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A VISITA Mauro Souza “Eita! Está tão quente que eu vou me derreter”, foram as primeiras palavras que ela disse quando chegou de trem na estação. Ali se ouviram “que bom ver você minha filha querida” e “estava com tanta saudade”, frases que soaram no calor opressivo, calor que só poderia equivaler ao abrir da porta do forno para remover o assado de domingo. Os cumprimentos vieram mais tarde quando o cérebro não estava tão febril para pensar. A Sra. M., que, lamentavelmente, estava vestida exageradamente com um vestido azul feito sob medida, na altura dos tornozelos, confeccionado com metros e metros de tecido, e um chapéu azul daqueles que se compram nas feiras de Afonso Pena em frente ao Parque Municipal em Belo Horizonte, acabara de chegar no pequeno município de Aimorés ainda no estado mineiro e a 7km do seu destino, pois a estação de Baixo Guandú estava em reformas. Veio juntamente com a comadre Teresa, sua companheira de viagem, para passar alguns dias com a filha Célia, com o genro Tiago e com a neta Ritinha. Ela poderia ser descrita como um tipo alegre e extrovertido, mas não naquele momento particular. Sentia-se fraca e definitivamente sem sorte com os vapores quentes circulando sua face arredondada e dificultando a respiração. A Sra. M. sempre se apresentou como uma mulher feliz e amorosa, apesar de ter perdido o seu esposo em 1918, devido a grande epidemia de gripe que com ele levaram tantos outros, e, em seguida, entrou em um casamento que deu a ela uma casa frondosa, muita riqueza e oito filhos, além da filha de seu primeiro amor. Aos sessenta e sete anos esta mulher corpulenta de rosto redondo era uma matriarca da família Tomazio, e todos da família, exceto a filha, a visitavam aos domingos na Rua da Ladeira número 35, fizesse sol ou chuva. 1

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Pequeno conto regional - Mauro Souza

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Page 1: A Visita

A VISITA

Mauro Souza

“Eita! Está tão quente que eu vou me derreter”, foram as primeiras palavras que ela disse quando chegou de trem na estação. Ali se ouviram “que bom ver você minha filha querida” e “estava com tanta saudade”, frases que soaram no calor opressivo, calor que só poderia equivaler ao abrir da porta do forno para remover o assado de domingo. Os cumprimentos vieram mais tarde quando o cérebro não estava tão febril para pensar.

A Sra. M., que, lamentavelmente, estava vestida exageradamente com um vestido azul feito sob medida, na altura dos tornozelos, confeccionado com metros e metros de tecido, e um chapéu azul daqueles que se compram nas feiras de Afonso Pena em frente ao Parque Municipal em Belo Horizonte, acabara de chegar no pequeno município de Aimorés ainda no estado mineiro e a 7km do seu destino, pois a estação de Baixo Guandú estava em reformas. Veio juntamente com a comadre Teresa, sua companheira de viagem, para passar alguns dias com a filha Célia, com o genro Tiago e com a neta Ritinha. Ela poderia ser descrita como um tipo alegre e extrovertido, mas não naquele momento particular. Sentia-se fraca e definitivamente sem sorte com os vapores quentes circulando sua face arredondada e dificultando a respiração.

A Sra. M. sempre se apresentou como uma mulher feliz e amorosa, apesar de ter perdido o seu esposo em 1918, devido a grande epidemia de gripe que com ele levaram tantos outros, e, em seguida, entrou em um casamento que deu a ela uma casa frondosa, muita riqueza e oito filhos, além da filha de seu primeiro amor. Aos sessenta e sete anos esta mulher corpulenta de rosto redondo era uma matriarca da família Tomazio, e todos da família, exceto a filha, a visitavam aos domingos na Rua da Ladeira número 35, fizesse sol ou chuva.

“Mamãeeee!” Célia exclamou ao se jogar nos braços de sua mãe. “É tão bom ver você. Como vai a senhora? Como foi a viagem? Quanto tempo foi a viagem de trem?” A mãe foi metralhada pelas perguntas que mal pode responder. Célia continuou animadamente, sem tomar fôlego e sem esperar a resposta da mãe.

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Depois de um rápido beijo na bochecha de Célia, que era tudo o que se podia fazer naquele momento, colocou a bolsa que carregava no peitoril da janela ao lado, olhou para filha e cansada disse: “Está tão quente menina, que eu sinto que poderia desmaiar aqui, deixe-me sentar por um pouco de tempo.”

“Sente-se aqui Dona M.”, disse Tiago, dando-lhe o braço e escoltou-a até o banco mais próximo.

“Célia, pegue a minha malinha que está ali.” Solicitou a Sra. M.

“Ah... sim, claro”.

“Obrigadinha minha filha”. A sua voz soou extremamente cansada.

E ali estava a Sra. M., agora sentada, se abanando freneticamente com a revista “O Cruzeiro” que comprara antes de embarcar na Estação Central em Belo Horizonte. Ela tinha certeza que não encontraria a mesma revista em Baixo Guandu.

“GendeDeus eu nunca senti tanto calor na minha vida. Como vocês podem suportar isso?”

“Nem sempre é tão quente assim, mamãe. Você vai se acostumar com essa temperatura”, disse a filha sentando-se carinhosamente ao lado de sua mãe.

“Deus me livre e guarde de viver muito tempo”. A Sra. M. afagou o suor de seus lábios e testa com um lenço branco que encontrou em algum lugar no labirinto de sua bolsa. “Que temperatura estamos? Sinto que deve estar pelo menos 30 graus”.

“Estava 29 graus quando saímos de Barão de Cocais”, disse Tiago. A senhora vai se sentir melhor quando chegarmos em casa, mamãe”, adicionou a filha.

“Ondiquitá a Teresa?”.

Neste mesmo momento houve uma grande agitação vindo do trem. Uma outra mulher, com um pouco mais de idade, com um vestido de linho cinza sob medida e chapéu de sol, estava freneticamente gritando com o carregador, enquanto tentava manter os óculos no lugar em seu nariz suado.

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“Alguém poderia me ajudar arredar esse trem?”, ela implorou, mas com pouco efeito, porque naquele momento todos os carregadores de mala estavam ocupados. “Aquela mulher é a Teresa?”, perguntou Célia à mãe enquanto tentava identificar a mulher.

“Sim é a Teresa...” respondeu a Sra. M., soando ainda mais agitada, como se fosse possível. “Eu conheço essa voz em qualquer lugar”. Ela suspirou enquanto se virava na tentativa de se levantar do banco onde estava sentada. Na verdade o seu vestido estava apertado e dificultava os seus movimentos. Olhou para o lado e disse: “Pode me dar uma mão Tiago querido?” “Oh! Como eu gostaria de ter viajado sozinha.”

Sim, senhora ... só um minuto, vou ver se consigo um carregador.

Levantou-se de onde estava sentado e rapidamente correu pela estação atrás do carregador que voltava ao trem após ter atendido seus clientes. Tiago tinha se afastado só por alguns minutos, e logo retornou puxando um carrinho vermelho de bagagens, na volta em sua frente estava a Dona Teresa. Logo se apresentou, colocou as bagagens no carrinho com a ajuda do carregador e correu de volta para onde estava sentada a sua sogra.

“Sinceramente Marivalda, ondiqueocê me trouxe. O que irá acontecer agora?”

“Ora Teresa, não faça tempestade em copo d’água.” Sussurrou a Sra. M., enquanto, ao mesmo tempo em que farejava o ar como se um odor ruim tinha acabado de invadir suas narinas. “Uai, foi você quem decidiu vir comigo. Você disse que sempre quis vir ao Baixo Guandu”. Espero que as pessoas não te ouçam”, ela acrescentou balançando a cabeça na direção de um grupo de outra família que também aguardava seus parentes.

“Hum, se eu soubesse que estava pelejando vir para um lugar como este, eu nunca teria posto os meus pés naquele trem barulhento”.

“Dona Teresa, a Dona M. disse que o trem barulhento, como você disse, é um dos mais belos da Estrada de Ferro Vitória-Minas”. Tentou amenizar Tiago.

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“É fácil para você dizer. Não foi você quem viajou enjoado tanto tempo naquele trem. Honestamente, primeiro foi a água e agora este calor infernal”.

“Se você já terminou de reclamar Teresa, eu gostaria de apresentar a minha filha Célinha”, ao marido dela, o Tiago, você já se apresentou.

“Célia, mamãe ... você sabe que eu prefiro que me chamem pelo meu nome – Célia”, ela interrompeu.

Neste momento a Dona Teresa mudou de fisionomia, sorriu e estendeu a mão para Célia, que se levantou para cumprimentá-la, e disse: “é um prazer enorme conhecê-la Célia”. O calor era intenso que exaustava qualquer extensão na cerimônia de apresentação.

“Não se importe comigo querida. Eu não sou sempre agitada assim, mas você tem que admitir que está muito quente hoje. Até mesmo ocêis que moram aqui teriam que concordar comigo sobre isso. Certo?”.

“Olha para você ver que tem sido um verão muito quente Dona Teresa”. Célia respondeu com sotaque mineiro, antes que sua mãe começasse a reclamar novamente. “Até os moradores de Baixo Guandu estão encontrando dificuldades para lidar com o calor, por isso não é surpresa que a senhora e a mamãe estranhasse tanto calor”.

“Eu acho que nós deveríamos nos apressar Célia, creio que o calor será ameno dentro do carro”, sugeriu Tiago.

Minutos depois, estavam todos dentro do Ford Sedan 1957, as janelas para baixo, e com a aceleração do carro na Rua Boa Vista em direção a ES-446 todos sentiram um pouco de conforto. A Sra. M. e Dona Teresa se sentaram na parte de trás, com os olhos fechados saboreavam o ar quente que soprava em seus rostos, dando uma impressão de calma e paz. No entanto, dividiam o espaço na parte de trás do carro com o fiel Pepe, o cão marrom e vira-lata. Muitas vezes ele ocupava o banco de passageiro, e farejava o ar enquanto Tiago dirigia pela cidade. Inesperadamente, Célia virou-se e perguntou à mãe se ela se sentia melhor.

“Bem melhor Celinha, a brisa é agradável, parece que vem de Minas, do outro lado do rio”.

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Enquanto o carro se afastava, a Sra. M. questionou olhando para a vegetação e a extensão dos campos abertos: “onde estão todas as casas? Parecem que não são muitas”.

“As que você vê, senhora, são casas de fazenda”, respondeu Tiago. “Esta parte é essencialmente agrícola, grandes fazendas de café e pequenos vilarejos”.

“Tudo parece grande e pequeno neste lugar”, replicou.

“Grande para os ricos e pequeno para os lavradores”, afirmou Tiago.

“O que diabos você quer dizer? Eu nunca ouvi falar de tal coisa”.

“Eu quero dizer que aqui longe das cidades grandes, o pobre é mais pobre e o rico mais rico”.

“Sim, sim, eu entendo”, ela interrompeu, “mas é melhor você manter o seu trabalho. Entendeu?”

De repente, todos estavam rindo, aliviados do clima por alguns minutos, até que chegaram aos arredores do limite de Baixo Guandu.

Tiago alertou os visitantes que a cidade de Baixo Guandu tinha apenas 3.800 habitantes, neste momento Dona Teresa exclamou: “Meu Deus do céu, você nos trouxe para um lugar deserto”.

“Minha Nossa Senhora, não parece ser um lugar de muita gente”, respondeu a Sra. M.

“E não é mamãe”, disse Célia. “Tem apenas uma rua principal, a Avenida Rio Doce”.

“Estamos na rua principal agora”, explicou Tiago. “Mais alguns quarteirões e nós iremos passar pela área comercial e depois estaremos no outro extremo da cidade. Quando entrarmos a direita iremos passar em frente a Prefeitura Municipal”. Disse Tiago apontando para o local, ao mesmo tempo em que desacelerava o carro para uma observação mais detalhada. “E esta é a área comercial, a padaria, a farmácia, e o local da feira livre, e ali está o açougue do Seu João. E este é o fim do passeio, senhoras.”

A Sra. M. ficou um pouco surpresa. “É só isso?”, ela perguntou.

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“Não é bem assim”, disse Tiago quando virou a direita da rua principal e apontou para o cinema da cidade ... “agora é tudo”, disse com uma gargalhada gostosa.

Poucos minutos depois estavam em frente a ferrovia da cidade, virou a esquerda e parou em frente a uma pequena casa amarela, casa de madeira e alvenaria, na frente uma rua com cascalhos que a separava da linha do trem.

“Chegamos mamãe! Disse Célia. Não é muito grande, mas é muito confortável. E nós temos um grande jardim na parte de trás”.

Logo em seguida, toda a bagagem e os passageiros estavam dentro da casa, malas desfeitas e os recém-chegados com algo mais apropriado para o calor de janeiro – vestidos estampados, leves para o verão, todos vestidos de acordo com os habitantes locais.

O próximo passo foi providenciar as cadeiras de madeira na varanda com cobertura de telha vermelha, à sombra de duas Sibipiruna que, com toda a probabilidade, acidentalmente, foram plantadas lá anos antes de construírem a casa, entre o sol e os seus habitantes desejosos por ar fresco no verão.

Agarrada a revista “O Cruzeiro”, ainda certa que não encontraria nada da mesma qualidade de notícias num lugarejo como o Baixo Guandu, disse entusiasmada: “Daria tudo por um bom cafezinho”.

“Aah! Isso seria muito bom”, disse a Dna. Teresa.

Célia, em seguida, informou que não queria tomar nada quente naquele momento, e acrescentou: “Mas nós temos uma abundância de chá gelado com limão na geladeira, mamãe”.

“Chá gelado? Imagina só! Eu nunca trocaria um bom café mineiro pelando por um copo de chá gelado com limão”.

“Você irá gostar mamãe, eu prometo”.

“Nós bebemos chá gelado todo tempo”, disse Tiago. “Acho que bebo litros de chá todos os dias”.

“Tiago”, Célia disse, revirando os olhos, você não acha que está exagerando... não é bem assim”.

“Está bem, copos e copos então”.

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Neste instante, Tiago se levantou e foi até o quarto de dormir e trouxe o único ventilador elétrico que tinham, e, ao mesmo tempo, Célia foi a cozinha e voltou com uma jarra de chá gelado com limão; encheu quatro copos com o líquido amarelo esverdeado com gosto de limão e sugeriu que aquele líquido iria matar a sede e no processo iria aliviar o calor forte.

Dona Teresa pegou um copo, olhou para a Sra. M. e disse: “Saúde minha querida M.”.

A Sra. M. deu a sua companheira de viagem um olhar de interrogação, um olhar que dizia: “Você deve pensar que eu estou louca”. Mas num impulso quase que descontrolado tomou o copo de chá gelado com limão. A ação foi seguida de um tremor e arrepio involuntários, e então ela disse a Dona Teresa que, por algum motivo, de repente, sentiu-se gelada por dentro, apesar do calor.

Tiago disse que o ventilador também a ajudaria a sentir menos calor, e talvez ela não estivesse acostumada com ventiladores.

“Não, ao contrário ... Eu acho que mamãe não está acostumada com o calor”, rebateu Célia. “Muito calor pode fazer isso com as pessoas. Quando se toma algo gelado, temos a sensação de refresco por alguns minutos”.

“Não, não, eu senti algo estranho, como se alguém do outro mundo tivesse se aproximado do meu corpo, uma alma penada”.

“Ora, deixe de tolices. Você não sabe o que está dizendo”, disse Dona Teresa.

Ainda agitada, a Sra. M. disse: “Fui eu quem sentiu essa alma do outro mundo”.

Mais uma vez ela se estremeceu, e depois, lentamente e com alguma apreensão, ambas as senhoras relaxaram, aproximaram os copos aos seus lábios, depois de um gole e outro gole, começaram a apreciar a bebida extravagante para um mineiro acostumado com o bom cafezinho quente.

“Eu também pensei que não iria gostar de chá gelado mamãe”, disse Célia, “mas logo mudei de ideia. Amanhã comeremos bobó de camarão à capixaba. Eu sei que a senhora

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irá gostar; quando comi pela primeira vez achei que não gostaria, pensei que era horrível, e agora eu não posso viver sem meu bobó de camarão à capixaba. Demora um pouco de tempo para se acostumar com as coisas daqui, mamãe, mas você vai ver. Não é como a comida mineira, mas é ... muito boa”. Célia mentiu, porque não queria que a mãe soubesse que muitas vezes se sentia fora do lugar e com muita saudade das coisas de Minas.

Depois de tanto a Sra. M. insistir, Tiago foi à casa do pai pegar a sua primeira e única neta, Ritinha, enquanto Célia preparava a refeição da noite. Quando Tiago retornou, a Sra. M. havia se esquecido do calor e freneticamente abraçou a mais recente adição da sua família.

“É bunita qui dói. Quiném a mãe!” disse a orgulhosa Sra. M.

Após o jantar, sentaram-se nas confortáveis poltronas do quarto de visitas e colocaram a conversa em dia. O bobó de camarão à capixaba irá se encontrar com os visitantes no dia seguinte.

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O dia seguinte foi tão quente como o anterior, desta vez com uma ligeira brisa que novamente deu a impressão de frieza quando batia no corpo quente e transpirante, e isto para deleite dos visitantes. Todos os ocupantes da casinha amarela foram passear pela cidade de Baixo Guandu, talvez um trajeto de um quilometro, e foram se reunir na casa do pai de Tiago para o almoço de primeira classe. Chegou a hora de experimentarem bobó de camarão à capixaba feito na panela de barro. A mesa de madeira maciça rústica em peroba deixava os alimentos ainda mais apetitosos, arroz de coco, salada verde, pimenta no azeite para um prato bem quente, batata palha, milho cozido, farofa de dendê, vinho Sauvignon Blanc, cachaça para os aficionados e frutas, muitas frutas. O chá gelado com limão também estava presente, além da papa de milho verde e pudim de queijo para sobremesa.

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O cheiro do bobó de camarão à capixaba imediatamente fez todos esquecerem do calor que não desistia de torturar a todos.

Foi novidade para as senhoras o maneirismo capixaba com seu sotaque distinto. Ambos os lados da conversa tinha que abrir bem os ouvidos, em um esforço para entender, dizendo “eu não entendi” e “como assim”, ou simplesmente fingindo entender e acenando com a cabeça, quando a declaração era difícil de compreender. A Sra. M. e Dona Teresa entendiam o bastante para que a conversa continuasse sem ser interrompida. Muitas vezes usavam expressões e terminologias próprias do mineiro, “ãnsdionti” para “antes de ontem”, “causdiquê” para “por causa de quê”, e “ai qui dó”. Do outro lado o capixabês, “poca fora” para “vai embora”, “chapoletada” para “acidente de carro”, “taruíra” para “lagartixa” e assim por diante. As duas senhoras entendiam bastante e não trocariam nada por um dedo de prosa.

Foi fácil de observar que a Dona Teresa não estava muito a vontade com o ambiente familiar, pois ela não tinha laços familiares com os demais e, como era de se esperar, precisaria de mais tempo para conhecer a cultura deste lado da família da Sra. M., que mora em Baixo Guandu.

Dona Teresa fumava os seus cigarros Continental sem filtro e comia pouco, especialmente o bobó de camarão á capixaba que mal levou a boca. A melancia e os queijos, sim, ela tinha que provar, e não poderia deixar de experimentar a cachaça da terra. Por alguma razão essa bebida extravagantes a fazia lembrar do marido, agora falecido. Ele havia se afogado na lagoa da Pampulha no dia anterior do retorno do passeio que fizera com a família. Estas foram as únicas informações sobre sua vida e família que os presentes puderam angariar.

Algumas reticências da Dona Teresa, provavelmente, foi devido ao fato de que os pais de Tiago e o avô monopolizaram a conversa deixando a Dona Teresa com a geração mais jovem.

Ainda odiando o calor, mas amando a atenção que recebia, a Sra. M. voltou ao seu estado habitual. Respondeu a todas as perguntas, gostou do bobó de camarão à capixaba, mas confessou mais tarde, a sua filha, que tinha sido difícil

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comer o milho por causa de seus dentes falsos. No entanto, se deliciou com a papa de milho verde e com o forte cafézinho no lugar do chá gelado com limão. Dias depois Célia providenciou um tubo de Fixodent que chegara dos Estados Unidos na Farmácia São José.

Tudo estava ocorrendo de acordo para a mãe de Célia e para os sogros, mas nem tudo estava bem para a sua companheira de viagem.

No caminho de volta para a casa de Tiago e Célia, Dona Teresa amarrou a cara e depois disse: “Que coisa foi essa Marivalda, como você pode me ignorar durante toda a tarde do jeito que você me ignorou?”

“Você não está dizendo coisa com coisa Teresa”, retrucou a Sra. M. “Você poderia ter se juntado a nossa conversa na cabeceira da mesa!”

“Eu não queria incomodar”, Dona Teresa retrucou. “Eu não tinha ninguém para prosear, senão com as crianças. “Claro que proseie com o Tiago e com a Celinha”, disse ela batendo levemente no ombro de Célia. “Eu não tinha nada a dizer aos seus irmãos e irmãs Tiago, não foi desrespeito da minha parte, fiquei acanhada. Não entendi muito bem o trem que vocês proseavam. Por isso fiquei no meu cantinho”.

“Mas pensei que você Marivalda fosse vir e sentar-se comigo, mas não, você me abandonou. E lá estava você, fazendo a corte com o avô de Tiago ... você deveria ter vergonha”, continuou Dona Teresa.

“Deixa de besteira Teresa. Eu não estava flertando. O que eu posso fazer se alguém prefere uma prosa inteligente no lugar de conversa fiada”, disse a Sra. M, com altivez e afastando-se de nariz empinado.

Finalmente as duas pararam com os insultos e houve silêncio por alguns minutos. Chegaram, mais uma vez o carro estacionou em frente a casa amarela, como dizem os moradores ... do lado errado da trilha do trem.

Todos estavam satisfeitos com o farto almoço e não houve jantar naquele segundo dia. Sentaram-se em frente a televisão e desta vez saboreavam de fato o chá gelado com limão adicionado de pouca conversa.

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Apesar do agradável momento vendo a TV, a expressão da Sra. M. pouco mudou. Continuava melancólica desde o primeiro dia, e ficou assim até o dia três. Naquele dia Tiago foi a Farmácia São José buscar o remédio que a Dona Teresa pedira. Na volta suas malas estavam pronta para o retorno a Belo Horizonte. Dizia a todo instante que precisava voltar para casa, que estava com saudade de sua cadelinha e do café mineiro.

Não foi embora sem antes deixar uma lembrança da estadia na casa da filha de sua melhor amiga em Baixo Guandu – uma queimadura de cigarro na mesinha de café dinamarquês nova. O cinzeiro estava fora do alcance, e exigiu que a Dona Teresa colocasse o cigarro na beirada da mesinha, que prontamente o esqueceu. No momento a sua explicação parecia razoável, e foi a única compensação pelo estrago.

“Tô tão feliz que ela se foi”, disse a Sra. M. quando Tiago regressou da estação de trem. “Isto não se faz na caduzôto, tudo o que ela fez foi gemer e reclamar desde que deixamos Belo Horizonte. Ela dá trabalho demais. Eu queria nunca ter conhecido ela! Coitado docê Celinha, eu num queria que isso acontecesse. Vou ter que tirar ela da minha mente”. A Sra. M. foi enfática.

O que de fato não aconteceu, não era tão fácil como parecia, porque vários dias depois, o avô de Tiago, o Seu Amarildo, ou simplesmente vô Marildo, como todos o chamavam, foi visitar a Sra. M. na pequena casa amarela. Lá ele perguntou a Sra. M. onde estava aquela mulher que conheceu no almoço em sua casa. Vô Marildo era um ávido leitor de revistas de bolso, especialmente as que continham histórias de detetives. Vô Marildo lembrou a Sra. M. que havia dado uma dessas revista para a Dona Teresa ler.

A Sra. M. disse ao vô Marildo que Dona Teresa lê muito pouco. “É estranho como as coisas aconteceram”, disse a Sra. M.. E, em seguida com uma voz triste, ela acrescentou: Coitádela... eu me sinto horrível por ter sido tão rude com ela. Tudo que ela queria era dum dedo diprosa”.

“Agora sei porque ela parecia tão aperriada”, disse vô Marildo. Se tudo isso acontecesse comigo, num sei se ia achar muito divertido”.

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E ali ficaram os dois proseando e lembrando as coisas do passado. A Sra. M. contou ao vô Marildo, a morte trágica do seu segundo marido. Que foi de viagem de navio para a Europa, e foi assassinado, cortado em pedaços e jogado ao mar infestado de tubarões. O assassino era um servente que o assaltou de repente. Mais tarde ele foi preso, condenado pelas autoridades inglesas. E, como adição à história, ela também contou que o seu único filho tinha caído para a morte do alto de um guindaste onde trabalhava, meses depois. A vida não tinha sido muito boa com ela.

Com histórias tristes, os dois construíram uma boa amizade. A Sra. M. não quis retornar sozinha para Belo Horizonte, a sua filha, Celinha, a acompanhou no retorno. Era época de Natal, e a ocasião bem apropriada para contatar Dona Teresa e pedir desculpas e dizer a ela o quanto lamentava o ocorrido em Baixo Guandu. A conversa com o vô Marildo, lembrou a Sra. M. que a vida também não foi boa para Dona Teresa. Além de perder o marido afogado, também perdera um filho durante uma caçada besta que fizera com amigos. As duas continuaram inseparáveis amigas até a morte da Sra. M., fato que abalou muito Dona Teresa que veio a falecer um ano depois.

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