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Pérolas Ocultas

e

Fatos e Comentários

Abel Gomes

2014

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Pérolas Ocultas

e

Fatos e Comentários

Abel Gomes

Data da publicação: 30 de dezembro de 2014

CAPA: Cláudia Rezende Barbeiro

REVISÃO: Eunice de Oliveira Cazetta

PUBLICAÇÃO: EVOC – Editora Virtual O Consolador

Rua Senador Souza Naves, 2245

CEP 86015-430

Fone: (43) 3343-2000

www.oconsolador.com

Londrina – Estado do Paraná

Dados internacionais de catalogação na publicação

Bibliotecária responsável Maria Luiza Perez CRB9/703

Gomes, Abel,1877-1934

G612p

Pérolas Ocultas e Fatos e Comentários / Abel Gomes

; revisão de Eunice de Oliveira Cazetta ; capa Cláudia

Rezende Barbeiro. - Londrina, PR : EVOC, 2014.

203 p.

1. Literatura espírita. 2. Espiritismo. 3. Doutrina

espírita. I. Cazetta, Eunice de Oliveira. II. Barbeiro,

Cláudia Rezende III. Título.

CDD 133.9

19.ed.

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Índice

Explicação preliminar, 5

Quem foi Abel Gomes, 6

À guisa de prefácio, 8

Justificando o título, 11

Primeira parte, 12

Pérolas Ocultas:

I – Será o Espiritismo fator de loucura?, 13

II – A mulher do hoteleiro, 34

III – Um homem de bem, 40

IV – O campo de forragem, 45

V – Terra do Brasil, 47

VI – A caridade, 51

VII – Energia de um acusado, 55

VIII – O inimigo, 62

IX – A arma do Jaó, 72

X – Uma data, 77

XI – Rui, o grande, 83

XII – Zamenhof, 87

XIII – O ano da fome, 93

XIV – A retribuição, 104

XV – O recruta, 108

Segunda parte, 118

Fatos e Comentários:

I – A maior das obras de Deus, 119

II – A mulher na política, 133

III – O dia de hoje, 141

IV – Beneficência e caridade, 144

V – O Baltazar, 150

VI – Doenças..., 156

VII – Velharias, 162

VIII – O propagandista, 167

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IX – Otimistas e pessimistas, 173

X – O perdão das ofensas, 183

XI – Um apelo, 188

XII – Costumes, 192

XIII – Coisas agridoces, 199

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Explicação preliminar

A primeira e única edição de Pérolas Ocultas e Fatos e

Comentários, obra escrita por Abel Gomes, foi publicada

originalmente pela Federação Espírita Brasileira no ano de 1943,

quase nove anos depois da desencarnação do autor, que faleceu

em agosto de 1934.

Constituída por 28 capítulos, a edição original foi prefaciada

por Amadeu Santos, um dos discípulos do pioneiro do Espiritismo

na Zona da Mata mineira.

Esta edição digital, promovida pela EVOC – Editora Virtual O

Consolador, verifica-se no mesmo dia – 30 de dezembro – em

que Abel Gomes nasceu, fato que se deu no ano de 1877 na

cidade mineira de Conceição do Turvo, hoje Senador Firmino.

Conquanto não fale sobre Espiritismo, senão em um único

capítulo, este é um livro implicitamente espírita e, podemos dizer,

atemporal, e sua leitura temos certeza que satisfará plenamente

os nossos leitores.

Personagem central do livro Memórias de Padre Vitor, obra

mediúnica psicografada pela médium Ana Paula Cazetta, de São

José do Rio Preto (SP), publicada em novembro de 2001 pela

Editora Leopoldo Machado, Abel Gomes é autor de duas outras

obras: Braz Pires e A Felicidade, publicada em 1940 pela

Federação Espírita Brasileira.

A produção da presente edição é mais uma contribuição dada

à EVOC por nossa colaboradora Eunice de Oliveira Cazetta,

membro da equipe de redação da revista “O Consolador”, de que

esta editora faz parte.

A capa do livro ora publicado foi gentilmente concebida e

elaborada pela artista plástica Cláudia Rezende Barbeiro, a quem

agradecemos.

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Quem foi Abel Gomes

Nascido em Minas Gerais no dia 30 de dezembro de 1877, na

antiga cidade mineira de Conceição do Turvo, hoje Senador

Firmino, e falecido em 16 de agosto de 1934, no Porto de Santo

Antônio, hoje Astolfo Dutra (MG), Abel Gomes foi professor,

jornalista, cronista e poeta.

Propagandista valoroso e devotado do Espiritismo e do

Esperanto, legou à literatura pátria páginas cheias de beleza e

simplicidade e, o que é muito mais importante, viveu uma vida

de exemplos evangélicos.

Abel ficou impossibilitado de andar aos 25 anos de idade

acometido por pertinaz e progressiva paralisia, que lhe imobilizou

as pernas. Levado a uma cadeira de rodas, continuou, no

entanto, a produzir como poucos e jamais deixou de trabalhar.

Exerceu as profissões de professor e de contabilista, esta em

várias firmas comerciais. Com a paralisia, devido às dificuldades

de locomoção, começou a trabalhar em sua própria residência

como alfaiate e fotógrafo e, nas horas de lazer, ensinava música

aos jovens da cidade.

No ano de 1928, em companhia de outros denodados

seareiros, fundou no Porto de Santo Antônio o Grupo Espírita Luz

e Trabalho, a primeira instituição da cidade, que teve vida

efêmera.

No dia 2 de julho de 1933, coadjuvado por doze

companheiros, fundou novo Centro Espírita com o mesmo nome

do primeiro. Após o seu falecimento, a Casa passou a se chamar

Cabana Espírita Abel Gomes.

Anos depois, o educandário espírita destinado ao amparo e

acolhimento de meninas órfãs, fundado na mesma cidade na

década de 40, recebeu o nome de Fundação Espírita Abel Gomes,

entidade promotora e sede de uma das mais antigas Semanas

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Espíritas realizadas no país, que se repete anualmente no mês de

julho.

Poliglota, Abel dominava bem o português, o francês, o

espanhol e o italiano, e conhecia razoavelmente o grego e o

latim. Dedicado às letras, deixou numerosas obras das quais se

destacam: A Felicidade, obra publicada em 1940 pela Federação

Espírita Brasileira; Pérolas Ocultas e Fatos e Comentários,

também publicada pela FEB, em 1943, e Braz Pires.

Tio do conhecido esperantista espírita Ismael Gomes Braga,

foi Abel – em espírito – quem, pela primeira vez, falou ao

sobrinho sobre a importância do triângulo

Evangelho/Espiritismo/Esperanto, a cuja divulgação Ismael

Gomes Braga dedicou sua última existência.

Sobre sua iniciação no Espiritismo, revela Abel Gomes: “Eu

era moço ao abrir o Livro dos Espíritos, o Livro dos Médiuns e o

Evangelho, de Allan Kardec. Ainda sob as impressões dos 24

anos, cérebro cheio de esperanças e fantasias, era cedo demais

para dar combate à descrença que me procurava dominar, ao

reconhecer que me não satisfaziam os dogmas de Roma. Ao

aproximar-me dos 30 anos, iniciei novamente o estudo do

Espiritismo, que tornei a interromper por motivos justos,

volvendo a abrir aqueles livros uns meses depois”. (Pérolas

Ocultas e Fatos e Comentários, edição de 1943, pág., 20.)

Abel integra também, como poeta, o livro Parnaso de Além-

Túmulo, editado pela Federação Espírita Brasileira, do qual

participa com dois sonetos: Temos Jesus e Morte, psicografados

por Francisco Cândido Xavier.

É ainda de sua lavra a mensagem Notícias, que integra a

obra Falando à Terra, publicada em 1951 pela Federação Espírita

Brasileira e igualmente psicografada por Francisco Cândido

Xavier.

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À guisa de prefácio

Para que palavras minhas servindo de pórtico a esta

excelente obra? Para nada. Todavia, elas representam obediência

à solicitação do estimado confrade Ismael Gomes Braga –

quando podia ter sido disso encarregada pessoa competente, que

não eu – e ao meu testemunho de imenso apreço, admiração e

respeito para com o lúcido Espírito do seu inspirado autor. Isso

justifica, de algum modo, a minha intromissão neste trabalho.

Não se me afiguram necessários quaisquer elogios ou simples

palavras ditas em abono das credenciais desse respeitável

escritor, de vez que ele já é conhecido e admirado pelos nossos

confrades como consagrado publicista e genuíno, inspirado

poeta. Quem já teve a feliz oportunidade de ler o seu admirável

livro “A Felicidade”, editado em 1940 pela Livraria da Federação,

não tem disso a menor dúvida. “Pérolas Ocultas e Fatos e

Comentários” é a segunda obra desse admirável autor que a

mesma Editora vai pôr, agora, ao alcance do público amante da

leitura instrutiva. É essa iniciativa que merece aplausos, por se

tratar da publicação de um livro soberbo de ensinamentos,

exuberante de exemplos edificantes, construtivos. Escrito

naquele estilo terso, natural do erudito e saudoso autor, esse

estupendo livro é bem um repositório apreciável de belíssimas

elucidações de fundo moral, inspiradas no Evangelho

interpretado em Espírito e Verdade.

Composto de várias crônicas ligeiras – publicadas algumas na

imprensa periódica do interior – abordando assuntos a bem dizer

familiares, íntimos, vazados em ensinos leves e penetrantes, de

estrutura educativa, edificante, esse precioso livro é sem favor

um roteiro seguro do bem, através do qual se ensina a limpar as

arestas, a corrigir defeitos, a conquistar virtudes e, numa

palavra, a palmilhar firmemente a senda da evolução espiritual.

Não há preferir entre os capítulos de que é composta esta obra.

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Todos eles foram escritos com um único objetivo: evangelizar,

esclarecer, confortar, doutrinar! Se não foi essa a preocupação

do autor, posso afiançar, entretanto, que aquele foi o resultado

líquido atingido.

Dois desses capítulos, todavia, ressaltam, para mim, entre os

demais, na sua estrutura genuinamente cristã, na sua expressão

simplesmente emotiva, na sua singularidade eminentemente

amorosa, bela, fecunda... São os que têm os seguintes títulos: “A

maior das obras de Deus” e “Será o Espiritismo fator de

loucura?”, um e outro já publicados nas colunas do

“Reformador”. O primeiro por ser uma verdadeira apoteose ao

amor materno; um cântico emocionante que o poeta entoou, em

prosa, ao Senhor dos Mundos, glorificando a Sua incomparável

obra: o amor de mãe.

Confesso que nunca, jamais viram meus olhos páginas mais

lindas, mais emotivas, mais amorosas do que as que o autor

escreveu sobre esse assunto! E o segundo, por ser um trabalho

consciencioso de um cristão ímpar, convicto, sincero, cônscio de

seus deveres e responsabilidades: de um espiritista de eleição

que sabe defender, sem contundir, o seu Ideal, a Doutrina que

lhe conforta o coração, que lhe ilumina a inteligência e lhe

aprimora a alma, mostrando o erro em que incorrem os que

emprestam ao Espiritismo qualificativos deprimentes que não se

lhe ajustam.

O livro é todo assim, cheio de lances educativos, de

divagações sentimentais, falando ao cérebro e ao coração. Cada

uma de suas páginas contém um convite à meditação e uma

insinuação forte ao leitor arguto, induzindo-o a munir-se de

otimismo, a precaver-se e mobilizar-se dos recursos espirituais: a

paciência, a resignação e a fé, com que se tornará apto a

enfrentar as dificuldades da vida, as mais das vezes constituídas

de provações ou expiações decorrentes dos desvios do Espírito

incauto em existências pretéritas...

Opinando sobre o valor desse livro, o nosso prestimoso e

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culto correligionário M. Quintão assim se expressou: “Da ligeira

leitura feita, presumo não se tratar de obra taxativa, mas

implicitamente espírita e, quiçá por isso, mais acessível ao grande

público – gregos e troianos – como, por exemplo, ‘Memórias do

Padre Germano’. E tanto mais eficiente quanto vazada num estilo

simples, bem sugestivo e... brasileiríssimo. Desse ponto de vista,

um belo livro, porque retrata uma personalidade.”

A obra é, realmente, implicitamente espírita, embora se não

fale em Espiritismo, senão em um único capítulo. E pela feitura

especial dessa obra e a relevância dos assuntos nela tratados,

estou certo de que agradará, como “Memórias do Padre

Germano”, aos estudiosos serenos, profitentes de todos os

credos religiosos e de todas as confissões filosóficas...

Rio de Janeiro, 25 de Fevereiro de 1943

Amadeu Santos

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Justificando o título

Pessoas há, e numerosas, que veem deformidades morais em

todos os recantos do globo. Nos indivíduos, consideram somente

os defeitos; nas instituições, analisam apenas os vícios. Olham

nos seres humanos e nas coisas a face mais feia, e por esta

censuram quanto não examinaram, quanto não viram.

O mundo possui, entretanto, muita beleza. Ao lado de seres

amorfos, nos quais as ações boas são pouco conhecidas, há

indivíduos que consagram à dignidade e à honra um verdadeiro

culto, e entre os quais as ações generosas são praticadas

modestamente, simplesmente, com a mesma naturalidade das

coisas banais.

Algumas dessas ações boas, dignas de imitação, e admiráveis

na sua modéstia, eu as enfeixei na primeira parte deste livro, e

julgo ter acertado dando a essas ações o título de “Pérolas

Ocultas”, ficando com esse nome a referida primeira parte.

A segunda parte deste livro é composta de fatos, com ligeiras

observações minhas, e de comentários sobre diversos temas, e

eu penso ter agido com acerto dando-lhe o título de “Fatos e

Comentários”. Pérolas Ocultas e Fatos e Comentários constituem,

pois, o livro que hoje ofereço aos meus amigos e conterrâneos.

Que a alguns desses possa ser ele de alguma utilidade. Isso me

fará feliz.

Abel Gomes

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PRIMEIRA PARTE

Pérolas Ocultas

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I

Será o Espiritismo fator de loucura?

Esta pergunta resume o assunto explanado nas

colunas sobre que no momento pousa o leitor o seu

olhar. E o que, nestas colunas, lhe oferecemos à

leitura é uma carta escrita de Porto de Santo

Antônio, em Minas, a 30 de outubro de 1927, pelo

inteligente e recém-desencarnado, confrade Abel

Gomes, autor da novela “A Felicidade”, cuja

publicação concluímos no presente número do

“Reformador”, e dirigida a um amigo que lhe

aconselhara abandonasse o Espiritismo por ser

caminho para o hospício.

(Do Reformador, de 16/07/1935.)

Quando, há 20 anos, perdeu V. Exa. sua esposa, entendi ser-

lhe grato saber que em numerosos corações havia verdadeira dor

pela grande perda que dilacerava o seu, extremamente bondoso,

de esposo e pai, e, sendo eu, como sou e serei sempre, um dos

seus dedicados amigos, tomei a deliberação de lhe escrever sem

demora uma carta, asseverando-lhe participar da sua acerba

prova. Nessa carta, parece-me ter deixado transparecer a minha

crença na sobrevivência da alma e mesmo na sua volta ao

mundo, nas reencarnações enfim. É que, nessa ocasião,

principiava eu a estudar a filosofia espírita, lendo

cuidadosamente os livros de Allan Kardec e outros autores e

acompanhando o evoluir dessa consoladora doutrina pela

imprensa periódica. Supus conveniente lembrar-lhe a

insignificância do período de uma existência terrena, se

comparado ao futuro que nos espera, à multiplicidade de

existências atravessadas pelo nosso ser, no passado, e ao porvir

sem-fim que nos aguarda. Talvez houvesse, em minha carta,

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mais referências a essas consoladoras verdades, que somente

então eu começava a vislumbrar, como deduzo da resposta com

que o amigo me honrou, alguns dias depois.

Recebi, pois, a sua missiva de 30 de outubro de 1907. Há 20

anos justos foi ela escrita e ainda a conservo entre os papéis que

mais estimo. É longa e contém conselhos oriundos de sua

amizade e do sincero desejo que nutria, de me arredar de um

caminho cujo termo, conforme V. Exa. o entende, é a perdição.

Depois de se referir, em toda a primeira página, às palavras

usuais com que lhe enviei, no começo da que lhe dirigi as minhas

condolências e de tratar ligeiramente de outros assuntos, passou

V. Exa., nas três páginas seguintes, a dissertar sobre o

Espiritismo. Permita-me transcrever os trechos principais:

“Lamento ver o amigo deixar-se arrastar por essa

doutrina, realmente sedutora, mas que exige uma tão forte

concentração de espírito, que leva muitas vezes os seus

adeptos ao desarrazoado e à demência. Além disso, não se lhe

reconheceu ainda a utilidade prática, pois, em vez de nos

atrair para a investigação dos fenômenos naturais, físicos e

químicos, biológicos e fisiológicos, em que se têm estribado as

descobertas modernas, nos leva a beber inspiração em

Espíritos atrasados, de homens que viveram em meio muito

menos progressista do que o nosso. Além disso, não serão os

fenômenos observados fatos positivos de autossugestão? E

para que andarmos preocupados com os que se foram, se

com isso não melhoramos as nossas condições de vida, nem

beneficiamos a humanidade? Pelo contrário, vemos famílias,

como a do operário J. M., de C., e a do Sr. J. C. e de tantos

outros, privadas do amparo de seus chefes, os quais se

entregaram às práticas espíritas e estão hoje onerando o

Estado com a sua permanência no hospício. Tomo a liberdade

de lhe dizer estas coisas, porque, além de ser seu amigo,

tenho pesar de ver um moço inteligente, um coração bem

formado, seguindo um caminho que o levará indubitavelmente

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à inutilidade, absorvido como deve estar por teorias errôneas”.

As suas palavras me impressionaram profundamente.

Não sou, em comparação com outros do nosso tempo,

nenhum ignorantão, para quem tudo na vida é um problema

insolúvel. Já nesse tempo sabia ler, escrever, possuía noções de

outros conhecimentos, que me haviam aberto as portas de

alguns estabelecimentos de ensino e dado acesso ao seu corpo

docente. Tinha mesmo certo tirocínio do magistério e uma

pequena prática dos trabalhos da imprensa periódica, para a qual

escrevia, desde uns 10 anos antes, em prosa e verso. Mas esse

arremedo de cultura nada era, como não é, em comparação com

a ciência de um médico, mormente quando este é um literato,

um jornalista, um administrador, um homem prático, como

sempre considerei a V. Exa. Meditei com cuidado sobre os

conselhos e receios de sua carta e me abstive por algum tempo

de leituras espíritas.

Pouco depois, tornei a ler cuidadosamente a Bíblia e fiz

ligeiro estudo das bases e dos pontos principais dos credos

religiosos mais seguidos.

Após ler numerosos volumes aprovados pela Igreja Romana,

passei a examinar os motivos da Reforma com as lutas fratricidas

dos dois credos, com as perseguições religiosas que

desencadearam na Europa a horrenda mortandade de São

Bartolomeu e os horrores da Inquisição, a intolerância clerical por

toda parte e a ambição da Companhia de Jesus e de outras

ordens, a ostentação do papado e suas nunciaturas, e concluí

tristemente, acabrunhadoramente, declarando a mim mesmo, de

toda a minha alma, com referência a essas duas religiões: Não! A

verdade não está com esses homens!

Embrenhei-me depois nas lutas de católicos e sarracenos,

apreciei as depredações e as conquistas de ambos os partidos, as

incursões em terras neutras, o saque, o roubo, a cobiça, o

sangue, o orgulho, a desonra, a miséria, enfim, por tantas terras

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do velho continente, quantas tinham tido a desdita de conhecer a

intolerância ultramontana ou o fanatismo mouro, ou de lhes ser

limítrofes. Ao concluir a leitura de cada um desses livros, repetia

convictamente, em relação a ambos os litigantes: Não! A verdade

não está com esses homens!

Pensei, depois, em cuidar de coisas desta vida, deixando o

futuro ao acaso; mas reagi um dia contra essa indecisão, contra

esses prejuízos de vencido. Se procuramos conhecer a língua de

um país e, mesmo, seus usos e costumes, antes de o visitarmos;

se procuramos conhecer com antecedência os usos e costumes

até de uma aldeia, ou de uma propriedade agrícola, ou de uma

empresa, onde pretendamos fazer uma vilegiatura, por que não

procurarmos conhecer as coisas da vida de além-campa, isto é, a

vida que é o prolongamento desta vida, a vida, em suma, que

acreditamos eterna?

Voltei, portanto, ao estudo dos fenômenos espíritas, da

consoladora doutrina a que devo a minha calma na atualidade, a

que devo a resignação, a esperança, o quase prazer com que

aceito os sofrimentos que a outrem arrancaria amargas queixas.

Julguei sempre ser meu dever enviar a V. Exa. uma resposta

à sua missiva de 30 de outubro de 1907. Fugindo ao estudo do

Espiritismo, tinha eu de declarar ao ilustre amigo que

reconhecera verdadeiro e provado o texto de sua carta citada;

estudando a doutrina e os fenômenos espíritas e aceitando a

nova revelação como meu credo, achava-me no dever de

declarar ao meu estimado amigo, com o mais sincero respeito,

haver enganos na sua referida carta. Em qualquer dos casos,

porém, cumpria-me agradecer-lhe de coração o interesse que

tomara por mim, assegurando-lhe que jamais me esqueceria da

boa vontade que lhe guiou a pena, ao traçar, ditados pela sua

experiência, os conselhos que me enviou, numa demonstração de

verdadeira simpatia.

Aguardava, entretanto, obter mais provas, a fim de lhe poder

escrever. De quando em vez, revolvendo as gavetas, relia a carta

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tarjada. Meditava sobre a resposta que lhe daria, mas ia

deixando-a para mais tarde, para quando lhe pudesse oferecer,

em resumo, as minhas observações, resultantes, não da pesquisa

dos fenômenos, o que seria difícil, laborioso, e, relativamente,

pouco útil, pois esses fenômenos são, de há muito, admitidos

pela ciência reacionária e pela própria Igreja romana, porém do

estudo da influência que o Espiritismo pudesse exercer nos seus

adeptos, com relação ao estado mental de cada um.

Hoje, finalmente, vendo completar-se o longo período de 20

anos, entendi não ser necessário prolongar mais o das minhas

observações e dou início à resposta, que lhe devo, escrevendo-a

ao correr da pena, justamente na manhã do dia 30, dia de

descanso. Procurarei resumir quanto possível o que tenho o

desejo e o dever de lhe declarar. Será, contudo, um pouco

extensa a missiva. V. Exa., entretanto, terá a bondade de me

desculpar, não somente por lhe ir roubar um pouco do precioso

tempo, como também por apresentar nestas linhas argumentos

tendentes a negar as suas opiniões antiespíritas. Todavia, espero

e peço a V. Exa. que leia com atenção toda ela. Ficar-lhe-ei grato

por isso.

Não a farei de uma vez. É bem provável que só a conclua

daqui a dois dias mais, talvez, exatamente na noite em que, há

20 anos passados, recebi a sua.

No decorrer desses 20 anos, meu distinto amigo, li bastante,

ouvi muito, pensei detidamente, muito observei e hoje posso

asseverar, sem o menor receio de erro, que o Espiritismo não faz

loucos. Nunca os fez. Nunca os fará.

Eu era moço, ao abrir o Livro dos Espíritos, o Livro dos

Médiuns e o Evangelho, de Allan Kardec. Ainda sob as

impressões dos 24 anos, cérebro cheio de esperanças e

fantasias, era cedo demais para dar combate à descrença que me

procurava dominar, ao reconhecer que me não satisfaziam os

dogmas de Roma. Ao aproximar-me dos 30 anos, iniciei

novamente o Estudo do Espiritismo, que tornei a interromper por

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motivos justos, volvendo a abrir aqueles livros uns meses depois.

Recebendo então a sua carta, pus-me a observar atentamente,

sem ser indiscreto, os adeptos dessa e de outras doutrinas,

comparando-lhes o modo de agir, examinando-lhes as opiniões

sobre diversos assuntos, verificando como procediam (os meus

íntimos) para com as suas famílias e perante a sociedade etc.

etc.

Após essa prolongada observação, isto é, no decorrer desses

20 anos, nem um louco encontrei entre os espíritas, mas

muitíssimos loucos, numerosíssimos loucos encontrei, que eram

adeptos de outras doutrinas, principalmente da religião católica

romana.

E durante esse tempo convivi com grande número de

espíritas, não somente deste lugar, mas também do Rio de

Janeiro, de alguns outros distritos deste município e de diversos

outros pontos. Correspondi-me assiduamente com espíritas,

alguns dos quais não conheço pessoalmente, e nunca me veio às

mãos uma carta onde existisse qualquer coisa sem nexo, a

menor extravagância denunciadora da mais ligeira perturbação

mental. Li cuidadosamente numerosos livros espíritas – de

escritores nacionais, portugueses, franceses, ingleses, italianos,

alemães, espanhóis, em nossa língua – e nenhuma necessidade

se me deparou, nenhum disparate constatei quer do autor, quer

do tradutor. Conversei demoradamente com inúmeros espíritas –

homens e mulheres, velhos e moços, cultos e incultos, nacionais

e estrangeiros – e nada em qualquer deles me fez jamais supor o

menor, o mais insignificante desequilíbrio mental. Um deles veio

de outro município, não vizinho, com o único fim de conhecer e

visitar o novo confrade – então animal raro na zona – e algum

tempo depois deu-me o prazer de outra visita. A seu respeito

ouvira eu dizer horrores: “que estudara essa doutrina perigosa,

que se fizera espírita e logo em seguida ficara doido e arrancara

com as mãos os próprios olhos”! Verifiquei, entretanto, que o

caso devia ser contado às avessas, porque aí é que estava a

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verdade: João Marcelino não conhecia o Espiritismo, nem sobre

essa doutrina lera coisa alguma, quando, num desequilíbrio

mental – perseguição naturalmente de algum Espírito, que até do

santo padre pode fazer uma vítima –, tentou arrancar os dois

olhos, tendo perdido um e ficando com o outro deformado; mas

melhorou, restabeleceu-se, estudou a nova revelação, fez-se

espírita, tornou-se médium e era, então, um homem calmo e

culto, que fazia a propaganda do Espiritismo com a palavra, os

atos e a pena.

Muito pelo contrário, sei terem alguns espíritas feito

recuperar a razão a diversos loucos, como, mesmo neste lugar,

fizeram os Srs. Bastos, Fragoso e outros.

Houve aqui um amigo, católico, em quem me foi preciso

combater por muitas vezes inclinações perversas, demonstrações

de ódio violento, desejos de vinganças mesquinhas (algumas

vezes já iniciadas) e ideias ou projetos extravagantes, oriundos

de um Espírito perturbado, de um cérebro enfermo, de um

coração impregnado de fel. Era, no entanto, um amigo de

verdade, talvez o mais dedicado dos meus amigos até essa data.

Meia dúzia de anos mais velho do que eu, nossa amizade vinha

desde 1891, quando eu saía da segunda infância e ele se

aproximava da emancipação. Devia-lhe não poucos favores e, por

isso, empenhava-me ainda mais em lhe arrancar alguns

sentimentos maus. Consegui, afinal, alguma coisa, porque esse

homem, em 1909 a 1910, tendo conhecido o Espiritismo, se

tornou fervoroso adepto da doutrina, à qual atribuo o haver

mudado de opiniões e de costumes e passado a ser um exemplo

vivo de paciência, de tolerância, de resignação e de paz.

Conheci um operário que abandonava a oficina pela taverna

e desta passava a provocações e conflitos, esquecido dos

deveres de chefe de família, dos compromissos de sua arte e dos

deveres de cidadão. Já vivia sem crédito e com poucas relações,

quando um parente resolveu conduzi-lo para sua herdade, a mais

de 12 quilômetros do povoado. Esse homem, no silêncio da roça,

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nas suas longas horas de vigília, durante as noites de inverno,

teve a felicidade de encontrar e ler uns livros espíritas de Allan

Kardec e outros autores, e graças a essa doutrina salutar,

regenerou-se, sendo hoje, já velho, homem laborioso, caridoso e

correto, muito estimado no meio em que vive atualmente, sede

de um distrito não longe deste.

Um dos meus bons amigos era oriundo de família infeliz, com

tara hereditária. Tinha visto dementes alguns parentes seus,

entre os quais um sacerdote romano. Ele próprio se queixava às

vezes de pequenas perturbações mentais. Descrente da fé

católica, começou a estudar o Espiritismo, aliás, em contrário ao

meu desejo, e se fez algum tempo depois fervoroso crente.

Desde essa época, adquiriu mais discernimento em todos os seus

atos e palavras. Ao falecer, há pouco, deixou após si um rastro

de saudades.

Relacionei-me, durante esse período relativamente longo,

como já disse, com grande número de espíritas e em todos

verifiquei perfeita integridade mental.

Não procurei informações sobre o caso J. C., de que fala V.

Exa., por ignorar de que localidade era esse senhor; mas

procurei-os acerca do caso J. M., de C. Um moço, que fora

discípulo desse operário e com o qual ele residira cerca de três

anos, conhecia-o perfeitamente, mesmo por isso, e me informou

que o Sr. J. M. não era espírita, nem estava nas condições de o

ser. Ouvindo falar dessa doutrina, leu um livro ou parte de um

livro sobre ela e tomou a resolução de se servir das evocações

para proventos materiais, sem visar jamais o seu progresso

espiritual e sem se dirigir a uma associação regular; porém, a

sós, sem os precisos conhecimentos do assunto. Provava com

isso pouco senso. Ficava sozinho, durante grande parte da noite,

evocando Espíritos e interrogando-os somente com o intuito de

ganhar mais e trabalhar menos, ou nada, e pedindo informações

que o respeito para com os nossos irmãos falecidos e, mesmo

para com as fraquezas alheias, em geral, não me permitem

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esclarecer nesta carta. E por que não hei de desculpar as

fraquezas alheias, se tantas tenho eu também? Mas o operário a

quem ouvi me informou amplamente e me merece inteiro

crédito, pela incontestável seriedade que sempre demonstrou. No

fim de certo tempo, o Sr. J. M. começou a manifestar sintomas

de alienação, provavelmente de origem anterior ao começo das

suas experiências, mas pouco observáveis por pessoas com

quem o infeliz mantinha relações menos íntimas.

Verbalmente, poder-lhe-ia eu provar, com o testemunho do

meu informante: 1º., que o operário J. M., antes de compulsar

uma obra espírita, não era homem perfeitamente equilibrado;

2º., que o mesmo não era espírita, nem conhecia

convenientemente essa doutrina; 3º., que usava e abusava do

fenômeno das comunicações, sem compreender que, assim

fazendo, desprezava os conselhos de todos os mestres, por

imprudência, por ignorância.

É possível, até mesmo pelo que fica exposto, que, devido a

essas evocações a sós, sem prática, sem fins mais ou menos

justos e elevados, se houvesse agravado ao infeliz a perturbação

mental anterior, ou, em termos mais claros, é possível tenha

havido uma obsessão por parte dos Espíritos perversos que

atendiam ao seu chamamento.

O Espiritismo, porém, não é responsável pelo abuso dos

imprudentes, que se dizem espíritas, como a medicina não se

responsabiliza pelos abusos dos charlatães. Se um curandeiro

incompetente me der um remédio que me agrave o mal, em vez

de o curar ou minorar, devo eu tornar-me inimigo da medicina e

desmoralizar-lhe as academias, se possível fora?

Entre os meus conhecidos, nesse período de 20 anos, e entre

as pessoas com quem mantive relações comerciais sem as

conhecer pessoalmente, ou com quem me correspondi sobre

outros assuntos; entre os escritores cujos livros e jornais li

durante o mesmo período, entre correspondentes e escritores

espíritas que conheci, nenhum desequilibrado se me deparou.

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Entre os católicos, porém, encontrei numerosos loucos,

numerosíssimos alienados, muitos dos quais estiveram onerando

o Estado com a sua permanência no hospício, onde alguns ainda

estão.

O padre P. F. V. foi sempre desequilibrado mentalmente e

terminou a vida terrena em P. N., completamente alienado. O

cônego N. L. suicidou-se louco. O padre J. M., que conheci

acompanhando como secretário um arcebispo, sucumbiu ao

delirium tremens. O padre L. V. Q. foi vítima do alcoolismo. O

padre A. Q. era bobo. O cônego O. P. costumava delirar.

Mais exemplos poderia eu citar, não o fazendo porque são de

pessoas que viveram ou vivem mais longe. Falemos de alguns

casos locais, vistos e verificados por mim.

Dona C. V. B., irmã de um padre, era demente e assim

faleceu; sua filha, dona M. J. M., morreu louca no hospital do

Rio. Entretanto, eram muito religiosas, assíduas frequentadoras

dos atos da igreja. Dona M. F. P. V., mulher do fazendeiro F. P.

V., era tão católica que tocava ao fanatismo, sucedendo-lhe

frequentemente derramar lágrimas de comoção, na igreja, ao

ouvir o vigário J. M. (também desequilibrado) dizer, do púlpito,

estar vendo a cadeirinha destinada, no céu, àquela grande

devota. Infeliz senhora! Pouco depois dessas práticas,

enlouqueceu e foi conduzida para o hospício do Rio, onde

faleceu. Dona A. M. P., mulher do fazendeiro A. P. S., era

também muito devota; frequentava assiduamente (aliás, com

sacrifício) os atos religiosos, tinha os filhos em colégios católicos

etc. Afinal, enlouqueceu, continuando, mesmo assim, a assistir às

devoções do mês de Maria, até que foi conduzida para o hospício

do Rio, onde sucumbiu após uns anos de permanência lá. A

mulher do fazendeiro H. S. P. e uma filha sua eram bastante

católicas, irmã e sobrinha da tesoureira efetiva da irmandade das

“Damas do Sagrado Coração de Jesus” da paróquia. Ambas

morreram loucas. A preta Inácia, ativa cozinheira da casa de um

dos meus amigos, sempre foi religiosíssima, associada de

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quantas irmandades católicas têm aqui havido e cumpridora de

todos os preceitos canônicos, inclusive o de se confessar

mensalmente e por ocasião de festas religiosas. Tem estado

demente por diversas vezes, já havendo sido tratada nos

hospícios do Rio e de Barbacena. A. A., homem de uns 47 anos,

de cujo pai e irmão sou amigo, é de religiosidade extremada, a

ponto de perder meses, em 1910, carregando pedras à cabeça, a

fim de erigir a torre da igreja. No entanto, apesar dessa

religiosidade toda e das frequentes confissões, tem estado

bastante perturbado das faculdades mentais, pelo que

abandonou o trabalho quase inteiramente, de uns anos para cá,

a fim de se entregar à prática tola e inconsciente de benzeções,

como vi, ainda ontem, em nossa oficina, na pessoa de um dos

nossos oficiais, a quem ele quer curar assim de uma falha de

cabelo numa das sobrancelhas.

Deixo de citar, por inútil, muitos outros casos locais, cuja

existência poderei provar com a maior facilidade.

João Ernesto, o admirável musicista e compositor, de Ubá,

era o espírita mais antigo dessa vizinha cidade e um dos mais

preparados da zona. Atacado pelo padre Zeferino de Abreu e

outros, na imprensa periódica daquela cidade, e sendo a loucura

o principal argumento invocado contra o Espiritismo pelos

atacantes, respondeu-lhes, em artigos muito ponderados,

apresentando contraditas como as seguintes:

“Sendo espírita, como sou, há muitíssimos anos, parece-me

que ainda não estou doido. Pai de família que sou, vivo em

perfeita paz com os meus, na minha residência; guarda-livros de

profissão, continuo nesse trabalho, para o qual é necessário

algum discernimento, e os meus patrões, membros das mesmas

firmas a que sirvo há muito, continuam a tolerar-me; músico que

sou e regente de uma banda de música já bastante antiga,

importante e com um nome feito, continuo no exercício desse

cargo, desde a fundação da sociedade, e os meus companheiros

e dirigidos continuam a tolerar-me. Parece-me, pois, que ainda

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não estou doido. Num ponto tem, aliás, Monsenhor Miguel

Martins inteira razão: é quando diz que o Espiritismo se

assemelha à roseira de São José, que, quando brota num lugar,

ali não se extingue nunca. É que o Espiritismo é a verdade e por

isso nele se conservam quantos o conhecem”.

É digno de ler-se o livro Fariseu, escrito por João Ernesto.

Contém a série de artigos com que respondeu aos ataques do

padre Zeferino de Abreu e de outros.

Homem dedicado e modesto, era bastante ativo e laborioso,

sabendo aproveitar criteriosamente o seu tempo. Adepto da bela

língua criada pelo Dr. Zamenhof, era o decano dos esperantistas

desta zona, exprimindo-se nessa língua com facilidade e

correção.

Era de cor escura, bem escura. Chamado por monsenhor

Miguel Martins, para ser doutrinado, à casa do senador Levindo

Coelho, em Ubá, compareceu com a modéstia que o

caracterizava; mas, aí, depois de declarar com firmeza que era

espírita, isto é, livre pesquisador da verdade, foi seriamente

insultado pelo monsenhor que, afinal, se retirou da sala aos

repelões etc. etc. João Ernesto tudo ouviu com a costumeira

humildade, quase sempre em silêncio; porém, narrando o fato,

dias depois, em um artigo na imprensa local, concluiu declarando

tristemente, com um pouco de ironia: “Só não me xingou de

negro”. É que o monsenhor Lellis, o pregador, tem a cor um

pouco mais escura do que a sua...

Foi João Ernesto quem iniciou no Espiritismo e no Esperanto,

há muitos anos, um moço de minha família, hoje dos mais

entusiastas impulsionadores de associações esperantistas de

diversos países. A ele devemos grande número de traduções de

escritos em francês, inglês, alemão, italiano e esperanto, sobre

experiências e estudos psíquicos, traduções estas publicadas em

vários jornais e revistas, mas, principalmente, na Revista

Internacional do Espiritismo.

Duas classes movem tremenda guerra ao Espiritismo: a

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Igreja católica e a medicina. Também o Protestantismo o

combate, mas de modo menos renhido. Julgam o Catolicismo e a

medicina ter diante de si um adversário poderoso, que ao

primeiro retira bons fregueses e à segunda prejudica os

interesses, curando de graça numerosos enfermos do corpo e da

alma. É realmente enorme o número dos que procuram e obtêm

a cura de moléstias com o auxílio dos médiuns. É assombroso o

movimento de receituário no Rio e no interior. A Federação

Espírita Brasileira, da capital, instituição fundada há quase meio

século, é o núcleo principal desse movimento, seguido de perto

pelas Federações estaduais, por inúmeros Centros e pelos

médiuns que isoladamente trabalham em todo o nosso país.

O decano da imprensa espírita do Brasil é o Reformador,

órgão daquela Federação e fundado na mesma época que ela;

mas já são antigos e muito conhecidos diversos outros

periódicos, entre os quais O Clarim, da cidade de Matão, S.

Paulo, com 23 anos de vida; a Aurora, do Rio, com 16 anos. Têm

nome feito os que se acham à frente desses e de vários outros

órgãos espíritas de publicidade e muitos mais, entre eles o

propagandista de estilo fluente e argumentos fortes, Dr. Viana de

Carvalho, há pouco falecido, o querido romancista Dr. Américo

Vernec, e o velho e caridoso Jerônimo Ribeiro, também

desaparecido este ano do plano visível. São estimados e prestam

excelentes serviços à propaganda os escritos desses defensores

da doutrina, bem como de numerosíssimos outros. Deixaram

após si luminoso rastro os ilustres propagandistas Drs. Bezerra de

Menezes, Bittencourt Sampaio, Fernando de Alencar e muitos

outros.

Mesmo entre nós, neste modesto recanto do Brasil, prestou

bons serviços à causa o nosso velho amigo Dr. Pio Martins

Marques Ventania, que dedicou os seus últimos 12 anos de vida

à propaganda espírita. Já não têm conta os que, nestes últimos

anos, se hão votado à propaganda do Espiritismo, sempre no uso

pleno de suas faculdades intelectuais e sempre ativos, calmos,

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caridosos, ponderados, amigos da alegria e do progresso,

instruindo-se cada vez mais pelo estudo de todas as religiões e

tendo, algumas vezes, na estante – como a mim mesmo sucede

–, livros espíritas, teosofistas, ocultistas, católicos, positivistas,

metodistas, sem que obra nenhuma lhes abale a crença na

multiplicidade de vidas, nem na recompensa e no castigo, de

acordo com as próprias obras, nem na bondade infinita de Deus,

cujo perdão é tão sublime que se estende até a um Loiola, um

Torquemada, um Ximenez, um Santa Cruz, um Bórgia.

Aos bons católicos, ao contrário do que sucede aos espíritas,

o que cumpre apenas é serem obedientes e pagar as taxas

caríssimas da religião suntuosa em que nasceram e vivem. É-lhes

vedada a leitura de obras onde se não veja o Imprimatur de

alguma autoridade eclesiástica. Seus sacerdotes, como disse o

ex-padre romano Hipólito de Campos, se assemelham aos

morcegos, pois a luz os perturba.

A um desses sacerdotes, incontestavelmente dos mais

ilustres e operosos, o Dr. Júlio Maria, escreveu o ilustre médico

mineiro Dr. Fernando de Alencar, a quem aquele pregador

chamara supersticioso:

“Supersticiosos sois vós, os padres da Igreja romana,

porque acreditais que um pedacinho de pão, após algumas

palavras ditas sobre ele, passa a ser o verdadeiro Cristo, isto

é, o verdadeiro sangue, corpo, alma e divindade de Nosso

Senhor Jesus Cristo, e acreditais ser o Cristo, ao mesmo

tempo, Deus e homem. E o comeis... Além de supersticiosos,

sois teófagos e antropófagos, isto é, devoradores de deuses e

de homens”.

Não me ocorrem textualmente as palavras do Dr. Fernando

de Alencar; mas o pensamento é o que aí ficou.

***

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Os mais poderosos adversários do Espiritismo são, como

disse acima, a medicina e a religião católica, isto é, o preconceito

científico e a disciplina eclesiástica. Os cientistas, cujo campo de

ação é o corpo humano, nada tendo ouvido, nem visto, em suas

escolas, com referência à outra vida, propendem para a negação

sistemática de tudo o que não podem sondar com os sentidos

corporais, julgando erro ou embuste quantos conhecimentos não

figuram entre os seus. Os padres romanos, firmados na

infalibilidade do seu chefe e na imobilidade da sua igreja, coisas

em que, aliás, nem eles próprios acreditam, atribuem ao demônio

todos os fenômenos espíritas que não estudaram, que não

podem estudar, considerando cada espírita um iludido ou um

mentiroso e cada médium um possesso do Espírito das trevas.

Esquecem-se os homens da ciência de que são ainda

limitadíssimos os conhecimentos humanos e de que a

humanidade, caminhando sempre para a frente na estrada do

saber, se acha ainda, como o disse Cuvier, pouco mais adiantada

do que a criança entretida a apanhar conchinhas à beira-mar.

Esquecem-se os homens do credo romano de que a sua igreja,

ainda jovem, relativamente à existência do homem no planeta,

tem necessidade de muito estudar e muito evoluir, para se tornar

verdadeiramente forte, para arrostar com as dificuldades que lhe

opõem a razão, o estudo e o livre-arbítrio, aos quais há de fazer

concessões não pequenas, se quiser viver.

O Dr. Carlos Imbassahy, do Rio de Janeiro, respondendo aos

Drs. Oscar de Sousa e Everardo Backeuser, acaba de fazer

importantes e curiosas ponderações sobre o assunto.

Lembremos a incerteza da medicina, em alguns fatos locais.

Duas moças, irmãs gêmeas, foram atacadas pela mesma doença

(então epidêmica), no mesmo dia, com os mesmos sintomas, na

mesma casa e foram tratadas pelo mesmo médico, vindo os

medicamentos da mesma farmácia, com medicação e tratamento

idênticos. Uma dessas moças faleceu, enquanto que a outra se

restabeleceu, para ser a esposa de um dos meus amigos e

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vizinhos.

Um parente meu, médico, viajava com um empregado por

umas terras insalubres e, descansando alguns minutos junto de

um charco, aí dessedentaram-se num regato de límpida e fresca

água, contraindo ambos a terrível moléstia da zona. De regresso

à fazenda, o meu parente recolheu-se à cama, enfermo,

enquanto que o empregado caía sobre o seu humilde catre de

roceiro, desamparado e sem conforto. O primeiro, medicado por

nove ilustres facultativos, que lhe prescreveram noventa

fórmulas, morreu, ao passo que o outro enfermo se curava com

o uso de remédios caseiros, mediante os quais recuperou

rapidamente a saúde e a força, ao ponto de poder, alguns dias

mais tarde, tomar uma das alças do ataúde em que o cadáver do

seu patrão e amigo seguia para o cemitério, para o campo onde

terminam todas as grandezas humanas.

Conheço numerosos casos semelhantes e V. Exa. os deve

conhecer muito mais numerosos. Quer isso dizer que a vida do

corpo não é ainda propriedade da ciência e que, por isso, essa

ciência, tão incerta no seu círculo de ação, não se deve abalançar

à condenação intolerante da doutrina daqueles que estudam a

alma.

Se os médicos ainda não dominam os fenômenos do corpo, o

último dos quais, a morte, não sabem, nem podem retardar,

sequer, não devem abandonar o seu campo de ação – o mesmo

corpo – para invadir, com o intuito de tudo negar, ou de tudo

explicar a seu modo, o campo do estudo dos espíritas, isto é, a

alma.

Desculpe o ilustre amigo a franqueza das minhas expressões,

nas quais não existe a menor ironia.

Há, entretanto, muitos médicos espíritas: são os que não se

curvam aos preconceitos da escola. Também alguns padres

romanos têm aceitado a consoladora doutrina codificada por

Allan Kardec.

Quase a terminar esta já longa missiva, tenho hoje a não

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pequena felicidade de lhe declarar, respondendo assim a alguns

tópicos da sua prezada carta de 30 de outubro de 1907:

1º. O Espiritismo tem utilidade prática, pois prova a

existência da alma e das outras vidas, cura enfermos, combate

a loucura, inspira paciência e resignação, infunde esperança,

explica os motivos de nossos sofrimentos e espalha benefícios;

2º. Os espíritas não vão beber inspirações em Espíritos

atrasados somente, mas ouvem quantos se lhes apresentem,

entre eles encontrando alguns que possuem mais

adiantamento moral e intelectual do que muitos eruditos da

atualidade;

3º. Os fenômenos observados não são casos de

autossugestão, nem de sugestão alheia, como pode V. Exa.

observar nos livros de Paulo Gibier, W. Crookes, Gabriel

Delanne, A. Conan Doyle, Lombroso, A. Costa, Léon Denis, De

Rochas e outros;

4º. Com o Espiritismo beneficiamos a humanidade e

melhoramos nossas condições, como já está provado, e

bastante, pois ao Espiritismo se devem diversos asilos, para

ambos os sexos, para crianças e velhos desamparados, e

muitas escolas, muitos livros, muita caridade, enfim;

5º. Se alguns espíritas há onerando o Estado com a sua

permanência no hospício, esses espíritas, se realmente o são,

o que é de duvidar, devem ser pessoas taradas, devem ser

indivíduos defeituosos desde o berço e, a cada um que exista

onerando assim o Estado, as Associações espíritas

correspondem sustentando ou curando mil católicos;

6º. A minha crença não me levará à inutilidade, absorvido

por essas teorias errôneas, pois, se algum mal me pudessem

fazer essas teorias, há muito já o teriam feito no decorrer dos

últimos 20 anos; entretanto, tendo eu ultrapassado os 50 de

idade, levando sempre uma vida de trabalhos e dificuldades,

sofrendo desde a infância a moléstia da espinha que três

grandes professores declaram ser caso desconhecido na

ciência, sinto-me ainda com o juízo perfeito, conservo-me

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sempre calmo e atento, vejo-me ainda cheio de vida, de saúde

(relativa), de esperanças, de alegria, de quase mocidade

mesmo.

Realmente, considerada a enfermidade que me acompanha

desde a infância e consideradas a minha idade, a minha profissão

e as dificuldades desta, oriundas do meio, sou uma prova viva de

que o Espiritismo não faz loucos nem bobos, pois tenho o juízo

perfeito, sou senhor de minhas faculdades intelectuais. Deus, em

sua infinita bondade, concedeu-me o tino que me serve a mim e

algumas vezes aos outros. E, apesar dos meus 20 anos de

estudos espíritas e de ter ultrapassado os 50 de vida terrena,

trabalho durante todo o dia e a empresa por mim fundada, há 18

anos, prospera sempre e ainda me sobeja um pouco de tempo

para o descanso, para a leitura, para a música e para escrever

esta longa missiva, que talvez vá levar ao meu ilustre amigo

alguma contrariedade, ou mesmo uma pequena indisposição,

que, entretanto, desaparecerá e não obstará a que eu continue a

dedicar-lhe a mesma afeição e a que prossiga fazendo ardentes

votos à infinita misericórdia de Deus pela felicidade de V. Exa. e

de sua distinta família.

Devo, todavia, dizer-lhe que não sou um investigador direto

dos fenômenos espíritas. Nunca o fui e provavelmente não o

serei jamais nesta vida – não porque me faltasse o desejo de o

ser, mas porque não houve e provavelmente não haverá para

isso oportunidade. Tenho procurado, porém, tomar conhecimento

das investigações já feitas, consignadas em numerosos livros

cheios de provas irrecusáveis, de testemunhos respeitáveis, e

isso me basta. Não é crível que os cientistas se recusem à leitura

desses livros, embora tenha força, em alguns homens o

preconceito científico. Por isso, crendo que V. Exa. conhece os

mais importantes e os mais documentados desses livros, não

tomo a liberdade de lhe recomendar escrito nenhum, nem

mesmo o Depois da Morte, de Léon Denis, e Vozes do Além pelo

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telefone, de Oscar d’Argonnel, notável o primeiro pela

grandiosidade das ponderações, e o segundo pela curiosidade

genuinamente brasileira do autor.

Terminando a minha carta, devo dizer-lhe que não nego

poderem os Espíritos, em certos casos, ocasionar alguma

perturbação mental, mas, apenas, em pessoas imprudentes,

apenas aos que, ignorando inteiramente a Doutrina Espírita, se

atiram por mera curiosidade, ou com intuitos inconfessáveis e

pouco honrosos, a fazer por conta própria investigações para as

quais não têm prática, não têm competência, não têm critério.

Esses indivíduos, felizmente em pequena quantidade, estão

sujeitos a uma obsessão por Espíritos maus, como também estão

sujeitos a ela quaisquer indivíduos, de qualquer religião ou sem

religião, que tenham mediunidade, mesmo que não provoquem

comunicações, mesmo que não chamem Espírito nenhum.

Porém, esses indivíduos se tornam perturbados mais por não

conhecerem o Espiritismo, pois esse conhecimento os livraria do

mal em muitos casos.

O nosso mundo é cercado por enormíssima quantidade de

Espíritos, muitíssimo maior do que a quantidade de pessoas;

esses Espíritos têm sempre o desejo de se comunicar conosco.

Ora, como cada médium é uma espécie de janela aberta para o

mundo espiritual, os Espíritos – e parece-me que principalmente

os menos evoluídos – atiram-se sempre a esses médiuns, a essas

janelas abertas para o seu mundo, sejam embora católicos,

metodistas, ateus, indiferentes, positivistas ou espíritas.

Quer isso dizer que as pessoas imprudentes, que se

aventuram a investigações a sós e sem competência, de

fenômenos espíritas, estão sujeitas a uma obsessão, mas,

apenas, quando possuem qualidades mediúnicas, condição

essencial para serem influenciadas. Mais sujeitas estão a essa

influência espiritual quando são moralmente atrasadas.

Acham-se isentas da loucura as pessoas que, dedicando-se

embora a tais investigações, não possuem mediunidade; e, em

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regra geral, estão também isentas as pessoas que, dedicando-se

a tais práticas e tendo mediunidade, embora investiguem a sós e

sem traquejo, se encontram em tal grau de adiantamento moral

que sabem e podem reagir contra as influências dos Espíritos

atrasados.

O que fica nesses dois parágrafos não é a minha opinião

pessoal somente; é o que ouvi de algumas pessoas competentes

e o que a experiência tem demonstrado.

São comuns os casos de manifestações do Além a pessoas

alheias à crença espírita. Os próprios livros da Igreja contêm

numerosas narrações.

É digna de nota a aparição do Espírito do padre Buselim, na

sacristia da matriz de Barra Longa, neste Estado, ao padre

encarregado da paróquia, justamente quando acabava de deixar

o invólucro terrestre em Mariana, acerca de 12 léguas por

péssimas estradas. Apresentou-se como se estivesse vivo (no seu

corpo conhecido), e encarregou o colega da decisão de alguns

negócios de outrem, tendo sido ouvido em parte pelo sacristão.

Esse fato me foi narrado pelo meu amigo João Cupertino, do

comércio do Rio de Janeiro, viajante que tanto trabalhava pelo

Catolicismo em geral e pelas irmandades de São Vicente de Paula

em particular, que o velho arcebispo lhe chamava – o bispo

secular.

Eu poderia citar uma dezena de outros fatos, alguns dos

quais entre os meus parentes; mas penso não ser necessário

fazê-lo, porque alongaria em excesso esta carta.

***

Concluindo, torno a declarar a V. Exa. que creio haver algum

perigo em ser médium, sem, entretanto, haver nem sombra de

perigo em ser espírita. E como a mediunidade é um dom natural,

há médiuns inconscientes de que o são, de todas as crenças e,

até, sem crença alguma.

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Todos devemos, portanto, conhecer o Espiritismo, a fim de

evitarmos os perigos de uma obsessão, ou os perigos da

mediunidade sem o menor conhecimento do assunto.

***

Estará V. Exa. lendo até agora esta longa missiva? Se estiver,

só me resta pedir-lhe novamente desculpas pelo desalinho com

que é ela escrita.

Apresento-lhe os meus protestos de gratidão e afeto, com o

prazer de me declarar, como sempre, atento amigo e admirador

de V. Exa. – Abel Gomes.

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II

A mulher do hoteleiro

Dirigi-me uma tarde à estação da via férrea, na cidade de C.,

a fim de tomar o expresso em que devia regressar à minha

residência. O trem acabava de se deter junto à plataforma cheia

de viajantes profissionais, de outros empregados do comércio, de

carregadores, de funcionários da Estrada, e de curiosos, enfim,

devendo ser de 25 minutos a permanência do trem, para cujos

passageiros era ponto de jantar a linda cidade da mata.

Recebido o meu bilhete de passagem, dirigia-me a um grupo

de amigos, em uma das extremidades da plataforma, quando

uma voz bem conhecida chamou-se à entrada do armazém

central. Atendendo ao chamado, achei-me em frente do meu

velho vizinho A. J. M., que me disse, indicando-me uma pobre

senhora modestamente vestida e um cavalheiro, ambos

desconhecidos para mim:

– “Esta senhora saiu hoje do hospital, e quer regressar a

casa, faltando-lhe parte do dinheiro necessário, e por isso

proponho a você e a esse meu amigo pagarmos toda a

passagem, que importará em dez ou doze mil réis”.

Compramos a passagem, sem aceitar o dinheiro que a pobre

senhora oferecia para completar a quantia precisa, o qual servir-

lhe-ia para as pequenas despesas de viagem, e pouco depois

partia ela, com um sorriso de satisfação, comodamente sentada

em uma cadeira do carro de primeira classe, depois de despedir-

se de nós, conservando ainda na mão o pouco dinheiro que lhe

sobejara das pequenas compras efetuadas, no hospital, durante

dois meses de tratamento.

Quem era aquela mulher? Onde residia sua família? Qual o

seu nome?

Não o sabemos. Tínhamos cumprido o nosso dever, e não

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fizemos perguntas. Ela precisava de nosso auxílio, e nós lho

prestamos sem sacrifício, sem esforço algum, e poucos dias

depois esquecíamos do caso.

***

Decorreram anos, uns oito anos talvez, ou pouco mais.

Numa tarde de verão, cavalgando eu uma velha e pacata

alimária de aluguel da cidade de A., de onde tinha partido pouco

antes, chegava à estação da via férrea pouco depois das quinze

horas.

À direita da estação, mais um pouco ao fundo, via-se uma

casa simples, verdadeira casa de campo, caiada, com janelas

verdes, tendo em frente à porta uma escada tosca de madeira,

com três ou quatro degraus. Era a única morada do local, além

da estação, e devia eu jantar e passar a noite, a fim de viajar

pelo misto da manhã seguinte.

Esse único prédio do local era, pois, o hotel, e para ele dirigi-

me, sendo recebido, à porta por um homem forte, de cerca de

quarenta anos, vestido de brim escuro, pés descalços, rosto oval,

cabelos e bigodes pretos.

Convidou-me a entrar, depois de me haver tomado as rédeas

do animal, e conduziu esta para uma sombra, com a

recomendação, feita por mim, de o entregar ao Dr. J. P., que

devia chegar pelo expresso da noite.

A sala do hotel tinha duas janelas e uma porta na frente,

outra no fundo, e duas mais, laterais para dois pequenos

quartos. Por móveis tinha a sala dois bancos de madeira, duas

cadeiras toscas e uma pequena mesa.

Voltando à casa, o hoteleiro assentou-se em minha frente e

pôs-se a conversar comigo sobre diversos assuntos. Residia ali

desde cinco anos antes, e tinha uma pequena lavoura acerca de

um quilômetro de distância, continuando a manter a sua

hospedaria, não somente porque essa indústria aumentava-lhe

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um pouco a renda, como porque era isso uma necessidade no

local, onde quase sempre pernoitavam viajantes, e mais

frequentemente jantavam, à espera do expresso da noite.

À tardinha jantamos – eu, o dono da casa, o agente da

estação e um jovem negociante que residia acerca de meio

quilômetro, à margem da estrada que ligava a estação à cidade.

Ao anoitecer seguimos para a estação, pois aproximava-se a

hora da passagem do expresso do Rio.

Às 8 ou 9 horas da noite, depois de servido o café com leite e

pão, conduziu-me o hoteleiro ao meu quarto, sem forro, com

uma janela em frente à via férrea.

A cama – uma cama somente, sem outros móveis – era de

colchão de palha, muito fofo e cômodo, com os lençóis muito

alvos, e as fronhas de filó bordado, contendo esta inscrição em

letras grandes: Boa noite.

Em um canto do quarto, a minha mala de viagem, encimada

por dois pequenos embrulhos, e junto da cama, no chão, uma

lamparina de querosene.

Era cedo. Um silêncio profundo rodeava-me. Mas o sono

talvez não atendesse ao meu convite antes das 9 horas da noite.

Havia calor, mas eu temia abrir a janela e o vento extinguir-

me a luz da lamparina. Lancei então a vista à cama, e vi, meio

oculta sob as almofadas, uma caixa de fósforos... Tinha sido

previdente o hoteleiro.

Soprei a chama da lamparina, e abri a janela.

A lua iluminava os campos – vasta pastagem, limitada ao

longe pelos milharais em boneca, e em alguns pontos pelas

samambaias, a principal vegetação espontânea daquelas terras.

Algum tempo depois, fechando a janela, deitei-me, e, depois

de ler algumas páginas de José de Alencar, dormi longamente,

calmamente, até que a voz do hoteleiro despertou-me, na manhã

seguinte, quando a luz viva do sol nascente começava a iluminar

o quarto, introduzindo-se pelos orifícios da coberta a telha-vã.

Na sala entregou-me o homem uma toalha e um pires com

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sabão, e convidou-me a acompanhá-lo ao quintal, onde jorrava,

de uma bica de madeira, a uns dez metros da porta da cozinha,

uma água abundante e cristalina.

Era o lavatório do hotel...

Algumas árvores frutíferas estavam carregadas de frutos

sazonados, e entre essas dois grandes pessegueiros.

Lavei-me rapidamente, e voltei à cozinha, onde o hoteleiro

esperava-me com o café e o pão com manteiga.

Ninguém mais vi naquela casa: somente o hoteleiro, e à

tarde do dia anterior, os dois pensionistas.

Quis então pagar a minha despesa, mas o hoteleiro recusou-

se a receber, declarando:

– Temos tempo...

Em seguida, voltando à sala, tomou em suas mãos a mala e

os dois embrulhos, e acompanhou-me à estação. Eu conduzia um

terceiro embrulho, um pouco maior do que os primeiros,

contendo pêssegos que o homem me oferecera.

Tentei novamente pagar as despesas, mas obtive a mesma

resposta: que havia tempo.

Chegava o trem em frente à chave, quando eu voltei à

procura dos embrulhos e da mala, e o hoteleiro declarou-me:

– Não se incomode. A sua bagagem corre por minha conta.

Poucos momentos depois, já assentado em uma cadeira do

último carro, e tendo junto de mim os meus objetos, perguntei

ao hoteleiro quanto devia pagar, inclusive a condução da

bagagem.

– O senhor não me deve coisa alguma – respondeu-me ele –

e sou eu quem lhe deve pelo favor que me fez passando algumas

horas em minha casa.

– Mas eu não posso deixar de pagar, meu amigo, e coisa

alguma justificaria o meu procedimento aceitando esses

favores...

– Eu não poderia receber essa pequena quantia, mesmo que

minha mulher não tivesse falado nisso, e apenas tivesse contado

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o fato – declarava com firmeza o homem.

– O senhor está enganado – respondi –, pois eu não sei

quem é sua senhora.

– Eu também não o conhecia até ontem à tarde – disse o

prestimoso hospedeiro –, mas minha mulher sabe que foi o

senhor quem, com dois outros senhores, pagou a passagem dela,

na estação de C., quando ela saiu do hospital, no dia...

E citou o dia, o mês e o ano.

– Nesse tempo eu era empregado da roça – continuou o

homem a explicar – e não possuía nada.

– Mas eu nem vi sua senhora – declarei – e mal me ocorre o

fato a que o senhor se refere, o qual entretanto não tem a menor

importância, pois a quantia gasta foi uma insignificância, e o

nosso ato não foi mais do que faria qualquer outra pessoa no

cumprimento do dever.

– Logo que o senhor chegou – explicou o hospedeiro –,

minha mulher me disse quem era o nosso hóspede, e ela não

pôde ou não desejou aparecer, porque desde anteontem tem

estado adoentada, e porque está tratando de uma filha nossa, a

um quilômetro, que está de cama por causa do nascimento do

nosso primeiro netinho.

– No caso de C. – asseverei novamente –, eu apenas cumpri

o meu dever...

– Pois eu também estou cumprindo o meu dever – atalhou o

hoteleiro –, e o senhor me faz um grande favor, sempre que

viajar por estes lados, vindo passar mal debaixo das minhas

telhas. Esteja eu onde estiver, a minha choupana é também sua.

Tentei ainda convencer ao hospedeiro do exagero dos seus

sentimentos de gratidão, fazendo-lhe ver ainda não ter partido

de mim, na cidade de C., a iniciativa do ato de que dificilmente

me fizera recordar.

Nada consegui.

O sino dera o sinal de partida, a locomotiva apitou, e o

comboio começou a mover-se pesadamente, e então o homem

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apertou-me a mão como um verdadeiro amigo, transpôs a porta

posterior do carro, e saltou lestamente para a plataforma, onde

ficou, a sorrir, num gesto de despedida onde poder-se-ia ler toda

a bondade de uma alma grande.

E eu correspondi às suas despedidas descobrindo-me com

afetuoso respeito, enquanto o comboio, fugindo com velocidade,

arrastando quatorze carros fazia desaparecer o hoteleiro, a casa

do hotel, a estação, e corria estrepitosamente entre as extensas

roças de milho, ou longas pastagens, ou vastos lençóis de

samambaias.

***

Quem era aquele homem? Qual o seu nome? Onde vive

atualmente?

Ignoro-o. Ele também não procurou saber o meu nome, e

nem eu lho dei.

Sei somente que naquela casa, naquela hospedaria da roça,

existiam dois corações que tributavam à gratidão um

extraordinário culto, pagando com desusada generosidade um

insignificante gesto de auxílio do qual eu me não recordava

então, e que nunca mais me voltaria à lembrança, por

insignificante que ele foi, se minha memória, aliás, feliz, não

houvesse sido despertada pelas informações do hoteleiro, a este

anteriormente transmitidas pela esposa.

Sobre este mundo, onde muitas pessoas teimam em somente

ver deformidades morais, há muitos sentimentos generosos, há

corações de nobreza admirável, há numerosíssimos seres

dedicados ao bem, e devotados, até ao sacrifício, ao que é ou

que eles julgam o cumprimento do dever.

Um desses espécimes é o fato estampado neste livro sob o

título A mulher do hoteleiro.

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III

Um homem de bem

Era um artista ambulante – ator, fotógrafo, desenhista e

cenógrafo.

Dirigia uma pequena companhia dramática composta de meia

dúzia de artistas modestos, mas de reconhecida vocação, com os

quais, e ainda auxiliado pela esposa dedicada, ganhava

honradamente a vida, de terra em terra, dando representações

muito apreciadas nas cidades e nas maiores povoações que

percorria.

Mas Eduardo lutava quase sempre com grandes dificuldades,

somente conhecidas pelos pacientes, ou também conhecidas,

aproximadamente, por quem já vislumbrou, como eu o fiz, as

agruras da vida atrás dos bastidores.

Eu o conheci em uma pequena cidade do centro de Minas.

Fui-lhe apresentado porque eu já era então, como ainda o sou,

fotógrafo amador, naquele tempo, quase trinta anos antes, ainda

nas primeiras experiências, e Eduardo era um bom desenhista e

excelente fotógrafo. Durante a maior parte do dia, e por algumas

horas das noites em que a trupe não trabalhava, trabalhava ele

em fotografia, demonstrando perícia não comum.

Já lá vão quase trinta anos, e eu ainda me recordo, saudoso,

do artista Eduardo. Simpático, delicado, prestimoso, fez de mim,

em nossa primeira entrevista, um dos meus numerosos amigos.

Mostrou-me os seus aparelhos, o seu sistema de impressão à luz

natural e à luz artificial, os seus utensílios de retoque, os fundos

habilmente pintados por ele próprio, e os melhoramentos por ele

introduzidos nas diferentes seções da arte.

Ao retirar-me, agradavelmente impressionado pelo

cavalheirismo do artista, fez-me este assumir o compromisso de

outras visitas, a fim de trocarmos ideias – dizia ele, quando sobre

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a arte eu apenas via, ouvia e aprendia.

Vimo-nos no dia seguinte em casa de um amigo, onde mais

uma vez tive oportunidade de admirar a inteligência de Eduardo,

e em seguida, isto é, no terceiro dia após a nossa apresentação,

fiz-lhe nova visita, na ocasião em que ele, espontaneamente,

aperfeiçoava o retoque de uma chapa minha.

Conversávamos, então, em sua sala de visitas, transformada

em exposição de retratos e gabinete de trabalho, quando alguém

pediu licença para entrar.

Era um moço claro, bem-vestido, maneiras distintas, estatura

um pouco acima da mediana, trazendo debaixo do braço uma

pequena bolsa de viagem.

Recebido cortesmente pelo artista, que lhe tomou o chapéu e

a bengala, o visitante deu alguns passos na sala, saudou-me, e,

antes de aceitar a cadeira que lhe era oferecida, declarou ter

necessidade de dizer ao artista algumas palavras em particular.

– É meu amigo e colega – disse Eduardo indicando-me ao

visitante –, e em sua presença pode ser tratado qualquer

assunto.

– Então permita-me entrar imediatamente no caso que aqui

me trouxe. Eu sou o Tenente F., delegado de polícia em

comissão...

– É provável haver então algum engano dirigindo-se a mim –

interrompeu Eduardo –, engano compensado pelo meu prazer

em conhecer o Tenente.

– Não, cavalheiro – asseverou o moço –, não há engano

algum. Não estou falando ao Sr. Eduardo, Eduardo, ator e

fotógrafo, que esteve na cidade de P. há cerca de dois meses?

– Exatamente.

– E nessa ocasião fotografou o jovem S. E. J., que residia no

hotel próximo?

– Sim – confirmou Eduardo –, lembro-me desse moço e

desses retratos.

– Pois é justamente por isso que venho hoje falar-lhe, tendo

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desembarcado do primeiro comboio apenas para esse fim.

– E em que lhe poderei ser útil?

– O Sr. deve ter algum desses retratos de S. E. J. – disse o

Tenente.

– Não tenho retratos impressos, mas possuo o negativo –

disse o fotógrafo.

– S. E. J. é criminoso – explicou o Tenente – e pessoas de

destaque fazem esforços para que seja preso. Ora, como eu não

conheço pessoalmente esse indivíduo, e o mesmo sucede aos

meus auxiliares, venho pedir-lhe o favor de me ceder um retrato

dele, retrato que pagarei como for exigido.

– Mas eu apenas tenho a chapa...

– Mas eu esperarei, e o Sr. terá a bondade de imprimir um

positivo.

– Sinto muito não poder servir-lhe – disse Eduardo –, pois

penso não ser correto fornecer à polícia, ou a qualquer pessoa

não autorizada pelo retratado, qualquer fotografia de meus

fregueses.

– Ficarei penalizado – declarou o Tenente –, se me for

necessário forçá-lo a entregar-me a chapa. Tenho comigo

soldados que podem, a um mandado meu, invadir-lhe a casa,

prendê-lo, dar-lhe busca ao arquivo e retirar a chapa desejada.

– Mesmo a sós o Sr. poderá fazer tudo isso. Eu duvido,

porém, ser-lhe possível encontrar a chapa, mesmo com auxílio de

pessoas a quem S. E. J. seja conhecido, pois são numerosíssimos

os negativos em meu arquivo, e a quem não tem prática da

nossa arte é quase impossível reconhecer negativos, quase todos

pequenos, apropriados a viajantes como eu, e alguns próprios

mesmo para ampliações, sendo estes menores. O que o Sr.

Tenente poderia certamente fazer é prender-me, assustar a

minha família e causar-me diversos prejuízos, não logrando o seu

intento. Se, entretanto – coisa aliás quase impossível –,

encontrasse o negativo procurado, eu nada perderia com a sua

retirada, pois continuaria em paz com a minha consciência.

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– Esse moço é também fotógrafo – disse o Tenente,

dirigindo-se a mim –, e poderia auxiliar-me...

– Amador aprendiz apenas – asseverei – e não conheço o

retratado.

Corei de vexame ao dizer essa mentira. Eu conhecia S. E. J.

Sinto ter sido quase uma covardia. Eu deveria ter declarado:

“Conheço o retratado, mas também eu não me presto a isso”.

Achei mais fácil declarar não conhecê-lo...

O delegado ficou por alguns momentos pensativo, dizendo

depois:

– Assim o Sr. Eduardo favorece o crime, impedindo a ação da

polícia e da justiça.

– Há inúmeros criminosos soltos e inúmeros crimes impunes

– asseverou o retratista. – Se S. E. J. é criminoso...

– Ladrão, moedeiro falso – explicou o Tenente.

– Se é ladrão, eu não o sabia quando o recebi como freguês,

e lhe ganhei o dinheiro, e a minha consciência se revolta ante a

ideia de cometer essa espécie de delação. Se a polícia agisse

sempre com imparcialidade e critério, faria jus ao apoio direto de

todos os cidadãos; mas o Sr. Tenente acaba de dizer que

pessoas de destaque se interessam pela prisão de S. E. J., e por

isso eu nego com maior firmeza a entrega do retrato, temendo

favorecer mais a causa dessas pessoas do que a da justiça

pública. Além disso, algumas vezes não há provas do crime

imputado a alguém, e contra o acusado há violências que,

cometidas contra esse meu freguês, me fariam arrependido e

envergonhado do meu ato.

– Mas eu – disse o Tenente – não penso em fazer absurdo

algum, e prometo apenas apurar responsabilidades de acordo

com as leis. E pagarei por uma prova do retrato uma dúzia de

vezes mais que o retratado pagou por uma dúzia...

– Não – respondeu o artista –, mesmo não havendo

injustiças para com esse moço, o que é entretanto muito possível

haver, embora não da parte do Sr. Tenente, o que creio com

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firmeza, eu não posso e não devo aquiescer ao seu desejo. Seria

uma espécie de traição, da qual eu teria remorsos. Faça o Sr.

Tenente o que lhe aprouver, e, se encontrar a chapa, o que acho

entretanto quase impossível, não lhe custará ela coisa alguma.

– Se o Sr. ma entregar, eu irei imprimi-la em outra casa, e

pagar-lhe-ei, como já disse...

– Todo o dinheiro do Estado de Minas seria pouco para esse

pagamento – interrompeu o artista.

Tendo ouvido estas últimas palavras, o Tenente levantou-se,

tomou de um cabide próximo o chapéu e a bengala, e, dirigindo-

se ao artista, apertou-lhe comovido a mão, dizendo-lhe:

– Sr. Eduardo, dê-me a honra de me alistar entre os seus

amigos. Se algum dia eu lhe puder ser útil, quer como

funcionário público, quer como cidadão, serei feliz em servi-lo, e

o Sr. poderá dispor de mim como de um amigo dedicado. O Sr. é

um homem de bem!

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IV

O campo de forragem

Tendo concluído a narrativa anterior – Um homem de bem –,

ocorreu-me inscrever aqui outra narrativa, igualmente verídica,

que tem, como a anterior, o atrativo da honradez e da

naturalidade que envolvem o fato nelas lembrado.

Esse fato, bastante antigo, é asseverado por Bernardin de

Saint Pierre, tendo-o eu lido, há algumas dezenas de anos, em

um livro adotado pelo Governo de então nas escolas públicas, em

uma das quais eu era aluno. Alguma diferença deve haver entre

a narração de Saint Pierre e as linhas seguintes, mas essa

diferença não prejudica a essência do fato, e deve ser atribuída

ao espaço decorrido entre o tempo em que li a famosa narração

e a atualidade.

Passemos ao fato.

A França estava em guerra.

Um regimento de cavalaria marchava vagarosamente, por

uma estrada desconhecida, procurando forragem para os animais

cansados e famintos.

Em certo ponto avistaram os soldados uma casa de campo,

para a qual dirigiu-se o comandante, que foi recebido à porta por

um homem idoso.

– Amigo – disse-lhe o comandante –, tenho necessidade de

encontrar um campo onde possa ser encontrada a precisa

forragem para os nossos animais, e eu desejara, no caso de ser

isso possível, me guiásseis o regimento a um campo onde

encontrássemos feno em abundância.

– Iremos sem demora – respondeu o ancião.

E imediatamente, deixando sua casa, colocou-se à frente do

regimento, que recomeçou a sua marcha vagarosa, a passo, por

aquela estrada somente conhecida pelo guia.

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Transposta uma pequena colina, achou-se a expedição, após

alguns minutos, em um belo campo de feno onde havia forragem

para um número de cavalos muito superior ao do regimento.

– Paramos aqui? – perguntou o comandante.

– Não – respondeu o camponês continuando a andar.

Depois de mais algum tempo de marcha, e de terem

atravessado outro rico campo de feno, chegou o regimento ao

terceiro campo onde havia abundante forragem.

O comandante bradou: “Alto!”

– Ainda não – respondeu o camponês. – Dentro de pouco

tempo mais teremos o que necessitam.

E continuou a caminhar, seguido pelo comandante e pelos

numerosos soldados do regimento.

Atravessaram assim alguns campos de forragem, sem se

deterem, e chegaram afinal a um terreno onde havia feno com

certa abundância, igual ou um pouco inferior a dos campos

anteriormente atravessados.

Aí parou o camponês, e, a um sinal seu, o oficial fez parar o

regimento.

– Amigo – perguntou-lhe então o comandante –, qual foi o

motivo de nos terdes trazido até tão longe, se muito mais perto

tínhamos a forragem de que necessitávamos?

– Senhor –, os campos por onde acabamos de passar não me

pertencem, e por isso eu não tenho direito algum para vo-los

oferecer. Deste campo, que é meu, podeis tomar quanto vos for

necessário.

***

Aí fica narrado um dos mais belos exemplos de probidade de

que tenho conhecimento.

Na sua emocionante simplicidade, vejo extraordinária beleza

na resposta do honrado camponês.

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V

Terra do Brasil

Entre os numerosos pedaços de jornais e de revistas que

conservo entre os meus papéis velhos, arquivo começado há já

algumas dezenas de anos, deve figurar um soneto de D. Pedro

de Alcântara, o falecido ex-imperador do Brasil. Certo de o

encontrar entre esses papéis, não o procuro, entretanto, pois

tenho-o também no pensamento.

É uma composição singular. É um dos escritos mais

comoventes de nossa literatura.

Nesses quatorze decassílabos há mais do que exigia Horácio

em sua Arte Poética, isto é, mais do que talento propriamente

dito: há toda a alma do autor.

Vê-se nesse soneto o verdadeiro amor à pátria, perdida para

o venerando poeta, e admiro quanta tristeza e saudade, mas ao

mesmo tempo quanta resignação evangélica demonstrou,

escrevendo-o, o vulto mais respeitável de nossa História.

Uma revolução militar, animada por alguns civis ilustres,

tinha proclamado a República nesta terra, e o venerando

monarca, infundadamente temido pelos chefes dessa revolução

triunfante, tinha sido expulso para sempre do país por ele tão

ternamente amado, e coagido a deixar para sempre, e às

pressas, a cidade onde tivera o seu berço.

Notificaram-lhe a sentença cruel na tarde do dia 15, e onze

horas depois, em uma triste madrugada de novembro, partia

para o Velho Mundo o bondoso ancião.

De nada lhe valeu a lembrança dos seus quarenta e nove

anos de governo, durante os quais, se alguns erros e injustiças

houve, como os vemos em todos os governos, originaram-se os

erros da fragilidade dos conhecimentos humanos, aos quais a

perfeição é vedada, e nasceram as injustiças das paixões políticas

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de alguns dirigentes, ou da incapacidade intelectual e moral de

alguns administradores, tendo esses, nos três ramos do poder,

sabido ilaquear, durante algum tempo, a confiança do monarca e

o julgamento da opinião pública.

Há pessoas assim. Ascendem a elevadas posições iludindo

seus superiores e fazendo alarde de qualidades que lhes são

estranhas.

De outros podem-se nomear erros e deplorar injustiças; de

D. Pedro II, individualmente, não há erros nem injustiças

censurados pela imparcialidade da História.

Chegando à Europa, D, Pedro de Alcântara, velho, enfermo,

acabrunhado pelos desgostos, desiludido quanto à gratidão dos

homens, curvado ao peso da injustiça, e sentindo-se arrebatado

para sempre da pátria querida, viu-se presa de uma dessas

tristezas que soem às vezes estiolar, aniquilar, matar.

Ele, o chefe supremo de um dos maiores impérios do mundo,

tornara-se menos do que o mais pobre e humilde dos filhos do

velho reino; porque cada um desses tinha uma pátria em cujo

serviço encontrava esperanças, e tinha uma bandeira a cuja

sombra se abrigava, enquanto ele, o monarca expatriado, era um

estrangeiro em todas as terras, era forasteiro entre todas as

nações.

Filho do fundador de nossa nacionalidade, e tendo dedicado

quarenta e nove anos e quatro meses ao governo honrado do

vasto império, fora transformado num proscrito, e era pai e avô

de brasileiros proscritos!

Poderia ter resistido, talvez com eficácia, à onda

revolucionária. Uma parte das classes armadas era-lhe fiel, e a

seu brado de socorro acorreria a maioria da população

agradecida e respeitosa. Não o quis fazer: a República era mais

uma conquista da liberdade, e contra esta seria a resistência um

crime. Ao seu coração magnânimo repugnava a ideia de se

derramar sangue pela conservação de um trono.

Pobre, recusou a pensão oferecida pelo governo provisório;

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sem fundos disponíveis na ocasião, para ocorrer às despesas da

viagem preferiu recorrer a um empréstimo, relativamente

pequeno, contraído para com um amigo, a aceitar a grande

indenização oferecida à custa do tesouro público.

E assim saiu desta terra, naquela triste madrugada de

novembro, acompanhado pela família inconsolável. Partiu pobre,

humilde e cheio de desgostos, mas grande em sua pobreza,

sublime em sua humildade, e tão digno de respeito e de

veneração em sua dor, que ainda na Bahia, quando avistava o

último porto brasileiro, era saudado com os vinte e um tiros de

homenagem aos chefes de Estado.

Assim partiu para o exílio o venerando brasileiro, cujo único

crime tinha sido ter tido o berço junto aos degraus de um trono,

deixando para sempre o Brasil, naquela triste madrugada de

novembro, enquanto novos astros se preparavam para iluminar o

cenário político da república recém-criada, alguns dos quais tão

desastradamente iam agir no governo da jovem democracia.

Deve ser dolorosa e lúgubre a vida do proscrito.

Tem origem nessa tristeza profunda, nessa desconsoladora

nostalgia, o soneto em que D. Pedro de Alcântara se refere a um

pouco de terra brasileira, sobre a qual deveria repousar seu

corpo alquebrado pelo sofrimento, pelos desgostos, pela idade e

pelos labores, logo que sua grande alma o abandonasse, saindo

a receber o prêmio dos justos e dos bons.

É mais triste e comovente o soneto do ex-imperador em sua

encantadora simplicidade, do que quantas produções tenho visto,

em nossa língua, obedientes às exigências da forma, da métrica

e da rima.

Impressiona mais pela serenidade da esperança de um

julgamento póstumo, do que Castro Alves cantando as desditas

dos míseros escravos, ou Laurindo Rabelo no seu Adeus ao

mundo, ou Gonçalves Dias em seu Adeus aos meus amigos do

Maranhão.

Parece haver aí um pedaço da alma do poeta, vibrando de

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amor pela terra querida onde ele nasceu, e de onde a ambição e

o medo fizeram-no arredar-se para sempre, até que, muitos anos

depois, vieram os corpos dos dois amados imperadores repousar

no Brasil. Transcrevo o interessante soneto:

Espavorida agita-se a criança,

De noturnos fantasmas com receio,

Mas se abrigo lhe dá materno seio,

Fecha os doridos olhos e descansa.

Perdida é para mim toda a esperança

De volver ao Brasil. De lá me veio

Um pugilo de terra, e nesta, creio,

Brando será meu sono, e sem tardança.

Qual o infante dormindo em peito amigo,

Tristes sombras varrendo da memória,

Ó doce pátria, sonharei contigo!

E entre visões de paz, de luz, de glória,

Sereno aguardarei, no meu jazigo,

A justiça de Deus na voz da História.

***

Sim, bondoso e nobre ancião; sobre esse pugilo de terra

brasileira, atraída pelo teu amor à pátria para as terras

longínquas da Europa, deve ter sido sereno o teu sono.

Assim dormem os justos. Assim descansam os bons.

E não esperaste longo tempo o pronunciamento da História

imparcial. Seja a tua memória um incentivo para a felicidade de

teus conterrâneos, e a tua grandeza, no poder ou no exílio, seja

continuamente um exemplo para a atualidade e para os pósteros.

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VI

A caridade

Um hospital é lugar onde mais facilmente pode ser exercida a

caridade: basta dirigirem-no pessoas para as quais cada indivíduo

seja um irmão, sejam quais forem, neste, a crença religiosa e

política, a nacionalidade, a cor, a posição pecuniária ou social.

Nesses prédios, não raro vastos, denominados hospitais,

numerosos pobres encontram abrigo, têm alimentos, são

medicados.

Nesta cidade(1) foi construído um desses prédios – vasto,

cômodo, firme, de acordo com a estética, e para a manutenção

do hospital há a renda de um fundo de reserva. Era o mais difícil

de se conseguir, e isso está feito.

Agora é necessário, complementando-se a obra, encontrarem

aí os pobres, além do conforto físico, também o conforto moral.

Que sob esse teto encontrem os enfermos a dedicação de um

médico, a consciência de um farmacêutico e os cuidados

pacientes de um enfermeiro. Quanto ao enfermeiro,

principalmente, muito há a esperar, pois muito podem conseguir

a sua palavra animadora, a sua prática profissional, a sua

dedicação de todas as horas.

É preciso colocarem-se como enfermeiros, nessa casa de

caridade, indivíduos a quem o cargo não seja somente um meio

de ganhar o pão, mas também uma espécie de sacerdócio.

Devem ter caráter acima da mediocridade, e ser caridosos como

o devem ser os cristãos.

O enfermo pobre deve encontrar no hospital, além da

assistência necessária aos sofrimentos físicos, também o conforto

(1) Cataguases. Artigo publicado n’O Município.

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moral, os cuidados necessários à alma, onde bastas vezes reside

a origem das moléstias do corpo.

Esses cuidados para com o espírito, porém, devem ser

prestados a cada enfermo de acordo com a sua crença, e não

impondo-se-lhe essa ou aquela religião, por mais digna de

respeito que ela seja – como em geral o são todas as crenças

sinceras –, pois liberdade alguma é tão merecedora de amparo

como a liberdade religiosa, e é uma vilania, das mais torpes,

martirizarem os diretores de hospitais o mísero inválido,

mormente quando a este já vão faltando a faculdade de discernir

com precisão e a energia para a defesa do próprio credo.,

impondo-se-lhe as cerimônias de uma religião tardia, que o

paciente aceita, coagido pela necessidade, sem sua alma tomar

parte enquanto o rodeia. Esquecem-se os corifeus do

dogmatismo de que o Divino Mestre recomendou, como seguro

meio de nos aproximarmos de Deus, a prática da caridade...

O benefício em troca da liberdade religiosa não é caridade, e

não honra jamais a quem o pratica, como a bênção de Isaac,

permutada em um dia de fome por um prato de lentilhas, não

atraiu felicidade ao adquirente.

A verdadeira caridade deve ser humilde e secreta. Usando-se

as palavras expressivas dos livros inspirados, pode-se declarar

que a mão esquerda não deve perceber o que a direita oferece.

Talvez seja demasiado hiperbólica a linguagem de Paulo de

Tarso: “Se eu dispuser de todos os meus bens, e der o produto

aos pobres, e der o meu próprio corpo a ser queimado em

benefício dos pobres, nada valerei e nada serei se não tiver

caridade”.

Hiperbólicas ou não, as palavras do grande apóstolo contêm

ensinamentos merecedores do mais profundo respeito.

A verdadeira caridade é simples e humilde. Não tem

grandezas; não tem ostentação.

Conheci, há já muitos anos, uma pessoa que sabia exercer a

caridade cristã como fala dessa virtude Paulo de Tarso. Fazia-o

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na persuasão de apenas cumprir um dever – simplesmente,

humildemente, cristãmente.

Era uma pobre mulher de cor, cuja única propriedade era

uma casinha térrea, onde residia com seu marido e seu único

filho, em um dos bairros mais pobres de uma pequena cidade do

interior.

Laboriosa e ágil, pequena de corpo e grande de alma, e de

uma alegria sincera e comunicativa, e atividade surpreendente,

minorava muitas dores, amenizava muito sofrimento alheio, e

tudo fazia sem ostentação, mas alegremente, naturalmente, e

algumas vezes com a humildade de quem pede.

Onde houvesse um enfermo desprotegido, ali estava essa

mulher. Ouvia as observações do facultativo – que não raro

chamado por ela com o pedido de se apresentar como se o

fizesse espontaneamente –, e ministrava os medicamentos, cozia

e apresentava alimentos etc.

Muitíssimas vezes eu a vi, ora levando um caldo à cama de

um enfermo vizinho, ora fazendo-lhe um chá, ora compondo-lhe

o leito, ora fazendo, enfim, tudo quanto sói uma alma caridosa

fazer. Inclusive angariar-lhe auxílios como se os pedisse para si

própria.

Se o enfermo era pessoa do seu sexo, e mormente sem

parentes próximos no lugar, ia essa mulher fazer-lhe companhia,

durante dias e noites, quase sempre conduzindo entre as mãos

um trabalho começado, que continuava nas horas desimpedidas,

e quase sempre dizendo que sentira-se isolada, por estarem

ausentes o marido e o filho, operários que eram, e que por isso

tinha resolvido continuar o seu trabalho junto ao leito da sua

vizinha ou sua amiga enferma, assim fazendo-se companhia

mutuamente. E dizia-o com a maior naturalidade, sentindo

talvez, em sua alma boa, que de tanto amparo necessitava ela

como a pessoa a quem tão abnegadamente servia na moléstia.

Pobre entre as mais pobres, ninguém naquela pequena

cidade espalhou tanto benefício como a senhora a quem eu me

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refiro.

Um vestido longo e escuro, calçando sapatos leves e sem

saltos, os longos cabelos suspensos, em tranças, à parte

posterior da cabeça, ela percorria todos os bairros da pequena

cidade, ligeiramente, às pressas, como se o fizesse a negócios,

mas realmente à procura de um benefício a fazer, de um ato de

caridade a praticar, o que ela fazia sem compreender estar

exercendo a caridade como Paulo de Tarso a descreveu, mas

apenas agindo com o intuito único de minorar, de combater o

sofrimento alheio.

É provável não pertencer mais ao número dos vivos, tendo

ido certamente, se deixou de existir, colher o fruto da sua

bondade, da dedicação com que compreendeu a mais sublime

das virtudes.

Deixo de citar-lhe o nome – e que vale um nome? – para

que, caindo estas linhas sob as vistas de algumas pessoas de sua

família, ou de sua vizinhança ou suas antigas relações, pessoas

que não a compreenderam devidamente, não lhes arranque o

meu pobre escrito algumas palavras de protesto.

Há criaturas assim. Passam pela vida sem ser compreendidas

pela grande massa popular, sem ser sequer notadas por

muitíssimos, e entretanto deixam após si, na roda dos seus

íntimos, ou entre os raros observadores atentos e imparciais dos

homens e das coisas, um rastro luminoso que Deus certamente

transforma, após a passagem desta à outra vida, num halo de

bênçãos pelas regiões siderais.

A pessoa de quem falo é um desses casos, uma das Pérolas

Ocultas disseminadas pelo mundo.

É de criaturas semelhantes que os hospitais necessitam, para

que possam eles ser chamados, sem ironia, casas de caridade.

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VII

Energia de um acusado

Moço ainda, ao sorrir esperançoso de vinte e duas

primaveras, era eu lente em um colégio de uma cidade do

interior.

Certa tarde, terminadas as aulas, dirigi-me a uma casa de

negócios a varejo, à esquina da rua onde ficava o colégio, a fim

de fazer umas compras.

Eram meus conhecidos o gerente e o caixeiro. Grande

sortimento, com especialidade em armarinhos, em um aposento

espaçoso, com três portas para uma rua e duas para a outra, e

balcão largo, envernizado, na forma de um grande esquadro,

cujos lados eram paralelos às paredes das duas frentes.

Entrando pela primeira porta, à direita do prédio, deparou-se-

me, no lado oposto, uma cena estranha. Um rapazito de treze a

quatorze anos, moreno, forte, braços grossos e nervosos, olhos

grandes e negros, estava encostado à parede do fundo daquela

espécie de corredor, isto é, tendo o balcão à direita e à esquerda

o trecho da parede que ficava além da última porta, na atitude a

mais ameaçadora. Estava de pé, olhos em chamas, com os dois

braços erguidos de encontro à parede, e apertando

nervosamente em cada mão um peso metálico, de um e dois

quilogramas, respectivamente, que tinha retirado do suporte

pousado sobre o balcão, junto à balança.

Em frente ao rapazito estavam o gerente do estabelecimento,

moço de cerca de vinte e seis anos, e o ajudante deste, um

adolescente robusto, e pouco atrás desses um homem

desconhecido para mim, e mais um mocinho da vizinhança, todos

mais velhos do que o adolescente que segurava os pesos, e

todos ameaçando-lhe um ataque à viva força.

Naquela época do ano, e principalmente àquela hora, o

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movimento da cidade era pequeno. A polícia, naquele tempo

composta apenas de quatro a seis soldados e um cabo, dividia

naquela hora os seus cuidados entre a cadeia e a estação. O

movimento das imediações era, pois, insignificante, e a cena

poderia prolongar-se ainda por algum tempo, ou terminar

sangrenta, se eu não interviesse, pois durante mais de trinta

minutos ninguém chegou ao local nem passou em frente.

Ao entrar, todos os olhares se dirigiram para mim. Aproximei-

me vivamente, e pedi explicações, sem deixar de estranhar,

delicadamente, estarem quatro homens ameaçando agredir um

menino.

Os dois caixeiros voltaram-se ao meu encontro, explicando o

caso, e o cerco diminuiu, e o rapazito desceu um pouco as mãos

com os pesos ameaçadores.

– Era um ladrão – diziam. – Roubara, minutos antes, uma

cédula de 2$000 (dois mil réis) de uma criança, e esta, já não

podendo fazer a compra de que fora encarregada, temia o

castigo materno, considerado certo e severo, e por isso ali estava

a chorar.

Somente então observei uma criança, de cerca de cinco anos,

apoiando a cabeça aos braços, de encontro às tábuas do balcão,

e chorando a causar pena.

Era um pequeno claro, rosado, louro. Entregara-lhe a mãe os

2$000 (2.000 réis) – uma cédula nova, dobrada em três partes –,

para a compra de alguns objetos, e, como o caixeiro estivesse

escrevendo, o pequeno tinha ficado a brincar pelo negócio, e a

nota desaparecera.

– A cédula fora roubada – diziam claramente –, e eles a

queriam arrebatar, dando ainda uma lição ao gatuno.

Fiz-lhes ver então que aquilo poderia produzir consequências

funestas, e que a quantia era insignificante, sendo uma covardia

tal violência.

– Pelo menos a busca nós havemos de dar – respondeu-me o

gerente, voltando-se para o canto onde se achava o rapazinho. –

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Havemos de encontrar o dinheiro e o restituir ao dono e o rapaz

pode ir em paz.

O menor levantou novamente os pesos, tremendo de

indignação e de medo, e declarou com energia:

– Podem fazer de mim o que quiserem, pois são quatro

contra mim, mas aos dois primeiros que chegarem hei de partir a

cabeça.

Chamei novamente os atacantes à razão, convidando-os a

fazermos nós a indenização. O rapazinho, conforme diziam os

dois empregados, não tinha precedentes que o desabonassem, e

por isso, resistindo àquela busca, obedecia a um justo impulso de

indignação por aquela suspeita, que eu considerava infundada.

Observei-lhes que uma busca semelhante, positiva,

desabona, vexa, desonra o indivíduo suspeito, e cobre de

arrependimento e de vergonha a quem a executa no caso de ser

infrutífera, como eu supunha suceder naquele caso, podendo

ainda acontecer não encontrarem o dinheiro e perdurar a

suspeita, pois certamente não iriam despir o acusado ali, em

público... E em qualquer caso correria sangue, e poderiam surgir

consequências mais desagradáveis no futuro.

Minhas ponderações produziram, felizmente, o resultado

desejado, pois a criança deixou de chorar, e o gerente da casa

entregou-lhe os objetos desejados como se houvesse recebido o

dinheiro, e os outros moços arredaram-se alguns passos do

acusado, em cujas faces corriam lágrimas. Aproximei-me dele, e

convidei-o a retirar-se, o que fez imediatamente, entregando-me

os pesos depois de ter pisado a rua.

Depositei os pesos nos seus respectivos orifícios, no suporte

de madeira, e dirigi-me ao gerente, a fim de pagar os 2$000,

importância exata dos objetos fornecidos ao pequenino freguês,

negando-se ele a aceitar o pagamento, malgrado minha

insistência, e agradecendo-me ainda a intervenção. Agradeci por

minha vez essa prova de cavalheirismo, fiz as compras de que

necessitava, e passamos a fazer alguns comentários, já

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serenados os ânimos.

Alguns minutos depois, eu e os dois outros fregueses

estávamos saindo do negócio, quando a criança, moradora na

casa próxima, voltou a efetuar outra compra. Detivemo-nos

curiosamente, a ouvir o jovem caixeiro interrogar o pequeno, que

entretanto nada sabia explicar de preciso.

Nessa ocasião, porém, entrava na loja um menor, de cerca

de 11 anos, que declarou:

– Eu estava aqui quando este menino chegou, e vi com ele a

nota de 2$000, nova, dobrada em três, e vi que ele esteve

brincando naquele canto, entre aqueles quintos, mas eu não

sabia que a nota tinha sido perdida ou roubada. Contudo é bom

procurarem por ali.

Os dois empregados passaram imediatamente para o lado de

fora, dirigindo-se para o lado oposto ao canto onde se tinha

desenrolado a cena descrita acima.

Ali estavam cinco quintos(1) vazios, que os moços removeram

com facilidade, deixando cada um marcado no soalho, círculo

correspondente ao seu último arco de ferro.

Retirados os quintos, avistei, de longe, uma cédula dobrada,

que um dos moços apanhou rapidamente. Era uma nota de

2$000, nova, dobrada em três partes...

Um murmúrio de desapontamento perpassou pelos

acusadores, arrependidos da suspeita.

***

No dia seguinte – era um domingo –, alguém bateu à porta

do colégio, e perguntou por mim, vindo-me avisar o servente de

que um mocinho desejava falar-me.

(1) Quinto – vasilha de madeira equivalente a quase 100 litros de líquido.

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Determinei ser o visitante conduzido à saleta onde eu

escrevia, supondo ser ele alguns dos meus amiguinhos,

discípulos ou parentes, que houvesse chegado pelo expresso da

manhã.

Era o rapazinho do caso da cédula de 2$000, o menor que

tão obstinada resistência tinha oposto às ameaças de quatro

pessoas na casa de negócio da esquina.

Surpreendeu-me aquela visita, e deu-me também prazer,

pois sempre tive em grande estima as pessoas que demonstram

energia e força de vontade na defesa dos seus direitos ou dos

seus ideais.

Vinha falar-me sobre o desagradável incidente da véspera.

Soubera ter aparecido o dinheiro, e soubera também ter-se o

gerente recusado a receber, anteriormente, a mesma quantia,

que eu desejava e quisera pagar pelas compras feitas pela

criança.

Inteligente, palavra fácil, simpático e delicado, sustentou

comigo uma longa palestra. Chamava-se Valdemar, tinha treze a

quatorze anos, e era órfão de pai. Sua mãe residia com os dois

filhos em uma casinha pobre, fora do perímetro urbano, e

mantinha-se, com os filhos, com os serviços de lavadeira de

roupa. Ele, feito já o curso primário, era aprendiz de tipografia,

tendo um pequeno ordenado, e o irmão, de dez anos, estudava

ainda em uma escola pública, e era auxiliar da mãe na procura e

entrega de roupas.

Quanto ao incidente, e à suspeita propriamente dita,

declarou-me que estivera perto da criança, sem entretanto ter

visto o dinheiro, e não sabe como pudera este ter sido perdido.

– A busca era uma afronta – dizia ele –, mas eu me sujeitaria

a ela se no meu bolso não houvesse uma nota igual. Por uma

desagradável coincidência, eu tinha no bolso uma nota de 2$000,

nova, dobrada em três partes, exatamente de acordo com as

informações. Se me dessem a busca, encontrariam a nota, único

dinheiro que na ocasião eu tinha e ainda tenho, pertencente a

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minha mãe, e a outra não seria então encontrada, sendo talvez

achada mais tarde, e por outra pessoa, e de qualquer forma eu

seria o ladrão. Por isso resisti, e, se eles me atacassem, eu

procuraria defender-me com todas as forças, a fim de impedir a

busca, e fugiria, de um salto, na primeira oportunidade, evitando

de qualquer forma a busca.

– Mas assim deixaria a suspeita...

– Sim – concluiu ele, – mas a suspeita somente, e não a

certeza. Se achassem comigo a nota de 2$000, nova, dobrada

em três partes, não haveria somente a desconfiança de roubo,

mas a certeza entre todos eles. Por isso resisti. Encontrada por

eles a nota, eu passaria por ladrão, ficaria malvisto, e seria talvez

despedido das oficinas onde trabalho, sendo afinal o único

prejudicado. Ninguém acreditaria na minha inocência senão

minha mãe e meu irmão.

– E eu – asseverei –, pois somente a inocência, injustamente

acusada, sabe defender-se com aquela coragem.

Por alguns momentos Valdemar não pôde falar. Com os olhos

úmidos de comoção, ouvindo-me as palavras acima, apenas

apertou-me efusivamente as mãos.

Tinha, precocemente, notável intuição sobre a dignidade e a

honra.

Relatou-me afinal ter narrado o fato à sua mãe, que aprovara

o seu procedimento com estas simples palavras: “Teu pai, em

semelhantes circunstâncias não teria procedido de outro modo”.

***

Na tarde desse mesmo dia encontrei Valdemar no jardim

público. Saudou-me com certa cordialidade, falamos durante

alguns minutos, e eu o convidei a visitar-me na noite seguinte.

O nosso colégio mantinha um curso noturno, no qual cabia-

me uma cadeira, e frequentavam esse curso alguns alunos cujas

mensalidades eram pagas pela Câmara, e alguns outros,

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reconhecidamente pobres, sem remuneração alguma, e entre

estes últimos surgira-me a ideia de incluir Valdemar.

Feita por mim a proposta ao diretor e, à noite, transmitida a

resposta afirmativa a Valdemar, encetou este imediatamente os

seus estudos de preparatórios, mediante os quais devia ter no

futuro, como teve realmente, a honrosa posição a que a sua

dignidade e a sua energia faziam jus.

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VIII

O inimigo

Durante numerosos anos estivera Alcides ausente de sua

terra natal, tendo residido em outro município mineiro, e passado

algum tempo em viagens e na capital da República. Tinha se

retirado aos nove anos de idade, para os seus primeiros estudos,

e voltava, aos vinte e um anos, a rever Serra Alta, lugar que

tinha visitado algumas vezes no decorrer desses doze anos, mas

ali permanecendo alguns dias.

Ultimamente viera para uma longa permanência, ou, se

possível, para ali firmar residência.

Tinha deixado naquele velho povoado, uma dúzia de anos

antes, seus pais, seus irmãos, e tios, primos, amigos, e voltava a

encontrar apenas alguns daqueles entes queridos. Seu pai já

havia desaparecido de entre os vivos, e outros parentes e amigos

tinham também falecido, tendo outros abandonado o lugar, na

luta pela vida, residindo talvez em terras de onde não voltariam

jamais àquele belo recanto onde deram os seus primeiros passos.

Chegando a Serra Alta, Alcides encontrava ainda sua velha

mãe e alguns outros parentes, mas a maior parte das pessoas

com quem mais se relacionara em pequeno e diversos de seus

amiguinhos e companheiros de infância tinham desaparecido de

Serra Alta. Nas casas onde outrora ia buscar seus companheiros

de folguedos, via ultimamente caras desconhecidas, às vezes

estrangeiros que para ali tinham vindo a fim de explorar o

comércio ou exercer outras indústrias.

O tempo tudo transforma. O decurso daquela dúzia de anos

tinha feito do povoado, para Alcides, um local de cuja população

conhecia apenas uma pequena parte, e onde era também pouco

conhecido.

Uma tarde passeava o moço, a sós por aquelas ruas que

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tantas recordações lhe suscitavam. Tinha dentro d’alma uma leve

tristeza, uma espécie de pungir de uma saudade mal definida,

lembrança dolorosa e vaga de uns dias longínquos, quando tudo

em torno de si era alegria e confiança.

Passando em frente de uma casa modesta, ali abriu-se

inesperadamente uma porta, nela assomando um vulto de

mulher. Moça ainda, morena, pobremente vestida, trazia pela

mão uma criança de cerca de três anos. Ao ver o rapaz, soltou

uma exclamação de surpresa e contentamento, e imediatamente,

deixando a criança, e pousando-lhe nas mãozinhas um

pequenino embrulho que trazia, dirigiu-se com rapidez a Alcides,

abraçando-o fraternamente.

Eram conhecidos desde os seus primeiros tempos de vida.

Eram da mesma idade, tinham nascido em duas casas contíguas,

tinham sido criados quase juntos, e queriam-se muito. Tinha-os o

destino separado, mas a separação não lhes arrefecera o afeto.

Aproximaram-se da porta, mas Alcides recusou-se a entrar,

porque naquele momento entregavam-lhe as rédeas de uma

alimária, que ele devia cavalgar sem demora, pois alguns amigos

esperavam-no para uma viagem à fazenda de um parente seu.

Desculpou-se por isso de não poder aceitar o convite da

jovem senhora, de visitar aquela casa, e estendeu a mão a um

homem que então assomava à porta, apresentado nestes termos

pela jovem senhora:

– Meu marido. Chama-se Celestino, e é pedreiro.

Era um homem de uns trinta e cinco anos, bigodes pretos,

petulantemente retorcidos, olhar falso, cara de poucos amigos.

***

Passaram-se alguns dias.

À tardinha, quase ao crepúsculo, Alcides chegando de uma

viagem, esperava, à porta de sua vivenda, que um menor viesse

receber o animal, quando um homem surgiu na esquina da rua

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próxima. Tinha de passar junto de Alcides, seguindo pelo passeio

de pedras, a fim de não pisar a lama das ruas, amolecida pelas

chuvas e pelo trânsito de animais e veículos. Era Celestino, o

marido de Rosalina, com os bigodes petulantemente retorcidos, e

passou sem olhar sequer, sobraçando uma escada.

Não era a primeira vez que Alcides notava ter em Celestino

um inimigo. Nos pequenos povoados do interior a saudação é um

dever, uma prova de boa educação e de boa vontade para com

quantos se aproximam uns dos outros, eventualmente ou por

tempo indeterminado, uma prova de sociabilidade enfim, e

entretanto o moço tinha observado que Celestino não o saudava

nunca, quando passava junto dele, e respondia entre dentes, e

mal-humorado, quando ele o saudava, e não lhe dirigia jamais a

palavra, embora por duas vezes se tivessem sido mutualmente

apresentados.

O lugar era iluminado a querosene, com algumas dezenas de

lampiões públicos. O bairro da residência de Alcides, porém,

quando este estava no povoado, era onde mais tarde se fazia luz,

e onde mais cedo se apagavam os lampiões, e não era raro, nas

noites de sábados e domingos, que o moço passava sempre em

sua residência, ficar apagado o lampião mais próximo, por

esquecimento talvez.

É que Celestino era o encarregado da luz, tendo o dever de

acender os lampiões ao anoitecer e apagar às 11 horas...

Por diversas vezes chegavam aos ouvidos do moço as más

referências a ele feitas por Celestino, e em diversas reuniões,

achando-se ambos, este procurava demonstrar, por atos ou

palavras, a aversão que lhe inspirava Alcides, o qual agravava

talvez a situação não falando nunca o nome do seu inimigo, e

não narrando o fato a pessoa alguma.

Alcides não retribuíra a visita de Rosalina, limitando as suas

relações com a sua amiguinha de infância às palestras em casas

amigas, onde os dois esposos com ele se encontravam, mas

sempre no mais absoluto silêncio por parte de Celestino.

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Alegava este que Alcides deveria tê-lo procurado logo ao

chegar a Serra Alta, visto ter sido vizinho e companheiro de

infância de sua mulher, e, não o tendo feito, tinha dado provas

de seu orgulho, e por isso ele, Celestino, não lhe aceitava a

amizade tardia, pois somente por acaso tinha Rosalina

encontrado o moço, quando a este competia o dever de procurá-

la, e ao marido.

Os dois esposos, levando os dois filhinhos, passeavam

algumas tardes pelo átrio da matriz, lugar favorito da povoação,

e nessas ocasiões Rosalina encontrava às vezes com Alcides, com

quem palestrava durante alguns minutos, em que o marido ficava

em absoluto silêncio, limitando-se a corresponder, de mau

humor, à saudação e às despedidas de Alcides.

Em particular, talvez dissesse à mulher o que dizia a diversas

pessoas: “que Alcides fora criado e vivera em cidades, e por isso

desprezava o povo do arraial; que era tolo, orgulhoso, vaidoso,

antipático, pedante; que carregava livros a fim de aparentar

inteligência e preparo ausentes, e ficava a sós, em lugares

afastados, sempre com um livro na mão, porque ouvira dizer ser

esse o costume dos filósofos e poetas...”

***

Quase um ano durava essa aversão de Celestino pelo jovem

Alcides.

Este, no exercício de sua profissão, achava-se residindo em

uma fazenda importante, de cujo proprietário era parente e

herdara a amizade paterna. Essa fazenda fica a oito quilômetros

de Serra Alta, para onde Alcides continuava a regressar todas as

tardes de sábados, a fim de passar com a família o dia dedicado

ao descanso.

A sede da fazenda é um enorme prédio que apresenta à

estrada uma frente com dezesseis janelas envidraçadas no

pavimento superior, com doze portas no pavimento térreo,

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ficando aberta a parte central, equivalente a cerca de oito metros

de frente e outros oito de fundo, onde cavalgavam ou apeavam

cavaleiros. À esquerda dessa espécie de salão térreo apoia-se,

em um quadrado de pedra, a longa escada de madeira que

conduz ao pavimento superior.

À esquerda do prédio desliza o rio, sobre o qual, não distante

do mesmo prédio, estende-se uma sólida ponte de madeira, que

liga os dois distritos limítrofes, à direita do rio seguindo a estrada

para a sede da comarca, a mais de trinta quilômetros, e à

esquerda seguindo para Serra Alta, acerca de oito quilômetros,

ficando, portanto, a fazenda, com suas vastas dependências, à

beira da estrada que ainda hoje liga a povoação e importante

distrito de Serra Alta à velha cidade central.

O terreiro da fazenda, em forma de praça quadrada, cujo

fundo é o prédio principal, tem aos lados duas alas de casas

térreas, para aposentos de empregados solteiros, e é fechado, na

frente, por um paredão de cimento com largo portão no centro.

Dominava um frio intenso, e uma neblina finíssima, irritante,

caía sem cessar, obliquamente, friíssima, de um céu de nuvens

pardacentas, aumentando a umidade daquela temperatura

desagradável e doentia.

Todos tiritavam, e era impossível o trabalho nas roças.

Declinava a tarde, e as trevas ameaçavam estender-se antes

da hora própria, devido à densidade das nuvens.

Descidas as vidraças, através dos vidros Alcides contemplava

os campos molhados e desertos, uma tristeza indefinível pairando

sobre quanto era visível, e conversava com um homem de cerca

de quarenta e cinco anos, de aspecto distinto.

De repente o moço exclamou: “Dois presos! Descem do

morro da ponte, caminho de Serra Alta, algemados, escoltados

por oito soldados a pé e um oficial a cavalo. Dirigem-se para

aqui”.

Deixando a janela, Alcides e o Sr. Mendes – o proprietário da

fazenda – dirigiram-se para o alpendre e desceram a escada ao

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encontro dos itinerantes, que pouco depois chegavam, alojando-

se os soldados e presos em compartimentos térreos do prédio, e

subindo o oficial e o fazendeiro para o salão.

O fazendeiro era um homem de inteligência não comum e de

bastante cultivo. Terminava o curso em um ginásio, quando, com

o falecimento do pai, foi chamado a dirigir os negócios da família,

e fez na lavoura uma grande fortuna, para si e para os seus,

tendo mais tarde, isto é, quinze anos antes da época desta

narrativa, adquirido essa fazenda, onde passou a residir ao

constituir a sua nova família. Aos quarenta e cinco anos possuía

uma grande fortuna pessoal, dispunha de grande prestígio no

município, de cuja Comarca era vice-presidente, e tinha já

adquirido inúmeras amizades, quer pelo seu caráter, quer pela

sua educação, quer pela caridade com que tratava os

necessitados, ou pelo cavalheirismo com que recebia os

numerosos viajantes que por aquela via pública transitavam.

Mas voltemos à parte inferior do prédio, onde tinham ficado

sete soldados, um inferior e os dois presos. Cada um destes tinha

fechado o guarda-chuva de que vinha munido, e os militares

tinham tirado os respectivos capotes úmidos. Anoitecia. O frio

tornava-se mais cortante, e a noite prometia ser triste. Um

soldado, devidamente autorizado, fizera fogo em um dos quartos

térreos, onde havia uma forja de ferreiro, e para lá foram

conduzidos os presos, de par, algemados, um de cabeça erguida,

mas o outro acabrunhado, com a cabeça envolvida em um longo

cache-nez, passo tardio, olhos baixos, chapéu desabado.

Assentaram-se os presos no solo, no fundo do

compartimento, algemado o pulso direito de um ao esquerdo de

outro, com cadeias de ferro.

Um era de cor preta, e era alto, forte, olhar atrevido; o outro

era branco, pequeno, magro, tossindo às vezes, com a cabeça

pendida sobre o peito, o olhar mergulhado na escuridão do solo.

O aposento era iluminado fracamente pelo fogo e por uma

lamparina de querosene.

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Um dos soldados, notando em Alcides certa curiosidade e

comiseração, passou a dar-lhe informações. O prisioneiro era um

criminoso de assassínio e roubos, procurado, havia muito, pela

polícia daquela comarca e da comarca vizinha, e o outro

prisioneiro era um pobre homem a quem na véspera, em Serra

Alta, sucedera a desdita de dar um sopapo em um indivíduo meio

alcoolizado que o insultara atrevidamente, tendo sido preso e

autuado em flagrante.

Ouvindo essa explicação, e sabendo ser de Serra Alta aquele

homem, a Alcides pareceu não lhe ser ele desconhecido.

Aproximou-se-lhe, e o prisioneiro levantou a cabeça e olhou o

moço tristemente.

– Celestino! – exclamou este sem se lembrar de que se

dirigia ao seu inimigo. – Lastimo vê-lo nesse estado. Sente-se

doente? Posso acaso servir-lhe para alguma coisa?

– Estou doente – respondeu o preso –, e a friagem fez-me

mal. Prenderam-me ontem à noite porque repeli uma afronta

grosseira, e fui preso em flagrante, mais por vingança. Passei a

noite em quarto frio, sem janela, guardado pela polícia, e hoje fui

forçado a andar esses oito quilômetros, exposto a essa neblina.

Eu já estava adoentado, e agora sinto-me bem pior.

E dizendo isso, o pobre homem tossia, gemendo.

Alcides não respondeu. Deixou-o, e subiu a falar com o

fazendeiro e o oficial comandante.

Depois de uma ligeira palestra, soube que o comandante, 2º.

tenente da força pública, era o delegado militar da comarca.

Residia naquela cidade desde a sua promoção, e era filho de um

distrito da zona do campo, de onde era oriunda a família de

Alcides. Essa explicação fez com que Alcides fizesse novas

perguntas, das quais deduziu ser seu primo aquele jovem oficial

da polícia mineira, que, consequentemente, era também parente

do proprietário da fazenda.

Os três homens apertaram-se novamente as mãos, e a mais

franca cordialidade entre eles se estabeleceu, da qual Alcides

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procurou sem demora aproveitar-se em benefício do infeliz

prisioneiro.

Pouco depois era Celestino separado do seu companheiro de

infortúnio, e conduzido, sem algemas, para o andar superior,

sendo agasalhado em um quarto confortável e quente, onde o

Sr. Mendes iniciava uma medicação enérgica, pois era um

ameaço de pneumonia, combatido felizmente a tempo.

No dia seguinte, após um ligeiro repasto, quatro praças e o

cabo seguiram para a sede da comarca, levando consigo o outro

prisioneiro, e ficando o comandante com três soldados, a fim de

partirem ao meio-dia para algumas diligências, deixando o preso

enfermo aos cuidados do Sr. Mendes e de Alcides, que pela

permanência do mesmo preso assumiram compromisso verbal,

com a promessa de se guardar sobre o caso rigoroso sigilo.

Também na noite seguinte Alcides não abandonou o

enfermo.

A febre desapareceu no terceiro dia, e no fim de mais três

dias, sentindo-se quase inteiramente restabelecido, pôde

Celestino acompanhar o tenente para a sede da comarca, a fim

de esperar na cadeia o próximo julgamento. Mas o prisioneiro

concluiu essa viagem a cavalo e sem escolta, apenas com o

delegado à paisana, em um dia fresco e de sol, tendo assim sido

combinado em cartas trocadas entre Alcides e o tenente, por ter

tido este necessidade de voltar a Serra Alta, e por isso dando

preferência ao dia em que Celestino pudesse viajar.

Minutos depois da partida do prisioneiro, seguia Alcides para

Serra Alta, onde devia efetuar certos pequenos negócios de seu

ex-inimigo, remetendo-lhe dinheiro e roupas, procurando receber

ordenados de Celestino, firmando-lhe contratos de trabalho etc.

Regularizados esses pequenos negócios do prisioneiro, e

firmado no comércio local o crédito para a manutenção da

família, regressou Alcides à fazenda, onde forneceu ao Sr.

Mendes as precisas informações que concorressem para, se

necessário, promover-se a defesa de Celestino contra qualquer

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prevenção injusta.

***

Dois meses depois regressou Celestino para Serra Alta. Fora

pequeno o crime, embora classificado como tentativa de

assassinato, e a defesa fora fácil e sem despesas.

A sua primeira visita em Serra Alta foi feita a Alcides, e a essa

seguiram-se muitas outras visitas, às vezes com a família, nas

tardes dos domingos, e às vezes a sós, à noite. Transformara-se

o inimigo em amigo dedicado e afetuoso. E era quase sempre o

companheiro que era visto com Alcides à noite, quando a este,

após quaisquer divertimentos ou reunião mais prolongada,

sucedia voltar à sua residência mais tarde, quando já estava

extinta a iluminação pública, e sucedia, não raro, encontrar

Alcides selada a sua alimária, quando tinha de regressar cedo à

fazenda onde trabalhava, sem se apresentar a pessoa que lhe

fazia tais obséquios.

As mesmas pessoas que anteriormente ouviam de Celestino

remoques contra o moço, ouviam-lhe mais tarde exagerados

encômios.

Alcides aceitava com agrado aquela afeição, retribuindo-a

com sinceridade. Chegou mesmo a aceitar o convite, que lhe foi

dirigido um dia pelo seu ex-inimigo, de irem ambos, certo

domingo, à fazenda do Sr. Mendes, onde fora o preso tão

caritativamente recebido, e ali Celestino entregou à esposa do

fazendeiro um delicado mimo que sua mulher lhe enviava, e

novamente agradeceu os favores a ele dispensados, firmando-se

entre todos os presentes uma amizade franca e duradoura.

Sob aquele teto hospitaleiro, onde, alguns meses antes, o Sr.

Mendes e Alcides tinham tido a oportunidade de prestar alguns

serviços ao ex-inimigo deste último, os agradecimentos e as

narrações de Celestino causaram uma impressão um tanto

dolorosa, mas ao mesmo tempo salutar e agradável.

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Durante todo o tempo em que residiam em Serra Alta, entre

Alcides e Celestino jamais foi, desde então, perturbada a

amizade, nem sofreu o menor abalo a confiança que entre eles

existia. Dois anos depois, ou pouco menos, o primeiro retirou-se

daquele lugar, e mais tarde também o último transferiu a sua

residência para um lugar longínquo, e nunca mais se

encontraram. Em notícias, porém, trocadas entre ambos, sabem

eles, ainda hoje, tantos anos depois dos acontecimentos aqui

narrados, e separados, Celestino e Alcides, por uma centena de

léguas, e ambos com a fronte coberta de cãs, que une-os a

mesma amizade sincera e firme, amizade que o primeiro deve à

gratidão, e que o segundo deve a ter tido a felicidade de ter

sabido cumprir o seu dever.

Há nesta narração, inteiramente verídica, mais uma prova da

belíssima verdade contida neste preceito: “Fazei o bem àqueles

que vos fazem mal”.

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IX

A arma do Jaó

Roceiro, solteirão, já próximo dos quarenta anos de idade,

passava frequentemente aquele homem pela rua onde resido, e

às vezes, raramente, parava por alguns minutos em minha sala

de trabalho para uma rápida palestra.

Era conhecido pela alcunha de Jaó, como também o tinham

sido seu pai e seu avô, que eu conheci em minha infância,

alcunha cuja razão ignoro e que ultimamente se tornara um

como nome de família.

Mas embora conhecesse aquele homem desde a sua infância,

e com ele houvesse falado muitíssimas vezes, não lhe conhecia

as opiniões sobre os principais problemas da vida.

Preso certa ocasião por suspeita de roubo, não quis o Jaó

denunciar o culpado, e conservou-se na cadeia durante dois dias,

apenas saindo quando pôde provar a própria inocência, por haver

o prejudicado acabado de descobrir o verdadeiro criminoso.

Sofreu prisão, afrontas, ameaças, mas tudo foi pouco para torná-

lo delator.

Pobre, bem pobre, parecia, entretanto, viver do seu trabalho

sem grandes necessidades e sem grandes compromissos.

Pequeno, magro, pálido, a barba rala e malcuidada, é rápido de

passo e anda sempre ou quase sempre a pé.

Durante algum tempo notei a sua ausência do povoado –

durante um ano talvez. Viagens? Trabalhos? Moléstias? Ignoro-o.

Mas afinal reapareceu, sempre no seu passo ligeiro e silencioso,

a pé, descalço, com a sua barba rala e malcuidada, e sempre

magro, pálido, aspecto doentio.

Passando uma tarde em frente à nossa tenda de trabalho,

ponto de palestra de numerosos amigos meus e de meus

associados, saudou-nos de longe, e ia seguir a sua marcha,

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quando foi detido e chamado à porta por um dos nossos amigos,

um negociante, especialista em armas, que, como era seu

costume de quase todas as tardes, estava assentado junto a uma

das portas.

– Quero vender-lhe uma arma – disse-lhe o comerciante –,

mas uma arma boa, “de fiança”, que recebi há poucos dias.

– Não, seu Nicolau, nós não fazemos negócio – respondeu o

Jaó –, pois eu tenho uma arma superior.

– Arma de fogo? – interrogou o negociante. – Se é arma de

fogo, e boa, podemos fazer uma troca por outra melhor, e nova,

moderna mesmo, e forte, com uma pequena “volta”.

– Não. – declarou o Jaó. – A minha arma não é de fogo, não,

mas é uma arma infalive, com ela eu não tenho medo de nada

deste mundo nem do outro, e tenho certeza de que nada de mal

não me pode acontecer. Por isso nós não fazemos negócio

nenhum de arma, pois eu não compro das suas e nem disponho

da minha.

– Mas eu tenho garruchas superiores, revólveres de luxo,

Mauser do último modelo, armas de carga dupla, garruchinhas de

bolso, revólveres de cavalaria, todos com as balas próprias, e

tenho também facas Morais, punhais Alves, e outras armas

brancas muito boas, de todos os tamanhos. Vamos lá...

– É inútil, seu Nicolau – asseverou o Jaó. – É inútil o Sr. me

mostrar as suas armas, porque eu não tenho precisão de

nenhuma, mesmo porque a minha, como eu já lhe disse, é

infalive de boa.

– E traz você a tal arma aí consigo?

– Trago sim, senhor. Eu carrego sempre a minha arma

comigo, e mais na certa quando saio para ficar fora de casa de

um dia para o outro, como aconteceu ontem.

E o Jaó, dizendo essas palavras, levou a mão ao bolso

interno do paletó, e daí retirou um pequeno livro, que apresentou

ao negociante.

Era um exemplar do “Novo Testamento de Nosso Senhor

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Jesus Cristo”, perfeitamente encadernado em marroquim,

tradução de Pereira, edição da Sociedade Bíblica Americana.

Tomando o livro, e abrindo-o curiosamente, o comerciante

exclamou:

– Isto?! É com isso que você se quer defender em qualquer

perigo?! Ah! Meu caro! Você, andando como anda, de dia e de

noite, por estas estradas e desvios, está muito sujeito a ser

agredido, espancado, roubado, e até assassinado, em qualquer

um desses rincões por onde viaja, sem ter um modo de se

defender.

– A minha defesa é esta – disse o Jaó, tomando e

mostrando-nos o livrinho – e nada de mal me há de suceder. Eu

confio em Deus e nestes Evangelhos. Além disso, eu sou muito

conhecido por aqui, e por isso ninguém me procura para roubar,

pois todos sabem que sou pobre – menos da graça de Deus –, e

vivo do meu pequeno salário. E nem há gatunos por aqui... Para

me bater ou me matar, ninguém me há de procurar também,

porque eu não tenho inimizade nenhuma, trato a todos com

respeito, e ninguém tem queixa de mim.

– Mas neste mundo há muita gente perversa – ponderou

Nicolau. – Embora você não tenha inimigos, pode ser agredido.

Você dirá que isso é pouco provável, o que admito, não podendo

dizer que é impossível. Suponhamos que você encontra um dia,

em um lugar ermo, um indivíduo que lhe queira roubar mesmo

esses poucos gêneros alimentícios que você aí leva, e um

pouquinho de dinheiro que de suas compras lhe sobrou no bolso,

como poderá se defender, inerme, e de compleição franzina

como é?

– Se isso acontecer, o que eu não creio, hei de convencer a

esse meu irmão infeliz de que ele está em erro, e está

cometendo um grande crime perante Deus e os homens. Se ele

não atender a esses conselhos, eu entrego a ele os poucos

gêneros e o pouco dinheiro que levo, e sigo a minha viagem,

certo de não passar necessidade, de não sofrer fome, pois hei de

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encontrar o socorro das pessoas boas, das pessoas caridosas.

– Mas se esse indivíduo, além de lhe roubar os objetos e o

dinheiro, entender que lhe deve dar uma sova, para lhe incutir

medo e assim você não o denunciar?

– Isso acontecendo – disse o Jaó –, hei de fazer esforços

para convencer a esse homem que ele não deve me bater. Dou

também o chapéu, entrego também o paletó, e peço com bons

modos que não me espanque. Faço ver a esse infeliz o mal que

esse crime pode lhe causar neste mundo e no outro...

– Mas apesar de tudo isso – retrucou o comerciante –, se ele

entender, por malvadez, que o deve mesmo espancar?

– Chegando as coisas a esse ponto – respondeu o homem do

livro –, eu dou um salto, e corro, e fujo, e entro no mato... O Sr.

sabe que eu tenho agilidade.

– E se o malvado não lhe der tempo para isso? E se o

agarrar, e não o deixar fugir? Que fará você, assim desarmado?

– Eu apanho, seu Nicolau.

E o Jaó, dada esta última resposta, tomou tranquilamente, de

sobre uma cadeira, o seu pequeno saco de provisões, que atirou

ao ombro, e disse-nos, despedindo-se:

– Até a volta, senhores!

E partiu o Jaó, ligeiramente, pequeno, magro, pálido, a barba

rala e malcuidada, em demanda da sua pobre morada, a mais de

uma légua, lá para os lados da serra da Pedra Escura, levando no

bolso interno do paletó a sua arma defensiva, a sua arma

infalive, que é um exemplar do “Novo Testamento de Nosso

Senhor Jesus Cristo”.

***

Deixando aqui registrado este conto verídico, não posso

deixar de consignar que compartilho da opinião do Jaó quanto ao

uso de armas.

Tenho visto homens desarmados, sistematicamente inimigos

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do uso de armas, atravessando a vida, ou pelo menos as quadras

mais agitadas da existência, sem sofrer uma agressão, sem se

envolver em nenhum conflito, sem correr o risco de cair

vitimados por um homicídio, como também conheço alguns

indivíduos aos quais o uso constante de armas não inibiu de

graves afrontas, e lembro-me de outros indivíduos que traziam

constantemente consigo as mais poderosas armas portáteis, e

que tombaram entretanto, mortos, sob os golpes rudes de ferro

homicida, ou sucumbiram varados por balas traiçoeiras. Tenho

visto indivíduos armados serem mortos, sem suas armas lhes

constituírem defesa, e outros, igualmente armados, tenho visto

feridos, perseguidos, espancados, deixando às vezes os primeiros

uma triste recordação de sua inútil valentia, e perambulando

estes marcados, mutilados, e algumas vezes inválidos, devido à

agressão brutal de inimigos aos quais as armas, que pressentiam,

temendo, mais açulavam o ódio e estimulavam no ataque.

É bem provável que um revólver, em nossa cinta, e um

punhal, suspenso à cava de nosso colete, originem um campo

neutro entre a nossa fraqueza e a proteção divina...

E não é aceitável essa teoria? Parece-me que a quem muito

se arma falece a fé, falta a confiança na Divina Providência, cujos

inúmeros agentes nos não desamparam jamais, mas talvez

diminuam a sua vigília perante tão acentuada descrença.

Eu assim o compreendo e assim o creio.

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X

Uma data

(Para o aniversário d’ O Município, de Cataguases.)

Sobre os mares, e mares então desconhecidos, ora

lugubremente calmos, ora ameaçadoramente agitados, vogam

três pobres caravelas.

Impulsionadas pelo sopro incerto das correntes aéreas, e

seguindo vagarosas e tristes como medroso e lento caminha

quem atravessa fatigado um deserto de areia, as três caravelas

avançam morosamente sobre aquela tremenda amplidão.

Não lhes faz girar as rodas o poderoso impulso do vapor,

nem lhes aceleram a marcha possantes hélices. Não são

guarnecidas por medonhos canhões, nem temíveis metralhadoras

as defendem. Mal trazem armas capazes de as livrar da

abordagem de algum fraco mas atrevido corsário, e o vento,

apenas o vento, empandeirando-lhes as velas, é o impulso com

que contam para a longa e penosa travessia daqueles mares

misteriosos.

Nessas velas, porém, há um símbolo – a cruz –, e somente

com uma defesa eficaz, para todas as eventualidades, conta

aquele pugilo de temerários: a fé inabalável do seu chefe.

E seguem a sua rota as três caravelas. Por todos os lados o

silêncio, a uniformidade, o mistério. Nunca um ser humano

demandara, por aqueles mares estranhos, o alvo visado pelos

três barcos; jamais um batel ousado sulcara anteriormente

aquelas ondas.

São três pequenas unidades da esquadra de Castela.

Representam tudo quanto Izabel conseguira entregar a Colombo.

É que faltava às cortes latinas a confiança na arrojada

empresa proposta pelo genovês. Ele era um sábio, mas talvez

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não fosse um orador, não possuindo a faculdade da persuasão, e

não dispunha, como Cabral, de vassalos e terras que lhe

garantissem o poderio e o crédito.

***

Malgrado, porém, a fé inabalável de Colombo, e a sua

energia nunca desmentida na glória nem na adversidade, o medo

dominava já entre os seus subordinados. Supunham-se num mar

sem limites, sendo a Terra plana e sem-fim, e temiam, não

encontrando em sua frente senão água, sem nenhum vestígio de

terra, ter novamente a atravessar a mesma imensidade, mas já

então minados pelas fadigas e pela fome, sem forças sequer para

o manejo das velas e a direção do leme.

Mas mesmo assim seguem ainda as três caravelas.

Sobre a amplidão dos mares, o silêncio, a uniformidade, o

mistério; no interior dos barcos, o desgosto e o receio de

Colombo, e a desconfiança, o medo e a insubordinação dos

marujos – desgosto devido à ignorância e à desconfiança

daqueles rudes homens do mar, e receio de que a

insubordinação triunfasse, assim inutilizando os seus esforços, e

os perigos vencidos, e os seus longos estudos, e os seus oito

anos de rogativas pelas cortes da Europa.

Aqueles simples e incultos marinheiros de Palos não

compreendiam a esfericidade da Terra. Para eles o mundo era

plano e o mar infinito. Tinham ouvido narrativas sobre a Atlântida

invisível e o El-Dorado misterioso, situados além das águas, e por

isso tinham partido com fé; mas sucediam-se os dias, e semanas,

e meses, e em torno dos nautas via-se sempre o deserto sem-

fim. As mesmas noites, consteladas ou borrascosas, e os mesmos

dias, trabalhosos ou calmos, sucediam-se sem a menor

esperança para os marujos, e em seus corações cresciam sempre

as saudades acerbas da pátria, deixada tão longe, tão longe, que

eles temiam não tornar jamais a ver, se seguissem a derrota

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daquele louco, daquele visionário, em busca de um país não

existente, por sobre aquele mar sem-fim, que se perdia no

infinito. A sua viagem era a fome, a morte, o esquecimento.

Era a última noite do prazo fatal imposto ao genovês. A

nostalgia e o medo tinham levado os marujos às ameaças, e

levá-los-iam às violências.

No dia seguinte iniciariam a volta às terras europeias: eles,

os marujos, às alegrias da terra natal, aos enlevos sonhados do

lar, e Cristóvão Colombo, com o desespero na alma, aos

vilipêndios de uma corte eivada de preconceitos ou prejuízos,

que o faria carregar de ferros e cobrir de ignomínias, assim

premiando o sábio pelos seus estudos e lucubrações, e pelos oito

anos de vexatórias rogativas.

É que ele seria novamente chamado de visionário, e acusado

de ter levado as três caravelas, e suas tripulações, para a fome e

para a perdição sobre as ondas de um mar sem limites.

Triunfante a obstinação dos marujos amotinados, por muitos

anos esconderia ainda o Novo Mundo as suas riquezas à avidez

das cortes europeias, talvez até desaparecer do cenário político o

valor de Napoleão, e surgir Fulton a encurtar as distâncias com o

vapor, nos seus possantes navios, a sulcar mais seguramente o

oceano.

Durante mais uns três séculos teria sido a América um mito,

e do sábio genovês teria ficado a memória como a de um

visionário.

Mais algumas horas, e ao chefe da expedição, no seu

camarote da capitânia Santa Maria, caberia a vitória ou a derrota,

o que equivaleria ao dilema – à glória ou o fracasso. Ou

surgiriam das ondas terras desconhecidas, ou retrocederiam as

três caravelas, caminho da pátria distante, sem nada justificar as

previsões do infeliz genovês.

Com a noite terminava o último prazo concedido a Colombo.

***

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Mas era tempo. Ao raiar do dia seguinte umas aves foram

vistas, voando por sobre as águas, e algumas vieram pairar sobre

os nautas.

A alegria serenara as feições do sábio, e a esperança fez

esquecidos aos nautas os perigos da longa travessia.

Algumas horas decorreram, após os primeiros sinais

observados, e os marujos da capitânia gritaram:

– Terra! Terra!

Estava descoberto o Novo Mundo. O gênio de Colombo

acabava de desvendar aos seus companheiros de viagem o

vastíssimo e rico continente que a ingratidão dos pósteros

denominou América.

Corria então o dia 12 de outubro de 1492.

***

Cristóvão Colombo era um desses Espíritos predestinados aos

ideais grandiosos e às belas realizações.

Modesto como raros homens o têm sido, e tão humilde que

dificilmente poderá ser imitado, foi no retiro silencioso de um

mosteiro que ele fez os seus estudos sobre a existência de um

continente desconhecido além daqueles mares também

desconhecidos, admitindo a esfericidade da Terra quando essa

crença era ainda uma heresia, quando tal asserção era negar os

textos sagrados, e erguer uma contradita a Josué, assim

aventurando uma entrada, então temível, no “Index” do sumo

pontífice.

A sua fé inabalável quanto à proteção divina, e a sua

confiança inquebrantável na existência dessa terra, então

lendária, pois argumentava ele não poder existir tanto mar sem

um continente, levaram-no àquela arrojada empresa.

Sabia também, e era o único a asseverá-lo, que aquelas três

unidades da armada de Castela não se perderiam, pois ele

confiava na Providência Divina, que jamais o desampararia, e

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asseverava que, no caso, aliás impossível, de não existir ou não

ser encontrado o continente, nem ilha alguma ser descoberta, as

três caravelas, vogando sempre ao mesmo rumo, contornariam o

globo por sueste, volvendo infalivelmente, no fim de mais uma

centena de dias, às terras frias do noroeste da Europa.

Mas assim não o entendiam os pobres marujos.

E nem todos compreendem os sofrimentos daquela alma de

herói. Nem todos avaliam as horas de profunda tristeza, de

longos desfalecimentos e dolorosa agonia, daquele espírito de

sábio e de bom, entre os quatro tabiques da sua pequena

câmara, na caravela Santa Maria, sabendo-se ameaçado pelos

marujos em revolta, e sentindo, em torno do seu barco, o

embate das ondas nunca anteriormente sulcadas por ousado

lenho. Eram a tristeza de quem se vê incompreendido e suspeito,

os desfalecimentos de quem vê a força tripudiando sobre a razão

e a ciência, e a agonia de quem, quase ao chegar à meta

desejada, vê o seu ideal ameaçado de eterno desaparecimento,

de inglória fuga.

Mas o genovês triunfou, como em geral triunfam todos os

ideais grandiosos, quando amparados à firmeza da verdadeira fé,

quando sustentados com a tenacidade de um homem que não

olvida jamais os seus compromissos, entre os coevos e os

pósteros, para com Deus e a sua consciência, para com os seus

mandantes e os seus subordinados, para a ciência e a

humanidade.

Estava descoberto o novo continente. A América surgia para

as grandes conquistas do progresso. E Cristóvão Colombo devia

voltar a Castela coberto de glória, embora alguns anos mais

tarde tivesse de curvar a cabeça veneranda ao peso da calúnia e

da inveja.

Mas Cristóvão Colombo foi grande em sua glória como

sublime em seu declínio; foi digno da admiração dos povos

quando voltou triunfante às plagas europeias, como merecedor

do respeito de todos quando ferido pela insídia.

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O dia 12 de outubro de 1492 foi para o genovês o dia mais

feliz de sua atribulada existência.(1)

(1) Este artigo foi publicado n’O Município, de Cataguases, de 12 de outubro

de 1923. Nele suprimi, porém, a última parte, ao trasladá-lo para o meu

livro Pérolas Ocultas, porque essa parte se refere exclusivamente ao

município e seus dirigentes e ao referido periódico e seus redatores, o que

pareceria dar ao livro um aspecto bairrista, que ele não deve apresentar. –

O Autor.

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XI

Rui, o grande

Acaba de desaparecer de entre os vivos o gênio a quem

chamamos Rui Barbosa.

Faleceu quando mais sentida ia ser a sua perda, quando mais

precisávamos da sua palavra autorizada, da sua eloquência

arrebatadora, dos seus argumentos sem réplica, e do seu amor à

verdade, à justiça e à liberdade. Faleceu quando mais profundos

eram os ódios entre os partidos, e mais terríveis ameaçavam ser

as represálias, e quando, mesmo por isso, mais necessitávamos

de um homem que, como o grande orador e jurisconsulto, fosse,

entre os partidos políticos em represálias, ou para com os

vencidos e perseguidos, como que um anjo da paz, ou a própria

personificação da pátria.

E ele o era.

Quando o terror empolgava nossa terra, e o sangue de

nossos patrícios era derramado em horrendo fratricídio, em

pelejas estéreis e inglórias, ou quando, terminada a resistência

dos oprimidos, a vingança ocupava a cátedra do tribunal e vestia

a toga de juiz, era a destra de Rui Barbosa a que erguia a

bandeira branca da paz, pois era ao maior dos brasileiros que

devíamos a anistia, por ele valorosamente proposta e

brilhantemente defendida.

Sendo a maior glória do Brasil, o estadista mais culto da

época, matizava-lhe o talento a mais admirável modéstia.

Revisionista, mostrava os erros de nossa Constituição federal,

a qual era, entretanto, obra quase exclusivamente sua, pensando

de modo contrário a muitíssimos dos nossos estadistas, que

frequentemente erram e perseveram no erro.

Se não houvesse falecido, em Rui Barbosa, o maior vulto de

nossa política e o mais ilustre de nossos legisladores passados e

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contemporâneos, teríamos a guarda avançada dos nossos

direitos, e mais cedo dominaria a confiança entre os grupos

divergentes, tornando menos acerbas as dores dos vencidos, e

menos acerado o gládio da justiça, não raro semelhante ao

punhal da vindita.

Extinguir-se-iam mais facilmente os ódios e temores, e a Lei

de Imprensa, em vez de ser a salvaguarda dos dominantes e a

ameaça latente dos patriotas, seria a defesa e a segurança de

todos os cidadãos e de todos os lares.

Essa lei possuiria certamente, entre os artigos de mais

premente necessidade, um artigo que vedasse a publicação de

qualquer escrito, de censura pessoal ou política, sem se

franquear ao ofendido o duplo do espaço para a defesa, mas isso

no mesmo periódico, para ser lido pelo mesmo público, ou em

livro ou folheto editado pela mesma empresa onde fosse feito o

ataque.

Não é de se louvar a imprensa atrabiliária, quase incendiária,

que nos envergonha aqui e no estrangeiro; mas aos oprimidos

deve-se facultar o direito de defesa, e esse direito lhes é

cerceado pela lei contra a imprensa, que, aliás, garante as

fraudes eleitorais aos dominadores, sem que os oprimidos,

vilipendiados às vezes pelos periódicos semioficiais, e esbulhados

em seus direitos, tenham sequer a liberdade de analisar os atos

de prepotência dos governos, que comumente fazem mais

política do que administração.

É que faltou a essas leis um pouco da sabedoria de Rui

Barbosa, do legislador e jurisconsulto cujo maior adversário

político, o respeitável Sr. J. J. Seabra, declarou-o insubstituível no

Senado, pedindo-lhe permissão de ser o portador do seu

diploma, adquirido pelo sufrágio de todos os partidos do grande

Estado nortista.

Morto, tornou-se ainda maior o Conselheiro Rui Barbosa. Os

seus próprios adversários – se adversários seus podemos chamar

a quantos, por interesses particulares e conveniências de política

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pessoal, sufragaram os nomes dos Srs. Hermes e Epitácio –

passaram a louvá-lo, a engrandecê-lo, alguns com entusiasmo

maior do que o fazem alguns que, como nós, lhe acompanharam

os passos desde antes de 1889; pois com ele e por ele nos

exultamos nas conquistas de Haia, e por ele sofremos as agruras

do ostracismo nos primeiros tempos da República, e com ele

sentimo-nos espoliados em nossos direitos em 1910, e por ele

lutamos em 1918, e acompanhamos-lhe os passos, em

pensamento, quando, com seus admiráveis artigos escritos na

Europa, e suas conferências na Argentina, e seus discursos na

Bahia, em Minas, em São Paulo, no Rio de Janeiro, demonstrava

ele o seu talento extraordinário, e as suas admiráveis qualidades

de paladino da verdade eleitoral, da liberdade do cidadão, e das

prerrogativas dos povos nos países menos fortes.

Desaparecendo de entre os vivos, o Conselheiro Rui Barbosa

viverá entretanto para sempre no coração dos contemporâneos e

da posteridade, como um exemplo perene de civismo e de

honradez. De civismo e de competência.

Quando eleito para qualquer das casas do Congresso, quando

escolhido mandatário do povo na Câmara ou no Senado, o

cidadão deve dizer à sua consciência, ao tomar posse da sua

cadeira: “Eu devo ser honrado e digno em todas as decisões que

houver de tomar, em todas as discussões em que me houver de

envolver, pois nesta casa, nesta assembleia, legislou Rui

Barbosa”.

Não cabe nos estreitos limites destas linhas descrever tão

grande vulto, e nem para isso o seu autor tem competência.

Faço-lhe apenas, nestas pobres linhas, a prova do grande

respeito que sempre tributei ao mais eminente dos nossos

patrícios.

Orador, estadista, literato, jurisconsulto, jornalista, foi

admirado pelo mundo culto. Estrênuo campeão da liberdade, foi

sempre temido por todos os opressores, e teve como inimigos

todos os déspotas e seus sequazes; mas foi idolatrado pela

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enorme maioria da população do Brasil, isto é, pela parte,

felizmente importantíssima, não contaminada pelo vírus da

ambição e da subserviência.

Conhecedor de diversos idiomas e de várias ciências, eram-

lhe conhecidos os Códigos Civis e Criminais, como também as

Cartas Magnas dos principais povos, e na literatura mundial

conhecia as obras-primas que honram os países mais cultos.

Político desde a mocidade, e parlamentar desde o antigo

regime, foi um dos fundadores da República, tendo sido um dos

grandes paladinos da emancipação dos escravos. Entrava no

Congresso pela porta da frente, por onde entram os eleitos, e

honrava o cargo que lhe era confiado tanto como os que mais o

honram, ou mais do que quase todos os que mais o honram, sem

contar com reconhecimentos protecionistas.

Era um sábio, um patriota, um homem extraordinário enfim

pelo seu saber e pela sua bondade.

A nós, os seus admiradores de sempre, os seus amigos de

todos os tempos, é justo deixarmos cair uma lágrima de gratidão

e de saudade pelo maior dos brasileiros.

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XII

Zamenhof

A poucos dos meus leitores, a quase nenhum, poderá ser

desconhecido o nome imortal do Dr. Luiz Lázaro Zamenhof, o

eminente filólogo e grande cientista da Polônia russa,

desaparecido, há pouco, na voragem do sepulcro.(1)

Não eram somente os esperantistas que admiravam e tinham

extraordinária afeição ao sábio mestre: idolatravam-no os mais

dedicados pacifistas do mundo culto, os filólogos de todas as

raças, os verdadeiros patriotas de todos os países, os mais

ardentes defensores dos ideais elevados, as sumidades da ciência

e da literatura entre todos os povos.

Foi um médico ilustre, um professor distintíssimo, um grande

poliglota, mas o que mais o tornou digno de veneração foi o seu

amor à paz, foi o seu devotamento à causa da união e da

amizade entre todos os povos.

Conhecendo quanto influía a afinidade de línguas para a

união dos povos – mais do que a aproximação de territórios e

uniformidade de interesses comerciais ou políticos –, entendeu

que se pode promover essa união por meio de um idioma

comum, mesmo quando esses povos estão separados entre si

pelos cento e oitenta graus dos antípodas, e mesmo quando são

diferentes os seus costumes, a sua cor, os seus planos, as suas

crenças.

Provas, nós as tivemos, e recentes, vendo a Bélgica

sacrificar-se pela França, vendo a Itália estender as mãos aos

(1) Zamenhof, natural de Białystok, Polônia, onde nasceu em 15 de

dezembro de 1859, faleceu em Varsóvia no dia 14 de abril de 1917.

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franco-belgas por sobre as hostes teuto-austríacas, vendo

Portugal concorrer com o seu não pequeno contingente contra os

Estados centrais, e ainda vendo a Espanha conservar a sua

neutralidade, embora os seus interesses ameaçassem atirá-la

contra os seus vizinhos. Provas tivemo-las ainda, na mesma

conflagração, vendo nossa terra apoiando a Entente, e a grande

república norte-americana armando os seus exércitos a favor da

sua antiga metrópole, com o apoio moral de quase toda a

América latina.

Provas, nós as temos sempre, numerosas, gerais,

indiscutíveis, e entre essas a existência das pequenas repúblicas

do centro e do sul do Novo Mundo, as quais, sem a uniformidade

de línguas, não teriam chegado até nossos dias, ou no futuro não

teriam assegurada a sua autonomia.

É conhecido, desde a mais remota antiguidade, ser a

semelhança de línguas o mais forte liame entre as nações. O

Velho Testamento dá-nos, como em alegoria, a história da Torre

de Babel, demonstrando ter havido concórdia até a confusão das

línguas... Desde aquela época já compreendiam os pensadores

constituir a língua o mais forte elo entre os povos.

Assim o compreendia Zamenhof, que dedicou muitos anos da

sua fecunda existência à criação e à difusão da língua

internacional, o Esperanto.

Algumas pessoas pensam, erroneamente, ter perpassado

pela mente de Zamenhof o projeto de abolir as línguas nacionais,

como se um dos Espíritos mais esclarecidos de nossa época

pudesse afagar a ideia de tentar o impossível.

As línguas nacionais constituem o mais forte dos elos que

podem unir entre si os filhos do mesmo país. São a origem das

nações, se examinarmos o passado, e não a garantia da

indissolubilidade das mesmas nações no futuro.

Extinguir essas línguas, coisa aliás impossível, seria abolir os

marcos milenários dos governos, para atirar a primeira pedra

para o edifício da federação mundial, utopia que não deve fazer

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parte do grupo de nossas cogitações neste século.

Cada povo tem tanto amor à sua língua, que, no caso de

uma das línguas nacionais dever ser escolhida para o idioma

auxiliar internacional, tantos pretendentes se apresentariam à

escolha quantos são os idiomas cultos existentes no globo, sem

ceder nenhum deles às vantagens de outro.

Vendo, pois, o Dr. Zamenhof, depois de prolongados estudos

e observações, ser de inadiável necessidade uma língua

internacional, e que para isso não teria jamais solução a proposta

de qualquer dos idiomas nacionais, resolveu criar o Esperanto.

O grande mestre não sonhou, entretanto, a extinção de

idioma algum, e os seus numerosos e dedicados discípulos e

continuadores, corroborando-lhe as opiniões, têm-se esforçado

pelo ensino dos idiomas mais necessários ao convívio e comércio

dos povos, fazendo essa propaganda pelo Esperanto. É mais uma

prova de que o Esperanto sempre se destinou a ser uma língua

auxiliar que facilitasse o convívio e as transações comerciais

entre todos os países, que tornasse conhecida a literatura de

cada nação entre os mais diversos povos, que divulgasse ciências

e artes, que permitisse não se confinarem entre os estreitos

limites de um país as suas obras-primas, que intensificasse as

relações e amizade entre os habitantes de um e outro continente,

tornando facílima a correspondência epistolar, difundindo jornais

e revistas, permutando livros, unindo enfim os homens sem

tomar em consideração a sua raça, a sua pátria, o seu credo

religioso, as suas opiniões políticas, mas promovendo a amizade

e a confiança, na preparação de um tempo, não muito longínquo,

em que a afeição entre os homens deverá abolir o ódio entre as

nações constituídas e entre as raças diferentes que povoam o

mundo.

O Dr. Zamenhof, criando, após estudos prolongados e

ponderadas observações, a língua auxiliar posteriormente

denominada Esperanto, teve em vista esse trabalho ciclópico do

congraçamento, da afeição dos povos entre si, e não somente

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sem o menor intuito de prejudicar o estudo dos idiomas

nacionais, como até para esse estudo fornecendo, com o

Esperanto, novos tratados que mais fácil tornam esse estudo.

O seu intuito, felizmente conseguido, era criar e difundir uma

língua de fácil aprendizado, e por isso ao alcance de pessoas

medianamente ilustradas, que a pudessem aprender, em pouco

tempo, por meio de correspondência ou mediante o estudo de

alguns fascículos.

No começo do último quarto do século findo iniciou

Zamenhof, moço ainda, o seu grande empreendimento.

Poliglota distintíssimo que era, fez meticuloso estudo sobre as

principais línguas europeias, também usadas na América, e das

mais faladas fez as bases do Esperanto, que de tal forma ficou

constituído, que nele os portugueses, espanhóis, ingleses,

alemães, italianos, russos e outros, sem conhecimentos de outra

língua além da materna, encontram grande número de palavras

ou raízes conhecidas, pois Zamenhof adotou, para a

representação de cada ideia, a palavra que mais equivalentes

semelhantes tivesse, na forma e na pronúncia, nas diversas

línguas mais faladas.

Fundado sobre radicais pouco numerosos, tendo cada letra

do alfabeto um som fixo, e cada categoria gramatical uma

terminação própria e imutável, é o Esperanto o modo mais

simples e fácil de se transmitirem ideias.

Possui entretanto tal maleabilidade, e dispõe de tantos e tão

belos recursos, que pode apresentar, com as mais delicadas

expressões, as obras-primas da literatura universal, sem lhes tirar

o colorido da origem.

Seu dicionário completo é um pequeno manual, um livrinho

de bolso, de menos de 200 páginas, e sua gramática é um

pequeno volume que uma pessoa de inteligência normal pode ler

e compreender em algumas horas.

Apesar dessa simplicidade, dessa facilidade admirável, o

Esperanto presta-se entretanto a todos os estilos, e fornece aos

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escritores copioso léxico, trazendo aos eruditos admirável riqueza

de elocução.

Não somente para a prosa é o Esperanto perfeito: o seu

verso é agradável e sonoro, e a metrificação mais fácil do que a

das línguas que o produziram, assemelhando-se ao sistema

latino.

Criada a língua, e publicados os primeiros opúsculos, em

todos os países cultos fundaram-se associações para a sua

propaganda, e iniciou-se a correspondência postal, sempre em

aumento, entre povos os mais afastados entre si,

correspondência de notável proveito quanto à literatura, à arte e

ao comércio, e ainda de maior proveito como um meio de unir

entre si, pelos laços da afeição, indivíduos de todas as raças.

Espírito clarividente, verdadeiro missionário do bem,

Zamenhof dedicou a maior parte da sua vida à criação e

propaganda do Esperanto, no qual reconhecia o meio mais

seguro para a iniciação da obra monumental do pacifismo.

O Esperanto progrediu de um modo admirável, desde os seus

primeiros anos de vida, e muito maior campo teria conquistado

se tão inoportunamente não sobreviesse a guerra europeia,

quando as vistas de todos os numerosíssimos esperantistas, do

mundo inteiro, estavam voltadas para Paris, onde se deveria

reunir o grande congresso universal esperantista.

O Dr. Zamenhof, viajando de Varsóvia com destino a Paris,

onde deveria presidir o congresso, foi surpreendido, em viagem,

pelo rompimento das hostilidades, e detido na Alemanha, e viu

extraviada a sua preciosa bagagem, e ao mesmo tempo a

neutralidade da Bélgica era violada pelos exércitos da maior

potência militar de todos os tempos.

Tivesse o Esperanto mais alguns decênios de evoluir pacífico,

isto é, sem ter sido o mundo abalado pelas guerras a que temos

assistido desde o princípio deste século, e principalmente sem

essa enorme catástrofe que foi a conflagração iniciada em 1914,

e as guerras tornar-se-iam impossíveis, porque o Esperanto, a

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língua da paz, auxiliado eficazmente pelo rádio, pelos credos

religiosos que não benzem armas, pela imprensa

verdadeiramente cristã, pelas associações pacifistas, pelos

homens de boa vontade enfim, estenderia pelo mundo a doutrina

da paz, da concórdia, do desarmamento, da confiança, da

afeição, a todos provando que a humanidade é uma família cujo

chefe é Deus.

A corrente de simpatia existente entre os esperantistas filhos

de países diversos, avolumando-se com o próprio aumento das

associações esperantistas, aplainariam quaisquer complicações

diplomáticas de que surgissem questões que pudessem originar

demonstrações armadas, e mesmo sangrentos conflitos, se antes

dessa esperada difusão do Esperanto não viessem os

acontecimentos de 1914, verdadeiro desastre universal, cobrir de

sangue a Europa e os mares, e espalhar pelo mundo uma nuvem

negra de ódios e vindita.

Mesmo assim, porém, muito esperamos do Esperanto. A

união e afeição entre os esperantistas, com o aumento do

número destes adquirindo novas forças, farão sentir a sua

influência sobre os governos, em futuro não muito longínquo, e

os governos procurarão na paz o engrandecimento das nações e

a felicidade dos povos. As próprias associações de propaganda

do Esperanto procurarão dificultar, no futuro, quaisquer

manifestações nacionalistas demasiado extremadas, causas às

vezes de rompimento entre as nações.

O homem extraordinário que desapareceu, há pouco, de

entre os vivos, foi, com a criação e a propaganda do Esperanto, o

maior dos obreiros da paz nos tempos modernos, e um dos

maiores de todos os tempos.

Três qualidades principais ornaram-lhe o caráter: a bondade,

a sabedoria e a operosidade.

A posteridade saberá render o devido culto à memória do Dr.

Luiz Lázaro Zamenhof.

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XIII

O ano da fome

Chuvas abundantíssimas, demasiado tardias, no decorrer de

muitos meses, e quase ininterruptas, tinham feito apodrecer nas

roças, no ano anterior, as plantações de milho, o principal

produto da zona, e tinham inibido aos lavradores, em uma

grande extensão de mesma zona, o cultivo dos outros cereais e a

capina e a colheita do café. Assim terminara o ano agrícola, entre

as queixas, muito verdadeiras, contra a horrenda carestia, e as

esperanças de farta colheita no ano seguinte.

Este, porém, tinha entrado ainda mais inclemente. O sol

crestava em germe quase todas as plantas, e um desânimo geral

empolgava a população.

A menos afastada estação ferroviária ficava até então a mais

de vinte léguas, e o transporte de gêneros alimentícios,

importados dos grandes centros por meio de tropas a três léguas

por dia, era moroso e caríssimo.

Às pessoas a quem sobejava numerário era menos difícil a

aquisição de gêneros, mas o proletariado entrava

assustadoramente na verdadeira crise da fome.

Tinham-se esgotado os recursos dos pequenos lavradores, e

extinguiam-se os vegetais com que se alimentavam os animais,

assim escasseando mais a carne, o leite e os ovos. As próprias

pastagens baixas crestavam-se ao calor do sol, e por isso os

animais de carga, empregados na importação de mantimentos,

tornavam-se dia a dia mais magros e fracos, incapazes para

qualquer trabalho que se não cingisse a cargas menos pesadas e

marchas bastante mais curtas.

As dificuldades multiplicavam-se no decorrer dos primeiros

dias do outono, e a mais triste e desoladora penúria espraiava-se

entre os proletários. À sombra das pobres casinhas rústicas o

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viajor podia ver, acocorados ou deitados sobre velhas esteiras de

junco, homens, mulheres e meninos cujos rostos demonstravam

as privações acerbas da miséria, e constava que algumas vidas

tinham-se já sacrificado aos sofrimentos da anemia profunda.

Nesse tempo não se havia ainda generalizado o uso do trigo,

e para os bolos de fubá e de polvilho, e para o angu, as farinhas,

o pão de milho e o pirão, faltavam as duas matérias-primas – o

milho e a mandioca.

A carne seca, então conhecida com o nome de carne da

colônia, era um alimento caro, insuficiente por si só, e ainda

desagradável ao paladar, como produto inferior que devia ser, e

até então desconhecido naquela zona.

A fome, com todo o seu cortejo de males, dominava afinal

uma grande parte da população, no perímetro de muitas léguas.

Era o mais horroroso dos espetáculos, pois não assombrava

um indivíduo, mas uma coletividade.

Mas assim como um imenso deserto de areia possui, de

espaço a espaço, oásis verdejantes – as ilhas do deserto, onde

podem os viajantes retemperar as suas forças, dessedentando-se

com a fresca linfa que nesse oásis desliza, e descansando à

sombra espessa e atraente das árvores eternas que ali vicejam, e

nutrindo-se com frutos saborosos dali oriundos, assim também

naquela grande extensão flagelada pela fome, naquele vasto

território ocupado por cidades, povoados, fazendas e pequenos

sítios de lavoura assolados pela penúria, ostentavam-se, de

espaço a espaço, algumas propriedades agrícolas onde a

abundância era admirável.

Algumas fazendas tinham, pois, superabundância de diversos

gêneros alimentícios, e principalmente de milho, por um

fenômeno quase incompreensível deixando de ser envolvidas

naquele flagelo.

Algumas dessas fazendas, separadas entre si por léguas,

amenizavam um pouco a sorte de uma parte da população, e

outras, raríssimas, forneciam cereais mesmo às classes mais

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pobres, algumas vezes a crédito, e outras como esmola, mas em

pequena quantidade, insuficiente para as necessidades de cada

família, e apenas às pessoas que podiam ir pessoalmente à

procura desse recurso. Outros desses proprietários felizardos

abusavam da fortuna que lhes sorria, e exploravam sem

compaixão, em sua zona, o monopólio do milho, vendendo-o por

preços exagerados a quantos o podiam pagar na ocasião, e

negando-o a quantos não dispunham então do preciso

numerário.

Um desses fazendeiros, que mais tarde eu conheci, tinha em

seus celeiros centenas de carros de milho, vendendo-o a 10$000

o alqueire, preço considerado naquela época um grande absurdo,

vinte vezes maior do que o preço normal de então. Censurado

certo dia por um dos compradores, que lhe disse estar ele

vendendo a alma, respondeu, arrufado: – “Então de hoje em

diante hei de vender o milho a 12$000, assim vendendo a alma

com o corpo...”.

Entre esses agricultores, porém, um houve que vendia o

milho pelo preço das épocas normais, e às vezes a prazo, mas

cedendo-o em pequenas porções, a fim de evitar

açambarcadores, e outro fazendeiro foi notado, na mesma

ocasião, pelos atos de generosidade por ele praticados, um dos

quais passo a narrar.

Ambos se tornaram conhecidos pelas esmolas diretas por

eles feitas.

Pelo seu modo de proceder naquela época cheia de

calamidades, honram esses dois homens um dos capítulos do

meu livro Pérolas Ocultas.

É somente ao último desses agricultores que eu me refiro nas

linhas abaixo.

***

Jaime Lopes de Araújo era o seu nome.

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Homem laborioso e sério, e de costumes simples, era o mais

rico fazendeiro daquele vasto distrito. A sua casa de residência

era grande e cômoda, mas inteiramente sem luxo, e todos da sua

família dedicavam-se muito ao trabalho, raramente procurando

os divertimentos que em geral tanto preocupam os moços.

Nesse ano, quando a falta de gêneros alimentícios tanto

acabrunhava a população, estavam repletos de milho os vastos

celeiros do Sr. Jaime Lopes de Araújo, que também possuía não

pequena quantidade de arroz e de feijão.

Algumas famílias de pequenos lavradores da vizinhança da

fazenda, e algumas outras famílias residentes na sede do distrito,

mas tanto estas como aquelas aparentadas entre si, procuraram

então adquirir com o rico lavrador o milho de que necessitavam,

enviando-lhe à fazenda, como parlamentar, o chefe de uma

dessas famílias, Luciano, moço trabalhador e sério, mas pobre,

com o qual o Sr. Jaime de Araújo entrou facilmente em

combinação, propondo fornecer todo o milho necessário a essas

seis ou oito casas, mas ficando o preço e as condições de

pagamento a se discutirem por ocasião das colheitas do ano

seguinte.

Decorreram muitos meses. Quase um ano tinha escoado.

O ano fatídico tinha passado, legando ao povo caras, mas

nobilíssimas lições, escoando-se os últimos dias do primeiro

quarto do ano de 1874 entre a exuberância das terras, a

garrulice da petizada sadia e forte, e o sorriso de satisfação dos

lavradores em geral.

Luciano, em seu nome, como em nome dos parentes a quem

o fazendeiro tinha suprido de milho e outros produtos da fazenda

durante muitos meses, procurou-o então para a regularização

das contas.

Já era possível fazerem sem sacrifício o pagamento. Extensos

e cerrados milharais cobriam as serras, e fartos arrozais

sazonavam nas vargens, e os outros gêneros necessários à

alimentação prometiam ao povo, após aqueles dois anos de

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penúria, uma abundância extraordinária.

A Luciano e seus parentes já era possível, portanto, fazerem,

dentro de mais um mês, e sem sacrifício, o pagamento ao

bondoso fazendeiro Sr. Jaime.

– De nossa casa – declarou então o Sr. Jaime Lopes de

Araújo –, vocês levaram milho, cevados e feijão. Se agora podem

pagar-me sem dificuldades, paguem-me em milho, cevados e

feijão, com a mesma quantidade e o mesmo peso que

receberam, podendo os que não têm lavoura pagar em dinheiro,

pelos preços da atualidade.

– Mas isso seria um abuso de nossa parte – exclamou o

devedor –, pois os preços do passado eram muitíssimo maiores.

O milho custará, no próximo mês em diante, por um carro, o que

no ano passado era o valor de um alqueire, isto é, vinte vezes

menos do que na ocasião do fornecimento.

– Sim – replicou o Sr. Jaime –, assim é; mas eu na ocasião

tinha os gêneros, e vocês não os tinham. Se as coisas tivessem

sucedido de modo contrário, eu teria ido bater à sua porta, que é

a do meu vizinho mais próximo, e você teria procedido como eu

o fiz para com vocês. Seu avô – que Deus o tenha na sua santa

glória –, não negava um favor nem a um desconhecido. Esse

modo de pagamento, já que vocês fazem questão de pagar, é

também para todos os seus irmãos e cunhados. A qualquer de

vocês eu sempre prestarei qualquer serviço que esteja ao meu

alcance. De todos receberei a mesma medida de cereal

fornecida, e o mesmo peso de toucinho ou cevada, e se a algum

for difícil o pagamento, desse eu nada aceitarei, pois nada me

deve. Com tudo isso eu estou pagando somente uma parte de

uma dívida velha...

– Eu não sei de dívida alguma sua, Sr. Jaime, e não

compreendo por que faz emprenho em nos prestar tão grande

favor.

– Você não sabe desse fato – explicou o fazendeiro –, porque

é ainda muito moço, e o fato é já antigo, datando de uns doze a

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quinze anos antes do seu nascimento. Mas sente-se de novo,

meu caro vizinho, pois enquanto esperamos o café eu quero

contar-lhe um trecho da minha história.

***

E o Sr. Jaime fez nestes termos a sua narração:

– “Eu nasci em um pequeno e velho sítio perto de Ouro

Preto. Quando menino, estive em uma escola dentro da cidade, e

depois rapazote voltei para a cidade como empregado no

comércio.

“Lá estava eu, em Ouro Preto, no tempo da visita do

Imperador D. Pedro I, e ouvi dobrarem os sinos de dez igrejas ao

chegar o monarca, e mesmo depois, quando ele percorria as

ruas. O povo estava desgostoso com D. Pedro I, e assim

manifestava o seu descontentamento e a sua reprovação.

“Mas o ordenado no comércio não me servia: era demasiado

pequeno. Resolvi por isso voltar para a roça, e pouco depois

casei-me, com vinte anos de idade, a abri lavoura no pequeno

sítio de meu pai.

“Nesse tempo eu já era órfão de mãe, e logo depois do meu

casamento tive a infelicidade de perder meu pai. Houve

consequentemente a partilha dos bens, e eu fui forçado a vender

a minha parte, pois não podia comprar as outras partes, e voltei

para a cidade com a minha pequenina herança, em dinheiro, a

qual não passava muito de um conto de réis.

“Uma semana apenas fiquei com minha mulher na capital

mineira, pois lá procurei um conhecido meu, o Jeremias, e

arrendei-lhe o sítio de lavoura onde você ainda me conheceu, na

sua meninice, ali por trás daquela serra, naquele tempo chamada

Serra dos Puris. Fiz o arrendamento por cinco anos, pago

adiantadamente de uma só vez, e com o restante do meu

dinheiro comprei os objetos mais necessários à minha instalação,

e paguei as despesas da viagem, aqui chegando na época

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apropriada para as plantações.

“Todas as minhas propriedades naquela ocasião eram os

trastes mais necessários a uma casinha de pobre na roça, dois

animais de sela, um selim, um silhão e um lombilho,

mantimentos que nos poderiam sustentar dois meses, e uma

grande disposição para o trabalho. Dinheiro, nenhum; mas por

aqui estavam estabelecidos quatro primos meus, todos em boas

condições financeiras, e com eles eu esperava obter o necessário

para principiar a lavoura, contando com a sua proteção durante

alguns meses, até que Deus permitisse melhorarem as minhas

condições.

“Chegando em uma sexta-feira, passei o sábado percorrendo

todo o sítio, correndo-lhe as divisas, sondando-lhe os terrenos, e

passei o domingo em casa, descansando e fazendo alguns

reparos urgentes nas paredes e na horta. Ao romper do terceiro

dia, deixando minha mulher em companhia de um casal de índios

que tínhamos conosco, desde muitos anos antes, no sítio de meu

pai, como empregados de confiança, selei o meu burro e parti

para a casa de um de meus parentes, o mais vizinho, a uma

légua, certo de ali obter a necessária proteção, mas disposto a

visitar no mesmo dia os outros três primos.

“Expus a esse parente a minha situação: sem dinheiro algum,

em um meio inteiramente estranho para mim, sem ter na zona

um conhecido – pois nem esses primos eram meus conhecidos –,

e tendo mantimentos apenas para uns dois meses, sem recursos

para principiar lavoura, e tendo ainda a mulher em vésperas de

dar à luz o primeiro filho.

“Da casa desse meu primo segui para os sítios dos outros

três parentes, e a todos expus a minha situação, entreguei cartas

de meu irmão mais velho, e fiz os mesmos pedidos. De todos

obtive a mesma resposta: ‘Que tinham muito prazer em

conhecer-me, e foram muito amigos de meu falecido pai, mas...

absolutamente nada podiam fazer por mim...’

“Nada consegui, portanto. Os meus primos não me podiam

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fornecer coisa alguma, nem se prestavam a apresentar-me a

outros.

“Seriam quase três horas da tarde quando estava eu em

caminho, de volta a casa, acerca de um quarto de légua. Eu

caminhava triste, vagarosamente, acabrunhado, pensando não

me ser possível progredir aqui, por falta de um apoio

relativamente pequeno.

“Pensei em voltar para Ouro Preto, e ficar algum tempo em

companhia de meu irmão mais velho; mas a distância era

grande, e minha mulher já não estava em condições de

empreender essa viagem. Além disso, eu ficaria vexado em voltar

àquela cidade em procura de recursos, pois todos nós temos um

pouquinho de orgulho.

“Irresoluto, e muito contrariado, eu voltava à tarde para o

sítio, quando, talvez às três horas, tive de passar junto à porteira

de um terreiro grande, no fundo do qual via-se uma casa vasta e

bem construída, mas sem luxo, de dois andares, com um

alpendre na frente, onde havia uma escada de madeira, coberta

de telhas.

“Quando eu ia passando em frente da porteira, por ela saía

um preto idoso, levando sobre a cabeça um balaio de milho em

espigas, e eu tive a lembrança de lhe perguntar quem morava

naquela casa.

“Respondeu-me o preto que quem residia era o dono daquela

fazenda, e, apontando para o alpendre, ajuntou: – ‘É aquele

senhor, seu João Ribeiro, sim, senhor’.

“Dirigi o olhar para o ponto indicado, e vi, de pé, em um

canto do alpendre, um senhor de cerca de sessenta anos, a

quem saudei de longe, tirando o chapéu, e que me disse alto: –

‘Pode chegar, moço!’.

“Até esse momento ainda o trabalhador com quem eu falava

tinha segura a porteira, e bem aberta, e eu, depois de agradecer,

toquei o burro em direção à casa, a fim de tomar conhecimento

com aquele vizinho.

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“Um menino tomou-me a rédea do burro, e uma senhora que

chegava nesse momento a uma janela à esquerda da casa

convidou-me a subir.

“No alto da escada encontrei o dono da casa, que me

apertou a mão dizendo: – ‘Muito boas tardes, moço; você chega

em boa hora, pois o jantar está na mesa, e de certo ainda não

jantou’.

– ‘Eu ainda não almocei, meu caro senhor’, – respondi

acompanhando o homem para o interior da casa.

“O homem olhou-me com certa estranheza, e nada disse.

“Ao jantar compareceram algumas outras pessoas da casa,

tornando-se geral a conversação, que versou sobre diversos

assuntos, sem entretanto o dono da casa me perguntar pelo meu

nome nem residência.

“Terminado o jantar, voltamos para o alpendre, e então o

fazendeiro, dirigindo-se a um rapaz que depois eu soube ser neto

dele, disse: – ‘Antônio, pode descarregar o animal do moço,

porque a noite vai ser fria, e ele fica hoje aqui’.

“A essas palavras respondi, agradecendo, e foi então que

reparei morar muito perto, a um quarto de légua. Perguntou-me

ele então se era eu o novo vizinho que tinha comprado o sítio do

Jeremias, ao que expliquei: – ‘Sou eu mesmo, mas apenas

arrendei, por cinco anos, com o pagamento adiantado’.

“Declarou-me ele então que tinha prazer em sermos vizinhos,

e que tinha a certeza de que seríamos bons amigos, concluindo a

resposta com o oferecimento franco de seus préstimos.

“E levou-me depois a ver as suas criações, o moinho, o paiol,

a ceva, e repetiu os mesmos oferecimentos, perguntando se eu

precisava de alguma coisa.

– ‘O senhor pergunta se eu preciso de alguma coisa –

declarei francamente –, eu preciso de tudo, tenho necessidade

de tudo, e apesar disso sou forçado a recusar a sua oferta,

porque eu não tenho dinheiro nenhum, e o Sr. não me conhece,

nem eu disponho de quem me apresente.’

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– ‘Mas nós já estamos conhecidos – disse ele –, e o pouco

que tenho está ao seu dispor.’

“Narrei então ao Sr. Ribeiro que estava chegando das casas

dos meus parentes, com os quais nada tinha conseguido. Ele não

fez comentário algum, e logo em seguida entregou-me o dinheiro

de que tinha precisão para o pagamento dos trabalhadores, que

nesse tempo ganhavam uma diária de uma pataca cada um,

indicou-me os homens que eu devia procurar para o começo do

serviço, e combinou comigo, para o dia seguinte, a venda a prazo

de colheita, de todos os gêneros precisos.

“À noite, voltando para o sítio, eu nadava em alegria e

esperanças.

“Fui feliz desde os primeiros tempos, e depois da colheita

apenas fiquei devendo ao Sr. Ribeiro a profunda gratidão que

não tem fim. Mas terminado o arrendamento, no fim de cinco

anos, comprei o sítio, e na mesma ocasião mais dois pequenos

sítios anexos, no todo de vinte alqueires, para o que precisei

novamente de contrair um empréstimo com o Sr. Ribeiro, já

nesse tempo meu compadre e amigo íntimo.

“A fartura de que eu hoje desfruto com a minha família,

graças à bondade de Deus, teve origem naqueles mantimentos e

naqueles cinquenta mil réis que me foram fornecidos pelo Sr.

Ribeiro, e cinco anos depois pelo empréstimo que me fez,

espontaneamente, e sem documento e sem juros, da quantia

precisa para completar o pagamento das terras, por mim

compradas – um conto e quinhentos mil réis.

“Aquele homem confiou a mim quantia relativamente grande,

e gêneros que também representavam um valor relativamente

elevadíssimo, no dia em que me via pela primeira vez. Um bom

pai não teria feito mais por um filho.

“Deu-se esse fato há perto de quarenta e cinco anos, quando

eu tinha pouco mais de vinte anos de idade, e eu lembro de tudo

como se isso houvesse sucedido ontem.

“Conquanto o Sr. Ribeiro tivesse vivido bastante ainda depois

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que eu me tornei fazendeiro, pois faleceu velhinho, com cerca de

noventa anos, nunca me foi possível provar a ele a minha

gratidão, pois nunca precisou de mim, e é por isso que eu hoje

tenho o maior prazer em ser útil aos netos e bisnetos daquele

meu amigo e antigo protetor.

“Ele era seu avô, e por isso eu sou muito feliz em ter podido

prestar um pequeno serviço a você e seus irmãos e cunhados, e

terei muito prazer se em qualquer coisa lhes puder continuar a

ser útil no futuro.

“Assim cumpro simplesmente o meu dever.

“Se por ocasião da carestia dos dois anos passados eu já não

fosse vivo, minha mulher e meus filhos teriam procedido para

com os vizinhos como eu procedi, pois todos eles sabem do caso

que acabo de lhe contar, estão para isso recomendados desde

muitos anos antes, e estavam e estão prontos a pagar por mim

essa dívida de gratidão aos descendentes do nosso antigo vizinho

e protetor.

“O mesmo que eu acabo de lhe dizer pode você dizer aos

seus irmãos e cunhados.

“Eu e minha família nunca deixaremos de honrar a memória

de seu avô.”

***

Luciano, regressando a casa, agradavelmente emocionado,

narrou à sua velha mãe quanto tinha ouvido, e esta disse:

– “Eu me lembro de tudo isso, e sabia que o Jaime ia

proceder desse modo. Eu me recordo da primeira visita que ele

fez a meu pai, há quarenta e cinco anos, e assisti à conversa e à

combinação dos dois. Somente em um ponto ele faltou à

verdade. É quando diz que nunca nos fez favor algum, pois por

diversas vezes já nos foi útil, até mesmo no tempo de meu pai.

Benditas sejam as almas que da gratidão, mesmo exagerada,

fazem uma segunda religião!”.

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XIV

A retribuição

O meu velho amigo Cirilo foi sempre um desses homens a

quem o vulgo chama “sem sorte”.

Trabalhando como um mouro desde a juventude,

primeiramente na lavoura, depois no comércio, e mais tarde

novamente na lavoura, chegou a possuir um bom sítio de cultura,

e perdeu-o, e alguns anos mais tarde, a golpes de trabalho e

economia, adquiriu uma boa casa comercial, que também perdeu

aos embates da adversidade, por ocasião de uma das crises

graves sofridas pelo nosso comércio do interior.

Voltou ulteriormente para a lavoura, mas trabalhando como

empreiteiro nos terrenos de uma fazenda próxima, e continuando

a residir dentro da cidade, em uma pequena casa de um bairro

pobre.

Viúvo com cerca de trinta e cinco anos, contraiu segundas

núpcias, e é hoje pai de numerosos filhos, todos ainda menores,

achando-se ele agora não longe dos sessenta anos, mas ainda

sadio e robusto.

Conheço-o desde a sua mocidade, desde o tempo, já

longínquo, em que eu ainda era rapazote, e posso asseverar ter

ele sido sempre um homem honrado, um cavalheiro digno de

consideração e estima. Entre os seus atos de seriedade e

honradez ocorre-me o do seu depoimento em um pleito de

empenho, do qual era autor um chefe político de grande

prestígio, cujo advogado ocupava importante posto na

problemática representação popular no chamado Poder

Legislativo, poder que entre nós ainda não é mais, infelizmente,

do que o mais subserviente departamento do Executivo.

Chamado Cirilo à presença do outorgante e do seu poderoso

causídico, procuraram estes sugestioná-lo sobre o modo pelo

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qual deveria depor, amparando as sugestões com promessas no

caso de aquiescência, e ameaças no caso contrário, aliás não

esperado por eles. Cirilo respondeu ambiguamente, e no dia

aprazado dirigiu-se ao fórum, e depôs a verdade, que sobre o

caso era bem conhecida somente por ele, prestando assim um

relevante serviço à causa da razão e da justiça, e, sem receio às

iras dos poderosos, estendendo a mão protetora a uma família

pobre injustamente perseguida.

É esse, em traços rápidos, o homem de quem desejo narrar

um ato que constitui um dos pequenos capítulos das minhas

Pérolas Ocultas.

Por um dos seus filhos me foi, espontaneamente, narrado o

fato a que me reporto, dias depois confirmado por Cirilo e sua

senhora, quando por mim interrogado.

***

Em uma tarde de certo domingo entrava Cirilo em sua

casinha, situada, como eu já disse, em um bairro pobre da

cidade, depois de um pequeno passeio com dois de seus filhos

menores, quando avistou uma pobre mulher que vinha

mendigando de porta em porta, recebendo aqui um tostão, ali

um ovo, além um pão.

Lembrou-se então Cirilo de que nesse dia não possuía

dinheiro algum a ser dado àquela pedinte. Tinha algum dinheiro

a receber, possuía alguns gêneros alimentícios ainda na roça, e

dispunha do preciso crédito, na praça daquela cidade, para não

sofrer grandes necessidades na falta de recursos próprios. Não

dispunha entretanto naquele dia de uma pequena moeda de

níquel para uma esmola, e isso entristecia-o.

Ao entrar encontrou a esposa, e, perguntando-lhe se tinha

ela uma pequena quantia para a esmola, obteve resposta

negativa.

– Pois então você dará a ela qualquer auxílio em mantimento

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– disse Cirilo. – Pode dar um litro de feijão.

– Nós temos pouco feijão – replicou a esposa –, apenas uns

três litros.

– Pois desse pouco você pode tirar a metade e dar à mulher

esse auxílio. Na semana próxima havemos de colher o nosso

feijoal, que dará para o nosso consumo durante alguns meses, e

depois havemos de nos arranjar de qualquer forma. Além disso,

a quem dá um de boa vontade pela porta da sala, Deus restitui

dez pela porta da cozinha.

Dizendo estas palavras, Cirilo entrou para o seu quarto, onde,

tomando um jornal de sobre a mesinha, recostou-se em sua

cama larga e cômoda, tendo os pés, calçados, sobre uma

cadeira, com o duplo intuito de ler e descansar, enquanto os

meninos brincavam alegremente no quintal.

Pouco depois chegava a mendiga, e ouviu-a Cirilo agradecer

a vultosa dádiva, declarando ser a mesma muitas vezes superior

à sua expectativa, e terminando ao despedir-se por pedir para

aquele lar as bênçãos de Deus.

O meu amigo sentiu-se muitíssimo mais feliz por haver dado

do que a pobre mulher de ter recebido a valiosa esmola.

Algumas horas depois, já esquecido o incidente, Cirilo e sua

senhora, em sua modesta sala de visitas, palestravam com

algumas visitas costumeiras de quase todos os domingos,

quando um moço robusto, depois de pedir licença, entrou na sala

vergado sob o peso de um volume que trazia às costas, e disse

ao dono da casa:

– O patrão mandou-lhe “de presente” este saco de feijão.

Era um irmão e vizinho de Cirilo quem lhe enviava aquele

presente, que na ocasião valia mais de cem mil réis (cem

cruzeiros). Acabava de chegar do seu sítio de cultura, onde

estivera toda a semana anterior ultimando a colheita, e de onde

tinha já mandado todos os cereais para sua casa, na cidade, a

fim de serem vendidos os que excedessem à quantidade

necessária à sua despesa. De passagem, tinha observado ser

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exígua a produção na pequena roça de Cirilo, e por isso tivera a

lembrança de dar-lhe aquele saco de feijão, apenas algumas

horas depois de ter seu irmão partido com uma pobre mendiga

os três litros que possuía.

Cirilo, acompanhando o portador ao interior da casa, trocou

com sua mulher um olhar expressivo, e ia dizendo consigo

mesmo: “A quem dá um de boa vontade pela porta da sala, Deus

restitui dez pela porta da cozinha...”.

Ao regressar à sala, disse-lhe a esposa sorrindo, à meia-voz:

“E foi mesmo pela porta da sala, e a quarenta por um...”.

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XV

O recruta

O Exército brasileiro tinha iniciado, meses antes, a guerra

sangrenta e longa contra o Paraguai, com enorme sacrifício do

erário público e das economias particulares.

Mas era insuficiente o nosso Exército, composto, em 1865, de

quatorze mil soldados somente, para repelir a avalanche dos

noventa mil guerreiros, bem armados e bem disciplinados, que o

pequeno Paraguai, na ditadura militar de Solano Lopez, atirara

contra as nossas Províncias do sul. Para fazer frente a essa

invasão, e mais tarde dominar as fortalezas inimigas, por muitos

competentes consideradas inexpugnáveis, o Governo tinha

necessidade do apoio do povo em geral, para o qual apelava

então por meio do voluntariado e do recrutamento.

Insuficiente o quadro de voluntários, e incapazes estes, com

os recrutas das primeiras levas, para se repelirem as incursões do

inimigo, o Governo Imperial decretou a continuação do

recrutamento, que começou a ser feito com dobrada energia por

todo o interior, enquanto Osório, no sul, transformava em

excelentes soldados os moços brasileiros para lá remetidos.

Nesse sentido expediram-se ordens terminantes a todos os

distritos deste vasto império, sendo obrigadas todas as

autoridades, sob ameaças de penas rigorosas, a cumprir as

determinações recebidas. Conduziam assim as autoridades, para

as sedes dos respectivos municípios, ou capitais de Províncias,

todos os jovens cujos nomes estivessem na lista a seu cargo.

Alguns desses moços, notificados, compareciam sem

relutância, pela compreensão de assim estarem cumprindo um

dever, ou pela persuasão da parte das mesmas autoridades ou

de amigos, mas outros fugiam, desapareciam, embrenhavam-se

nas matas, permanecendo às vezes longo espaço de tempo entre

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frequentes perigos, e chegando não raro a resistir quando

perseguidos em seus asilos. Alguns chegavam a mutilar-se, a

deformar-se, amputando um dedo, a fim de se tornarem inaptos

ao serviço militar...

Em certa ocasião, em alguns distritos do interior, tornou-se

mais árdua a tarefa das autoridades na caça desses insubmissos.

Beleguins da polícia, auxiliados por populares e oficiais da justiça,

dirigidos por subdelegados de polícia, percorriam os campos,

invadiam as casas, sondavam as florestas, aprisionando homens

destinados ao sorvedouro da guerra, e algumas vezes cometendo

atrocidades não comuns.

Entre numerosas atrocidades cometidas por esses

representantes do poder, lembro-me das duas seguintes:

Um pequeno comerciante era credor de um delegado de

polícia de certo município mineiro, por não pequena quantia, e

um dia dirigiu-se à casa do devedor, a quem pediu

delicadamente o pagamento do débito. O devedor disse-lhe: – O

Sr. veio um pouco mais cedo do que eu esperava, pois eu ainda

não tenho em casa o dinheiro; mas espere uns poucos minutos,

e receberá o seu dinheiro”. O comerciante assentou-se

calmamente, e o delegado, tendo escrito e endereçado às

pressas um bilhete, ordenou a um empregado que levasse aquela

missiva ao destino. O comerciante continuou a esperar,

palestrando amistosamente com o delegado, até que, uns dez

minutos depois chegaram inopinadamente um inferior e dois

praças da polícia, que o prenderam e conduziram à cadeia local,

onde ficou incomunicável o resto do dia e durante a noite, sendo

transportado na madrugada seguinte para o posto militar mais

próximo... como recruta para a guerra contra o Paraguai.

Um delegado de polícia, à noite, à frente de alguns soldados

e guardas municipais, dirigiu-se a uma casa de campo onde

residia um moço inscrito no registro de recrutas, e, aproximando-

se em silêncio, a truculenta autoridade, em vez de chamar

calmamente, esperando que lhe abrissem a porta, arrombou esta

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com estrépito, e penetrou na casa, ameaçador, com os seus

asseclas. Uma jovem ergueu-se da cama, assustada, e tombou

com uma síncope, e um homem de cerca de trinta anos,

enfermo, tiritando de febre, implorava que, em atenção à sua

moléstia e à velhice de sua mãe viúva, não levassem naquela

noite o irmão. O moço que procuravam não estava em casa, mas

em viagem, e por uma triste coincidência regressava nessa

ocasião. Vendo a porta arrombada, e deitada sobre o solo a irmã

desfalecida, e a velha mãe a tremer de medo, e o irmão a tiritar

de febre, dirigiu-se ao subdelegado, declarando não ter

comparecido porque ignorava até na véspera a sua inscrição, e

verberou-lhe com alguma aspereza o procedimento. A

autoridade, vendo-a censurada, e reconhecendo que essa

censura era apoiada pelos próprios guardas que o

acompanhavam, arrancou da cinta um revólver, e com um tiro

prostrou morto o jovem recruta que lhe ousara censurar o

procedimento, e retirou-se deixando naquela casa um cadáver,

um enfermo e duas mulheres desamparadas.

***

Mas assim como entre os espinhos agudos e traiçoeiros

viceja a rosa, e entre os cardos agrestes sorriem formosas flores,

e em um cacto parasitário, acostado a um tronco carcomido,

encontra-se um fruto saboroso, entre esses homens sem

consciência e sem entranhas existiam também indivíduos cheios

de comiseração pelas desditas alheias, e homens cuja bondade

poderia servir de modelo à posteridade e de título de nobreza à

sua descendência.

É com um desses exemplos, infelizmente raros então e

sempre, que eu honro este despretensioso capítulo de meu livro

Pérolas Ocultas.

***

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O subdelegado João Rodrigues dos Santos, do distrito de paz

de Monte Verde, recebera a lista dos recrutas do distrito a seu

cargo, com ordens severas contra os insubmissos.

Fez João Rodrigues as precisas notificações aos interessados,

e no dia designado quase todos eles se apresentaram, na sede

do distrito, no salão da subdelegacia, e ao romper do dia

seguinte, depois de assistirem à missa que em sua atenção

celebrara o vigário da paróquia, e de ouvirem o discurso

patriótico pronunciado pelo médico do lugar, partiram para a

sede da região militar mais próxima, ao som do hino nacional,

executado por uma banda de músicos que o acompanhou até o

fim do povoado, e acompanhados ainda por uma multidão onde

havia pais, mães, irmãos, noivas e mais pessoas da família e das

relações dos jovens recrutas.

Eu disse – quase todos – referindo-me aos moços inscritos na

lista dos novos defensores da pátria, porque um deles, um

somente, deixara de comparecer.

Alguns dias depois o subdelegado, a sós, dirigiu-se ao sítio

onde sabia residir o conscrito faltoso, a mais de duas léguas do

povoado.

Estradas de pouco trânsito, em parte cobertas de capim e

outros vegetais, e em diversos trechos, de um e outro lado,

vastos roçados, alguns dos quais já queimados, vendo-se

numerosos escravos que ajuntavam lenha em grandes montes, à

margem do caminho. Ao longe, em frente, toda a vertente em

fogo: era a queimada. E pelo ar abafadiço, enfumaçado, sem sol,

flutuavam folhas queimadas, baloiçando-se ao sopro leve da

aragem quente de agosto.

João Rodrigues dos Santos, numa tristeza indefinida, deteve

por alguns minutos a alimária, e do ponto elevado onde se

achava examinava detidamente os arredores, mergulhados, como

ele, na mesma tristeza muda e indefinida, quando das

proximidades de uma casinha rústica, situada na encosta à

esquerda, surgiu um cavaleiro que veio ao seu encontro, isto é,

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em direção ao povoado. Com esse cavaleiro falou João Rodrigues

durante alguns momentos, dele obtendo as desejadas

informações sobre a direção a tomar, e continuou a viagem

seguindo por um trilho, à direita, morro acima, em parte por

entre alas de bambus, e sempre pisando a vegetação rasteira da

encosta, até parar, afinal, quase em frente a uma casa de

aspecto pobre, mas bem cuidada, construída a meio de um

declive que terminava em um córrego, e junto a um vasto

canavial onde trabalhavam diversos homens. À direita da casa,

sob uma coberta de telhas que era a continuação de um pequeno

celeiro, rodava morosamente um engenho de madeira, tirado por

um cavalo, e ali duas moças moíam a cana cuja garapa seria

transformada em rapaduras ou açúcar de forma.

Recebido à porta por uma senhora idosa, o subdelegado de

polícia apeou, entrou, e, aceitando a cadeira tosca que lhe era

oferecida, entrou sem demora no assunto que o levava àquela

casa. Que os outros recrutas tinham-se apresentado

espontaneamente, e tinham seguido no dia marcado, apenas

faltando o filho dessa senhora, ao qual vinha então falar, e que

era muito contra sua vontade que ali se apresentava, cumprindo

amargamente o seu dever, e concluiu declarando que o recruta

João Rodrigues dos Santos – nome exatamente igual ao seu –

ficava avisado que devia comparecer cinco dias depois, a fim de

seguir para Ouro Preto com os recrutas de dois municípios

vizinhos.

A mulher declarou, em resposta, que seu filho teria

comparecido se o pai não houvesse enfermado, na antevéspera

da partida, com uma congestão cerebral, da qual não havia

esperanças de completo restabelecimento, e que, achando-se ela

também enferma, devido aos trabalhos e vigílias pela

enfermidade do marido, contavam todos com o amparo do filho,

pelo menos durante alguns meses, pois os outros filhos eram

casados e residiam a distância...

A pobre senhora falava com sentimento, e lágrimas

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abundantes corriam-lhe pelas faces.

Conduziu o visitante ao quarto do enfermo, que aliás

começava a andar, mas hemiplégico, e mostrou, ao longe, o filho

que trabalhava na conclusão de um pequeno roçado em

companhia de alguns empregados.

João Rodrigues, conversando com o enfermo, aceitou a

xícara de café que uma das moças lhe ofereceu, e depois de mais

meia hora de palestra, sobre vários assuntos, saiu a percorrer,

com uma das moças e a velha senhora, todas as dependências

da pequena propriedade agrícola, tomou parte no modesto mas

delicado jantar da família, e retirou-se, à tarde, deixando a

promessa de que o moço não seria perseguido, e ficaria isento

mesmo do serviço militar. Como recompensa, pedia apenas o

mais absoluto sigilo sobre o caso.

As duas moças, muito simpáticas, em trajes de serviço,

sorrindo alegremente ante a promessa do subdelegado de

polícia, acompanharam-nos até a porteira do terreiro, onde a

alimária comia pacatamente o seu milho em um pequeno cocho,

e ofereceram-lhe flores, e fizeram-no aceitar laranjas em um

pequeno e alvo bornal de algodão.

Ao despedir-se, João Rodrigues tinha os olhos úmidos,

enquanto as duas irmãs sorriam, lembrando ao moço que se

retirava esperarem outras visitas suas.

Descendo o morro, a passo vagaroso, e cavalgando a sós em

demanda da estrada, então deserta, João Rodrigues pensava na

sua estranha promessa de proteção àquele insubmisso, e media

a grande responsabilidade que lhe poderia caber, e a extensão

do sacrifício que tal ato lhe poderia custar.

E seguia triste, meditando profundamente.

Chegando à várzea, lançou um último olhar à casa dos pais

do moço inscrito na lista do recrutamento, casa ainda visível, ao

longe, por entre as árvores, raras, que sucediam, na descida da

encosta, ao bambuzal espesso, e percorreu o olhar, vagamente,

por toda a restinga, e pelos campos vizinhos, então

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despovoados, enegrecidos pelo fogo das queimadas, e mal

iluminados pelos reflexos avermelhados do sol, oculto pela

densidade da fumaça, e já prestes a desaparecer no ocaso.

– “Eu e o moço temos o mesmo nome – dizia consigo o

viajante – e é pequena a diferença entre a minha idade e a dele.

São poucos anos mais os que eu conto de vida – uns três, se me

não engano. Mas ele tem pai, mãe, irmãs, irmão, sobrinhos,

noiva, e eu vivo solitário. Meus pais já não existem, irmãs eu não

conheci, e minha noiva traiu-me, casando-se com um moço que

ela supunha rico, e que abandonou-a covardemente três anos

depois, com dois inocentes filhinhos. E eu fiquei abandonado, a

sós, nesta terra onde nasci, vivendo como se estivesse em uma

terra estranha. Meus irmãos, casados, mudaram-se para lugares

afastados, não permanecendo neste distrito nenhuma outra

pessoa da família. Tenho como família alguns amigos apenas.

Hoje, aos vinte e oito anos de idade, sou o maior comerciante do

distrito, tendo adquirido uma pequena fortuna, relativa ao meio,

em 10 anos de trabalho metódico e de economia. Mas tudo

quanto possuo é pouco, é insuficiente, para me fazer feliz. Minha

casa é vasta e cômoda, mas... tão vazia! O moço recruta,

embora pobre, é mais feliz do que eu, pois é amado, é noivo, e é

útil a seus velhos pais e às suas irmãs. Uma dessas, Iracema,

demonstra, há bem tempo, pronunciada simpatia por mim; mas

meu coração, ferido profundamente no primeiro amor e na

primeira perfídia, não corresponde a esse generoso afeto. A essa

família fiz hoje a minha primeira visita, que também será a

última, se me não enganam as minhas tristes previsões. Mas,

afinal, a partida desse moço para a guerra seria a miséria para a

família, seria talvez a morte do pai, seria o desamparo da mãe e

das irmãs...”

Assim pensando, assim dizendo consigo mesmo, continuava

João Rodrigues a caminhar para a sede do distrito, ainda à

distância de alguns quilômetros.

Era noite.

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No dia seguinte, às primeiras horas, dois homens práticos,

auxiliados pelo próprio negociante e seu caixeiro, procediam a

um balanço rápido mas minucioso na casa comercial de João

Rodrigues dos Santos, e este, terminado o balanço, na noite do

terceiro dia de trabalho, firmava um contrato com esses três

homens, isto é, com o seu antigo empregado Josias de Abreu e

os irmãos deste, Hilário e Antônio de Abreu, vendendo-lhes o seu

estabelecimento comercial, com o seu ativo completo, inclusive

móveis e semoventes, e constituía um procurador para o fim

especial de em seu nome vender aos mesmos compradores os

dois prédios de sua propriedade, assinando a respectiva

escritura.

Os compradores ficaram responsáveis pelo passivo, aliás,

diminuto, e a cada um deles cabiam atribuições especiais.

O pagamento deveria ser feito na agência bancária mais

próxima, em parcelas, de seis em seis meses, e ali o vendedor

poderia receber cada parcela, com os juros, um ano depois de ter

sido ela ali depositada.

No caso de não serem tais quantias reclamadas pelo seu

proprietário, ou procurador seu legalmente constituído, no devido

tempo, continuariam elas a vencer o mesmo juro, com o prazo

de mais um ano, e o mesmo sucederia não sendo reclamadas no

fim do segundo ano. As quantias não reclamadas ao findar o

terceiro ano, isto é, após o decurso de três anos a contar do dia

do respectivo depósito – se tal sucedesse –, deixariam de

pertencer a João Rodrigues, e seriam creditadas aos herdeiros

deste, com a obrigação de, retirando-as, dividirem entre si

apenas a metade, entregando trinta por cento ao recruta isento

João Rodrigues dos Santos e suas duas irmãs, e entregando à

firma sucessora os restantes vinte por cento, os quais deveriam

ser partidos em duas porções iguais, sendo uma aplicada em

melhoramentos, exarados no contrato, na sede do distrito, e a

outra repartida entre os pobres do lugar.

Era esse, em resumo, o contrato entre João Rodrigues dos

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Santos e os compradores, com os quais tinha ele ilimitada

confiança, subindo toda a compra a um pouco mais de cem

contos de réis.

Ultimados esses negócios, com a previsão talvez de jamais

regressar, João Rodrigues dos Santos, declarando passar alguns

meses em viagens, despediu-se de algumas pessoas íntimas

somente, e retirou-se de Monte Verde, a cavalo, com destino

ignorado.

***

Ninguém compreendia os planos daquele homem.

Como poderia ele livrar do serviço bélico, sem compromissos,

o jovem recruta seu homônimo? E com que intuito se retirava,

incluindo-o, e as duas irmãs, no número dos seus herdeiros, para

a eventualidade de não regressar a Monte Verde, isto é,

prevendo a própria morte?

Ninguém o compreendia.

Ao retirar-se deixara uma carta dirigida ao pai do recruta,

carta que foi entregue no dia seguinte, mas apenas divulgada

dois anos depois, na qual assegurava que o filho ficava

inteiramente livre do serviço militar, e participava a sua resolução

de viajar, a venda da casa comercial e imóveis, e as disposições,

no contrato, que poderiam interessar àquela família. Declarava

ainda na referida missiva que, agindo daquele modo, obedecia às

sugestões do seu coração, e cumpria um dever de consciência,

sem entretanto faltar aos seus deveres de autoridade.

***

Durante alguns meses o caso de João Rodrigues continuou a

constituir a parte principal das palestras, em Monte Verde e nos

distritos vizinhos, ninguém chegando a uma conclusão plausível

sobre tão enigmático modo de proceder.

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Desde os primeiros dias alguns indivíduos propensos à

maledicência avançavam que João Rodrigues dos Santos,

autoridade, protegia a João Rodrigues dos Santos, recruta,

porque este tinha duas irmãs formosas, uma das quais não era

indiferente àquele...

Esses murmúrios foram cessando, a pouco e pouco, e dois

anos depois somente em Monte Verde faziam-se ainda

comentários sobre o caso, sem notícia alguma do subdelegado,

que entretanto não fora substituído. Não tendo sido reclamadas

as quantias depositadas na agência bancária, iam os juros sendo

acumulados, com a renovação do prazo de ano em ano.

Os três irmãos que tinham adquirido as propriedades e

negócio continuavam a progredir, e o moço inscrito na lista dos

recrutas, nada tendo a temer, uniu-se pelo matrimônio à eleita

do seu coração, e vivia feliz, com sua esposa, ao lado dos seus

velhos pais, que os cobriam de bênçãos.

O fato já era bem comentado, quando, mais de dois anos

depois, os jornais, noticiando os sangrentos combates da tomada

da ponte de Itororó, noticiaram:

“Entre os mortos estava o sargento João Rodrigues dos

Santos, do distrito de Monte Verde, Província de Minas Gerais,

incorporado ao Exército, como recruta, dois anos antes, e

promovido sucessivamente até o posto de sargento devido aos

seus atos de heroísmo, principalmente no perigoso trabalho de

salvamento de feridos.”

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SEGUNDA PARTE

Fatos e Comentários

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I

A maior das obras de Deus

Convidado a opinar, para as páginas de uma revista, sobre a

grandeza das obras de Deus, isto é, convidado a declarar qual

dessas obras sublimes, em minha opinião, é a mais elevada, mais

bela, mais perfeita, conservei-me longamente em silêncio,

receoso de ser uma falta dissertar sobre assunto de tão provada

transcendência.

Como poderia eu, pequenino, finito, frágil, alçar o

pensamento à imensidade, ao infinito, à grandeza e ao poder do

Pai Celeste?! Eu, tudo ignorando, verme minúsculo da Terra,

erguer o olhar à onisciência do Ser Supremo?!

O que hoje faço talvez seja, portanto, uma ousadia. Tão

grande é, porém, a misericórdia divina, que extinguirá a minha

falta cobrindo-a com o manto do seu perdão sublime.

Mas o meu ato, neste rude escrito, não é uma falta para com

o Onipotente, mas apenas perante os homens; pois a Grandeza

Infinita, que domina o universo, não será jamais atingida por um

obscuro verme deste mundo.

Falta no tempo, e não na eternidade; ousadia perante meus

irmãos, os homens, e não para com o Eterno, o Pai.

***

Perdoai-me, pois, Deus e Senhor meu, se for ousadia

proclamar qual é, de vossas obras sublimes, a mais elevada, a

mais bela, a mais perfeita.

Perdoai-me, pois; não por Vós, a Quem a minha ousadia, se

assim o meu ato for considerado, jamais atingirá, mas pelo

conceito que de mim podem fazer os homens, hóspedes, como

eu, deste ponto minúsculo da imensidade, denominado Terra, se

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me puder molestar esse conceito, ao verem-se eles abordar

assunto de tão extraordinária transcendência.

Perdoai-me, pois, Deus e Senhor meu, e permiti-me

proclamar, neste rude escrito, qual é, dentre vossas obras

sublimes, a mais bela, a mais perfeita.

***

Quando, durante o dia, eu volvo o olhar pelo espaço que nos

circunda na Terra, e imagino a quantidade de espaços

semelhantes de que é composta a superfície desta enorme

esfera, minha alma se extasia de admiração ante o Criador deste

mundo. E vendo o sol que nos ilumina e aquece, e lembrando-me

de que esse sol é o centro de um sistema de mundos

semelhantes ao nosso mundo – maiores uns, e outros menores,

mas todos cheios de luz e de vida, e todos habitados ou

habitáveis por humanidades semelhantes à deste mundo –, meu

espírito perde-se em conjecturas acerca da grandeza e do poder

do Senhor Supremo.

Se cada uma dessas moradas possui a sua atmosfera, as

suas selvas, os seus rios, os seus mares, a sua fauna, as suas

montanhas, os seus vales; se sobre cada uma delas existe e

evolui uma raça pensante; se em torno desses mundos gravitam

astros secundários, que são outras tantas luas iluminando-lhes as

noites com os revérberos do astro-rei; e se cada uma dessas

esferas, girando no espaço, tem as suas estações e as suas

belezas naturais, e tem também quanto vemos entre nós de

encantador e grandioso, todo o meu ser vibra, de admiração e de

deslumbramento, contemplando nessas maravilhas o poder do

Senhor Supremo.

Mas entre as obras de Deus, algo existe mais elevado e mais

belo.

***

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Quando, à noite, atiro um olhar à imensidade, e contemplo

os milhões e milhões de estrelas que povoam esses espaços sem-

fim, minha alma sente-se extasiada perante a magnificência do

Ser Supremo, sabendo ser um sol cada uma dessas estrelas, ao

redor do qual gravitam astros que são outros tantos mundos,

habitados ou habitáveis, centenas ou milhares de planetas e seus

satélites, girando no espaço, e levando cada um desses mundos

as suas maravilhas particulares, as suas raças ignotas, as suas

belezas naturais, uma fauna talvez estupenda, uma flora talvez

exuberante, e talvez os seus sábios, os seus gênios, os seus

admirados cientistas...

E cada estrela é um sol, em torno do qual há outros mundos

semelhantes a este que nós habitamos; e essas estrelas são

tantas, isto é, são tão numerosos esses astros-sóis, centro ao

redor dos quais vivem e giram astros, que, se as pudéssemos

contar, veríamos, maravilhados, que o seu número é maior do

que o número de gotas d’água que o nosso oceano contém!

São tantos esses sóis misteriosos, perdidos para nós pelo

infinito, que a lenda antiga pretendeu ver, esparso na amplidão,

o branco líquido de onde se derivou o nome de Via Láctea, nome

dado ainda àquele magnificente e imenso cardume de estrelas,

que aos nossos olhos parecem unidas umas às outras, estando

entretanto separadas entre si por distâncias incomensuráveis.

Contemplando, à noite, aqueles sóis longínquos, e imaginado

o sistema solar que cada um deles preside, e pensando nas

outras maravilhas do espaço infindo, com as suas nebulosas –

germens talvez de futuros mundos –, e os cometas misteriosos,

de alongadas elipses, minha alma é arrebatada e curva-se,

submissa e deslumbrada, ante a magnificência de Deus, que tudo

dispôs nesse universo sem-fim.

Mas entre as obras de Deus, eu penso existir algo mais

elevado e mais belo.

***

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Quem, como eu fiz, já se embrenhou a sós por uma floresta

espessa, onde não se ouvisse a voz de outro ente humano, e aí

viu árvores colossais, e frutos, e flores, e aves canoras, e animais

silvestres, e aí conservou-se longo tempo a pensar sobre a

riqueza imensa das selvas, sobre a quantidade admirável de

seres vivos aí ocultos, e acerca dos mistérios aí entrevistos, deve

ter ficado deslumbrado pela grandeza e pela sabedoria do

Senhor Supremo.

Como pode, em uma pequenina semente, ocultar-se o

gérmen de uma árvore gigantesca?! Como pode o tronco anoso

ser oriundo de um fruto quase informe, e tanto se elevar e se

fortalecer que chega a resistir com galhardia à fúria dos

vendavais?! Como pode, do solo impuro, subir a haste flexível

onde desabrocha a flor?! E as aves, com o seu canto e os seus

ninhos, e as flores, com o seu perfume, e as águas cristalinas do

riacho que murmura?!

Em tudo, e por toda parte, vemos a magnificência do Senhor

Supremo – nas grandes e nas pequenas cousas da criação, no

majestoso roble como no musgo humílimo, nas asas possantes

da águia como no esvoaçar do esbelto colibri, para o qual não

nunca houve segredos para a permanência em um ponto do

espaço.

É tão grande o poder, e tão admirável é a sabedoria de

Quem criou as selvas, e nelas fez surgir quanto nelas vive e

sente, que minha alma se eleva, comovida e deslumbrada,

pensando na bondade infinita que tais maravilhas criou.

Mas entre as obras de Deus, algo existe mais elevado e mais

belo.

***

No silêncio dos campos, na solidão das selvas, ou à vista do

oceano, longe, bem longe do bulício dos outros entes humanos,

é que nossa alma se eleva mais diretamente aos pés do Senhor

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Supremo.

O silêncio dos campos e a solidão aproximam-nos de Deus.

Alta noite, junto à cidade adormecida, quem já esteve, a sós,

à luz argêntea da lua, contemplando o oceano, e sentindo, a

seus pés, o embate forte e sonoro das vagas de encontro às

pedras da margem deve ter sabido compreender como é grande

o mar, formoso nos seus dias de calma e nas suas noites

silenciosas, majestoso e belo nos mistérios que encerra em suas

entranhas profundas, e mesmo em sua imensa superfície, e

imponente e tétrico, mas ainda assim formoso, nos seus dias

tempestuosos, nas suas noites de trevas e de borrasca, quando o

nauta lhe vê as fauces dos abismos, pressentindo, nos ares

revoltos, a voz ameaçadora, de morte e de extermínio, contra o

frágil batel assim exposto à fúria dos ventos e das vagas.

No fundo ainda quase desconhecido do oceano, nos seus

vales profundos e nas suas escarpadas montanhas, que estranha

flora vegetal e que extraordinária fauna habita?!

Em cada gota de sua água existe o que a fraqueza do nosso

aparelho visual nos não permite distinguir; mas as lentes do

microscópio aí descobrem seres que vivem, que sentem, e talvez

– quem o poderá negar? – que progridem, que evoluem...

Vendo esse mar imenso, com o desejo insano de lhe

desvendar os arcanos, nossa alma se prostra, reverente, perante

a grandeza dos mares, em tudo sentindo a magnanimidade de

Deus, o Ente infinitamente poderoso e sábio para Quem não há

mistérios em todas essas maravilhas.

Mas entre as obras de Deus algo existe mais elevado e mais

belo.

***

Perdoai-me, Deus e Senhor meu, pela ousadia em que eu

talvez esteja incurso, não perante Vós, mas perante meus

irmãos, os homens, proclamando que alguma cousa existe, entre

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as vossas obras sublimes, mais elevada, mais bela, mais perfeita

do que o mar imenso com todos os seus mistérios, do que as

florestas espessas com todas as suas riquezas, do que a Terra

onde habitamos com todas as suas belezas naturais, e do que a

amplidão infinda, povoada de mundos incontáveis, e repleta de

maravilhas, e que é, toda ela, como que um hino perene de

glória para com o Senhor Supremo, para com a sabedoria infinita

do Criador.

Algo existe, pois, entre as obras de Deus, mais elevado, mais

belo e mais perfeito do que a Terra, o mar e o infinito.

***

Eu penso que, entre as obras sublimes de Deus, a mais

elevada, a mais bela, a mais perfeita é, incontestavelmente, o

amor de mãe.

Que seria do indefeso entezinho se lhe faltasse o carinho

materno?!

Iniciando a vida terrena, o recém-nascido chora, lamenta-se.

Talvez sejam os protestos da ave altiva e livre, que se librava nos

ares, contra as agruras do nosso mundo, cadeia de almas que

recebe mais um sofredor.

Ei-lo, o recém-nascido, pequenino, quase inerte, privado da

consciência e da palavra, e ignorando a importância da sua

missão, mas já envolto em faixas, e docemente estendido sobre

o fofo colchãozinho do seu leito suspenso.

E alguém vela, dia e noite, à beira do pequenino berço.

Ao abrir a criancinha os seus olhos doloridos, pouco afeitos

ainda à nossa luz, alguém, num sorriso santo de felicidade, de

esperança e de amor, vem depor-lhe, sobre o corpo rosado,

sobre os bracinhos tenros, sobre as mãozinhas apertadas, sobre

a lisa e pequenina face, um sem-número de beijos castos,

impregnados do amor mais puro e mais santo.

Se chora o inocentinho, há alguém, a seu lado, que o embala

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e consola, que o defende contra as intempéries, que o alenta

com carinho inexcedível, com afeição incomparável.

É sua mãe.

***

A mulher é mais formosa quando é mãe. Não lhe reconheço

a verdadeira beleza se lhe não vejo nos braços o filhinho amado.

Sempre foi este, para mim, o quadro mais belo da criação: a

mãe, sorridente, tendo nos braços o filhinho a sugar-lhe os seios

túmidos.

É a carne da sua carne, a vida da sua vida. Representa para

ela um mundo inteiro de amor, e concentra para ela as mais

fagueiras, as mais belas e lisonjeiras esperanças.

***

Que seria do inocentinho se lhe faltasse o carinho materno?!

Mas passam dias e noites, decorrem semanas, escoam-se

meses, sem que, por um momento, falte quem vele junto a seu

berço, ou durma a seu lado, ouvindo-lhe o respirar calmo da

inocência e da confiança, ou despertando ao som do mais ligeiro

vagido, para novos cuidados, para novos esforços pela saúde e

pela tranquilidade do pequenino ente tão ternamente adorado.

Mesmo durante o sono reparador, a mãe, amorosa e boa, vê

em sonhos o filho querido.

E os meses continuam a passar, e vão os anos decorrendo.

Com o perpassar do tempo não diminuem, porém, os cuidados

maternos. O filho tem crescido em idade, em forças, em

tamanho, em raciocínio, e então é tempo, para a mãe dedicada,

de lhe formar a alma, de lhe incutir a crença em Deus e na

imortalidade, de lhe inspirar amor ao bem e ao próximo.

No correr da vida muitos homens são, física e moralmente,

os indivíduos que suas mães idearam.

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Sem o amor materno, numerosas criaturinhas pereceriam,

não podendo resistir aos perigos da primeira infância, e a

quantos sobrevivessem faltariam, no futuro, os sentimentos mais

nobres que apenas um coração de mãe sabe inspirar, e o mundo

estaria, consequentemente, pleno de deformidades.

É por tudo isso que eu penso ser o amor de mãe a mais

elevada, a mais bela e a mais perfeita das obras sublimes de

Deus, mesmo quando essa maravilhosa criação da bondade

divina é comparada às selvas, ao mar e ao espaço, e a quanto

existe nas selvas, no mar e no espaço.

***

Ao inocentinho que entre nós vem viver, falta às vezes, nos

seus primeiros tempos de existência terrena, o carinho materno,

porque a mulher a quem deve a vida terminou, cedo ainda, a sua

vilegiatura neste mundo de incertezas; mas então, tão grande é

a misericórdia divina, que o pequenino orfanado é recolhido com

afeto e carinho, pressurosamente, por um coração a quem a

ternura de outra progenitora soubera transferir, anos antes,

quanto de afeição e de cuidados sabe abrigar um coração de

mãe.

E é assim, mesmo indiretamente, que a infinita bondade de

Deus se manifesta através da mais sublime de Suas obras – o

amor de mãe. Sem ele, o nosso mundo seria um caos. Os mais

nobres sentimentos humanos desapareceriam. O amor conjugal

passaria a ser uma convenção. A verdadeira fé religiosa seria

substituída pelo negro cepticismo. O dever seria do domínio dos

códigos.

Deus, criando o amor materno, agiu menos como Senhor do

que como Pai. Essa criação, a mais sublime, é filha da Sua

ciência sem limites, mas inspirada pela Sua misericórdia imensa e

pelo Seu amor infinito.

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***

Eu penso, pois, que a mais elevada, a mais bela, a mais

perfeita das obras de Deus é, incontestavelmente, o amor de

mãe...

Examinemos uns fatos, entre numerosos que me ocorrem.

Um dos meus amigos fora acometido por uma doença grave,

no crânio, e era necessária uma intervenção cirúrgica. Para isso

dirigiu-se à capital, acompanhado da esposa; mas os mais

ilustres facultativos, por ele procurados, exigiam que

primeiramente ele se fizesse mais forte, mais robusto, de modo a

resistir à dolorosa operação, pois estava tristemente abatido no

físico e na moral.

Entre esses facultativos estava um parente e amigo do

enfermo. Esse ilustrado clínico, porém, devia seguir naquela

ocasião para o sul, em trabalhos da sua honrosa profissão, e,

fazendo-lhe a última visita de médico, partiu quase convicto de

não mais o encontrar à sua volta, tão pálido e desanimado estava

o pobre moço.

No dia seguinte, também a esposa do enfermo abandonou-o

naquela metrópole, e voltou à terra natal, onde enfermara

gravemente o velho pai.

Cerca de trinta dias se escoaram. Em uma bela tarde de

verão, o ilustre médico, regressando de sua viagem ao sul, quis,

antes de se dirigir ao lar, saber notícias do primo enfermo, e

encontrou-o forte, animado, bem disposto, à porta da casinha

ajardinada que lhe servia de residência. Parecia em plena saúde.

O moço correu ao encontro do recém-chegado, estendendo-

lhe as mãos numa saudação cheia de afeto, mas o doutor, antes

de lhe corresponder ao cumprimento, asseverou:

– Tua mãe está aqui contigo.

– Sim – respondeu o moço; – há mais de vinte dias. E por

que o dizes?

– Porque somente um amor de mãe é capaz de voltar à vida

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um quase moribundo – respondeu o doutor.

E realmente com o enfermo estava sua mãe, que, sabendo,

vinte e cinco dias antes, em que condições estava o filho, correra

em seu auxílio. Mal podendo dispor dos recursos necessários à

longa viagem, partira pelo primeiro comboio.

A pobre senhora não conhecia a capital, mas seguiu sem

relutância; não dispunha de uma companhia, mas seguiu a sós.

Sem os cuidados assíduos de uma mãe amorosa, sem o

tratamento carinhoso e incansável daquela a quem devia a vida,

jamais o pobre enfermo recuperaria as forças, e nunca se

elevaria, física e moralmente, às condições necessárias à

intervenção cirúrgica.

Pouco depois era o moço operado, e iniciava a curta fase de

convalescença, terminada em completo restabelecimento.

***

De quanto é capaz um coração de mãe? É sempre o mesmo

o seu amor, em todas as épocas da vida do filho, e por este

sacrifica a fortuna, os gozos da vida, o fruto do seu labor insano,

os confortos de um lar feliz, a própria saúde, a própria vida,

enfim, se tanto se tornar preciso, tudo fazendo sem um

queixume, e considerando-se feliz em concorrer para a felicidade

do filho querido.

***

Quando entrardes em uma cadeia, em visita de caridade, ou

quando percorrerdes as dependências de uma penitenciária,

levado pelo desejo de fazer o bem como discípulo de Cristo e

como cidadão, procurai, um por um, em particular, os criminosos

condenados pelos delitos mais horrendos, mais terríveis, e a cada

um desses infelizes perguntai com interesse afetuoso:

“Onde reside tua mãe?”

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Um deles responderá: “Não conheci minha mãe, senhor;

faleceu quando eu nasci”.

E outro vos dirá: “Minha mãe faltou-me na primeira infância;

não existe mais”.

E um outro vos explicará: “Eu fugi da casa de meus pais

quando ainda era menino, e nem sei sequer se minha mãe ainda

existe!”

E outro infeliz vos elucidará: “Eu sou um filho do erro, e as

convenções sociais baniram-me do lar. Não sei quem é ou quem

foi a minha mãe”.

Dai a cada um desses infelizes, se disso necessitarem, uma

pequena lembrança que lhes deixe um pouco de conforto

material, e a todos eles dedicai uns momentos de consolo,

descerrando-lhes as portas longínquas da esperança pelo

caminho da fé, do arrependimento, da regeneração e do amor, e

serenai o vosso espírito, ao deixardes esse campo de misérias,

pensando na bondade infinita de Deus, que a todos os Seus

filhos aguarda com o Seu perdão de Pai amantíssimo.

***

Conheceis decerto alguns homens moralmente sãos, cujas

qualidades, como chefes de família, e amigos, e funcionários, e

cidadãos, podem ser tomados como modelo. Encaminhai-vos a

alguns deles, particularmente, na direção de um estabelecimento

industrial, ou à banca honrada de um advogado, ou à cátedra do

mestre erudito, ou no laboratório onde trabalha o sábio, ou ao

consultório de um facultativo que de sua ciência faz um

sacerdócio, ou a qualquer parte, enfim, onde trabalha um

homem com honra, com dedicação e com fé, e a cada um deles

interrogai:

“Senhor, eu desejara saber a quem deveis a posição que

ocupais. Quem vos ensinou a subir com honra, a engrandecer-

vos sem soberba, a devotar-vos ao bem? Deveis a compreensão

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dessas verdades ao vosso próprio mérito, aos vossos próprios

esforços pessoais, ou tivestes um mestre que vos apontou o

caminho do bem, da honra, do dever?”

Algum desses homens, dirigindo-se ao interior de sua

residência, de lá regressará trazendo pelo braço uma velhinha

sorridente, que vos apresentará nestes termos: “É minha mãe...”

Outro, menos feliz, ouvindo a vossa pergunta, erguerá a

destra em direção a um quadro que lhe honra a câmara de

trabalho, e vos dirá com os olhos úmidos de pranto:

“Cavalheiro, eu tive uma mãe”.

E diversos outros dar-vos-ão respostas semelhantes.

É que o amor de mãe não se confina somente num berço.

Não justifica a alegoria grega do amor-menino. Acompanha o

filho desde o primeiro vagido até que um desses dois entes

desaparece da vida terrena, e depois ressurge na vida futura, e

vive e brilha pela amplidão infinda.

***

Vi algures uma família sem chefe, uma viúva coberta de luto,

alguns infantes sem pai, um lar onde a desdita se alojara. Pouco

tempo antes habitavam ali a alegria e a esperança. Mas um dia

morrera o chefe da família, o pai, esvaindo-se em sangue,

horrivelmente ferido pelo ferro homicida que seu próprio filho

manejara.

Muito jovem ainda, o imberbe matador pensou na fuga, mas

o remorso atirou-o às mãos da justiça dos homens, que o

condenou à pena máxima.

Por que cometera ele o horrendo crime? Defesa de alguém?

Defesa própria? Sugestão de um Espírito devotado ao mal? Medo

de opinar, nas desarmonias domésticas, se existiam, contra

quaisquer arbitrariedades paternas? Ou ausência de cultivo

moral, ou falta de crença, ou um momento de loucura?

Ninguém o sabe. Ninguém o saberá talvez.

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E o infeliz parricida, muito jovem ainda, quase adolescente,

viu fechadas após si as férreas portas da penitenciária, e viu que

ao longe, junto a uma aldeia pacífica, naquela herdade

anteriormente alegre e calma, ficava uma família banhada em

lágrimas e coberta de luto e de vergonha.

Pois a mãe extremosa desse infeliz, vendo-o embora culpado

de tanta dor, de tanta e tão acabrunhadora desdita, saía à

procura de clemência para o filho parricida. Com o coração a

transbordar de amor, e a alma de mãe a ressumbrar de afetuoso

perdão, deixava bastas vezes o lar, e despendia não pequena

parte do fruto do seu trabalho e das suas economias, e partia,

viajando com sacrifícios inauditos, a fim de impetrar perdão para

o filho, o seu primogênito, tanto mais querido quanto mais

desditoso se tornara, até que um dia, quase vinte anos depois do

horrendo crime, um dos dirigentes deixou-se comover pelas suas

lágrimas, pelos seus rogos, e restituiu-lhe o filho.

Tem muito de divino o amor de mãe, ao qual nem o crime, e

crime tão atroz, consegue jamais arrefecer.

***

No interior de um castelo antigo e nobre, no centro de uma

família de costumes austeros, penetrou um dia a desonra: uma

criança devia em breve surgir à luz, sem que anteriormente se

houvesse efetivado um matrimônio. Era necessário desaparecer a

prova do erro. Assim opinava a velha castelã, e assim confirmava

a jovem, filha única, que tivera a fraqueza de crer nas juras

fementidas de um moço pervertido pelos maus exemplos da

época.

Para que desaparecesse o inocentinho, porém, esbulhado até

dos seus direitos de herança, pensou a rica fidalga dever falar ao

velho e sábio arcebispo – naqueles tempos em que, como disse

Vieira, os vasos eram de pau, mas os sacerdotes eram de ouro –,

e o prelado, profundo conhecedor do coração humano, declarou

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a ambas as senhoras que o caso era justo, e seria a ação digna

da aprovação de Deus, mas apenas sendo ele, o arcebispo, quem

recebesse o inocentinho e se encarregasse de o extraviar, sob o

mais rigoroso sigilo, o que poderia ser feito somente depois que

a jovem mãe conservasse consigo o pequenino durante três

dias...

E efetivamente o velho prelado, algum tempo depois,

entrando na alcova alcatifada onde tinha nascido, três dias antes,

a inocentinha criancinha, dirigiu-se à jovem mãe, que a

amamentava sorrindo, e disse, estendendo-lhe as mãos: “Venho

reclamar o recém-nascido a fim de fazê-lo desaparecer,

concluindo a minha missão”.

– Não – respondeu-lhe a mãe com firmeza; – o meu filho não

se arredará de mim. Eu o criarei com dedicação e com amor.

– E eu tudo farei para que o meu amado netinho seja feliz

entre nós – asseverou a velha fidalga sorrindo ao pequenino.

Eram dois corações de mãe. Afrontavam o opróbrio, e

encaravam desassombradamente as convenções sociais,

desprezando todas as censuras que pelo mundo lhes pudessem

ser feitas, e conservavam consigo, amorosamente, com carinho

inexcedível aquele pequeno ser, cujos olhos misteriosos pareciam

envolver uma carícia, e cujos lábios rosados pareciam esboçar, a

meio, um sorriso de gratidão e de afeto.

O arcebispo sorriu, satisfeito. Aqueles três dias tinham sido

suficientes, e mais do que suficientes, para despertar no coração

da nobre e orgulhosa castelã o amor ao pequenino infante, de

quem era duas vezes mãe, e para substituir, no coração da

jovem fidalga, a afeição mundana pelo amor puríssimo de mãe.

Já não consentiriam que lhes arrebatassem dos braços o filho

querido.

Eu penso, pois, que entre as obras grandiosas de Deus a

mais sublime é o amor de mãe.

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II

A mulher na política

Sou e sempre fui favorável ao voto feminino. Antes de ser

ventilada entre nós essa questão, muitos anos antes de ter ela

ocupado, no Brasil, um lugar saliente entre as ideias externadas

de numerosos pensadores, já eu tinha escrito na imprensa

periódica sobre os direitos da mulher quanto à política.

Há já alguns meses, uma distinta senhora deste lugar, viúva,

mãe e irmã de estimados amigos meus, trouxe-me um artigo,

recortado de um diário da capital, medonhamente contrário a

concederem-se à mulher os direitos de votar e ser votada.

“Que a sua missão é muito mais sublime, e que a ela

pertencem os cuidados do lar”, dizia o artigo entre muitas outras

coisas, e coisas bonitas, que estamos afeitos a ouvir.

E declarou-se a referida senhora inteiramente solidária com

as ideias expendidas em tal artigo, e inteiramente inimiga do

projeto liberalíssimo de votarem e serem votadas as pessoas do

seu sexo.

Eu continuarei, todavia, a ser pelo voto feminino.

Sei perfeitamente que na atualidade ainda continua a política

a ser uma burla, e que os nossos Governos, da União, do Estado,

do Município e do distrito, excetuados raríssimos mas honrosos

exemplos do contrário, cogitam mais sobre a política

propriamente dita, e sobre a sucessão, com esta preparando a

sua perpetuidade nos altos cargos públicos, do que sobre os

trabalhos que constituem o seu dever, isto é, sobre a boa

administração, os melhoramentos possíveis, a tranquilidade

pública, a segurança do povo, a garantia do cidadão; e é

justamente por isso que eu desejara ver a mulher na política, na

administração, no governo.

A mulher é menos acessível nos vícios da civilização

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hodierna, como o álcool e o jogo, dos quais não raro vem o

afrouxamento na observância dos deveres inerentes a um cargo,

e é menos propensa à subserviência, como é em geral, mais

afeita que o homem à livre expansão de seus sentimentos.

Um dos maiores males da política atual é o sigilo, é o

mistério, no qual a verdade é bastas vezes ludibriada, a justiça

desprezada, o mérito esquecido, e o direito do povo vendido por

menos de trinta dinheiros.

A mulher, mais expansiva, raramente se conformaria a

planejar, hoje, nas trevas, o triunfo para o dia de amanhã, e

rarissimamente se prestaria, como infelizmente fazem bem vezes

os profissionais da política, a ir enegrecer a reputação dos

adversários sobre as mesas avinhadas de qualquer bar.

Os governos entregaram à mulher, quase exclusivamente, a

instrução pública do Estado, – refiro-me à primária

principalmente, – e nisso agiram muito bem, conquanto

cometendo o erro de confiar a mulheres a direção de grupos

escolares, quando para tais cargos, até nossos tempos, deveriam

ser nomeados homens, e homens com o preciso tirocínio, nos

quais as professoras de cada grupo vissem bastante preparo,

prática e energia, sem surgir entre as mesmas professoras

qualquer luta de competência por serem dirigidas por uma de

suas colegas, o que, entretanto, nada diz em desfavor das

mulheres, entre as quais se encontram às vezes qualidades de

direção não comuns no sexo forte.

De todos os departamentos do funcionalismo, é a instrução

pública, e principalmente a primária, o mais importante e de

maior responsabilidade. Ora, se as mulheres servem para o

magistério, de preferência aos homens, e servem também para

os correios, outro ramo importante da administração dos Estados

bem organizados, por que não poderão elas servir para o voto,

para o qual se prestam até indivíduos analfabetos, até

desclassificados e inconscientes que jamais hão de dispor da

própria vontade? Se prestam elas bons serviços nos bancos, na

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instrução pública e particular, nos correios, nos telégrafos e

telefones, nos escritórios, no comércio, na indústria, por que não

podem elas ocupar cargos como os de juiz de paz e outros

semelhantes, exercidos frequentemente sob a mentoria dos

escrivães?

A mulher é, em geral, mais persistente do que o homem.

Prova-o nos cuidados cotidianos do lar, no carinho com que sói

amenizar as lides e os serões, na permanência nos trabalhos

domésticos, em tudo enfim quanto é posto a seu cargo. Na

política será, portanto, mais coerente com os seus princípios,

mais fiel para com os seus ideais.

Bastante mais crente em uma vida após a morte. E temerosa

quanto a penalidades futuras pelos erros terrenos, mui

raramente aprovaria uma injustiça consciente, mui raramente se

deixaria dominar pela ideia de traficar com o seu cargo.

As grandes traições do passado não foram cometidas por

mulheres. Não pertencia ao belo sexo o discípulo que recebeu do

Mestre o pão molhado, como também não foi mulher quem por

três vezes negou o Nazareno; mas foram algumas mulheres que

O acompanharam até descer ao sepulcro. Não pertenciam ao

belo sexo os filhos de Jacó que venderam seu irmão; e nem

Nero, nem Lopez, nem Joaquim Silvério, nem Rodrigo Bórgia,

nem Cortez – mas honrava o heroísmo feminino a mãe dos

macabeus, entre nós houve outra mulher que, com extraordinário

amor à pátria, enviou à guerra os seus sete filhos, três dos quais

sucumbiram nos campos ensanguentados do Paraguai.

Nos hospitais comuns, nos hospitais de sangue, nas escolas,

na religião, nas lides da caridade, enfim, há uma plêiade

admirável de heroínas, mas heroínas da paz, heroínas do bem,

da instrução, da concórdia, da fraternidade, do cumprimento dos

deveres cristãos e cívicos.

E entretanto as mulheres, constituindo a metade da

população brasileira, mas uma metade bem mais brasileira do

que a outra metade, não podem votar nem podem ser votadas,

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não ocupam cargos eletivos, nem podem opinar direta e

eficientemente sobre as cousas desta terra, porque os “fazedores

de teorias” dizem, e em termos bonitos, que “a mulher é o anjo

do lar, não devendo ser arredada da sua missão sublime”, e que

“o voto seria um presente de gregos”, e muita cousa mais que

todos nós conhecemos de sobra.

A despeito de tudo isso, eu sou e continuarei a ser pelo voto

feminino, e entendo que a mulher deve ter o direito de votar e

ser votada, sem para isso haver uma lei especial, pois a nossa

Constituição não considera cidadãos somente os indivíduos do

sexo masculino. E praticamente ela é ainda equiparada ao

homem, pois paga ao fisco os mesmos impostos quando exerce

profissão semelhante à tributada a um homem, e sobre ela

recaem as penalidades do Código criminal quando incursa em

delito semelhante àquele em que é pronunciado um homem,

quando é ré de qualquer crime pelo qual um homem pode e deve

ser processado.

São também semelhantes aos do homem os direitos e

deveres da mulher perante a sociedade. As mesmas leis os

amparam, as mesmas escolas os instruem, os mesmo templos os

acolhem, os mesmos interesses e conveniências os persuadem.

São, pois, semelhantes, salvo quanto à política, os direitos e

deveres do homem e da mulher.

Que a esta seja permitido, portanto, votar e ser votada.

Se está sujeita, no caso de crime, a ser julgada por um

tribunal popular, deve, coerentemente, ter o direito de fazer

parte desse mesmo tribunal em outras causas; se tem o dever de

pagar impostos no exercício de qualquer profissão, deve também

ter o direito de tomar parte da corporação a cujo cargo esteja o

regime tributário; se aproveita diretamente as vantagens das leis,

ou lhes sofre, das más, as desastrosas consequências, deve ter o

direito de concorrer para a escolha dos legisladores, ou de com

estes cooperar.

É incontestável que os Estados Unidos da América do Norte

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são o país do progresso e da liberdade, caminhando

admiravelmente à vanguarda da civilização mundial. Pois nessa

república, modelo de democracias bem constituídas, as mulheres

acabam de dar alguns milhões de votos, nas recentes eleições,

aos candidatos à presidência e à vice-presidência da República.

E países há, onde, quer no passado, quer na atualidade, as

mulheres não tinham ou não têm o direito do voto, podendo,

entretanto, ocupar o maior cargo, a magistratura suprema, sendo

preciso notar-se que não ficaram envergonhadas perante a

História, até nossos dias, e nem ficarão certamente para com a

posteridade, pois quase sempre souberam desempenhar a sua

missão com tino e dignidade.

A Inglaterra, a Holanda, a França, a Espanha e Portugal

tiveram rainhas que efetivamente o foram, isto é, que

governaram sem tutoria e deixaram do seu governo rastros

luminosos. Se D. Maria I, de Portugal, se deixou dominar pelo

jesuitismo e consequente loucura que a desceu do trono, ainda

acerca desse curto e infeliz governo não podemos criminar

diretamente a rainha, isto é, a mulher, porque o erro ainda partiu

dos homens, que a rodearam dos prejuízos e preconceitos da

época, ficando mais tarde provada a capacidade feminina no

cetro empunhado pela mão firme de D. Maria II.

Não remontando a passado muito remoto, lembramos que o

absolutismo de Espanha foi combatido pela rainha Izabel II, cujo

berço fora, entretanto, embalado pelo absolutismo mais violento,

e que na Inglaterra o governo da rainha Vitória foi uma época de

progresso para o velho e poderoso reino, como tem sido de

progresso, na Holanda, o reinado feliz de Guilhermina.

No Brasil, as duas leis de maior vulto para o nosso nome de

povo civilizado, as duas leis de maior perigo para a Coroa, e de

mais frisante responsabilidade quanto à paz interna e ao futuro

do país, foram sancionadas pela princesa Izabel de Bragança

como regente do Império. Refiro-me ao “ventre livre” e à

extinção completa do elemento servil; reporto-me ao 28 de

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setembro e ao 13 de maio.

E não é um “presente de gregos”, como disse o artigo citado,

o que eu desejo ver amplamente concedido à mulher: é apenas

justiça; é somente igualdade; é simplesmente a equiparação dos

seus direitos aos direitos do homem.

Não desejo ver a mulher arrancada da sua missão de esposa

e de mãe, como diz o articulista, pois ao homem a política não

arrebata da missão, não menos espinhosa, de marido e de pai, e

nem desejo vê-la obrigada a votar e ser votada, a escolher

dirigentes e a ocupar cargos públicos, como declara ainda o

referido publicista. O que eu desejo e espero é ver a mulher

tendo permissão para votar e ser votada, se isso lhe aprouver.

***

O voto feminino deve ser considerado uma necessidade, uma

conquista digna de um povo livre e culto...

***

Encaremos o assunto sob outra face.

Se à mulher fossem concedidos plenos direitos para votar e

ser votada, e pudesse ela, consequentemente, exercer qualquer

cargo público, poderia também dirigir a polícia, mesmo não

aceitando cargo algum nas repartições da segurança pública,

mas sobre os respectivos funcionários exercendo a influência que

à chefia política é entre nós reconhecida; pois todos estamos

fartos de saber que a polícia nada faz, em cousas de maior vulto,

sem ouvir o chefe político da ocasião, ou sem lhe obedecer ao

aceno, e algumas vezes aos caprichos. É uma triste verdade esta

(principalmente quanto à última parte), mas infelizmente é uma

verdade.

Assim sucedendo, e agindo a autoridade policial com

imparcialidade e energia, na certeza de não serem os seus atos

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nulificados pela preponderância da chefia política, talvez o

alcoolismo e o jogo não consigam atrair, em futuro bem próximo,

tantos jovens que, sem tais vícios, poderão ser bem mais úteis à

família e à sociedade.

Ao contrário do que sucedia uns dois decênios antes, ou

menos, o álcool e o jogo são hoje considerados o complemento

de uma educação aprimorada...

Desapareceram as tabernas, onde, somente às escondidas,

alguns moços da primeira linha social bebiam, raramente, com

receio de serem vistos, perderam toda a antiga importância as

“vendinhas dos cantos”, como desapareceram também os “cafés”

sem luxo, os cafés de pobres, surgindo os luxuosos bares, onde o

álcool é consumido em quantidade enorme, sem ser necessário

ocultarem-se os fregueses, visto ser o bar uma casa distinta onde

é chique ir a sociedade beber. Além de bebidas, algumas vezes

há ali jogos escusos e perigosos, nos quais numerosos jovens e

até adolescentes perdem o tempo, prejudicam a saúde,

desbaratam as suas rendas e desmoronam o seu futuro, sem que

a polícia lhes possa fazer a menor observação.

É que os encarregados da segurança pública são comumente

frequentadores do mesmo bar, ao lado daqueles de quem

dependem a sua posição, as suas rendas e os seus galões, e a

qualquer advertência que fizessem a algum adolescente que

vissem a deixar-se seduzir pela senda desses vícios, poderiam

ouvir, como resposta, que “o exemplo não justifica os

conselhos”...

Ora, como em geral não são as mulheres dominadas pelo

álcool nem pelo jogo, é de se supor que, tendo elas

responsabilidade direta na política, o que representa a mesma

responsabilidade em todos os ramos da administração, possam

os encarregados da segurança pública desviar alguns futuros

chefes de família do caminho dos vícios.

A mulher, em geral mais amorosa e terna do que a outra

parte do gênero humano, e vítima frequentemente das desditas

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que sobre o lar atiram esses dois terríveis males, verdadeiras

doenças sociais, alarma-se, e com razão, entre a ideia do

alcoolismo e do jogo, e mesmo ante a ameaça de invadir o

primeiro desses vícios os costumes do futuro, ameaça que paira

infelizmente sobre nossas cabeças.

Se aos encarregados da segurança pública pudessem emanar

ordens de mulheres, e se essas mulheres fossem mães e

esposas, ou filhas, ou irmãs, que vissem os seus se tornarem

assíduos em casas de bebidas e de jogos, essas ordens seriam

dadas sem relutância, com o intuito de coibir o abuso do álcool e

o aprendizado do jogo, porque as mulheres compreendem, por

experiência própria ou por intuição, que esses vícios conduzem

ao descalabro das finanças; ao descrédito, ao esquecimento dos

deveres para com a família, ao embrutecimento, à moléstia e à

morte.

Também os homens compreendem essas verdades em parte,

mas a conivência nos vícios não lhes permite agir contra os

mesmos, e numerosas vezes o receio de consequências

desagradáveis, reais ou imaginárias, podem vedar-lhe a ação, o

que não sucederá à mulher, cujo coração, propenso ao amor e à

tranquilidade, não vê entraves na prática do bem.

Para obter a sociedade semelhantes resultados é que eu mais

desejo ver a mulher na política, votando e sendo votada,

assumindo a chefia de partidos, e ocupando, ou podendo ocupar

cargos públicos de grande importância e responsabilidade. (1)

(1) Publicado em A Reação, de Cataguases, 1929.

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III

O dia de hoje

Completam-se anos hoje que nasceu, na Ásia, em um

recanto ignorado e humilde da pequena Belém, sobre as palhas

de um estábulo, o Enviado de Deus, o Cristo do Senhor, cuja

missão na Terra ia ser a difusão de uma doutrina de amor, de

perdão, de esperança e de paz, doutrina que se irradiaria por

toda a Terra através do ensino, dos exemplos, da dedicação e do

martírio de seus apóstolos.

Jesus poderia ter nascido no palácio do mais poderoso

monarca de então, e preferiu nascer em um dos estábulos das

cercanias da velha cidade de David. Poderia surgir entre os

dominadores de então, tendo a seu lado o prestígio do poder, e

para sua defesa os peitos de aço dos seus soldados, e como

precursores de sua doutrina a voz dos seus cortesãos e a

popularidade dos seus áulicos, e, entretanto, nasceu pobre e

humilde, no seio da família humilde e pobre de José, o

carpinteiro, tendo por berço uma simples manjedoura, e ia ter

como precursor o filho de Izabel, a voz que chamava ao

arrependimento e à penitência.

A alta sociedade daquela época, possuindo riquezas que

inspiravam admiração e inveja, ostentava um luxo que era uma

afronta ao proletariado de então, e por isso o Filho de Deus quis

surgir entre os pobres, para viver entre os simples pescadores,

entre os pobres e os humildes, do meio dos quais tiraria os seus

primeiros apóstolos, e mais tarde a legião de discípulos que

deviam levar a todos os povos, a todas as terras, a grande nova

da doutrina cristã, embora por toda parte sujeitos à opressão, às

perseguições, ao martírio.

E Jesus, entretanto, deitado, apenas recém-nascido, sobre o

seu berço de palhas, fazia vacilar sobre as bases o poder dos

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tiranos. Sem exércitos, sem palacianos, sem ouro, sem navios,

sem fortalezas, era temido pelos déspotas, mas desejado por

todos os homens de boa vontade, sedentos de liberdade, de

instrução e de justiça.

Promessa das Escrituras, Jesus era o Enviado de Deus, e

trazia às multidões uma lei de paz, de perdão, de esperança e de

amor. Vinha derribar os ídolos, confirmar a Lei, destruir o culto

do ouro, fulminar a mentira, restaurar a verdade, e trazer a

todos, indistintamente, a palavra de Deus.

É este dia o mais feliz da humanidade. Nele é comemorada a

chegada do maior vulto da Terra; é festejada a vinda do Messias,

do Cristo de Deus, todo amor e misericórdia.

Parece-nos ser este o dia da verdadeira emancipação do

gênero humano.

Nascia então Aquele que aos deserdados da sorte ia

prometer a vida eterna; Aquele que ia levar a doutrina da

salvação a todos os povos, a todos reunindo sob uma só

bandeira, a todos chamando filhos de Deus.

Justíssimo é, portanto, alegrarmo-nos todos nós, os cristãos,

sem distinção de seitas, pela passagem da mais gloriosa das

datas, a data que deu base ao próprio calendário que no futuro

será mundial.

A nós, porém, os cristãos tolerantes e humildes; a nós, os

cristãos proletários, como proletários eram os discípulos do

grande Mestre; a nós, os cristãos da imprensa, os artistas do

periodismo independente, que amamos a liberdade como a

entendiam os primitivos discípulos de Jesus; a nós, a quem

honram com o seu ódio os prepotentes de hoje, como, dezenove

séculos antes, faziam-no aos apóstolos do Cristo os tiranos de

então; a nós, mais especialmente, cabe alegrarmo-nos pela

passagem desta data, a mais gloriosa e promissora, a que

recorda o dia mais feliz da humanidade.

É por isso que honramos hoje o nosso pequenino e modesto

periódico, registrando nele a passagem do Natal de 1927.

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É a “A Palavra”, com todo o respeito e veneração, curvando-

se ante a glória incomparável de Jesus, o Enviado de Deus.(1)

(1) Editorial do jornal A Palavra, do Porto de Santo Antônio (atual Astolfo

Dutra, MG).

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IV

Beneficência e caridade

(A um amigo meu que publicou pela imprensa

uma subscrição de caridade por ele promovida.)

Certamente já viste algures uma belíssima pintura

representando as três virtudes.

É uma inspirada concretização do ideal. Nela deixou o artista

um pedaço da sua alma.

São três figuras femininas, de rara beleza, na idade

encantadora que separa a criança da jovem. Parece-nos ver

nessa tela a inocência da puerícia e o pudor da juventude; o

atrativo angélico dos primeiros anos de vida, e o recato quase

divinal da menina que se faz moça.

Vestem roupagens flutuantes: uma, em azul, da cor dos céus

infinitos nas tardes primaveris; a segunda, de roupagem verde,

da cor dos bosques misteriosos e do mar profundo; a outra, de

branco e róseo, lembrando a candidez das açucenas e o suave

matiz dos cúmulos longínquos.

A primeira dirige o olhar para o alto, como se procurasse, em

alguma das afastadas constelações, onde se levanta o trono de

Deus; a segunda olha em frente, como se sondasse um futuro

radiante de suave alegria, de felicidade infinda; a terceira tem o

olhar voltado para a Terra, como se pelo mundo procurasse

misérias a minorar, lágrimas que deve secar, desditas físicas e

morais que devem ser combatidas e extintas.

A primeira tem ao pé de si uma cruz, símbolo do credo

cristão, representação do instrumento de suplícios onde foi

imolado o Divino Mestre; a segunda traz consigo uma âncora,

simbolizando o abrigo calmo e seguro de um porto amigo, em

seguimento aos perigos e às fadigas de uma longa travessia; a

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terceira está unida a um coração, representando o amor,

sentimento mágico em torno do qual gravitam todas as venturas

deste mundo e todas as promessas de um mundo melhor.

São as três virtudes.

A primeira é a Fé, que nos promete a felicidade sem-fim na

vida futura; a segunda é a Esperança, a falar-nos de sorridentes

venturas sobre este mundo; a terceira é a Caridade, que tem

como sublime escopo minorar o sofrimento alheio.

São as três virtudes.

A Fé, e a sua cruz; a Esperança, e a sua âncora; a Caridade,

e o seu coração.

Dentre as três, embora irmãs, uma é muito mais sublime: é a

Caridade.

Está acima da Fé, porque, também ela, conduz à salvação; é

superior à Esperança, porque, também ela, tem por base o amor

– e um amor sublime, o amor aos desprotegidos, o amor aos que

sofrem, o amor à humanidade.

Se a primeira se assemelha mais a um dom divino, fazer-nos

idear as delícias de um futuro mais remoto nas regiões incógnitas

do infinito, e se a segunda representa as aspirações humanas,

sobre este mundo de incertezas, em futuro mais próximo, é-lhes

ainda superior a terceira, pois a quantos socorre leva ela a Fé, e

a quantos protege conduz ela a Esperança.

Em cada coração parece haver uma cruz e uma âncora.

***

Conheces com certeza a tela das três virtudes.

É uma pintura genial.

Inspira-nos um mundo de pensamentos em torno dos três

duplos símbolos: – a Fé, e a sua cruz; a Esperança, e a sua

âncora; a Caridade, e o seu coração.

Contemplando cuidadosamente esse quadro maravilhoso,

compreendemos ser a Caridade, entre as três virtudes, a mais

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sublime.

Mas deve ser humilde e modesta.

***

Os atos de caridade não deveriam ser, nos tempos antigos,

comunicados ao som de trombetas e à voz dos arautos, como em

nossos dias não devem ser atirados à publicidade da imprensa ou

da tribuna.

Somente assim terão verdadeiro mérito. Somente assim

poderão ser considerados verdadeira filantropia.

***

Tu, meu velho amigo, fizeste da imprensa periódica o porta-

voz de um ato de caridade que praticaste.

Foste o promotor de uma subscrição em favor de um irmão

nosso, pobre e enfermo, e atiraste à publicidade o teu ato de

filantropia.

Ato de filantropia, ou de caridade propriamente dita, era-o de

fato o que fizeste, deixando-o de ser, na essência, com a sua

publicação, e passando por isso ao grupo das vulgaridades, das

ações comuns, das conveniências sociais, dos interesses pessoais

indiretos, embora tenhas agido na mais pronunciada boa-fé.

É que humilhaste a pobreza vexada, assim alienando de ti

quanto de mérito poderia ter, e deveria ter, como virtude, o

auxílio por ti prestado a um dos nossos irmãos a quem a desdita

veio visitar.

Deixaste perceber, a quantos leram aquele periódico, ou algo

de tal anúncio ouviram, faltarem recursos para a medicação

daquele enfermo, faltar-lhe conforto à família, escassear o pão

em seu lar.

Não sabias acaso que a publicidade, quanto à esmola

recebida, cobre de tristeza e de vergonha o beneficiado,

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atraindo-lhe a falsa comiseração dos néscios e o desprezo vil dos

fátuos? Acaso não sabias que em muitos casos, e para não

pequena parte da sociedade, publicar-se uma esmola é cobrir de

opróbrio a quem dela se aproveita?

Não publiques, não divulgues jamais, no futuro, a notícia dos

teus atos de caridade. Guarda-os no íntimo do teu ser, no

recesso da tua consciência. Esconde-os a ti mesmo, se possível,

esquecendo hoje a esmola concedida ontem, e oculta-os ao

próprio beneficiado, se possível, envolvendo-os na aparência de

uma recompensa por serviços prestados, ou de um adiantamento

por trabalhos futuros.

Quando não for possível ocultar assim ao beneficiado os teus

atos de caridade, esclarece-lhe que com essa dádiva cumpres

apenas o teu dever, depositário provisório que és, sobre este

mundo de incertezas, de quaisquer bens que a Divina Providência

quis ou queira entregar-te.

E que somos nós, senão depositários, por tempo

determinado, dos bens de que nos servimos?

É teu o prédio por ti ocupado? Pertence-me a casa onde eu

me abrigo? É de sua propriedade o palácio onde reside o mais

rico potentado? Pertence àquele nosso irmão que socorreste o

tugúrio onde ele vive?

Não!

Todos nós somos passageiros neste mundo, e nele

deixaremos quanto nele encontramos, e parte perderemos em

vida.

Nele deixará o fidalgo o seu castelo, o banqueiro deixará o

seu palácio, o rico lavrador deixará a sua confortável vivenda, o

operário deixará a sua humilde morada, o pescador deixará a sua

pobre choupana, e todos, igualados na morte, abandonaremos,

no pó do mundo, tudo quanto aqui nos rodeia, tudo quanto aqui

constitui nossas delícias, ou nos ameniza as agruras do

sofrimento.

Conta-nos a história te algum rei ter ocupado o seu trono

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durante um século?

Não. Nem o mais poderoso dos reis foi conservado no poder

durante cem anos.

Embora no fastígio da glória, com o decurso de alguns

lustros, ou de alguns decênios, de meio século enfim, ou pouco

mais, desaparece o mais estimado e valoroso monarca. O seu

trono é assento de outro rei, o seu cetro é sustentado por outra

destra, a sua coroa é cingida por outra fronte, e outros ombros

cobre a sua púrpura.

Todos nós somos passageiros neste mundo, e nele

deixaremos quanto nele encontramos.

Feliz é quem, dos bens terrenos, sabe utilizar uma parte

amenizando alheios sofrimentos, mas também sabe olvidar os

seus atos, ou sabe dar uma esmola como sendo ela, como

realmente o é, o pagamento de um débito, ou o cumprimento de

um dever, e ao mesmo tempo um depósito resgatável em melhor

moeda.

***

Tu, meu velho amigo, soubeste cumprir o teu dever

estendendo mão protetora àquele nosso irmão necessitado. Não

o soubeste cumprir, porém, quanto ao silêncio que de tais ações

deve ser o complemento.

A ti, a quem não são estranhos os livros cristãos, deveria ser

bastante conhecido, em alegoria, que a mão esquerda não deve

ser sabedora dos benefícios feitos pela direita...

É em vista da tua publicação em um periódico, e é em frente

ao belíssimo quadro das três virtudes, que escrevo este capítulo

dos meus Fatos e Comentários.

Aceita-o como reminiscências dos ensinos de Paulo de Tarso,

e mais ainda como um preito de admiração e de amor para com

o Divino Mestre, que em sua parábola do bom samaritano

deixou-nos explicado que a Caridade é a mais sublime das

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virtudes.

Aceita-o também como uma prova de minha solidariedade

para contigo, quanto aos teus atos de beneficência, mas também

como um humilde protesto quanto à sua divulgação, pois a

Caridade deve ser humilde e modesta, silenciosa e simples,

amorosa e cristã.

Lendo este capítulo, medita sobre a doutrina que o inspirou.

E não atires jamais à imprensa, no futuro, a notícia dos teus

atos de filantropia.

Guarda-os no íntimo do teu ser, no recesso da tua

consciência.

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V

O Baltazar

(Para Valente Soares Barroso.)

Entre as reminiscências da minha infância, claro, nítido,

perfeito, conservo um fato que até hoje, quase quarenta e cinco

anos depois, enche-me ainda de tristeza e de horror.

Era muito conhecido no lugar um homem de cor, com cerca

de trinta e cinco a quarenta anos de idade, chamado Baltazar.

Estatura um pouco abaixo da mediana, rosto cheio e sempre

sorridente, era um tipo simpático, de homem reforçado, de

trabalhador infatigável.

Sempre alegre, era um espécimen curioso de homem a quem

não abatem os desgostos e as dificuldades da vida. Possuía a

grande felicidade de compreender que era feliz.

Era visto na sede do distrito, à noite, ou nas tardes de

domingos ou dias santificados pela Igreja. Fora dessas ocasiões

estava no eito, no trabalho exaustivo e tão mal remunerado da

agricultura, ou na sua humilde tenda de ferreiro – pois era

também um hábil operário, e apenas deixara a tenda porque nela

a quantidade de trabalho era insuficiente para a sua atividade.

Mas Baltazar achava beleza em todos os trabalhos. Sentia

prazer quando o seu machado, cortando, na mata virgem, os

robustos troncos de árvores seculares, as fazia abater sobre o

solo, aos grupos, fragorosamente, ou quando via o ferro, rubro,

faiscante, manejado e batido por ele sobre a bigorna, estender-

se, achatar-se, retorcer-se, aguçar-se, arredondar-se – tomando

a forma de varão e lança de uma grade, ou de uma cantoneira

de construtor, ou de um instrumento de lavoura, ou de qualquer

objeto, enfim, que os seus não poucos fregueses esperavam da

sua habilidade.

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Quando no povoado, à noite, ou nas tardes dos dias de

descanso, Baltazar estava quase sempre em companhia de

alguns amigos, atraídos pela sua alegria e vivacidade, ou pela

perícia com que executava a sua viola e pela expressão com que

cantava, ao som do “pinho”, trovas que eram não raro da própria

lavra.

E vestia-se o caboclo com asseio, ou quase com luxo se o

comparássemos aos seus companheiros. Trazia os cabelos longos

e bem penteados, trescalando à melhor “pomada”, e trazia a

barba cuidadosamente raspada, com os bigodes longos, pontas

retorcidas e voltadas para cima.

Por tudo isso era malvisto por uns moços ricos, coerdeiros

em uma grande fazenda vizinha. Entendiam eles que indivíduos

semelhantes não podiam viver alegres, não deviam cuidar dos

cabelos nem da barba, nem deveriam ter o direito de procurar o

pouquinho de gozo possível nos inocentes folguedos dos pobres.

Certo dia, quase à hora crepuscular de um belo domingo de

janeiro, dirigiram-se os dois jovens a uma casa da rua do Morro,

onde sabiam permanecer Baltazar durante mais tempo. Iam à

procura do “Pachola”, alcunha insultuosa que pretendiam

adaptar-se ao caboclo.

E lá o encontraram.

Baltazar estava assentado sobre uma caixa de cedro, e

gemia-lhe nas mãos a viola. Em um tamborete, próximo, Damião,

o dono da casa, fazia-lhe a harmonia com um violão, e duas

meninas cantavam. Diversos assistentes ocupavam os bancos

laterais.

Ali morava uma família de pobres mas honrados operários.

Penetrando na sala humilde daquela casa térrea, os dois

jovens fazendeiros, ainda imberbes, dirigiram-se diretamente a

Baltazar, agarraram-no, tomaram-lhe a viola, que um deles

quebrou de encontro ao peitoril da janela, e meteram-lhe nos

pulsos grossas algemas de ferro. Em seguida arrastaram-no para

a rua, ponto aliás pouco concorrido do povoado, e aí cortaram-

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lhe à faca uma parte dos cabelos, e espancaram-no brutalmente.

Assim preso, foi Baltazar conduzido para a fazenda, a dois

quilômetros do povoado, onde ficou detido na sala de castigos,

com os pés introduzidos nos orifícios de pesado tronco de

madeira, depois de ter sido notificado de que no dia seguinte

começaria a receber a série de surras diárias a ele destinadas.

***

Algum leitor mais jovem perguntará, com inteira razão, por

que sofreu Baltazar tão grande afronta, quando deveria e poderia

reagir, pois foi agredido, e era mais forte do que os dois

adversários reunidos.

Mesmo no caso de ser mais fraco, pensará esse leitor, o

homem, quando assim atacado, deve reagir com toda a sua

energia, mesmo tendo quase inteira certeza de sucumbir na

defesa, pois assim cai vitimado pela superioridade de forças, e

ante uma injustiça flagrante, mas repelindo com honra a afronta.

– O homem pode ser ofendido fisicamente, e morrer mesmo

a espancamentos, sem, entretanto, curvar-se ante a afronta, pois

pode defender-se, e deve defender-se – dirá o leitor.

Mas Baltazar não era um homem semelhante aos outros. Era

muito menos do que um ser humano. Era menos ainda do que

um animal doméstico. Ao boi, ao burro, ao cão, desculpam-se os

atos de represália, ou de legítima defesa, e a Baltazar não se lhe

conferiam tais direitos...

É que Baltazar não era um homem semelhante aos outros:

era um escravo!

Tinha tido a desdita de nascer de uma escrava. Propriedade,

porém, de um lavrador pobre e modesto, não lhe pesava a sua

condição, e trabalhava com tanto gosto como se o fizesse para

seus pais, e quase como filho era tratado pelos velhinhos que o

tinham recebido em casa quando ele era ainda criança.

Corria-lhe a vida assim, suavemente, entre o trabalho

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durante o dia e algumas horas de inocente folguedo à noite, até

o dia em que os seus proprietários, achando-se em atraso quanto

a uma dívida documentada, viram inopinadamente sequestrados

os seus poucos bens, e entre eles o seu único escravo, antes de

terem tido tempo de o livrar, e a este deu preferência o

implacável credor, vendendo-o, depois de alguns meses, aos dois

condôminos da fazenda próxima.

Estes tinham desejos de possuir o pobre escravo, cujas

habilidades e cujo amor ao trabalho faziam-no com razão

desejado, mas tinham-lhe certo rancor, por julgarem impróprio

de um escravo passar em ruidosa e comunicativa alegria as horas

de lazer.

Não compreendiam para o escravo senão obediência passiva

e absoluta, humildade ilimitada, servilismo o mais deprimente, e

disposição constante para um trabalho insano. Fora desse

regime, era o escravo, em sua opinião, um elemento de

desordem, um conselheiro para o mal, um mau exemplo para a

escravatura em geral.

Desejavam, pois, adquirir aquele escravo, a fim de o fazerem

mudar de rumo, e acabavam de efetuar a compra, tendo sido

lavrada a escritura, no cartório local, na tarde do dia anterior.

Baltazar, porém, ignorando tais planos, tinha viajado na noite

anterior, em visita a alguns parentes, moradores em um povoado

vizinho, e apenas acabava de chegar à casa dos seus amigos da

rua do Morro quando foi aprisionado pelos seus novos senhores.

Estes nem sequer lhe declararam tê-lo comprado: ele o

compreendeu pela atitude e pelos atos dos agressores.

Era propriedade desses novos senhores. Cumpria-lhe

obedecer e acovardar-se.

Do dia seguinte em diante, no terreiro da fazenda, ser-lhe-

iam dadas as surras diárias que lhe estavam destinadas.

***

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Naquela época vendia-se um homem como hoje é vendido

um irracional. É que esse homem como tal não era olhado. Era

um escravo, e não uma pessoa. Não merecia um olhar de

compaixão. Nascera em uma senzala. Descendia de uma raça

que os dominadores diziam inferior. Trabalhava esforçadamente,

sob o látego infamante de um feitor boçal, enquanto tinha

forças; na invalidez era abandonado e esquecido, até que as

privações o levassem ao aniquilamento e à morte.

Para o mísero escravo, todos os trabalhos, todas as

privações, todos os castigos; para os seus senhores, o fruto

desses árduos labores, o luxo e as comodidades da riqueza, o

descanso, a impunidade.

Baltazar era, pois, um escravo, e nesse dia mudava pela

terceira vez de senhores, vislumbrando em seu futuro uma vida

de verdadeiro martírio.

***

Há casos, porém, nos quais a bondade de Deus se manifesta

tão claramente, que mesmo à nossa ignorância torna-se essa

intervenção visível.

No silêncio calmo dessa mesma noite de domingo, um vulto

entrou, cauteloso, na tenda de ferreiro onde trabalhava Baltazar.

Alguns vizinhos viram um vulto deslizar, silencioso, até ao fundo

do compartimento, que por dois lados tinha paredes baixas, e

retirar de um velho baú de ferramentas um pequeno objeto.

À luz de uma casa próxima, em frente à qual passou o

silencioso personagem, um vizinho reconheceu-o: era uma

senhora, de idade avançada, que tinha servido de mãe a Baltazar

em seus primeiros anos de vida, e à qual era ele ligado por

grande afeição.

Ao amanhecer do dia seguinte deu-se o alarme na fazenda

dos irmãos Chaves, pois Baltazar não foi encontrado na sua

prisão, e ninguém deu notícias dele. Um dos escravos declarou

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ter ouvido um pequeno ruído no terreiro, e, levantando-se, ter

visto uma mulher afagando os dois grandes cães da fazenda,

enquanto um homem atravessava rapidamente o terreiro, saía

pela porteira, e seguia pelo caminho do povoado. O escravo

explicava não ter conhecido nenhuma dessas pessoas, que supôs

serem da casa, visto não serem perseguidas pelos cães.

Junto ao tronco, aberto, estavam os pedaços do grosso e

forte cadeado.

Nada ficou provado, para os interessados, quanto à

identidade da mulher, e durante alguns anos nenhuma notícia

houve do fugitivo, malgrado as acuradas pesquisas procedidas

pelos fazendeiros e seus empregados, e pela polícia daquele e de

outros distritos.

Nem a mais vaga informação.

Mais de três anos se escoaram, e a áurea lei de 13 de maio

de 1888 extinguiu a escravidão no Brasil, fazendo desta nação

um povo livre.

Alguns meses depois, em uma bela noite de setembro, os

habitantes daquele povoado foram agradavelmente

surpreendidos por uma serenata. Um trio de instrumentos de

cordas executava diversos trechos de música, e, chegando à

praça principal, uma voz expressiva e pura começou a cantar

algumas trovas singelas, mas bem medidas, nas quais havia

louvores a Joaquim Nabuco, João Alfredo, Castro Alves, Luiz

Gama e D. Izabel de Bragança.

Era Baltazar o cantor.

O ex-escravo nada mais tinha a recear dos ex-senhores. Já

era um cidadão livre, que saberia e poderia defender-se, e tinha

em seu favor as leis e o direito.

Nem um dia servira Baltazar os seus últimos senhores, os

dois moços que o tinham comprado para ser tão barbaramente

espancado.

E foi assim que os dois fazendeiros perderam os seus dois

contos e quinhentos...

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VI

Doenças...

(Ao jornalista Serzedelo Silveira Louro.)

Li a carta que dirigiste ao nosso amigo, e grato retribuo-te as

saudações nela enviadas.

Na referida carta declaras estar restabelecido da nevralgia,

também dizendo que receias a volta dessa moléstia, visto haver

ela voltado a outras pessoas, torturando-as durante meses

inteiros.

Voltará, sim – eu to assevero –, e te empolgará novamente,

martirizando-te durante longos meses.

Voltará, porque os teus receios a atraem, porque os teus

pensamentos mórbidos lhe facilitam o acesso.

Voltará a moléstia, porque pensas nela, e não na saúde;

porque a impressão sobre doenças é uma espécie de toque de

chamada para as mesmas doenças, assim como a confiança na

saúde é a segurança da sua conservação.

Se queres, entretanto, conservar a saúde, expelindo para

sempre a nevralgia que tanto te fez sofrer, e tanto te fará

padecer se não atenderes a estes conselhos, que não são meus,

pensa no bem, na vida, na alegria, na paz, na saúde, na

felicidade, enfim, em todas as suas manifestações, e repele

energicamente de tua alma todos os pensamentos de doenças,

ou de outros sofrimentos, e os pensamentos de desconfiança, de

suspeita, de temor.

Abre o teu coração à confiança e à alegria, e repele para

longe as apreensões infundadas e as ideias tristes.

A saúde e a enfermidade, a abundância e a miséria, a calma

e o sobressalto, a alegria e a tristeza, o bem e o mal, enfim, tudo

é oriundo dos nossos pensamentos bons ou maus, tudo é feito

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por nós próprios, quase sempre inconscientemente. Nós fazemos,

em grande parte, a nossa felicidade ou a nossa desdita.

As palavras frequentes sobre moléstias e suas peripécias,

sobre sofrimentos que resistem a toda medicação – assunto

predileto de numerosíssimas famílias – concorrem enormemente

para o depauperamento do organismo de quantos em tais

conversações se ocupam, prejudicando-lhes muitíssimo a saúde.

Eu ainda não conhecia Marden, nem cousa alguma tinha

ouvido de suas teorias, com as quais estou, entretanto, de pleno

acordo, quando escrevi sobre este assunto alguns artigos, um

dos quais consegui encontrar recentemente, impresso em uma

revista de 1916, não tendo ainda conseguido encontrar outros,

insertos em jornais de 1914 ou 1915.

Nesse artigo, que eu reservei para ver transcrito no meu livro

Fatos e Comentários, e nos outros artigos, que ainda espero

encontrar, reportei-me a fatos por mim observados durante

muitos anos, e que citei sem nomear individualidades, mas

sempre pronto a nomeá-las, verbalmente ou em cartas não

publicáveis, a quantos dos meus amigos e leitores tenham a

curiosidade de conhecer com exatidão esses casos. Deste modo,

e constatando esses fatos com inúmeras testemunhas, poderás,

se o desejares, ter a prova do que assevero, no caso de pairar

em teu espírito qualquer desconfiança sobre a veracidade dos

fatos por mim narrados, como acerca de outros, ainda em

observação, que oportunamente publicarei, e outros já

observados, mas ainda não impressos, ocorridos em diversas

localidades onde tenho feito vilegiaturas, ou, em outros lugares

de que tenho notícias por intermédio de pessoas dignas de

inteira confiança.

Com a palavra “veracidade”, no parágrafo acima, não me

ocorre a possibilidade, que não pode existir, de duvidares da

minha palavra; pois no meu passado, nem como jornalista nem

como homem particular, jamais deixei motivos que justifiquem

dúvidas sobre meus compromissos ou minhas narrações dadas

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como fatos. Eu me refiro à possibilidade de creres estar eu

enganado em minhas observações, e contra essa dúvida poderei

opor, como já disse, o testemunho de inúmeras pessoas.

Passo a narrar, resumidíssimas, algumas de minhas

observações.

***

Um homem de minha amizade vivia enfermo, e o mesmo

sucedia à sua esposa. Consultavam frequentemente aos

facultativos mais em foco, e chegavam-se mesmo a supor presas

de impiedosa moléstia.

Eram quase ricos, e o trabalho constante era-lhes

desconhecido, por inútil, achando-se os serviços domésticos e os

da casa comercial a cargo de pessoas competentes.

Sobejava-lhes tempo para moléstias e seu tratamento...

Em certa ocasião, porém, viram-se inesperadamente forçados

a uma mudança de residência e de profissão. Tornaram-se

senhores de uma grande propriedade agrícola, onde encontraram

maior campo à sua atividade, e mais trabalho, mais

compromissos e maiores proventos. A fortuna aumentava-se-lhes

vertiginosamente, e com ela crescia-lhes o estímulo para ampliar-

se ainda mais o seu campo de ação, empolgando-lhes as diversas

secções da fazenda toda a atenção e todos os cuidados.

Vinte anos depois perguntei ainda uma vez àquele cavalheiro

pela sua saúde e pela saúde de sua consorte. Estavam ambos

fortes, sadios, gordos, e durante esse longo espaço de tempo

não tinham tido necessidade de facultativos, nem tinham sofrido

moléstia alguma de qualquer gravidade.

As suas enfermidades eram oriundas da inatividade, das

apreensões, das conversações frívolas sobre moléstias.

Perguntei-lhe pelas suas antigas doenças, e ele, moço ainda

aos cinquenta anos, respondeu-me num riso franco e aberto de

alegria e de saúde:

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– Tenho lá tempo para isso, meu caro?! O trabalho não me

dá tempo de ficar doente...

***

Um cavalheiro de minhas relações sofria, de mês em mês,

uma fortíssima enxaqueca.

Homem inteligente e muitíssimo laborioso, sentia grande

desgosto com essa doença, que lhe causava não pequeno

prejuízo.

Ia então à farmácia próxima, onde eu era guarda-livros, e ali

encomendava 3 pílulas que em minutos lhe curavam a dor de

cabeça.

Ponderava-lhe às vezes o farmacêutico que essa medicação

poder-lhe-ia ser prejudicial, mas o enfermo não se demovia do

seu propósito. Por duas ou três vezes tinha experimentado evitar

esse remédio, mas a dor persistira então por quase dois dias,

sem ele poder trabalhar, e quase sem alimento e sem repouso.

Certo dia, passando ele pela farmácia, fez a encomenda,

declarando procurar o remédio em sua volta, uns quinze minutos

depois.

Nessa ocasião entrava na saleta próxima o padeiro, que

deixou os pães sobre o aparador.

O farmacêutico chamou-me então ao laboratório, e disse-me

ir fazer uma cura por sugestão.

Tomando um pão, partiu-o ao meio, retirou do miolo do

mesmo três pequenas porções, e dessas fez três pílulas

perfeitamente iguais, que mergulhou em um pouquinho de

xarope simples e branqueou com amido. Colocou sem demora as

três pílulas em uma caixinha, em cuja tampa escrevi o rótulo do

costume, isto é, a fórmula pedida.

O homem procurou logo em seguida o seu remédio, e uma

hora depois, voltando à farmácia, nada mais sentia.

As pílulas de miolo de pão tinham produzido o mesmo

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resultado que as legítimas... Isso prova que a cura era feita por

sugestão, pela confiança, porque o doente tinha a certeza de que

a dor cederia ao remédio.

E durante mais de dois anos, na conta corrente desse senhor,

era escriturado, de mês em mês, ou pouco mais ou menos:

3 pílulas de valerianato de quinino e analgesina -...... grátis.

***

Uma senhora sofria, de tempos a tempos, umas dores

reumáticas nos joelhos.

Em certo dia, achando-se enfermas as outras três pessoas da

casa, a referida senhora começou a sentir as dores reumáticas,

ainda brandas, e compreendeu que, seguindo elas a marcha

normal, não lhe permitiriam deixar o leito no dia seguinte.

Reagiu, porém, contra a invasão da moléstia, dizendo e repetindo

várias vezes:

“Eu absolutamente não posso agora ficar doente, pois preciso

tratar dos outros, que estão enfermos, e por isso quero continuar

com saúde.”

Recolheu-se, à noite, aos seus aposentos nesse firme

propósito, dormiu bem, e na manhã seguinte deixou o leito sem

se lembrar sequer da moléstia.

E desde aquela noite, há mais de vinte anos, não foi visitada

pelas dores reumáticas.

***

Volverei oportunamente ao assunto, publicando novos fatos

por mim observados.

Devo, entretanto, dizer-te desde já, meu ilustre amigo, que o

nosso pensamento, quando firme e persistente, e quando não

visa ao impossível, atrai-nos a felicidade ou a desdita, o bem ou

o mal, a saúde ou a doença, conforme se eleve visando a cousas

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nobres e belas, ou se deixe dominar por ideias tristes e mórbidas.

Devemos, pois, pensar na saúde, na tranquilidade, na paz, na

abundância, no bem, afinal, em todas as suas manifestações, e

no Ente Supremo, que ocupa o centro de todas as irradiações do

bem.

Se te faltam esses pensamentos firmes sobre a felicidade em

geral, e continuas a temer a volta da moléstia, esta voltará

realmente, porque a saúde e a moléstia, em grande número de

casos, são originadas de nossos pensamentos e nossas palavras.

Mas está em ti a reação contra o mal. Esquece a doença, e

pensa na saúde, na alegria, nas harmonias da vida, e assim a

nevralgia, até agora esperada, fugirá desse ambiente são, de

onde as ideias mórbidas forem expelidas para sempre.

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VII

Velharias

Uma das práticas populares da antiguidade, mais em uso no

interior, tem ultimamente tomado um novo incremento: são as

benzeduras.

Aceita como uma verdade por muita gente sisuda e de algum

cultivo, e tomada como crendice indigna de apreço por outra

parte do povo, a benzedura tem, por toda parte, numerosos

ministros e inúmeros adeptos, e parece ir tomando um novo

alento, com visíveis prejuízos da medicina e da farmácia.

Em geral as benzeduras são feitas por mulheres já

avelhentadas, mas algumas vezes também por homens. Benzem

cobrelos, sarampo, sarnas, brotoejas, e outras erupções, e

qualquer mazela enfim, tudo sarando como se não fosse nada...

Até veneno de cobras!

Nós, os descrentes do século vinte, criaturas que gostamos

de sondar o porquê das cousas, não nos podemos conservar na

precisa seriedade em frente à sisudez de um benzedor, e

sorrimo-nos às vezes indelicadamente quando ele corta um

cobrelo, ou cose um braço luxado.

No primeiro caso bastam apenas a água fresca e o clássico

raminho. O benzedor faz o papel de Cristo, e o enfermo faz o

papel do discípulo inseparável, entretendo entre si um pequeno e

curioso diálogo:

“Que tens, Pedro?”

“Cobrelo, Senhor.”

“Corta, Pedro.”

“Com quê, Senhor?”

“Com água da fonte e ramo do monte.”

E por três vezes é feito esse pequeno diálogo, concluído,

todas as três vezes, com a aspersão da água da fonte, por meio

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do raminho do monte...

Outras vezes entra em cena um grande machado ameaçando

cortar a porta, e ainda outras vezes, na suposição de ter sido a

moléstia produzida pelo contato asqueroso de algum animal

peçonhento, nas roupas ou com o próprio paciente, o benzedor

declara em tom ameaçador:

“É rabo, cabeça ou corpo? Tudo isso eu corto!”

No segundo caso, isto é, quando o tratamento é de um braço

luxado, um pé destroncado, ou cousa semelhante, o benzedor

assevera por três vezes:

“Braço luxado, pé destroncado, pescoço torcido – tudo isso

eu coso”.

E ao falar vai passando uma agulha, com um pouco de linha,

através de um novelo de linha de algodão.

A par desses benzedores, há também os curadores de feridas

em animais, efetuando a cura somente com olhar a ferida

através de um nó em uma estilhazinha de palha, nó que vai

sendo fechado a pouco e pouco, e é, com a palhazinha, atirado

para trás sem ser olhado, repetindo-se três vezes a operação, e

há os curadores de mordedura de cobra, os quais, longe do

ofendido, preparam imediatamente o remédio e o dão a beber ao

portador, assim curando o enfermo.

Se esse processo de tratamento fosse generalizado, e a

gente, quando tem indigestão, pudesse pedir a um amigo o favor

de ir à farmácia e lá beber uma taça de sal amargo...

Mas eu penso que nós não deveríamos sorrir, com esse nosso

sorriso de incrédulos, ante muita cousa que não conhecemos ou

não entendemos. Inúmeros segredos oculta-nos ainda o mundo,

e embora muitíssimas surpresas nos tenham já sido feitas,

numerosíssimas outras nos estão ainda aguardando.

É próprio do parvo zombar de quanto não conhece ou não

compreende.

Se algum cientista, por desfastio, encontrando estas minhas

ponderações na casa de algum dos meus amigos, ler até o

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período anterior o que aqui vou traçando, amarrotará

nervosamente a folha, passando a pensar em outro assunto, ao

ver que eu condeno o riso ou a zombaria em face do

desconhecido ou incompreensível; mas tanta tolice têm dito e

têm feito numerosos sábios, em questões transcendentais, que

para um sujeito como eu, alheio a tudo quanto é ciência, a tudo

quanto é estudo, um fato vale mais do que cem teorias com as

suas respectivas regras e leis.

Lembro alguns fatos, mas poucos, pois não desejo ver a

minha lenga-lenga transbordar do espaço a ela destinado.

***

Um dia apresentou-se-me no corpo um cobrelo, e no mesmo

dia um amigo meu mostrou o mesmo mal em seu corpo,

dizendo-me ser incurável essa moléstia por meio dos recursos

terapêuticos comuns, e somente curável com a benzedura.

Eu nada disse, e a todos ocultei o meu mal.

O moço descobriu, alguns dias depois, uma benzedeira, e

poucos dias depois da benzedura veio mostrar-me o local

infectado, já no caminho de cura, provando a eficácia do

tratamento.

Nesse dia, porém, o meu cobrelo estava em melhores

condições de cura do que o do moço, e eu lho mostrei. E

entretanto não tinha sido benzido nem cortado.

Entre as pessoas de minhas relações adoeceu gravemente

uma criança, cuja mãe, sabendo ser aquela doença incurável com

os cuidados médicos, mas apenas curável, e facilmente, com a

benzedura, mandou trazer à sua casa três das mais afamadas

benzedeiras, sendo a pequena enferma benzida em três dias

seguidos, com todas as regras da arte, de manhã, ao meio-dia e

à noite.

Alguns dias depois da última benzedura, vi a interessante

menina deitada num caixãozinho branco, pronta para o cemitério,

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pálida, muito pálida, no seu vestidinho azul-claro, e rodeada de

muitas flores, envolta num suave perfume de cera, e incenso, e

violetas, e rosas.

***

Um desses curadores eu conheci, que, depois de benzer a

sarna, receitava ao paciente uma pomada de enxofre, e outro

que, nas feridas dos animais, auxiliava o tratamento mágico da

benzedura com um pouco de lisol ou creolina...

Conheço casos em que parece eficaz esse tratamento, e

outros em que parece nada ter produzido.

Terá enfim algum valor a benzedura? Produzirá algum efeito

como meio de curar, de acordo com a confiança de quem a

pratica?

Não sei, mas estou muito inclinado a uma resposta

afirmativa, mas apenas quando o benzedor tem, quanto ao seu

ato, a verdadeira fé, a fé que expele espíritos e transporta

montanhas.

Sobre o assunto deveríamos, entretanto, fazer um rigoroso

inquérito, e, feito este, se ficasse provada a curabilidade de

moléstias físicas por esse meio, deveríamos experimentar a

benzedura também nas moléstias morais, nas enfermidades do

caráter, nas mazelas da alma, procurando sanear assim a

sociedade.

Seria uma beleza.

Seria uma glória para a nossa época se as mazelas morais

dos exploradores, dos intrigantes, dos boateiros, dos mentirosos,

dos espiões, dos judas, dos politiqueiros profissionais e sem

escrúpulos, dos intrometidos, enfim, desaparecessem de pronto,

sarando, após a intervenção do benzedor com a sua afirmação:

“Isso mesmo eu coso – ou com a água da fonte e o raminho do

monte...”

E devia ser mais curioso o diálogo:

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“Que tens, Pedro?”

“Sem-vergonhice, Senhor.”

***

Convido os meus leitores para algumas experiências, não em

si, pois de tal não necessitam, mas em outras pessoas...

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VIII

O propagandista

À tardinha, na casa comercial de um amigo, e em palestra

com esse cavalheiro e sua senhora e filha, um médico e um

farmacêutico residentes nas duas casas imediatas, e mais dois

vizinhos e amigos nossos.

Comentavam-se os últimos sucessos da sanguinolenta guerra

entre os revoltosos, sob a direção de Custódio de Melo e

Saldanha da Gama, e os defensores da legalidade, simbolizada

na pessoa de Floriano Peixoto.

Naquele tempo o povo era ainda informado acerca dos atos

dos seus dirigentes, por ele generosamente pagos então e

sempre, e sabia, portanto, de todas as evoluções de ambas as

partes beligerantes, e conhecia os elementos de que podia dispor

o governo contra a rebelião, como conhecia diariamente o

resultado aproximado de todos os combates. Lia os manifestos

dos dissidentes, e conhecia os ideais que os mantinham em

armas, seguindo, por intermédio da imprensa livre e da palestra

livre, todas as minuciosidades da guerra.

Em nossos dias o povo nada sabe. De nada é informado,

pelos dirigentes, por ocasiões de lutas armadas ou graves

complicações partidárias em que o governo é parte diretamente

interessada.

Naquele tempo não vinham os jornais com colunas e pedaços

de colunas em branco, como em nossos dias sucede, porque

respeitavam-se mais os direitos do povo, e porque estava então

em pleno vigor a Constituição, hoje deformada, desprezada,

incompreendida.

Mas volvamos à minha narração.

Comentávamos, como eu dizia, os últimos sucessos da luta

travada no Rio de Janeiro e no sul, quando entrou no

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estabelecimento um homem de cerca de trinta anos de idade, de

fisionomia simpática, e corretamente vestido, trazendo na mão

direita uma pequena mala de viagem e na esquerda o chapéu.

Depondo a mala sobre o balcão, saudou a todos os presentes

com desenvoltura e delicadeza, e aceitou a cadeira que lhe foi

oferecida, declarando logo que era o propagandista de alguns

medicamentos, cujas amostras e referências pedia permissão

para apresentar-nos.

Como se achava assentado a meu lado, já tendo a pequenina

mala aberta sobre os joelhos, apresentei-lhe o médico, o

farmacêutico e os dois comerciantes, aos quais mais interessava

o assunto.

Dois dos medicamentos eram conhecidos, mas outros dois

eram novos, sendo todos apoiados com atestados fidedignos, e

eram convidativos os preços. Verifiquei sem demora que mesmo

ali o viajante faria boa venda, não somente ao farmacêutico,

como também aos dois negociantes, pois naquela ocasião era

muito comum a venda de preparados medicinais em casas de

comércio.

O médico declarou ter já usado em sua clínica, na capital, os

dois preparados conhecidos, sempre com bom resultado, e que

os outros dois tinham-lhe sido recomendados por dois colegas

ilustres.

O viajante efetuou a venda de três remessas, forneceu as

respectivas cópias de pedido, e declarou pretender enviar os

pedidos no dia seguinte ao depósito.

Contratando a venda dos preparados, continuando a falar

sobre as qualidades e a aceitação da sua mercadoria, e

escrevendo os pedidos, ia também falando acerca dos

acontecimentos políticos e da guerra propriamente dita. Viera do

Rio de Janeiro e de São Paulo, e tinha estado em numerosas

localidades, tendo passado por diversas dificuldades devido ao

estado de sítio e à desconfiança das autoridades. E falava sobre

dinamiteiros, boatos de novas revoltas, desgostos entre as

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classes armadas, represálias por parte das populações

prejudicadas.

Depois de longa palestra, em que ele parecia auscultar em

nós a opinião pública do lugar, o viajante, compreendendo que a

maioria do povoado e da zona era muito favorável à causa

revolucionária, isto é, contra o militarismo que ameaçava

empolgar o país, declarou-se francamente partidário dos

revoltosos, sem dizer, todavia, ser ou não um enviado da

revolução.

Era inteligente e culto, a palavra fácil, a enunciação correta.

Parecia um cientista, e não um caixeiro-viajante. Assemelhava-se

a um orador afeito a defender seus ideais perante as multidões.

Retirando-se, depois de mais de duas horas de conversação

animadíssima, deixou-nos, a todos nós, uma impressão de

esperança e de receio, entre agradável e triste.

– Esse moço é um enigma vivo – disse a senhora do

comerciante.

– Creio que é médico – declarou o doutor.

– Tenho a certeza de que é um homem acostumado a falar e

a escrever sobre assuntos do mais palpitante interesse – opinou

um dos comerciantes, dedicado à literatura e ao jornalismo.

– Penso que não nos remeterá os remédios – disse o

farmacêutico – e que essa representação é apenas aparente, a

fim de poder viajar, sondando as opiniões do interior, sem

despertar suspeitas.

– Esse moço é um enigma vivo – comentou pela segunda vez

a esposa do negociante.

E realmente o era.

Ou um foragido do sítio, ou um enviado da revolução, ou um

curioso que viajava a sondar opiniões, ou um jornalista que

colhia notas para suas notícias e seus artigos, o certo é que,

retirando-se, não visitou outros comerciantes nem as duas

farmácias da localidade, ou pelo menos o farmacêutico que não

se achava naquela pequena reunião, e a quem eu o apresentaria,

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conforme meu oferecimento, que o viajante aceitou para o dia

seguinte.

Dirigiu-se diretamente para a estação da via férrea, onde

alguns minutos depois comprava um cartão de primeira classe

para a terceira estação ascendente. Vendo-me, apertou-me

delicadamente a mão, declarando: “Retiro-me, meu amiguinho;

pois acabo de ver um vulto suspeito, e acho prudente seguir para

um lugar onde disponho de meios de segurança. É quase certo

poder voltar a visitar este lugar no fim de alguns dias. Peço dizer

aos seus amigos que amanhã, à noite, farei a correspondência

com os seus pedidos”.

Presa de um negro pressentimento, nada respondi.

Chegava o comboio. Da última janela do carro de trás, mal

iluminado por dois lampiões de querosene, fez-me o moço um

gesto de despedida. E partiu.

Na manhã do dia seguinte, à passagem do expresso,

começou a circular a notícia do fim trágico de um viajante.

Era um moço corretamente vestido de casimira clara, levando

uma pequena mala com amostras e prospectos de quatro

medicamentos, que apresentava aos passageiros, procurando

fazer intensa propaganda.

Tinha tomado o expresso à noite, na terceira estação aquém

daquela em que tinha saltado. Três indivíduos desconhecidos

tinham também alcançado o comboio na mesma estação, mas

um após outro, e no carro de segunda classe. Chegando à

estação de seu destino, o jovem propagandista tinha descido,

tomado a sua mala de viagem e mais objetos, e seguido por um

caminho à direita da estação, com o intuito evidente de se dirigir

a uma das mais próximas propriedades agrícolas do lugar, e os

três indivíduos desconhecidos, vendo-o descer e tomar aquele

rumo, saltaram também, um a um, e seguiram a mesma direção,

não tendo tornado a ser vistos, nem deles tendo a polícia

encontrado vestígio algum.

Eram essas as informações dadas por passageiros e por

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funcionários da via férrea, ajuntando as informações colhidas na

manhã seguinte, quando, de regresso, passara o expresso por

aquela estação.

Mal havia o expresso partido, ouviram-se na estação, os

estampidos de diversos tiros, como se vindos de uma distância

de 400 a 500 metros, e na manhã seguinte, muito cedo ainda,

fora encontrado o corpo do infeliz mancebo, já frio, varado ou

ferido por diversas balas. Ao lado estavam a mala, revolvida, e os

medicamentos e impressos, e à pequena distância alguns

periódicos, dois livros e alguns objetos de uso, inclusive uma

bolsa vazia. Nos bolsos encontraram-se-lhe algum dinheiro, um

canivete, um relógio, um lápis e um lenço de seda, mas nenhum

papel fora encontrado.

Não eram ladrões vulgares os matadores: eram assassinos

assalariados. Não lhe roubaram o dinheiro nem o relógio:

arrebataram-lhe os papéis, a correspondência, os documentos.

Quem era aquele infeliz? O seu nome? A sua residência? A

sua família? A sua profissão?

Ignoro-o. Sei, porém, que foi uma vítima da política, dessa

política de perseguições e de ódios de então e de sempre. Dessa

política sem ideais, sem patriotismo e sem Deus. Dessa política

que transforma os irmãos em inimigos, e que absorve, num

nepotismo às claras, todas as economias do país. Dessa política

subserviência, de então e de sempre, que prescreve obediência

passiva ante a vontade de uma oligarquia sem rebuços. Dessa

política sem princípios, que, conforme a definição de saudoso

jornalista mineiro, sempre esteve e está dividida em dois partidos

– um que é apoiado pelo governo e outro que deseja ser apoiado

pelo governo.

Não sei quem era aquele homem, aquele infeliz viajante.

É bem possível, entretanto, ter ele deixado algures um lar,

onde, por muitos anos, lágrimas amargas correram sobre a sua

ausência, sobre a sua morte provável, sem jamais ali chegar uma

notícia positiva.

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Tudo trevas, silêncio, mistério...

Numerosos anos decorreram, e ainda hoje eu me sinto triste

recordando o fato.

Com o assassinado extinguiram-se todas as probabilidades de

informações, desapareceram todos os papéis que poderiam

projetar luz sobre a identidade da vítima.

Talvez fosse um cientista, um poeta, um orador, um

jornalista, uma alma cheia de ideias generosas.

E ali pereceu, ignorado, esquecido, anônimo, sob as armas

homicidas de três desconhecidos.

Tudo trevas, silêncio, mistério...

***

Escrevi este capítulo alguns meses antes da revolução

triunfante de outubro de 1930, e não envolvem, pois, o governo

enérgico e patrioticamente presidido pelo Sr. Getúlio Vargas as

referências por mim feitas aos nossos dirigentes. Com os Srs.

Getúlio Vargas, Batista Luzardo, Osvaldo Aranha, Olegário Maciel

e outros grandes chefes desse movimento de reivindicação, como

também com os idolatrados patrícios Rui Barbosa e João Pessoa,

sempre fui solidário, pelos seus ideais tendo lutado, verbalmente

e pela imprensa, com todo o esforço de que podia dispor.

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173

IX

Otimistas e pessimistas

Ainda atualmente é a vida neste mundo, para os intelectuais,

um perscrutar constante e nem sempre bem-sucedido da

verdade, pois esta foge, não raro, ao escalpelo do médico, às

deduções do filósofo, às experiências do psicólogo, aos exames

meticulosos dos mais esforçados pesquisadores, às lucubrações

dos eruditos em todos os ramos de conhecimentos.

Sirva de prova a ignorância em que ainda estamos sobre as

razões ou as causas do otimismo e do pessimismo, e sobre a

influência exercida por estes dois estados da alma humana nos

fatos que nos cercam.

E realmente é grande o poder do pensamento, e são

admiráveis os seus efeitos, seja ele falado ou escrito, ou

simplesmente formulado pelo indivíduo em seu foro íntimo, mas

em qualquer dos casos lembrado sempre, sempre, firme e

claramente. Quando formulado perante a pessoa ou as pessoas

de quem depende essa ou aquela realização, passa a ter

verdadeira força sugestiva, ou constitui, para quem o expende,

uma como que ideia fixa, uma forma indubitável de

autossugestão.

Numerosas pessoas nutrem desejos contínuos, bons ou

maus, para o bem ou para o mal – referentes os primeiros a si

próprias ou a outrem, e referentes os últimos a inimigos –, e

fazem tender para esses desejos todas as suas energias, toda a

força de sua vontade, todas as esperanças, e muitíssimas outras

pessoas deixam-se acabrunhar por ideias tristes, de receio, de

apreensões, e nelas se conservam, durante longo tempo, no mais

cruciante temor. Pois eu tenho observado, em quase todos esses

casos, que a realidade, desejada ou temida com persistência,

vem um dia premiar esse desejo ou essa grande confiança, ou

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justificar esses receios constantes, essas apreensões de todas as

horas.

Quer desejando o bem para si, e até para outros, quer

desejando o mal aos seus desafetos ou temendo a própria

desdita, pode o indivíduo reconhecer a força extraordinária do

pensamento persistente. Quando, porém, tais desejos ou receios

se referem ao próprio indivíduo que os nutre, os resultados, bons

ou maus, são muito mais seguros.

Livremo-nos, portanto, de um mau pensamento, ou mesmo

de lhe favorecer o curso. Grande parte do que conseguimos no

decorrer da vida e grande porção de quanto sofremos, física e

moralmente, originam-se dos nossos pensamentos bons ou

maus, de nossas esperanças ou nossos receios, de nosso

otimismo ou nosso pessimismo, de nossa persistência em

pensamentos de felicidade ou de desdita.

Por que tem tanto poder o nosso pensamento?

Ignoro-o.

***

Eu desejara dispor de espaço suficiente para maiores

dissertações e numerosos exemplos sobre o assunto, e que este

fosse tratado por pessoa competente, e não por um pobre artista

que, sendo, como eu o sou, um artista pobre, nem sequer pode

dispor do tempo necessário para as experiências precisas, nem

para a aquisição de notícias sobre tão elevado estudo. Publicação

um pouco mais duradoura do que outra espécie de periódicos, a

Revista da Mata prestaria não pequeno serviço aos estudiosos

desenvolvendo o assunto, mesmo não dispondo de grande

espaço, mas substituída a minha pena pela de qualquer pessoa

competente.

Sirva o meu artigo de incentivo a alguém, e sejam-me

permitidas mais algumas palavras antes de entrarmos no domínio

dos fatos.

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175

***

Pensai no bem, falai sistematicamente no bem, e dai curso a

todos os pensamentos bons, pensamentos de paz, de afeição, de

esperança, de saúde, de abundância, e o mal fugirá de vós. Se

pensais no mal, e alimentais sentimentos de ódio, e desejos de

vingança, e recordações de tristezas passadas ou imaginárias, e

ideias de medo, de desconfiança, de miséria, de doenças, a

desdita em breve vos baterá às portas.

Por que tem tanto poder o nosso pensamento?

Ignoro-o; mas a experiência de longos anos me assegura o

poder dos pensamentos persistentes.

Passemos aos fatos.

***

Conheci, há cerca de vinte e cinco anos, um homem rico com

o receio infundado de cair na miséria. Dizia-se, desde então,

quase pobre, e caminhando de prejuízo em prejuízo, prevendo

próxima a época em que, forçado a contrair dívidas que não

poderia saldar, iria ver as suas propriedades sequestradas, e

esgotados todos os seus recursos, ficando ele e sua família

privados de um teto de colmo que lhes pertencesse, e ficando ele

vestido com os farrapos e alimentado com o pão que a caridade

pública lhe fornecesse.

Tudo isso ele o dizia aos parentes, amigos, vizinhos, a todas

as pessoas de suas relações, e dizia-o com convicção e tristeza,

como uma ideia fixa, todos os dias, durante anos, narrando os

prejuízos sofridos, e enumerando as secções cujas rendas

decresciam ou tinham desaparecido.

E possuía, entretanto, livre de dívidas, uma fazenda de

cultura e pecuária de mais de oitenta alqueires de terreno; a sua

lavoura dava-lhe superabundância de cereais e de cana, e a sua

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sólida casa comercial era suficiente, por si somente, para

assegurar a manutenção da família. O seu gado era composto

ainda de uma centena de bovinos e quase outro tanto de suínos,

com cerca de uma dúzia de cavalos e muares de aluguel, em

vastas e ricas pastagens.

Esse homem, chefe de uma família pouco numerosa, estava

ainda robusto naquela ocasião, entre os 40 e 45 anos, com uma

saúde admirável, e, entretanto, previa os próximos achaques da

velhice e das moléstias...

Alguns anos depois estava um homem pobre, paupérrimo,

sem um teto próprio onde se pudesse acolher, e sem renda que

lhe assegurasse a subsistência, e assim permanece, quase na

miséria.(1)

***

Conheci na mesma ocasião, há cerca de vinte e cinco anos,

um jovem comerciante e industrial que dispunha de um pequeno

capital, e estava estabelecido em um povoado pouco

desenvolvido onde não poderia prosperar como desejava. Ele

dizia-se, entretanto, em véspera de obter uma fortuna. De cada

pequenina empresa iniciada ele descrevia-a, com entusiasmo, os

fartos lucros esperados, e projetava transferir-se, com suas

indústrias e seu comércio, para um grande centro, dois anos

mais tarde, sobre isso falando constantemente, e, no decorrer

desses dois anos, trançando convictamente o seu futuro modo de

agir. Exerceria naquela cidade diversas indústrias pouco

exploradas, para isso adquirindo maquinismos etc. etc. E ele

enumerava os lucros que lhe deveriam advir de tais e tais

empresas, e demonstrava o seu futuro modo de agir nas diversas

(1) O pobre homem faleceu aos 80 anos de idade, em 1927, na pobre casa

campestre de um parente, que por favor o tinha ali recolhido.

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secções da sua projetada casa, falando com a seriedade da

confiança.

É ele, há já alguns anos, um grande industrial, um rico

comerciante e proprietário em uma das nossas mais belas e

prósperas cidades.(2)

***

Um dos meus amigos mais antigos e dedicados, tendo três

filhos em 1896, começou a impressionar-se seriamente com a

sorte do seu primogênito, nessa ocasião com três anos somente.

Tinha o horrível receio de que esse menino, ao adquirir idade de

raciocínio e de ações livres, viesse a adquirir um costume

altamente censurável, isto é, um defeito que a sociedade repele

com asco, e algumas vezes as leis perseguem com energia. O

meu amigo tinha, a perfurar-lhe o cérebro, um medo horrendo

de que esse filho viesse mais tarde a cometer tais crimes,

felizmente raríssimos na zona em que residíamos, quase

desconhecidos mesmo. Um velho tio desse meu amigo, homem

culto, mas de equilíbrio mental um pouco duvidoso, insinuara-lhe

esse receio infundado, incutira-lhe ao espírito esse estúpido

terror, ao ver a criança dar os primeiros passos, e foi em vão que

eu procurei numerosíssimas vezes combater esse terror. Mais de

um cento de vezes falou-me ele sobre isso, sempre encontrando

em mim a maior oposição aos seus receios infundados.

Decorreram os anos, e quando o filho do meu amigo chegou

à maioridade, possuidor embora de alguma educação e de

algumas qualidades boas, tinha já diversas manchas no seu

(2) Em 1929 fui visitado por esse cavalheiro, que me honra com a sua

amizade, e mais uma vez constatei estarem os seus negócios em franca

prosperidade.

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passado... O infeliz mancebo já tinha cometido algumas vezes o

crime tão temido por seu pai!...

***

De fatos semelhantes aos dois primeiros eu poderia citar

dezenas, ou mesmo algumas centenas, se considerarmos

também os de menor vulto.

Quanto ao terceiro, eu poderia reforçá-lo com a narração de

outros semelhantes a ele, conquanto menos importantes. O

espaço é, entretanto, pequeno para isso, e, além disso, tais

experiências devem ficar a cargo de pessoas competentes.

Passo a observações de outra natureza.

***

Há homens que passam toda a sua vida despreocupados

quanto à sua segurança individual, e durante dezenas de anos,

desde a puberdade à velhice, viajam, trabalham, efetuam

negócios, e exercem diversas indústrias, sempre calmos, sem

receio, inermes, sem pensar sequer na possibilidade de uma

cilada, e não passando jamais nem pela ameaça de uma

agressão.

Outros indivíduos, ao contrário desses, veem uma traição em

cada canto, uma cilada em cada esquina, com um terror pânico

aos inimigos, se os têm, ou de ladrões e salteadores de estradas,

e temem a solidão e a noite, e desconfiam dos próprios amigos,

e é, presas desse medo constante, e carregado de armas, que

tais indivíduos, tratando dos seus negócios e indústrias, animam-

se a transpor a sós algumas milhas por lugares pouco povoados,

terminando alguns deles, não raros, sob a arma homicida de um

celerado, sem para nada lhes servirem as armas e precauções.

Conheço indivíduos, já velhos, que passaram dezenas de

anos em viagens e negócios, ora percorrendo cidades policiadas

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e povoações civilizadas, ora lugares onde ainda não penetrou a

civilização, sem a esses indivíduos nada de mal haver ocorrido,

sem que um fio de cabelo lhes houvesse caído da cabeça –

servindo-me da expressão do Divino Mestre –, e sempre sem o

uso de armas, e outros tenho eu conhecido a quem as armas não

livraram de perigosas agressões e até da morte.

É que os primeiros pensavam na paz, na harmonia, na

segurança, na concórdia, nos direitos e deveres do homem, no

bem enfim, cuja culminância é Deus, e os últimos tinham o

receio na alma, atraindo o mal com os seus pensamentos de

crimes, com o seu terror constante.

***

Pensemos no bem, unicamente no bem, e afastemos de nós,

sem lhes dar curso, todos os pensamentos de doença, de

pobreza extrema, de ódio, de vindita, de orgulho, de egoísmo, de

medo –, todos os pensamentos persistentes sobre o mal.

Passo a narrar um fato triste em abono destas palavras.

Havia em certo distrito duas corporações artísticas entre

cujos principais dirigentes e torcedores, de parte a parte,

estabeleceu-se uma espécie de desconfiança, longe aliás de se

poder chamar inimizade.

Os respectivos diretores eram calmos e sensatos, e quase

todos os sócios eram pessoas afeitas à paz e à união. Alguém

disse, porém, que um conflito, talvez de morte, ia haver entre os

dois dirigentes adversos, e disse-o sem fundamento algum, mas

deu curso a esse boato com tal insistência, com tal convicção,

que no fim de alguns meses quase toda a população previa como

certo esse conflito, essa estúpida cena de sangue.

Algumas pessoas tentaram deter o curso do boato,

procurando provar a sua falta de base, e não o conseguiram, até

que, alguns meses mais tarde, realizou-se esse crime, sendo um

desses homens agredido pelo outro, ficando ambos feridos, um

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dos quais gravemente.

Por que exercem as palavras, quando pronunciadas com

persistência e convicção, tão estranha influência?

Ignoro os motivos, mas reconheço o fato.

***

Um amigo e colega meu obteve em certa ocasião uma

interessante obra de arte. Era uma peça de música, uma grande

ária francesa, com acompanhamento de piano e belíssimos tutti

de violoncelo com variações de violino, ária merecedora da maior

admiração devido à beleza dos versos, como devido ainda à

perfeição da cópia, executada a pena, de um modo

verdadeiramente admirável, em papel colorido.

Se essa música estivesse impressa, ou, mesmo em

manuscrito, estivesse à venda, o seu preço seria relativamente

uma insignificância.

Não estava à venda, porém, apenas existindo entre nós

aquela cópia, e eu, depois de a haver admirado detidamente,

comecei a alimentar o desejo de possuí-la.

Eu não o disse a ninguém, mas desde o dia da entrega da

referida música comecei a pensar que ela, sendo minha, serviria

a mais pessoas, e que devia pertencer-me. Eu reconhecia,

perante o meu foro íntimo, ser aquele meu desejo, em ponto

pequeno, um delito de cobiça, de ambição, de egoísmo talvez,

mas... o desejo não me saía da mente.

No fim de uns vinte dias, ou pouco mais ou menos, sem que

sobre o assunto houvéssemos falado durante esse tempo, o meu

colega entrou-me certo dia em casa, e, entregando-me a

partitura, disse-me: “Trago-te hoje um presente. Contigo será

mais conservada”.

Influência do meu pensamento, ou mero acaso?

Ignoro-o.

Se influência do meu pensamento, teria tal influência sido

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prevista ou estudada, na antiguidade, pelo legislador que incluiu

entre os preceitos divinos o não cobiçar as cousas alheias?

***

Fiz em certa ocasião uma experiência sobre o assunto, com

resultado satisfatório, e três anos depois fiz novamente, com o

mesmo resultado, outra experiência semelhante à primeira.(3)

Eram dois cargos eletivos, para os quais, respectivamente, eu

desejava dois cidadãos dignos, quer pela sua seriedade, quer

pela sua honradez, quer pela sua competência, mas sobre a

escolha dos quais ninguém cogitaria, pois eles não eram políticos,

e um deles nem sequer era eleitor.

A realização desses dois projetos dependia de muitas pessoas

sobre as quais eu não tinha nem tenho influência alguma; mas

eu falei às primeiras pessoas, com certo calor, como

apresentando uma ideia minha, e, não achando oposição,

comecei a falar aos outros interessados sobre esses projetos

como se fossem candidaturas já assentadas, e fazendo-o com tal

convicção de êxito que, em cada pessoa, em cada vontade,

falando sem inverdades e sem exageros, encontrava um auxiliar

de valor, cujos desejos vibravam de acordo com os meus.

E foi assim que dois homens honrados ocuparam naquele

distrito, durante anos, cargos que não eram honrados pela

grande competência de seus antecessores...

(3) Não tornei a fazer outras experiências semelhantes às dos dois fatos

acima, e nem as farei jamais, porque um desses cidadãos deixou-se

envolver, no decorrer do segundo período de sua escolha, pelos tentáculos

do polvo denominado política, chegando a ser chefe, em dois distritos, de

um partido político, com o que sofreu não pequenos prejuízos e desgostos.

– (Comentários do Autor, em 1930.)

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***

Pensemos no bem, e afastemos de nós, sem lhes dar curso,

nem sequer como boatos, todos os pensamentos sobre o mal.(4)

(4) Da “Revista da Mata”, de Cataguases, Minas, em fevereiro de 1917.

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X

O perdão das ofensas

Percorrem esta zona, de povoado em povoado, alguns

missionários católicos redentoristas de nacionalidade holandesa.

São recebidos festivamente a música, e discursos, e fogos de

artifícios, e logo em seguida principiam a falar ao povo,

“pregando as missões”, e a fazer algumas festividades, e a ouvir

os devotos em confissão.

E os reverendos vão ouvindo os grandes e pequenos pecados

do sexo que teve barbas e torceu bigodes, e os insignificantes

pecadilhos das moças, das moças bonitas, dessas encantadoras

tentações que possuíram outrora belíssimos cabelos

encaracolados, e que agora trazem as inquietas cabecinhas

elegantemente tosadas à la garçonne.

É bem provável apresentarem-se as moças aos sacerdotes,

embora estando o tempo quase quente, envoltas em grossas e

luxuosas capas de frio, assim ocultando, aos reverendos, o belo

decote do leve vestidinho de seda e os encantadores braços nus.

É que esses homens da Igreja abominam essas modas de despir.

Provavelmente, aos primeiros erros, aos pecados masculinos,

do sexo impropriamente denominado forte, que costuma cometer

pecados graúdos, franziam os reverendos os sobrolhos, em

formal desaprovação, mas ouvindo os inocentes pecadinhos das

moças, e principalmente das moças bonitas, sorria-se cada

confessor quase imperceptivelmente, apressando-se a dizer, para

cada receio, umas palavras de conforto, e concedendo “para

cada crime o seu perdão de pai”, como disse o poeta.

Mas os maiores criminosos, esses de quem cogita o Código

Penal e que a sociedade teme e repele, não foram certamente ao

tribunal da penitência dos dedicados missionários. Aos ouvidos

destes não soaram decerto as terríveis confidências dos

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assassínios covardemente premeditados, dos roubos, das traições

mesquinhas, das seduções ignóbeis, das falsidades inauditas, das

maldades cuja narração encher-nos-ia de horror. Esses lá não

estiveram, exceto se alguns, mais animosos e hipócritas,

resolveram ocultar, por momentos, as garras do lobo voraz sob a

pele da mansa, da inofensiva ovelha.

Lá devem ter estado, porém, no tribunal da penitência,

muitas pessoas de coração endurecido, que não perdoaram ainda

as ofensas recebidas, ou as supostas ofensas de que se dizem ou

se julgam vítimas, pessoas que esperam o seu perdão e

continuam, entretanto, a ter o coração cheio de ódio, a

transbordar de rancor e de maus desejos.

São os criminosos de quem o Código Penal não cogita.

É a essas pessoas, se o acaso levar a algumas delas estas

pobres linhas, que eu consagro e dirijo este artigo.

***

Era costume dos antigos oferecerem sacrifícios aos deuses

sobre o altar do templo. Esse altar era de mármore, de que a

Igreja Católica ainda conserva vestígios na pequena pedra,

colocada como um símbolo no meio do altar, e sobre a qual

colocam os padres o cálice por ocasião do sacrifício da missa.

Sobre a pedra do altar provavam os homens, pois, a sua fé,

sacrificando um animal, oferecendo uma vítima ao Senhor.

A essas ofertas se refere Jesus, declarando-as inúteis quando

não procedidas pelo perdão das ofensas.

“Qualquer – disse o Divino Mestre – que contra seu irmão se

indignar sem razão será réu de juízo, e, portanto, se trouxeres

teu presente ao altar, e ali te lembrares de que teu irmão tem

alguma cousa contra ti, deixa ali o teu presente, diante do altar,

e vai, reconcilia-te primeiro com teu irmão, e então vem, e

oferece o teu presente.”

Em nossos tempos há provas mais palpáveis da fé, e o

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sacrifício de vidas foi substituído pelo sacrifício incruento. Fazem-

se essas provas, quanto ao Catolicismo, nas cerimônias do

batismo, da confirmação, do matrimônio eclesiástico, da

confissão auricular, e da comunhão, e ainda pela imprensa, pela

tribuna, nas festas religiosas, e de outros modos afinal.

A mais importante, porém, de todas as provas de submissão

ao credo católico, é, incontestavelmente, a confissão, mormente

se feita aos santos missionários, como dizem os crentes mais

simples.

Não há nestas linhas ironia alguma, pois eu respeito todas as

crenças, quando sinceras, como desejo ver respeitadas as

minhas, e creio mesmo haver muitas vezes sem a paga o perdão

de grandes erros, mas apenas quando o arrependimento é

sincero e perfeito.

Mas de quantas pessoas, neste lugar, foram implorar perdão

ao tribunal da penitência, uns milhares em poucos dias, não o

terão feito muitas somente com os lábios? Não terão algumas

dessas pessoas deixado de perdoar as ofensas recebidas ou que

supõem recebidas?

Essas pessoas não foram certamente perdoadas. Deveriam

primeiramente justificar-se perante seus adversários, perdoar a

quantos as houvessem ofendido, e começar a amar a quantos

odiavam.

A graça e o ódio são incompatíveis.

Quando reina a paz em uma população inteira, no seio de

cada família como nas relações dos lares entre si, um como que

estado de graça permanente constitui a felicidade geral. Se

domina, porém, a desavença, e a desconfiança impera, e a

ambição predomina, e a adulação mais asquerosa e soez adquire

foros de virtude, e a intriga e a espionagem recebem prêmios,

parece que uma atmosfera de ódios nos arreda de Deus,

constituindo, quase somente por si a nossa desdita, a infelicidade

geral.

Nesse estado de desdita todos os credos religiosos são

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ineficazes, não trazendo ao povo a paz imprescindível para a

felicidade, nem a confiança de que ele tanto necessita, nem a

esperança que ele reclama, nem a tranquilidade de cada

indivíduo, de cada família, de cada povo enfim.

A quem pede perdão sem por sua vez perdoar a quem o

ofender, ou ao indivíduo por quem se julga ofendido, perdão não

será concedido. A quem pede para si a tranquilidade, e tem,

entretanto, a alma cheia de rancor, quase sempre infundado, é

certo ser-lhe negado quanto implora.

Quem o diz não sou eu, não somos nós: é o Divino Mestre.

Reportando-me a alguns fatos da ocasião escrevo estas

linhas, e, sem assumir as funções de doutrinador, para as quais,

aliás, faltar-me-ia competência, devo asseverar que ao pedirmos

perdão para os nossos erros já devemos ter perdoado aos nossos

desafetos, fazendo de cada um deles um amigo ou um irmão.

Sem isso, a nossa contrição seria uma mentira.

Mas dirigem-se muitas vezes ao tribunal da penitência, e

mais frequentemente ao confessionário dos padres missionários,

indivíduos que não relevam as faltas alheias, e continuam a odiar

os seus inimigos verdadeiros ou supostos, e não procuram

também o perdão das próprias faltas. Vão ao confessionário, e

ouvem com aparente unção religiosa as prédicas dos sacerdotes,

unicamente para serem vistos, unicamente procurando adquirir a

fama de religiosos, de humildes, de populares, de bons.

Esses – assim o disse o Cristo – já receberam a sua

recompensa.

Não diz o Divino Mestre em que consiste essa recompensa,

sendo provável consistir na fama de religiosidade...

Escravos das convenções do meio, abandonam a sinceridade

pelas aparências. Fazem o que viram fazer a maioria, e não raro

o que julgam agradável aos dirigentes, aos detentores do poder

ou das grandes fortunas.

E incontestavelmente causas que mais concorrem, em nossa

Terra, e principalmente nos últimos tempos, para a degeneração

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dos costumes, é a apatia, é a indiferença, é a amorfalidade, é a

quase inconsciência com que inúmeras pessoas se deixam

conduzir, pelas potências do ouro, ou pelos prepostos de

governos que não compreendem a sua missão, ou simplesmente

pela rotina ou pelo medo, no seu modo de agir em religião e em

política.

Dizem o que não sentem, fazem o que não desejariam fazer,

aprovam ou reprovam o que não conhecem, silenciam sobre

injustiças, negam alvíssaras ao mérito, e humilham-se não raro

quando a sua altivez seria uma virtude.

Não envolvem estas minhas ponderações, referindo-me ao

tribunal da penitência, e também às missões, terminadas pelo

belíssimo sermão do perdão das ofensas, a mais ligeira censura

aos verdadeiros crentes, aos humildes de verdade, mas apenas

aos indivíduos sem fé, e cheios de rancor, e afeitos às

perseguições e à mentira, que foram demonstrar o que não

sentem e o que não são.

As religiões merecem mais respeito.

Terminando, entretanto, estas despretensiosas ponderações,

devo declarar-me inteiramente solidário com o orador. Temos o

dever de perdoar quantas ofensas tenhamos recebido, e de

tolerar e desculpar muitos erros e defeitos alheios, para que a

nós nos perdoem nossas ofensas, e tolerem e desculpem nossos

erros e defeitos.(1)

(1) D’O Município, de 13-9-1923.

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XI

Um apelo

Chegamos a um ponto tão grave quanto à crise de

numerário, e, consequentemente, quanto à crise de negócios e

de trabalho, que os fatos parecem demonstrar serem estes dias

os da culminância da mesma crise. Pessoas competentes dizem,

entretanto, que esta época de dificuldades e prejuízos, de

incertezas e apreensões está ainda longe do seu término, talvez

longe ainda do seu meio, e que a etapa a vencer, comparada à já

vencida, será mais longa, mais penosa, mais povoada de

sofrimentos.

É necessário precaver-se o povo para entrar nesse período de

tristes ameaças. Deve imaginar estarmos terminando o tempo

das espigas cheias e das vacas gordas, tendo iminente o período

das espigas chochas e das vacas magras, sem um José que nos

leia o futuro nem um Faraó que nos forme celeiros.

Em preparar-se o indivíduo ou a coletividade para uma

quadra má, mesmo sem a convicção de ser ela uma realidade,

não há pessimismo: há previdência e precaução.

Diminui sensivelmente o dinheiro em circulação, e grandes

empresas fracassam, arrastando consigo as economias de

inúmeros lavradores, e concorrendo, consequentemente, para o

enorme prejuízo do comércio, do operariado e de todas as

classes proletárias.

O meio de combatermos a miséria que nos ameaça é a

produção, em grande escala, de tudo quanto é necessário ao

povo. Lavradores ou criadores, devemos aumentar o plantio e a

pecuária; operários ou artífices, devemos produzir mais, bastante

mais do que nos tempos normais; como intelectuais, nas ciências

ou nas artes, na tribuna ou na pena, no magistério ou na

imprensa, na administração ou na política, devemos agir com

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energia e clareza, e ainda, se possível, mais criteriosamente,

mais honradamente, mais ponderadamente, mais

conscienciosamente do que nos tempos normais.

Aproveitemos o tempo, que não é dinheiro, como diz o

provérbio inglês, mas muito mais do que dinheiro – pois este,

perdido, pode frequentes vezes ser reconquistado, mas aquele,

uma vez perdido, não poderá jamais ser recuperado.

É semelhante, o tempo, àquela belíssima Virtude que, entre

as Virtudes eventualmente tangíveis para uma grande festa do

Empíreo, ao se apresentarem essas entre si, na hora da

separação, determinando cada uma o local onde poderia ser

encontrada, disse com tristeza às divinas companheiras:

“Eu sou a entidade que nunca será novamente encontrada

por quem uma vez a perde. Eu sou... a Vergonha!...”.

E realmente o tempo é semelhante à vergonha: quem tem a

desgraça de perder a vergonha, ou tem a desdita de desbaratar

o tempo, jamais fará nova aquisição de vergonha, e nunca

recuperará o precioso tempo perdido.

Pessoas inexperientes dizem às vezes que a perda de algum

tempo nada significa, pois após um dia vem outro dia. Essa

teoria não tem base, não merece crédito, pois muitas vezes

sucede não podermos fazer em um dia o que facilmente

poderíamos ter efetuado no anterior. Além disso, cada volta da

luz solar à porta de nossa morada, de 24 em 24 horas, é uma

advertência de que um dia mais acaba de ser descontado no

período de nossa permanência sobre a Terra, e de que, para a

solução dos nossos compromissos, devemos aproveitar todas as

nossas energias, sem desfalecimentos, sem prejuízos do precioso

bem denominado tempo, para não termos, tentando

infrutiferamente uma empresa, o desgosto de dizer a nós

mesmos: É tarde; é muito tarde...

É ocasião, portanto, de agir. A época é propícia ao trabalho,

e este se torna a mais premente das necessidades quando, como

agora, ameaças tremendas nos enegrecem o futuro.

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Muita razão tinha Wenceslau Braz, o grande presidente,

quando, por ocasião da guerra europeia, da maior guerra de

todos os tempos, aconselhava patrioticamente:

“Intensificai a cultura dos campos. Usai a parcimônia nos

gastos.”

A época atual, financeiramente, é bastante mais grave para

os brasileiros. São-nos necessários agora mais esforços, mais

dedicação, mais sacrifícios. Sem isso, muito maior será o nosso

sofrimento.

Essa quadra de apreensões e sacrifícios passará, porém, sem

grandes comoções, se os campos, em comparação com as

épocas normais, produzirem uma quantidade bastante maior de

gêneros alimentícios, e a pecuária acentuar mais nitidamente o

seu desenvolvimento, e as indústrias demonstrarem semelhante

ou maior vigor, e cada cidadão, dentro da esfera das suas

aptidões, em sua profissão, em seu cargo, em suas atribuições,

envidar esforços no intuito de produzir mais e gastar menos,

pondo em prática toda a sua capacidade de trabalho, e ainda

der, com a palavra e os atos, lições de trabalho e de economia, e

verdadeiros exemplos de amor ao cumprimento de dever.

Não são bons cidadãos os indivíduos que em qualquer tempo,

mas principalmente nestes dias de angústias e apreensões,

povoam sistematicamente as casas de bebidas e de jogos, ou

vivem embalados ou embalando outrem com esperanças ou

promessas de vida folgada à mesa do orçamento; pois também

aos governos, nestes tempos de penúria, cumpre fazer algo em

benefício do povo, e isso consiste em restringir as despesas aos

cargos de verdadeira utilidade pública, o que permite uma

sensível diminuição dos tributos. É o que consta ser propósito e

estar no programa do futuro Governo do Estado, exemplo digno

de ser imitado pelo Governo Federal e pela administração dos

municípios.

Com uma propaganda tenaz pelo trabalho, e decidida e bem

dirigida proteção à lavoura, e ainda com o exemplo, e

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incentivando empresas úteis, e abandonando à ação policial os

indivíduos nocivos à coletividade, muito podem os governos fazer

pelo povo oprimido de nossa terra, o qual, não vendo

reconhecidos os seus direitos de escolher livremente os seus

dirigentes, deve ao menos ter o direito e a possibilidade de fugir

da miséria, para o que faz jus ao amparo dos governos por ele

tão generosamente pagos.

Para que a população não sofra a maior inclemência da crise

atual, é necessário, em primeiro lugar, mas depois de implorar o

amparo da Divina Providência, trabalhar com método e energia e

economizar sem vileza.

É o que eu desejo.

***

É provável que alguns dos meus adversários, no município,

no costume de encontrar erros e mentiras em tudo quanto não

parte de seus chefes, lendo por desfastio as linhas acima,

entendam chamar-me pregoeiro de infortúnios.

A eles, como sempre, nada posso responder, por haver muita

diferença entre o meu e o seu modo de falar ao povo.(1)

(1) D’A Reação, de 16-9-1930.

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XII

Costumes

O ousado viajante criado pela imaginação fecunda de Júlio

Verne, vendo chegar ao final o estopim que conduzia à mina

formidável, no interior do globo, onde devia explodir

fragorosamente a carga nitroglicerina, bradava de longe, sobre a

tosca jangada em que sulcavam as ondas do mar subterrâneo:

“Desabai, montanhas de granito!...”

Como o viajante da Viagem ao centro da Terra, nós,

assistindo ao rápido evoluir dos povos nos últimos tempos, com a

civilização a penetrar nos mais recônditos povoados do Novo

Mundo, poderíamos e deveríamos bradar aos velhos usos

incompatíveis com a sociedade hodierna:

“Desaparecei, costumes obsoletos!...”

Os leitores destas linhas não conhecem talvez um dos mais

extravagantes desses costumes, o mais improcedente talvez: o

festejo de Judas.

É uma comemoração do suicídio de Judas, o arrependido

traidor do Mestre de Nazaré e é provável não conhecerem alguns

leitores como era feita essa comemoração no interior – e em

muitos lugares o é ainda –, principalmente nos povoados onde

ainda não silva a locomotiva.

Na sexta-feira que a Igreja denomina “da Paixão”, mal

desaparece o sol no ocidente, diversos grupos de moços, e

mesmo de indivíduos barbados e de meninos, vão-se formando

no povoado, em conciliábulos acerca dos trabalhos a serem

distribuídos e sobre a zona da ação de cada grupo.

Algumas horas depois, quando o comércio termina o

cerramento de suas portas, começam esses grupos a agir.

Na praça principal do povoado é erguida uma árvore, e dela

pende um boneco toscamente formado de pano, com a estatura

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e as proporções de um homem normal, e vestido de acordo com

o uso da época e do lugar.

É o Judas.

O títere representa o traidor de Jesus, o discípulo que por

trinta dinheiros, quantia equivalente a menos de 15$000 em

nossa moeda, guiou ao monte das Oliveiras os perseguidores de

Jesus, entregando-o ou denunciando-o por meio de um ósculo na

fronte.

Era o ósculo de Judas. E desde então nem sempre um beijo

demonstra amor, pois às vezes, não raro, encobre perfídias. Há

pessoas que osculam a face do ser que odeiam, e beijam a mão

que desejam morder.

Mas volvamos ao caso de Judas.

Ao suporem estar recolhida a maior parte da população,

esses indivíduos, divididos em magotes, dirigem-se a todos os

pontos do povoado, como às chácaras circunvizinhas, e trazem

para a praça quantos objetos encontram e podem conduzir –

madeiras, árvores, tábuas, portas, carros, animais de diversas

espécies, frutos, flores etc. –, formando, na chamada chácara do

Judas, uma enorme multidão de cousas e animais cuja

heterogeneidade e cuja disposição fazem da praça um verdadeiro

caos.

É a chácara do Judas, no sábado de Aleluia...

No centro, pendente de uma árvore por uma corda que lhe

aperta o pescoço em nó corredio, destaca-se a figura esguia que

representa o mísero judeu. Esse títere tem dentro da cabeça uma

grande bomba, e tem pelo corpo, ocultas sob a veste, diversas

bombas menores.

À exceção do boneco, tudo quanto se vê na improvisada

chácara foi para ali conduzido contra a vontade e às ocultas dos

legítimos proprietários. Toda a noite foi gasta nessa lide,

terminada ao primeiro alvor do dia de sábado por um suculento

pábulo, onde, quase invariavelmente, entra a vianda caprina sem

ser ouvido o pastor.

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Às vezes apresentam-se proprietários de alguns dos objetos

colecionados, e reclamam-nos; mas os interessados pelos

festejos estão sempre vigilantes, e não consentem na retirada de

cousa alguma antes da hora determinada, e para a negativa

apresentam razões que fazem a desistência por parte dos

reclamantes, unindo-se estes, frequentemente, aos promotores

do festejo.

Às nove horas da manhã do sábado denominado da Aleluia é

lido o testamento do Judas, às vezes impresso, e quase sempre

em numerosos versos, versos às vezes sem arte, declarando

burlescamente serem doados, por Judas, certos objetos a

determinadas pessoas, quase sempre em alusão a fatos

anteriores, passíveis de censura, ou a costumes bons ou maus,

mas na maioria maus, que caracterizam os improvisados

herdeiros.

Os sinos das igrejas, que não soam na semana durante cerca

de sessenta horas, às nove horas do sábado de Aleluia começam

a repicar festivamente, soando ao mesmo tempo campainhas e

carrilhões.

É o sinal. Os promotores do festejo e seus numerosos

assistentes, já tendo ouvido então a leitura do testamento, fazem

atear fogo ao Judas de pano, cheio de capim seco e guarnecido

de bombas, e, enquanto estas vão detonando, sobe um menino à

árvore, e desprende a corda, atirando o grande boneco ao solo.

Vendo no chão o vulto do pobre enforcado, já meio em

chamas, a garotada vibra de alegria, e arrasta-o pelas ruas e

praças esbordoando-o, despedaçando-o, queimando-o

destruindo-o enfim, em uma sanha espetaculosa e irritante de

inquisidores inconscientes.

Alguns desastres têm-se registrado em tal balbúrdia e,

entretanto, as mesmas cenas se repetem no ano seguinte.

Não deveríamos consentir esses restos de velharias inúteis e

desgraciosas, incompatíveis com a nossa época.

E com que fim acerar desse modo a ira popular contra a

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memória do pobre discípulo traidor, cuja história nos não fornece

dados para um julgamento definitivo?

Judas era um dos discípulos do Cristo. Acompanhava-o,

ouvia-lhe a palavra meiga e persuasiva, e chegou a ser incluído

entre os doze escolhidos a quem tudo seria revelado.

Se fosse um ímpio, não seria recebido, pois o Mestre lia nas

consciências. Se fosse um incrédulo seria preterido, porque o

Nazareno queria que os seus eleitos possuíssem a fé vigorosa e

pura, capaz de arredar montanhas.

Trazia consigo a bolsa, e não desprezava o ouro – dizem –,

mas isso não lhe impedia ser bondoso e crente. Um dia, tentado

de certo por outrem, provavelmente por um ser extraterreno,

sucumbiu a essa atração para o crime. Foi uma hora de cobiça,

de descrença, de desalento.

E talvez a essa fraqueza do pobre Judas não fosse estranho

algum amor de mulher... A quantos mortais leva o amor ao

menosprezo de compromissos e deveres! Se a alguns é o amor,

quando tem por alvo quem o merece, o caminho da regeneração,

a outros o amor, quando mal escolhido o seu alvo, é a porta

aberta para o esquecimento de muitos deveres que a dignidade

prescreve.

Teriam os gozos do mundo alguma cumplicidade no crime de

Judas, produzindo o esquecimento momentâneo dos prazeres da

alma?

Ninguém o assevera ou nega.

São, todavia, inúmeros os homens que fraqueiam em suas

convicções, em seus bons intentos, ante uma sugestão

sistemática e persistente para o mal. Há homens honrados de

quem uma hora de maus conselhos faz criminosos.

Os inimigos da verdade procuraram captar a confiança do

discípulo infeliz. Insinuaram-lhe na sua alma de simples,

prometeram-lhe amparo perante a lei e o povo, exploraram-lhe a

avareza, sondaram-lhe as paixões, e conseguiram afinal,

diminuindo perante ele o valor do Mestre, convencê-lo de que ele

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cumpriria um dever cívico guiando os perseguidores de Jesus,

qualificado por esses inimigos como um agitador perigoso.

E assim consentiu Judas em guiar ao monte das Oliveiras os

perseguidores do Mestre, e a eles entregou o meigo filho de

Maria dando-lhe um beijo na fronte, sem nela vislumbrar o

diadema do maior dos mártires.

Pouco depois, porém, os mais acerbos remorsos dominaram

a alma do mísero, e suas lágrimas apenas deixaram de correr,

quando, pendente de uma figueira, com o colo estrangulado ao

nó corredio de uma corda, encontrou Judas a dura morte que aos

olhos do vulgo arrebatava-o do sofrimento e da vergonha.

A corda que lhe oprimia a cerviz, prova inconcussa do seu

pronto arrependimento, dever-lhe-ia ter reabilitado a meio a

memória.

Descreveram-lhe o filho de Maria como um usurpador, e

mostraram-lho, despido da auréola divina, sem o desprendimento

que sempre demonstrou, e aspirando a um trono na Terra,

embora Jesus dissesse: “O meu reino não é deste mundo”.

Atemorizaram o pobre iniciado com a justiça romana, e

falaram-lhe do esperado fracasso da doutrina do Mestre.

Tentavam-no por outro lado com uma bolsa. Ele seria

simplesmente um guia, e assim o Cristo seria preso em um lugar

isolado, e não no centro da cidade, em plena luz do dia, o que

ocasionaria um tumulto, e Judas guardaria os trinta dinheiros...

Não deixariam de lhe dizer, os inimigos de Jesus, que ele,

Judas, não se prestando àquele serviço, outra pessoa a isso se

prestaria com paga menor.

Assim sucumbem os fracos.

Assim sucumbiu Judas.

Mas arrependeu-se sem demora, atirou com a bolsa aos pés

dos sacerdotes, e fugiu do mundo, envergonhado, convicto da

enormidade do seu crime, cheio de horror de si mesmo,

devorado de remorsos.

Suicidou-se poucas horas depois da traição.

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E, entretanto, muitíssimos outros traidores, inúmeros outros

gozam em paz a paga da sua perfídia.

Não preconizo o suicídio: pelo contrário, reprovo-o em todos

os pontos, por todos os princípios. É sempre uma covardia. Mas o

suicídio de Judas demonstra o seu arrependimento quanto à

traição horrenda, e inúmeros traidores não se arrependem.

A devolução acintosa dos trinta dinheiros é uma prova de

sentir Judas o maior horror pela sua vileza e pelo respectivo

preço; e outros traidores gozam, aparentemente calmos, os

proventos da sua baixeza, da sua covardia, da sua delação.

Os nossos patrícios, como se fizessem um corolário a estas

ponderações, lembrarão o nome enegrecido de Joaquim Silvério

dos Reis, como poderiam lembrar uma infinidade de nomes dos

nossos tempos. É que Joaquim Silvério foi o mais feliz dos

delatores, o mais afortunado dos espiões e traidores. Desprezado

e evitado pela gente honrada de Vila Rica e de Minas, seguiu

para o norte carregado de ouro e prestigiado pelos seus chefes,

por lá vivendo na opulência e em aparente ventura, se a

consciência não lhe tornava a vida o mais cruel suplício.

Judas foi mais honrado.

Tantos indivíduos se fazem espiões e denunciantes por um

punhado de ouro! Menos honrados do que Judas, fazem-se pagar

por muito mais de trinta dinheiros, e não devolvem o preço de

sua infâmia...

Algumas vezes, porém, a tradição é deturpada pelas paixões

políticas ou patrióticas. De Calabar fizeram um monstro, porque,

mameluco, filiou-se ao partido holandês, e de Matias de

Albuquerque fizeram um herói, porque, português, sustentou o

domínio espanhol no Brasil. Hoje, três séculos depois das

sangrentas guerrilhas do norte, é já bastante menor a distância

que separa moralmente esses dois vultos – o general português,

a serviço de Castela, procurando reconquistar trechos da terra do

Brasil para o poder espanhol, e o pobre enforcado de

Pernambuco, que, filho do país, optava pela cultura holandesa,

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lutando com denodo pela causa de Nassau. Do mesmo modo que

a memória de Calabar, foi a memória de Judas enegrecida

demasiadamente pela tradição e pelas paixões religiosas, que

parecem ter tido o intuito de inocentar Pilatos e outros

dominantes, como é costume de todos os tempos e de todos os

povos.

Não devemos deformar o moral de um arrependido, e não

devemos concorrer para que a infância aprenda a odiar.

É sumamente triste vermos, em sábado de Aleluia, a burlesca

figura de pano e estopa, representando o discípulo infiel,

arrastada pelas ruas, e esbordoada, queimada, destruída enfim,

em uma hora de suplício, por esses pequenos inquisidores

inconscientes.

A mocidade deve ser instruída em uma doutrina de amor e

de perdão, e nunca ser convidada a atirar mais um insulto à

memória do infiel, mormente do infiel arrependido.

De entre os usos e costumes mais reprováveis, é esse, o

festejo de Judas, um dos que mais merecem que lhes brademos,

como o herói de Júlio Verne às montanhas de granito do centro

da Terra:

– Desabai, costumes obsoletos!...

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XIII

Coisas agridoces

Narra uma historieta antiga que houve em Roma um homem

com pretensões a inspirado pintor, sem todavia possuir talento

algum, nem demonstrar verdadeira vocação para a pintura.

Atirava à tela as mais extravagantes carantonhas, e elas lhe

agradavam como se fossem obras-primas. Expondo-as à

admiração dos amigos e conhecidos, alguns desses, por

benevolência ou por ignorância, lisonjeavam-lhe a vaidade

elogiando-lhe com entusiasmo os grosseiros quadros, e isso

tornava o pobre artista cada vez mais convicto do próprio mérito.

Um belo dia teve o nosso artista um desejo ousado: pintar o

santo padre...

– Se conseguir licença para essa empresa – pensava ele

certamente –, licença, aliás, difícil de se obter, que honra será

para mim! Ter na minha galeria, e pintado por minhas mãos em

um dos salões do Vaticano, um belo e artístico retrato de sua

santidade, espécie de embaixador de Deus na Terra!...

E seria uma glória digna de inveja, com poucas semelhantes

nos anais da pintura, e maior seria ela ainda porque o sumo

pontífice de então era Leão XIII, o papa que, antes de o ser,

tinha sido o inteligente diplomata conhecido em diversas capitais

europeias.

E lá se foi o pintor. A custo conseguiu ser admitido no imenso

palácio, residência do pontífice, onde alguns anos antes o rei de

Roma ditava leis e compunha encíclicas, mas desde 1871

transformado na prisão voluntária do chefe do Catolicismo.

Apresentado a Leão XIII, o artista arrojou-se-lhe aos pés

impetrando-lhe a graça de se deixar o pontífice pintar em uma

tela.

O papa, por natural benevolência e por educação, pois todos

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sabemos ter ele sido um coração bem formado e um Espírito

culto, acedeu em ser retratado, não sendo estranha talvez a essa

aquiescência a suposição de ser o suplicante um artista genial.

Digo suposição acreditando que a infalibilidade pontifícia não

se estende a cousas comuns, mas apenas se refere às divinas...

O pseudo Rafael atirou-se, pois, ao trabalho e alguns dias

depois apresentou ao pontífice o quadro concluído: uma pintura

grosseiramente sarapintada, quase nada parecida com o original,

executada sem a mais leve noção da arte e do bom gosto.

Mas o pobre homem, apresentando a obra, solicitava mais

uma graça, sem dúvida maior do que a primeira: pedia

encarecidamente ao retratado que escrevesse algumas linhas,

algumas palavras ao menos, abaixo daquela grosseira pintura,

terminando-as com a assinatura...

O artista queria conservar esse tesouro em sua galeria. Esse

autógrafo, honrando a tela, tornaria célebre aquela galeria.

O papa quis recusar-se. Não se sentia disposto. Declarou não

lhe ocorrer pensamento algum que fosse digno de figurar na

tela...

Após novas súplicas, porém – e o artista pedia qualquer

pensamento ou sentença de um dos Evangelhos –, o papa sorriu

quase imperceptivelmente, e tomou entre os seus dedos de

lançar bênçãos a pena de ouro que um camareiro lhe oferecia.

Lembrara-se do capítulo XIV do Evangelho de Mateus.

Jesus, terminada a prédica, subira a sós a uma montanha, a

fim de orar, e os doze apóstolos, pouco depois, navegavam em

um barco que ventos contrários assaltavam. Decorrem algumas

horas, e a noite se adianta, e o vento aumenta a sua

impetuosidade. Em certo momento os apóstolos avistam uma

figura humana que se dirige para o barco, mas andando

calmamente sobre as ondas do mar, pisando tranquilamente

sobre a superfície daquele mar revolto. O fato era extraordinário,

e com ele alarmavam-se os discípulos do Nazareno.

Aterrorizados, julgavam ver naquele vulto um fantasma, quando

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Jesus, que os discípulos não tinham reconhecido, acalma-os

dizendo:

– “Não vos assusteis; sou eu”.

Lembrara-se certamente o papa dessa passagem do

Evangelho de São Mateus, e escreveu na margem inferior da

grosseira pintura:

– Não se assustem: sou eu...

***

A história até aqui é velha, conhecida certamente por quase

todos os leitores, mas a continuação é nova, ou quase nova.

Um amigo meu encontrou, há muitos anos atrás, um

catálogo ilustrado de material fotográfico, de uma grande casa

do Rio de Janeiro, e deixou-se seduzir pelas experiências da

empolgante arte de Daguerre e de Niepce.

Sem consultar tratado algum de fotografia – e naquele tempo

somente havia em português o pequeno manual de Klary – e

sem assistir a trabalhos de artista algum, mas possuindo apenas

uns rudimentos dessa arte enfeixados no referido catálogo, esse

meu amigo tinha adquirido um aparelho fotográfico e os

acessórios mais precisos, e atirara-se às experiências.

Após numerosos insucessos, conseguiu o meu amigo umas

fotografias de edifícios e ruas, ao sol e em sombras, e

colecionava já algumas paisagens, até que um belo dia obteve

uma fotografia de sua própria esposa, no silêncio do seu

gabinete de estudo, depois de pôr em foco um cromo de

folhinha, em cujo lugar colocou-se depois, movendo a alavanca

do obturador por meio de uma linha de três metros, correndo ao

redor de um carretel de madeira.

Era o primeiro negativo que o novel experimentador obtinha

representando um ser vivo, e não foi pequena a sua satisfação

ao contemplar na estante aquele rosto negro, com as outras

vestes pardacentas sobre uma camisa preta, e com os cabelos

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encaracolados e o buço inteiramente brancos...

Conseguira a chapa negativa sem o conhecimento das regras

da distribuição de luz, e, sem retoque algum no negativo, obteve

diversas cópias positivas.

Mas a imagem era dura, sem relevo, sem arte, sem essas

meias-tintas que constituem o maior encanto de um retrato.

Tinha as feições carregadas, a fronte com um grosso sulco

vertical, os cabelos um pouco nevados, os olhos refletindo a luz

viva do céu, os lábios apertados um ao outro, a gravata torta, o

colete enrugado...

O novo fotógrafo amador, não atentando no começo sobre

tais defeitos, e deixando-se enlevar pela própria obra, foi

somente por modéstia que pôs o seguinte improviso em uma

prova, em cartão-postal, remetida no mesmo dia a uma pessoa

de suas relações:

“Reportando-me ao dito, mui sensato,

“Com que uma tela o papa subscreveu,

“Devo escrever-te ao pé do meu retrato:

“Não te assustes – sou eu...”

***

Dizem que a noite é boa conselheira, e eu o creio.

À noite, calmamente, a sós, em vez de dormir sobre os

louros, o jovem fotógrafo, tomando uma lente, pôs-se a

examinar meticulosamente o retrato obtido, e concluiu o seu

exame com certo desgosto, pois observava então a maior parte

dos defeitos. Mirou-se em um espelho, e viu-se menos feio do

que no retrato, com feições menos duras, o olhar mais doce, a

fronte mais lisa, o nariz menos escuro. Deixando sobre a mesa as

provas restantes, deitou-se tarde, leu pouco e dormiu mal.

Na manhã seguinte, mal tinha o jovem artista deixado o leito,

entra-lhe no espaçoso quarto um amigo seu, jovem e inspirado

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poeta, o qual, vendo os retratos sobre a mesa, tomou um deles e

quis guardá-lo para si. O retratado, porém, reclamou-o

imediatamente para a dedicatória, e, tomando a pena,

desgostoso com o serviço fotográfico, e sem se haver ainda

refeito da fadiga de uma noite maldormida, traçou abaixo de sua

carantonha esta dedicatória:

“Se não encontras beleza

Na estampa que tens à vista,

Diz-mo com toda franqueza,

E eu vou queixar-me à rudeza

Do ladrão do retratista...”

Fim