-americanas para capturar, deportar e executar

ilegalmente opositores exilados, conhecida como Operação Condor.

Apesar de caminhar lentamente nos primeiros momentos, a causa logo ganhou

importantes apoios, dos quais destacamos a Plataforma Argentina contra la Impunidad7,

os jornalistas de La Vanguardia Eduardo Pozuelo e Santiago Tarín, além de partidos e

organizações mais conhecidos, como Izquierda Unida, Madres e Abuelas de Plaza de

Mayo, Associación Pro-Derechos Humanos de España, Iniciativa per Catalunya e

Confederación Intersindical Galega.

Inicialmente ignorada, a causa ganhou destaque a partir da prisão de Adolfo

Scilingo, que prestou depoimento na Audiência Nacional em 1997. Outras ordens de

prisão já haviam sido ditadas – como a do general Galtieri – contudo, a falta de

colaboração do governo Menem parecia garantir a manutenção da impunidade. No ano

seguinte o processo teria sua maior vitória com a prisão do ex-ditador Augusto Pinochet

em Londres. Geralmente relacionada ao processo espanhol contra os repressores chilenos,

Pinochet foi preso por ordem de Garzón por participação na Operação Condor, caso

investigado dentro do processo contra os argentinos. Essa prisão levou a Fiscalía General

a declarar-se contrária a competência espanhola. O impasse foi resolvido pela reunião da

Sala Penal da Audiência Nacional que, após ouvir as alegações, apoiou por unanimidade

a continuidade da causa.

Mesmo com Pinochet libertado em 2000, e sem nenhum militar argentino

extraditado por seu próprio governo8, a causa alavancou os debates sobre justiça

transicional, impunidade e reparação. Nas próximas páginas, buscamos mapear alguns

deles que envolveram as vítimas argentinas, a imprensa e o judiciário espanhol, seja nos

primeiros anos do processo ou nas avaliações atuais do ocorrido.

3. Debates sobre justiça transicional e reparação no processo espanhol aos

militares argentinos (1996-2019)

uma causa pelos crimes do franquismo, foi acusado de peculato e expulso da Audiência Nacional. Hoje

dirige a Fundação FIGBAT, organização pró-direitos humanos e justiça universal. 7 Compuseram a Plataforma em 1997 as organizações de exilados CO.SO.FAM, Casa Retruco e

C.L.A.C.A., a H.I.J.O.S.-Barcelona, além de pessoas sem filiações organizativas. 8 Em 2003 o capitão da marinha Ricardo Miguel Caballo foi extraditado pelo México a Espanha, em um

caso inédito em que dois países não relacionados diretamente ao crime tomaram princípios de justiça

universal para punir um repressor.

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A grande imprensa espanhola interessou-se pela ação de Castresana logo em 29

de março. El País e La Vanguardia9 fizeram reportagens informando seus leitores que o

processo visava impedir a prescrição dos crimes, além de cobrar respostas sobre os

desaparecidos. Sem grandes questionamentos, os periódicos apresentaram as

justificativas da UPF, que assinava a denúncia inicial. O tema só voltaria à mídia em finais

de abril, tendo no La Vanguardia grande destaque. A reportagem intitulada España Acusa

se tornou a primeira de uma série produzida por Eduardo Pozuelo e Santiago Tarín. Além

do título potente, que remetia a problemas bem conhecidos da Europa, o texto preocupou-

se em apresentar aos leitores a história de algumas das vítimas reivindicadas na denúncia

de Castresana. Justificando a ação tomada pela Espanha, os jornalistas afirmavam:

(...) han pasado veinte años y sus familiares aún no han podido darles sepultura.

Muchos ni siquiera están oficialmente muertos, por que, en la inmensa mayoría

de los casos, nunca se encontraron sus cuerpos. Por ahora, dos décadas

después, sus nombres vuelven desde el olvido al que se les envió. (…)

El juez Garzón espera ahora el dictamen de la fiscalía de la Audiencia Nacional para que la máquina judicial española actúe con contundencia. Treinta y ocho

nombres reclaman desde una lista que se explique lo que les ocurrió y que se

juzgue a los culpables. Y, también, que no pierda su memoria. (POZUELO e

TARÌN, 19/04/1996)

A reivindicação das organizações de direitos humanos por memória e verdade é

retomada para justificar a abertura de uma causa judicial 20 anos após o ocorrido.

Invocada não apenas nas páginas da imprensa, ela apareceu também através de vítimas,

como Ragnar Hagelin, pai da jovem sueca Dagmar Hagelin, desaparecida em 1977. Em

sua participação como representante da Anistia Internacional no Colóquio Contra la

Impunidad, en defensa de los derechos humanos, organizado pela Plataforma Argentina

contra la Impunidad em 1997, ele leu a carta escrita para a filha nos 20 anos de seu

desaparecimento: “Ha pasado mucho tiempo, demasiado tiempo, pero no te he olvidado

y nunca lo haré y seguiré esa lucha, cruel e injusta, para encontrarte o saber la verdad

de qué hicieron contigo esos trasnochados verdugos” (HAGELIN, 1998: 189)

O desejo de chegar à verdade e consolidar as memórias das vítimas fazia muitos

colaborarem com o processo. Caberia à justiça conseguir, a partir dos recursos

disponíveis, as respostas que os repressores se recusaram dar à sociedade argentina. Se

era bastante compreensível que esse sentimento movesse familiares e exilados, ele não

9 A escolha pelo jornal El País se deu pela sua liderança de tiragens na Espanha nos anos 1990, quando já

encabeçava o conglomerado de informação dominado pelo grupo Prisa. Já o La Vanguardia dominava a

circulação na Catalunha, além de empregar os jornalistas responsáveis pelo apoio direto ao processo.

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diferia muito do que pretendiam outros grupos. Pozuelo, por exemplo, afirmou o quanto

se sentiu impactado ao perceber que as vítimas das quais falava eram pessoas de sua

geração:

(…) Entonces, él [Castresana] me da el escrito, lo leo y digo “aquí tengo que

escribir algo de esto”, entonces (…) propuse del diario, mira, se ha presentado

una cosa… a mí personalmente, y a eso, y, y, y,… muy pocas veces lo he

explicado, me impactó muchísimo, porque los desaparecidos de Chile y

Argentina es de mi generación. Yo soy nacido en 1952… es que… faltan los

que son de mi edad, y cuando hubo lo de Chile y Argentina yo tenía la edad,

en la universidad, de los que estaban deteniendo, y arrestando, con la operación

cóndor y todo. Entonces eso a mí, me impresionada mucho el, el fenómeno…

y el que sigue todo eso. (…) (POZUELO, 2019)10

N.F. saiu da Argentina em 1978 devido às perseguições aos estudantes de

psicologia, área considerada subversiva pela ditadura militar. Na Espanha há mais de 40

anos, país que adotou, ela nos contou o sentimento quando soube da causa aberta na

Audiência Nacional:

Por supuesto, y para nosotros fue un…. un encuentro y una esperanza con

encontrar algo de justicia, porque después del gobierno de Alfonsín, con la

obediencia debida y la amnistía que hubo eee… había mucho dolor pendiente

y estábamos eee…. habíamos perdido casi la esperanza que se pudiese hacer

justicia (…)” (N.F., 2019)

Esperança de justiça também era um tema nas reportagens aparecidas no início do

processo. Em carta de maio de 1996, publicada com destaque na sessão opinião do La

Vanguardia, o advogado argentino Ricardo Monner Sans contava a comoção que sentiu

ao ler a reportagem España Acusa, enviada a ele por um amigo. Segundo ao advogado

En un tiempo difícil para el mundo y donde en mi país ocurren circunstancias

que preocupan alrededor de la transparencia, de la corrupción, de la pobreza y

de la marginalidad; alrededor, en fin, del preocupante vaciamiento del sentido

sustancial de la democracia, un esfuerzo como el que comento trae esperanza.

Fundada esperanza. Gracias, como argentino. (SANS, 11/05/1996)

Para muitos argentinos, a reportagem ia além, expondo um passado que ainda lhes

causava enorme dor, mas que o governo argentino declarara encerrado. A “reconciliação”

apregoada por Menem permitiu que conhecidos repressores caminhassem livres pelas

ruas, gerando uma sensação de impunidade que contagiava a sociedade e perpetuava na

democracia o uso da violência pelas forças de segurança.

10 Todas as entrevistas desse artigo foram realizadas pela autora durante o período de pesquisa da Espanha,

em 2019. Todas estarão identificadas apenas pelas iniciais dos entrevistados, exceto quando se tratarem de

figuras públicas ligadas ao processo judicial.

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Não que todos os apoiadores esperassem que o processo de Madri obtivesse um

desfecho melhor que o efetuado pela França11, por exemplo. Contudo, a tentativa de

justiça era melhor que a impunidade completa, como mostra a carta de Rosa Montero,

publicada na sessão Tribuna do El País. A escritora e jornalista, que havia colaborado

com periódicos argentinos como o Clarín, lembrava o aniversário da desaparição de

Ramón García e Dolores Iglesias e trazia a ótica de suas filhas, que se exilaram na

Espanha:

“Te aseguro que ellos no habían hecho nada”, cuenta ahora Mirta, la hija. Ella

y su hermana sí hicieron: la hermana, abogada, defendió a presos, y Mirta

colaboró con una asociación vecinal. Dos actividades legítimas por las que, sin

embargo, tuvieron que exilarse para salvar la vida. Mirta cree que se llevaron

a sus padres por tener unas hijas revoltosas. (…) Además, claro está, del asunto

del dinero. Porque la dictadura argentina robó a los desaparecidos. (…) Así

que en Argentina se mató para robar, de la misma manera que los asesinos de

los GAL no son unos patriotas, sino unos ladrones. Incluso los nazis, pese a su gran aparato ideológico, exterminaron a los judíos para apropiarse de sus

riquezas, como lo demuestran las revelaciones sobre el oro del III Reich. (…)

Ahora Mirta tiene la esperanza de que Garzón consiga lo que ya han

conseguido otros países con medidas judiciales similares: que los asesinos no

puedan salir de Argentina. “Para mí lograr eso ya es justicia”, explica,

emergiendo, de veinte años de negrura. (MONTERO, 08/10/96)

Um dos pontos que ressaltamos do artigo é a apresentação da atuação político-

social das exiladas, já que não isso não justificaria os métodos repressivos. As ações de

ambas foram chamadas de legítimas, contestando abertamente as explicações presentes

na Teoria dos dois demônios. Outro destaque é a comparação do ocorrido na Argentina

com casos mais próximos da realidade espanhola, como o nazismo e o GAL, que serve

para contestar a explicação da guerra interna, dada pelos militares, e cria simpatia para

com as vítimas. Rosa Montero ainda enfatiza o roubo dos bens dos desaparecidos,

mostrando as motivações vis dos repressores.

Por fim, a autora traz a fala de uma das filhas de Ramón e Dolores, para quem

conseguir que os repressores não pudessem deixar a Argentina já era alguma justiça.

Inúmeras declarações do presidente Menem, dadas desde que o processo começou a tomar

corpo, mostravam que o governo argentino não pretendia extraditar nenhum repressor à

Espanha, o que era usado como argumento para defender o encerramento da causa. Ora,

por que perder tempo com uma investigação que, ao final, podia não prender nenhum

11 Em 1990 a França abriu processo contra Alfredo Astiz, acusado de ser responsável pelo desaparecimento

das freiras Léonie Duquet e Alice Domon. Condenado em ausência, sua ordem de prisão foi expedida pela

Interpol, o que o impedia de deixar a Argentina.

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culpado? Para as vítimas, a resposta estava em todo o processo: poder testemunhar, ver

qualificados os crimes, ouvir as penas, retirar a total liberdade dos criminosos podia não

ser a justiça completa que se esperava, mas representava o fim da impunidade.

Obviamente o processo não obteve apenas apoios dentro da Espanha. A Fiscalía

General de la Nación pretendeu apresentar recurso contrário ao início das investigações,

pois não considerava que a Espanha possuía competência no caso. A acusação sabia que

uma recusa oficial daria forças àqueles que consideravam imprudente, e até mesmo

inaceitável, mexer com as feridas de um importante parceiro político-econômico.

Ademais, o caso reverberava, de alguma forma, no próprio passado ditatorial espanhol.

Eduardo Pozuelo nos contou em entrevista como, através de La Vanguardia, tentaram

impedir que a Fiscalía se pronunciasse em 1996:

(…) cuando la Fiscalía intentó no apoyar a Garzón y tumbar la causa, para que

no prosiguiera, ahí hicimos una jugada… ¿explicar o no?… enterados de que

los fiscales… bueno me da igual, han pasado muchos años… enterados de que

los fiscales iban a votar en contra de la causa, enterados con antelación, yo

personalmente llamé a la fiscalía, fiscalía del Estado, y pregunté por el fiscal

jefe que se pusiera, que entiendo no se puso al teléfono, pero le dije a la

secretaria un recado, le dije, le deje un recado que era “llamo desde La

Vanguardia, soy mengano, mi nombre, y solo quiero saber una cosa, ¿quiero saber si van, en la próxima reunión de fiscales de sala, van a votar en contra de

que se investigue la desaparición de españoles en la dictadura argentina, que

suponen muchos más muertos y desaparecidos que todo el terrorismo de ETA,

y si van a cargar con esos, y le digo, añada por favor señorita, tome nota, a la

secretaria, y añada si va a cargar con eso su conciencia?”, la pregunta era esa,

¿y va a cargar con eso su conciencia? Y ese día publiqué una columna que

decía (…) círculos interesados en la investigación sobre el caso de los

desaparecidos españoles en Chile, no, en Argentina (…) hay rumores de que

se quiere archivar y que no pueda proseguir, tumbar el asunto, pero hay

pregun… hay círculos que se preguntan si los fiscales serán capaces de no

investigar el caso de, el caso de… ¿cómo era?... el caso de mayor, de españoles,

de españoles desaparecidos y muertos, mayor después de la guerra civil española. (…) aún la prensa en general, menos alguna radio no había entrado,

hein… a esto no era una presión masiva… estamos ahí como unos tantos

tiradores, como unos mosquitos, tocando así las narices, pero muy poquita

cosa… pero dijeron, bueno, no podemos… en nuestra confianza, llevarnos

esto, lo que podemos es no oponernos. No lo apoyaron, pero no se lo opusieron,

con lo cual Garzón al, a dos minutos después hizo una declaración diciendo

“no importa, seguiré yo solo”, que era lo que ya estaba previsto. (...)

(POZUELO, 2019)

O artigo referenciado pelo jornalista foi publicado em 24 de abril, e o apelo a

memória das vítimas e a consciência dos fiscais teve o efeito esperado: apesar do

descontentamento, a Fiscalía General não se opôs a continuidade do caso, deixando o

caminho aberto para que Garzón, Castresana, Slepoy e outros juntassem as provas

necessárias para corroborar as denúncias de genocídio e terrorismo. Somente em 1997,

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após a prisão de Scilingo, houve medidas oficiais de oposição ao processo que, entretanto,

já havia consolidado grande apoio, o que praticamente inviabilizou a ação.

Não que havia se vencido todas as oposições. A própria imprensa, tão fundamental

no caso relatado, questionou a declaração de competência espanhola feita por Garzón.

Após o anúncio do juiz de que começaria as investigações, El País lançou um editorial

intitulado Misión Ciclópea, no qual se perguntava se esse era um assunto a ser tratado

pela Espanha 20 anos depois dos crimes:

El juez Garzón admitió a trámite en junio varias querellas por la desaparición

de 297 ciudadanos de origen español en Argentina bajo la dictadura militar.

(…) Garzón solicita al Ministerio de Asuntos Exteriores y a las autoridades

argentinas informes sobre desaparecidos o asesinados en aquel país en el

periodo 1976-1983, los procedimientos judiciales abiertos por tales hechos y

todo cuanto sepan acerca de los campos de detención, secuestros y adopciones

de hijos de las víctimas, eventuales cuentas secretas radicadas en Suiza,

etcétera. ¿No es algo desmedido incluso para el incansable Garzón? (…) Una ley de punto final decidió que no habría, más procesos, aunque aparecieran

nuevas evidencias.

Esta ley, duramente criticada dentro y fuera de Argentina, no afecta desde

luego a la justicia española, que tiene base legítima para actuar. Pero ¿no es

algo excesivo que un juez español replantee ahora, 20 años después, todo el

proceso de la dictadura argentina? (…) La justicia francesa condenó en

rebeldía al capitán Astiz, pero lo hizo a partir de una acusación específica y

con el apoyo de pruebas testimoniales, sin proponerse un juicio universal.

Jueces suecos e italianos han abierto también procesos. Pero nadie se atrevió a

tanto. ¿No convendría que Garzón se asegurara de la viabilidad de esas

diligencias antes de movilizar los recursos que solicita para su ciclópea misión?

(El País, Editorial, 13/09/1996)

O editorialista lança questionamentos legítimos: não seria melhor ater-se ao que

já haviam feito países como França e Itália, mesmo que isso não garantisse justiça a todas

as vítimas? Os princípios de justiça universal eram legítimos, mas teriam efeito prático?

A Espanha deveria mesmo se preocupar com o assunto? As repostas vieram nas páginas

do próprio periódico, através de leitores e colaboradores. Primeiro, a carta assinada por

Pozuelo de Alarcón, que afirmava:

(…) No seré yo quien defienda la inquietante heterodoxia del juez, pero cuando

el editorialista se pregunta: “... ¿No es algo excesivo que un juez español

plantee ahora, 20 años después, todo el proceso de la dictadura argentina?”, a

mí, lector habitual de su periódico, me hubiese gustado leer: ¿no es algo

excesivo que durante 20 años ningún juez español se haya ocupado de la suerte corrida por 297 compatriotas desaparecidos a manos de los genocidas que

gobernaron Argentina y que los sucesivos gobiernos se hayan limitado a unas

inciertas gestiones diplomáticas de evidente ineficacia?

Quienes hemos perdido amigos y familiares a manos de la dictadura militar

argentina no creemos que el juez Garzón pueda por sí solo resolver esta

atrocidad (…) Y, sin embargo, estamos obligados a apoyarle y a pedirle a usted

que, al menos en este caso, su periódico también le apoye. No será el mejor,

pero eso es lo que hay.

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A fin de cuentas ¿quién les iba a decir a los supervivientes de los campos nazis

de exterminio que, años más tarde, verían sentarse en el banquillo a Adolf

Eichmann, a Klaus Barbie y, más recientemente, a Bernard Priebke?”

(ALARCON, 20/09/1996)

Sem heroicizar a figura de Garzón, o leitor reclamou apoio a ação do juiz, cujo

procedimento seguia os mesmos ditames utilizados para processar nazistas aprisionados

anos depois do fim do regime. Mesmo que as possibilidades de justiça fossem limitadas,

não se podia negar às vítimas o seu direito. Esse argumento se aproxima do utilizado por

Prudencio Garcia, coronel retirado do exército espanhol e ex-consultor da ONU, que

utilizou o espaço na sessão Tribuna para declarar apoio ao processo:

Todo hace suponer, por tanto, que en un plazo no excesivamente largo

podremos ver a varias docenas de responsables de la guerra sucia sometidos a órdenes internacionales de captura de muy distintas procedencias, lo que les

obligará a vivir permanentemente confinados en su país. En este sentido, la

actuación del juez Garzón viene a significar, en definitiva, que la justicia

española no está dispuesta a eludir su aportación a ese logro en su vertiente

legal. El segundo logro antes aludido se sitúa, en cambio, en el área de lo moral.

El hecho de que aquellos militares argentinos que actuaron como prepotentes

dueños absolutos de la vida y la muerte (…) se vean ahora enfilados por la

comunidad internacional y conceptuados por ésta como indeseables

delincuentes que deben ser capturados y conducidos ante los jueces de algunos

de los países más civilizados de la tierra implica un tipo de castigo moral cuya

significación va mucho más allá de los resultados puramente legales que de todo esto se puedan derivar. (GARCIA, 30/11/1996)

O autor argumenta que, mais importante do que as possíveis condenações penais,

estava a condenação moral dos repressores, o que marcava seus lugares na história: o de

criminosos. Essa era uma condição fundamental também para as vítimas, já que garante

que a culpa recaia sobre quem realmente cometeu os crimes, garantindo uma memória

politizada, mas que não justifica a repressão.

Sendo o órgão envolvido no processo que mais reunia vítimas, a Plataforma

Argentina contra la Impunidad concentrou-se em apresentar argumentos jurídicos que

embasavam a acusação de Castresana e Slepoy. No Colóquio já citado, logo na abertura,

Raúl Mato, representante da CO.SO.FAM afirmou:

La competencia de la Justicia española con respecto al juzgamiento de los delitos de genocidio y de terrorismo está avalada en los Convenios

Internacionales, por tratarse de delitos de lesa humanidad en los cuales la

conducta delictiva afecta a bienes jurídicos supranacionales, por lo cual la

persecución de tales delitos debe ser también supranacional, es decir, sin

limitación alguna de carácter territorial. (MATO, 1998: 63)

Era importante para as vítimas marcar que não buscavam vingança, mas justiça.

Garzón não burlava ou ignorava as leis, mas defendia princípios de toda a humanidade,

garantindo aos réus a ampla defesa e o julgamento que eles negaram às suas vítimas. Não

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se tratava de pagar na mesma moeda, mas de consolidar uma verdadeira justiça de

transição.

O que também tornava importante fazer do processo um espaço no qual as vítimas

pudessem testemunhar. Muitos exilados e sobreviventes puderam falar ante um órgão

oficial pela primeira vez no julgamento que se levava na Espanha, o que gerava um

impacto fortíssimo sobre eles, como relatam Castresana e Garzón:

Sí, eso [testimoniar] fue muy importante. Yo recuerdo particularmente, era el

general, pero yo recuerdo particularmente una de las víctimas, que era una

mujer que había estado prisionera en la Escuela de Mecánica de la Armada,

que estaba embarazada cuando la detuvieron, que ahí dio la luz en condiciones

terribles, y que… eee, además… eee… le robaron el bebé, que vino, declaro

con muchísima sangre fría, con mucha serenidad, cosas terribles de lo que le había pasado, y cuando terminó, al salir, se echó a llorar, se echó a llorar y no

podía parar, y ya cuando pudo, al final, hablar, le preguntaban y decía “no, yo

no lloro por lo que me pasó, eso más o menos ya tengo hecho el duelo. Lloro

porque yo haya tenido que venir a que esto sea escuchado por un juez de un

país que no es el mío” (CASTRESANA, 2019)

Fue fundamental, porque por primera vez un juez prestaba atención y

escuchaba a las víctimas de la dictadura argentina, sin restricciones, a quienes

habían sido detenidos y torturados, a los familiares de los desaparecidos, a las

abuelas de los niños robados. En sus declaraciones, tremendas, muchas veces

desgarradoras, asomaba siempre la esperanza: de pronto sentían que podían

reivindicar a los suyos, que la justicia por fin llevaría ante los tribunales a los perpetradores de crímenes contra la humanidad. (GARZÓN, 2019)

A importância desse ato não estava apenas no campo jurídico, mas também no

moral. Tratavam-se de vítimas que não haviam encontrado lugar na memória criada pelo

Nunca Más na Argentina, eram vistas com receio, ouviam acusações e sentiam, muitas

vezes, culpa por terem sobrevivido. Declarar ante um juiz lhes permitia retomar a sua

história e marcar seu lugar de vítima da repressão:

¿Cree que para el exilio hablar a frente de un juez, aquí en España, fue

una cosa importante para los exiliados? AD: Exiliados y sobrevivientes, y víctimas del genocidio, no solamente… no

solamente exiliados. No fue importante, ¡fue importantísimo! Era la primera

que han escuchado ante de un juzgado, que éramos escuchados ante un

juzgado. (A.D., 2019)12

¿Cree que ese juicio que se abrió en Madrid ayudó a cambiar de alguna

forma la manera como se vía los exiliados? Porque en Argentina, en los

años 1990, muchísimas personas todavía hablaban en subversión

N.F.: Sí, sí que ayudó. (…) a ver, incluso mis propios vecinos y una parte de

mi familia fue capaz de cambiar de opinión y darse cuenta de que…. eeee…

las víctimas del exilio y muchas de las víctimas de las torturas y de los muertos, a causa de la dictadura, no eran terroristas, no eran subversivos, que podías ser

una víctima por ser simplemente un estudiante universitario de la carrera de

12 A.D. foi membro do PRT-ERP, e chegou a viver na clandestinidade interna antes de sair do país. Chegou

a Espanha em 1977, com as filhas de 2 e 3 anos, onde já estava o marido, também exilado.

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psicología, como era mi caso, o de ciencias económicas, de filosofía y letras,

que si tenía su libro de algún autor que les parecía subversivo, hasta El

Principito era subversivo, Saint Exupery, entonces cualquier cosa podía ser

considerado subversivo por parte de, de las Juntas Militares,

fundamentalmente Videla, Massera y compañía, y la gente entendió que fue

un arrasamiento ideológico en general, que cualquier persona que pudiese tener

simpatía por un, por… Neruda… eee.. por, por cualquier escritor, Eduardo

Galeano, en fin, los escritores… eee, que cuestionaban un poco el sistema,

podía ser víctima del sistema de la dictadura. Entonces, ¡sí que cambió! No

todos, porque siempre sigue habiendo gente que justifica el terror, el terrorismo

de Estado (…)

(…) ¿Eso es importante, para la persona, no solamente hablar, pero

hablar a un juicio?

N.F.: Eeee… sí que es importante, porque forma parte de la, de la justicia,

eee… es dar testimonio de una realidad personal, para dar certeza y verdad, y

pedir justicia al mismo tiempo. Es decir, hay…. Yo como psicóloga entiendo

que algunas personas les tiene que haber costado muchísimo revivir, y revivir

delante de un… eee… un numero grande de personas y delante de jueces su

propia experiencia traumática. No debe ser nada fácil… Sin embargo, es

necesario que se pueda aportar en la medida de lo posible el testimonio para

que esa verdad salga a la luz y para que sea escuchada por todas las personas,

para que se de legitimidad a las víctimas y para que se haga justicia y

reparación. (N.F., 2019)

Testemunhar como vítima ante um órgão oficial não impactava apenas os exilados

chamados à Audiência Nacional, mas colaborava para que muitos outros pudessem

encontrar seu lugar na história, mesmo quando isso parecesse tão distante deles. Em

entrevista, M.B., que chegou ao exílio na Espanha com dois anos, falava da dificuldade

de entender-se como vítima da repressão, mesmo conhecendo parte da história familiar:

o pai havia sido preso e torturado, e era um dos poucos sobreviventes do movimento

Montoneros, enquanto ela e a mãe haviam vivido na clandestinidade interna até

conseguirem sair ao exílio, onde a família se encontrou em 1977. Todavia, no discurso de

amigos e familiares, M.B. não era uma vítima, mas uma privilegiada por ter vivido na

Europa, sentimento que ela cultivou por anos, e que somente começou a mudar quando,

através dos testemunhos publicados pela imprensa espanhola, ela ganhou a consciência

do que havia se passado em seu país e em sua vida:

Y luego recuerdo, siempre recuerdo El País, el periódico El País… de verlo y

de ver a… cuando van a declarar, aquí o por videoconferencia, o… porque

también declaró por videoconferencia en eso acá… Arturo Chihida, que es

que… con quien nos exiliamos también, él, mi madre, mi padre y yo vivíamos

juntos en Álamo (…) y recuerdo… eso, de cuando mi padre me seño, que va a

declarar Arturito, desde allá por videoconferencia, y yo por primera vez leí en

el periódico… el testimonio de Arturito… claro, y decía “si esto ha pasado a

Arturo, ha pasado a mi padre y ha pasado a todos los demás que han estado

secuestrados”… eee… así que… recuerdo muy conmovida cada noticia que

salía en El País de esos procesos y que con todo lloraba, era... solo….

De alguna forma, entonces tomaba consciencia de todo el juicio… Sí, sí. Totalmente. De mi propia historia. (M.B. 2019)

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4. Conclusões

A justiça transicional é um processo fundamental para a reparação das vítimas de

violações de direitos humanos. A instalação de um ato oficial que reconhece as violações

como crimes, ouve os sobreviventes sem atribuir-lhes qualquer culpa que justifique o que

passaram, e dita uma condenação criminal e moral aos violadores, é fundamental para a

quebra do trauma provocado pela repressão.

O processo criminal aberto na Espanha contra os militares argentinos foi um

marco, não somente para as vítimas representadas, mas também para a jurisprudência

internacional. Pela primeira vez, um país trazia para si a reponsabilidade de garantir às

vítimas de outro lugar o direito à justiça, combatendo a impunidade de conhecidos

repressores (POZUELO e TARÍN, 1999: 173-174). A prisão de Pinochet, ditada dentro

desse processo, foi o auge de uma ação que representava muito mais do que sentenças,

mas a vitória da luta pelos direitos humanos.

Sem sombra de dúvida, a condenação e prisão de um repressor é um ato

fundamental. Contudo, a justiça de transição é mais do que isso, ela passa por esclarecer

a verdade e dar espaço de fala às vítimas, que se tornam capazes de construir memórias

plurais que formam o amplo panorama dos anos repressivos, e evitam que o silêncio e o

esquecimento recaiam sobre suas histórias e sobre o próprio passado recente.

O processo de Madri foi fundamental para garantir esse espaço às vítimas

argentinas que não o tinham alcançado no Julgamento da Juntas, realizado em 1985. Para

os exilados, por exemplo, testemunhar ante um juiz era mais do que garantir o

protagonismo da ação, mas conquistar um espaço de fala que lhes permitia defender-se

das acusações atribuídas pelos militares, inscrevendo sua história na da pátria que um dia

foram obrigados a abandonar.

Não é possível garantir que todas as vítimas se sentirão reparadas em um processo

de justiça de transição – o sentimento de reparação é tão plural quanto a vivência das

dores e traumas da repressão –, contudo, sua instalação permite a abertura de espaços de

fala, de criminalização e de memória que são fundamentais para que se possa caminhar

em frente, mesmo que já se tenham passado tantos anos do crime cometido.

(...) la memoria, es el camino de la utopía, en no olvidarla, cada uno y cada una de ellos, tratar de traer sus semblanzas constantemente, recordar de sus

nombres, sus identidades, porque luchaban, porque vivieron como vivieron,

porque se arreglaron… en un sueño tan maravilloso, tan colectivo, más allá de

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lo… darlos velos personales y… como (sic) decían, uno no está muerto cuando

alguien ya las nombra, si los dejamos de nombrar a ellos, no es que murieran

los 30.000 detenidos-desaparecidos, moriríamos nosotros, moriría la sociedad

argentina en su conjunto y no tendería jamás posibilidad de soñar. (…) (A.D.,

2019)

(…) La reparación, para mí, pasa por otro lado, me parece que para poder

seguir adelante uno primero tiene que limpiar todo eso, y que se haga justicia,

que se haga just… que se siga haciendo justicia como pasó con el nazismo que

hasta la última hora se siguió persiguiendo a los, a los verdugos… eee…

entonces, que se pague por los, por los horrores cometidos. Creo que esa es la

reparación y la verdad, que se conozca la verdad, que aparezca seguramente

documentos donde se puede investigar donde están enterrados todavía esos cadáveres. (N.F., 2019)

(…) Lo que creo es que el Estado, no los gobierno, sino el Estado lo que debe

es garantizar los cuatro pilares fundamentales de la memoria, desde la verdad,

la justicia, la reparación y la garantía de no repetición, creo que lo que ves…

garantizar desde el Estado esos cuatro pilares, y que luego pueda tener la

libertad, si se tiene, de elegir, si es una reparación moral, si es institucional, si

es económica, lo que no se debe hacer es negar, y luego desde ahí, yo sé que

hay gente que pueda optar… eee… por, por el olvido, el olvido elegido, pero

el Estado lo que no puede hacer es imponerlo. Se debe garantizar que el que

quiera, olvido lo pueda tener, pero lo quiera hablar, y saber, el derecho a la

verdad. Y en el exilio, como el todo los demás, hay que garantizar todas las herramientas para que cada uno pueda… eee… elegir dónde está la reparación.

(M.B., 2019)

Independente das outras ações possíveis, a justiça de transição não pode furtar-se

a garantir a instalação de memórias das vítimas e dos criminosos como tais, sem qualifica-

los como lados opostos da mesma luta. Garantir a cada um o seu papel de direito na

história é o passo mais fundamental da justiça de transição, possibilitando assim uma

verdadeira quebra com o passado e a instalação de uma democracia consolidada e

includente.

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Entrevistas

A.D., entrevista realizada por Ana Carolina Balbino, Madri, 10 de maio de 2019.

Baltasar Garzón, entrevista realizada por Ana Carolina Balbino por email, Madri, 01 de

agosto de 2019.

Carlos Castresana, entrevista realizada por Ana Carolina Balbino, Madri, 14 de maio de

2019.

Eduardo Pozuelo, entrevista realizada por Ana Carolina Balbino, Barcelona, 28 de junho

de 2019.

M. B., entrevista realizada por Ana Carolina Balbino, Madri, 07 de junho de 2019.

N. F., entrevista realizada por Ana Carolina Balbino, Madri, 13 de março de 2019.