a voz da natureza - nikolai leskov (in a fraude e outras historias)

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Coleção LESTE Nikolai Leskov , . A FRAUDE \ e outras histórias A. Tradução, posfácio e notas DeniseSales Ensaio de Elena Vássina .. ;~ :.

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Page 1: A Voz Da Natureza - Nikolai Leskov (in a Fraude e Outras Historias)

Coleção LESTE

Nikolai Leskov

, .

A FRAUDE\

e outras histórias

A.

Tradução, posfácio e notasDeniseSales

Ensaio de Elena Vássina

..;~:.

Page 2: A Voz Da Natureza - Nikolai Leskov (in a Fraude e Outras Historias)

•.

3.A VOZ DA NATUREZA

I

. O general Rostislav Andrêievitch Faddiéiev;' famosoescritor militar que, por muito tempo, acompanhou o. fale-cido marechal de campo Bariátinski.é contou-me este casoengraçado.

Certa vez, em viagem do Cáucaso a Petersburgo, o prín-cipe sentiu-se mal no caminho e chamou um médico. Pare-ce que isso acon eceu, se não me engano, em Ternir-Khan--Chur, 3 O médico examinou o doente e concluiu não havernada de grave na sua condição, estava apenas fatigado eprecisava descansar por um dia sem ° balanço e os solavan-cos da carruagem.

O marechal de campo obedeceu ao médico e concordouem parar na cidade; mas ali a casa do chefe da estação era detodo imprestável e, por causa do imprevisto da situação, nãohavia habitação particular preparada. Sobreveio então uma

1 Rostislav Andrêievitch Fadiéiev (1824-1883), general, publicistamilitar reacionário, integrou o governo do Cáucaso de 1859 a 1864. (N.da E.)

2 Príncipe Aleksandr Ivánovitch Bariátinski (1814-1879), marechal.de campo, comandou o corpo do Cáucaso e foi governador-geral dessaregião. (N. da E.)

3 Atual cidade de Buinaksk, no Daguestão. (N. da E.)

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azáfama inesperada: onde acomodar por um dia hóspede tãoimportante. .

Foi uma correria, uma confusão danada; no primeiromomento, o marechal de campo adoentado instalou-se naestação da posta e deitou-se em um sofá sujo, apenas cober-to com um lençol limpo para ele. Evidentemente, enquantoisso, a notícia do acontecido logo correu a cidade inteira, etodos os militares apressaram-se a limpar-se e engalanar-se,enquanto os civis passavam graxa preta nas botas e pomadanas suíças e apinhavam-se em frente à estação, na calçadaoposta. Ficavam ali postados, espiando o marechal de campo:será que não apareceria à janela?

De repente, sem quê nem pra quê, um homem rompeude trás da multidão, aos empurrões, e correu direto para aestação, onde o marechal de campo continuava deitado sobreo lençol que cobria o sofá sujo, e pôs-se a gritar:

- Não aguento mais, eleva-se em mim a voz da natu-reza!

Todos olharam para ele, perplexos - mas que grossei-rão! Os moradores locais, todos eles, conheciam esse homeme sabiam que o seu título não era alto, já que não era fun-cionário civil nem militar, mas só encarregado do pequenodepósito local da intendência ou do comissariado e, juntocom as ratazanas, roía torradas do erário .lambia botas,tendo conseguido, com a roedeira e a lambição, uma casabonitinha, de madeira e com mezanino, bem em frente àestação.

II

Esse encarregado chegou correndo à estação e pediu aFaddiéiev qu~ o anunciasse sem falta ao marechal de campo.

Faddiéieve todos os outros puseram-se a dissuadi-Io.

90 Nikolai Leskov

- Para que isso? Não há a menor necessidade, e nãohaverá recepção de funcionários; o marechal de campo estáaqui apenas para um descanso temporário, por causa de umesgotamentp, e, assim que descansar, partirá novamente.

Mas o encarregado da intendência fincou pé e inflamou--se ainda mais, pedia que o anunciassem ao príncipe semfalta.

- Porque eu - disse ele - ~ão ando atrás de glórianem de honras, e exatamente nestes trajes me apresento, co-mo vocês disseram: não em serviço, mas por zelo da minhagratidão a ele, pois tudo neste mundo devo ao príncipe, eagora, em toda a minha prosperidade, impelido pela voz danatureza, desejo pagar-lhe a minha dívida por gratidão.

Perguntaram-lhe:- E em que consiste essa dívida da natureza?E ele respondeu:

r' - É tal essa minha dívida da natureza agradecida quenão fica bem o príncipe descansar aqui, na desordem pública,pois eu, justamente, tenho uma casa vis-à-vis, casa própriacom mezanino; além disso, a minha esposa é das alemãs, anossa casa conserva-se bem limpa e asseada, e temos no me-zanino, para o príncipe e para vocês, quartos iluminados,limpos, cortinas brancas com renda em todas as janelas ecamas limpas, com uma roupa de linho delicada. Desejo re-ceber o príncipe em minha casa com toda a hospitalidade,como se ele fosse meu pai de sangue, porque lhe devo tudona vida, e não sairei daqui enquanto não me anunciarem.

Tanto ele fincou pé nisso sem querer ir-se embora, que,do outro cômodo, o marechal de campo ouviu a conversa eperguntou:

- Que barulho é esse? Não poderiam relatar-me sobreo que é a conversa?

Faddiéiev, então, relatou-lhe tudo, mas o príncipe deude ombros e disse: l.

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- Decididamente não me lembro que homem é esse nemo que me deve; mas, a propósito, examine os aposentos queele oferece, e, se forem melhores do que esta casinhola, entãovou aceitar o convite e pagarei pelo incômodo. Informe-se arespeito de quanto ele quer.

Faddiéiev foi, examinou o mezanino do intendente erelatou:

- A habitação é muito sossegada, ~ a limpeza, extraor-dinária, mas de pagamento o proprietário não quer nem ou-vir falar.

- Como assim? Mas por quê? - perguntou o marechalde campo.

- Diz que deve muito ao senhor, e a voz da natureza oimpele à felicidade de expressar-lhe uma dívida de gratidão.Do contrário, disse ele, "se quiser pagar, então não podereiabrir-lhe as portas".

O príncipe Bariátinski pôs-se a rir e elogiou o funcioná-no.

- Veja só. Percebo que é um bravo e tem caráter, issotem sido raro do nosso lado, e eu gosto de pessoas assim;lembrar o que ele me deve não estou conseguindo, mas memudarei para a sua casa. Dê-me a mão, e saiamos daqui.

III

Atravessaram a rua ... e já no pátio, junto ao portão, omarechal de campo foi recebido pelo próprio encarregado,empomadado, engomado, abotoado até o último botão ecom o rosto radiante de alegria.

Assim que passou os olhos ao redor, O príncipe viu tudolimpo e brilhante; além da paliçada, um verde viçoso e rosei-ras em flor. Alegrou-se.

E perguntou:

92 Níkolai Leskov

- Como se chama o anfitrião?O próprio respondeu algo como Filipp Filíppov Filíppov.O príncipe continuou a conversa e disse:-' É muito bo'm aqui na sua casa, FilippEilíppitch,"

agrada-me, só não consigo lembrar uma coisa: onde e quan-do o encontrei ou vi e que favor pude lhe prestar?

O encarregado respondeu:- Meu príncipe, via-me muito, mas quando, se já es-

queceu, então depois será esclarecido.- Por que depois, se quero me lembrar de você agora?Mas o encarregado não explicou.- Peço desculpas ao senhor meu príncipe -disse ele.

- Se o senhor não se lembra, então não ouso dizer, mas avoz da natureza o dirá. ,

- Que disparate! Que "voz da natureza" é essa, e porque você próprio não pode dizer?

O encarregado respondeu:- Pois é, nãe ouso - e baixou os olhos.Nesse momento, chegaram ao mezanino, e ali eram ain-

da melhores a 'limpeza e a ordem: o chão tinha sido lavadocom sabão e esfregado com cavalinha, de tal modo que relu-zia; no meio e ao longo de toda a escada limpinha estendiam--se passadeiras brancas; na sala de visitas, havia um sofá, e,sobre a mesinha redonda à frente dele, um grande jarro deágua, e nele um ramalhete de rosas e violetas; mais adiante,o quarto, com um tapete turco sobre a cama e outra mesinha,uma botelha com água fresca e um copo e outro ramalhetede flores, e ainda, sobre uma mesinha à parte, pena, tinta,papel, envelopes e lacre com selo.

4 Forma modificada do patronímico Filíppovítch, filho de Filipp. (N.da T.)

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o marechal de campo abarcou tudo com um olhar rá-pido e gostou muito.

- Vê-se que você, Filipp Filíppitch - disse ele -, é umhomem polido, sabe como tudo deve ser, e parece realmenteque já o vi em algum lugar, mas não consigo me lembrar.

O encarregado apenas sorriu e disse:- Não se preocupe, meu príncipe, tudo será esclarecido

pela voz da natureza.Bariátinski desatou a rir.- Você, meu irmãozinho, depois disso não será mais

Filipp Filíppovitch, mas "voz da natureza".E ficou muito interessado no sujeito.

IV

O príncipe deitou-se na cama limpa, esticou pernas ebraços e sentiu-se tão bem, que logo cochilou: acordou daí auma hora com ótima disposição. E diante dele já havia ser-bet5 de cerejas frescas, e o próprio anfitrião pedia-lhe quetomasse um pouquinho.

- O senhor, meu príncipe, em re~édios de médico nãoconfie - disse ele. -- Aqui a natureza e a aspiração dos aresé que curam. ' , ~:.

O príncipe respondeu-lhe alegremente' que tudo aquiloera muito bom, mas devia confessar-lhe: "dormi muito bemem sua casa, mas, diabos me carreguem, ainda durante o so-no pensava 'onde o vi, ou será que nunca o vi?"'.

O outro respondeu:

5 .Palavra de origem turca: bebida refrescante de suco de frutas. (N

da T.) " .

94 Nikolai Leskov

....;,

- Viu, sim, o senhor me viu muito bem, mas apenasnuma forma da natureza completamente diferente e, por isso,agora não está me reconhecendo.

O príncipe disse:- Pois bem, que seja; mas aqui, agora, além de mim e

de você não há ninguém, e se houver alguém no aposento aolado, então pode mandar todos embora, que fiquem na esca-da, mas diga-me francamente, sem fazer segredo: quem foi equal o seu segredo criminoso? Posso prometer pedir a suaabsolvição e cumprirei a minha promessa, pois está aqui overdadeiro príncipe Bariátinski. '

O funcionário até sorriu, mas respondeu que sobre elenão pesava e nunca pesara nenhum segredo criminoso. Eleapenas não ousava "desconcertar" o príncipe pela desme-mória. ,

- É isso - disse ele. ~ Eu recordo constantemente abondade do meu príncipe e incluo o senhor em todas as mi-

r'nhas orações; e o nosso soberano e toda a família do tsar,quando veem alguém e reparam nele uma única vez, lem-bram-se dele pela vida toda. Por isso, permita que não lhediga nada a meu respeito por palavras, mas, no tempo certo,revelarei tudo isso em sinais claros, pela voz da natureza, eentão o senhor meu príncipe lembrará.

- E que meio você tem para revelar tudo pela voz danatureza?

- Na voz da natureza - respondeu ele - estão todosos meios.

O príncipe sorriu para o excêntrico e disse:- O que disse é verdade, esquecer é vergonhoso, e o

nosso soberano e a família do tsar possuem realmente umamemória excepcional, mas a minha memória é fraca. Nãoirei contra a sua vontade, pode fazer como sabe, só que euquero saber quando é que você vai revelar a mim essa suavoz da natureza, pois me sinto muito bem na sua casa agora,

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e depois da meia-noite, na hora da aragem, quero partir. Evocê deve me dizer que recompensa dar pelo descanso quetive em sua casa, pois esse é o meu costume nesses casos.

O encarregado respondeu:- Até meia-noite, conseguirei revelar por completo ao

meu príncipe toda a voz da natureza, se, ao pensar na minharecompensa, o senhor não me negar o que considero maisvalioso.

- Está bem - respondeu o príncipe. - Dou a minhapalavra, tudo o que pedir eu farei, mas não me peça o impos-sível.

O encarregado respondeu:- Não pedirei o impossível, mas o que desejo mais do

que tudo neste mundo é que o senhor me ofereça proteção,desça comigo aos aposentos de baixo e sente à mesa conos-co, coma alguma coisa ou então simplesmente fique sentado,porque hoje comemoro as minhas bodas de prata, vinte ecinco anos depois de ter-me casado, por caridade sua, comAmália Ivánovna. Será hoje à noite, às onze horas; à meia--noite, então, como o senhor deseja, poderá partir; na horada -aragern, com toda a dignidade. -,

O príncipe concordou e deu a sua palavra, mas aindaassim não conseguia lembrar-se: o ~ue seria aquilo, quemseria aquele homem e por que, vintee cinco anos atrás, elese casara com Amália Ivánovna por caridade sua?

- Irei ao jantar deste excêntrico com prazer - disse o ~príncipe - porque ele me diverte muito; e, para falar a ver-dade, de alguma coisa me lembro, não tem que ver com elenem com Amália Ivánovna, mas o que exatamente, não con-sigo me lembrar. Aguardemos a voz da natureza!

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v

_ À tardinha o marechal de campo melhorou de todo e atésaiu para passear com Faddiéiev, deu uma olhada na cidade,apreciou o pôr do sol e depois, quando voltou para casa, àsdez horas, o anfitrião já o esperava e chamava-o à mesa.

O príncipe disse:- Com prazer, irei já.Faddiéiev brincou que vinha muito em boa hora, porque

o passeio despertara seu apetite, queria muito comer aquilolá que Amália Ivánovna preparara.

Só uma coisa preocupava Bariátinski: que o anfitrião osentasse no lugar principal e começasse a servir muito cham-panhe e um monte de comida. Mas todos esses receios eraminteiramente infundados; o encarregado, também à mesa,mostrou tão delicado tato quanto em todas as horas anterio-res passadas pelo príncipe na sua casa:

A mesa esta a posta com certa elegância, mas com sim-"plicidade' na salinha muito confortável, o serviço de louça" ,e talheres era asseado, mas modesto, e ardiam dois candela-bros pretos de ferro, de belo lavor francês, cada um com setevelas. Os vinhos eram de boa qualidade, mas de produçãolocal; entre eles, havia garrafinhas bojudas com inscriçõesfeitas à mão.

Eram licores e vodcazinhas de todos os tipos e de sabormagnífico, de framboesa, cereja e groselha.

O encarregado começou a acomodar os convidados e,mais uma vez, mostrou a sua habilidade: não colocou o prín-cipe na ponta da mesa, no lugar do anfitrião, mas sentou-oonde o próprio príncipe queria, entre o seu ajudante de or-dens e uma daminha bem bonitinha, para que o marechal decampo tivesse a quem dizer uma palavra breve e pudesse seocupar de amabilidades com o sexo agradável. O príncipedesatou imediatamente a língua com a daminha, queria saber

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de onde ela era, onde fora educada, e que divertimentos en-contrava numa cidade provinciana tão distante.

Ela respondia a todas as perguntas muito à vontade, semnenhuma denguice, e confessou-lhe que, mais do que porqualquer outra coisa, interessava-se pela leitura.

O príncipe perguntou: que livros lê?Ela respondeu: romances de Paul de Kock.fO príncipe riu.- Esse aí é um escritor divertido - disse ele e pergun-

tou: - O que leu exatamente, que romances?Ela respondeu:- O confeiteiro, O bigode, Irmã Anna e outros.- E os nossos escritores russos, não os lê?- Não - respondeu ela -, não leio.- E por quê?- Eles quase não falam das coisas da alta s.o~iedade.- E você gosta das coisas da alta sociedade?- Gosto. ~- E por quê?- Porque da nossa própria vida já sabemos, a dos ou-

tros é mais interessante.E então ela disse ter um irmão que estava escrevendo um

romance sobre a vida da alta sociedade.- Que curioso! - disse o príncipe. - Será que não se

pode ver, ainda que um pouco, do que ele escreve?- Pode-se - respondeu a dama, e num minuto levan-

tou-se e trouxe um pequeno caderno, com o qual Bariátinski,depois de olhar apenas a primeira página, alegrou-se comple-tamente, e entregou-o a Faddiéiev, dizendo:

6 Paul de Kock (1794-1871), autor de numerosos romances de.cos-tumes, principalmente sobre a vidaparisiense, superficiais, divertidos efrÍvolos. Seus romances foram traduzidos repetidas vezes para o russo etiveram grande popularidade entre leitores pouco exigentes. (N. da E.)

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(

- Veja só que começo animado.Faddiéiev olhou as primeiras linhas do romance sobre a

vida da alta sociedade e alegrou-se.O romance iniciava-se com as palavras: "Eu, como pes-

soa da alta sociedade, levanto-me às doze horas e não tomoo café da manhã em casa, vou a restaurantes".

- Encantador, não é? - perguntou Bariátinski.. - Muito bom - respondeu Faddiéiev.E nesse momento todos se animaram, o anfitrião levan-

< tou-se, ergueu a taça com vinho espumante e disse:';-$, - Meu príncipeçpara satisfação geral e minha, neste

dia tão precioso para mim, peço permissão para explicar."quem sou eu, de onde venho e a quem devo tudo que possuona minha prosperidade. Mas pão posso relatar isso com ogélido verbo da voz humana, já que tenho estudos de unspoucos trocados. Por isso, permita, de acordo com as leis daminha natureza, soltar solenemente diante de todos a voz danatureza!

Então havia chegado o momento, e o próprio marechalde campo ficou desconcertado, perturbou-se a tal pontoque se abaixou, como se quisesse levantar um guardanapo,e murmurou:

- Juro que não sei o que dizer, o que será que ele estápedindo?

A daminha, sua vizinha, disse-lhe num gorjeio:- Não tenha medo, permita, Filipp Filíppovitch não

inventaria nada de mau.O príncipe pensou: "Pois bem, que seja, que solte a

voz!".- Sou seu convidado - disse ele - como todos os

outros, e você é o anfitrião, faça o que quiser.- Agradeço a todos e ao senhor - respondeu o encar-

regado e, depois de menear a cabeça na direção de Amália

A voz da natureza 99

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Ivánovna, disse: - Vá, minha mulher, traga com as própriasmãos aquilo que já sabe o que é.

4.A FRAUDE

VI "A figueira deixa cair os seus figos verdes, quandoabalada por vento forte."

Amália Ivánovna saiu e voltou com uma grande trompade cobre, reluzentemente polida, e entregou-a ao marido; elepegou a trompa, encostou o bocal aos lábios e transformou--se inteiro num minuto. Foi só ele inflar as bochechas e sairum ribombo vibrante para o marechal de campo gritar:

- Estou reconhecendo, irmão, agora estou reconhecen-do, você é aquele músico do regimento de caçadores, que,por sua honestidade, enviei para vigiar um intendente trapa-ceiro.

- Exatamente, meu príncipe - respondeu o anfitrião.- Não queriaeu lembrar-lhe disso, então a própria naturezao fez.

O príncipe abraçou-o e disse:- Bebamos, senhores, brindemos todos a um homem

horirado. E assim beberam para valer; o marechal de camposarou completamente e foi embora todo alegre.

Apocalipse, 6, 13

I

~:

Na véspera do Natal íamos para o sul e, sentados novagão, debatíamos questões contemporâneas que dão muitomaterial para conversa e que, ao mesmo .tempo, exigem so-lução rápida. Falávamos da fraqueza de caráter dos russos,da insuficiência de rigor em alguns órgãos do poder, do elas-sicismo e dos judeus. Acima de tudo, voltávamos as nossaspreocupações para como fortalecer o poder e dar cabo dosjides.' caso pão fosse possível endireitá-los, e como conduzi--los, no mínimo, até certo grau de nosso próprio nível moral.A coisa, no entanto, não chegava a bom termo: nenhum denós via meio de dispor do poder nem de conseguir fazer comque todos os nascidos no judaísmo entrassem mais uma vezno ventre e nascessem de novo, com naturezas completamen-te diferentes.

- Mas, na prática, como fazer isso?- Pois é, não há como.E, desolados, baixamos a cabeça.A companhia era boa, pessoas simples e, sem dúvida,

ponderadas. A personalidade mais notável entre todos ospassageiros, com toda justiça, era um militar reformado. Um

..(1883)

1 Plural de jid, termo pejorativo para "judeu". (N. da T.)

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