a violÊncia silenciadora das chamas · violência surgir da linguagem, da estrutura, dos fatos...
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A VIOLÊNCIA SILENCIADORA DAS CHAMAS
Candice Firmino de Azevedo 1
Resumo: Nawal Marwan silencia por cinco anos. Seus filhos, Jeanne e Simon, tentam entender o obscuro silêncio da
mãe apenas após a sua morte, depois de ter acesso a um testamento enigmático. Assim, os fragmentos da identidade de
cada personagem são desenhados em um enredo novo, em uma nova história que traz à tona o irrepresentável, o
silenciável. Em “Incêndios” (2003), do libanês Wadji Mouawad, ficamos diante da violência social, simbólica,
estilística e pessoal às quais os personagens estão submetidos, em uma dramaturgia aberta que traz a violação do sujeito
como principal consequência da guerra civil. Estupro, incesto, quebra da figura arquetípica relacionada ao feminino,
tortura, dor, analfabetismo, o irrepresentável viola constantemente nossa cômoda leitura. Somos violentados pela
narrativa que evidencia diversas formas de violar-se e de violar o outro. À luz dos estudos de Foucault (1987), de Vidal
(2012), de Benjamin (1994), de Hall (2015) e de Waiblinger (1986), nos propomos a reconstruir a história da Nawal,
consumida pelo fogo dos acontecimentos que entrecortaram sua vida para, a partir de então, podermos compreender o
silêncio como discurso das mulheres, que como ela, silenciam como resposta ao (in)evitável destino.
Palavras-chave: Violência, Silêncio, Silenciamento, Identidade, Feminino
Dentre as narrativas míticas e modernas, o fogo aparece como elemento natural que marca
as mudanças, as reformas, as evoluções da humanidade. Basta pensarmos em Prometeu, que rouba o
fogo do Olimpo com o intuito de agradar aos homens. Mesmo provocando a fúria dos grandes
deuses, ele oferece à raça humana a oportunidade de conhecer o poder reformador do fogo, capaz de
fazer ressurgir algo novo a partir da destruição provocada pelo calor das chamas. Da mesma forma,
o fogo aparece em outras tantas histórias como o elemento símbolo da transformação, tal como
acontece com a Fênix, que renasce das cinzas e traz a esperança de um voo de penas novas.
Também, historicamente, o fogo aparece como a justificativa simbólica para a purificação das
almas julgadas perdidas pelos tribunais inquisitórias da Idade Média. Era por meio da queima na
fogueira que as mulheres podiam renascer novas e puras, segundo os critérios aplicados para as
punições durante a Inquisição.
O fogo sempre como símbolo de conhecimento, de possibilidade de mudança por meio da
descoberta do novo e da dor que derrete a pele, formando um outro tecido capaz de revestir os ossos
e a alma. O fogo e sua capacidade de transformação.
Tendo em vista essa carga simbólica, nos deparamos com a leitura do texto teatral
“Incêndios” (2003), de Wadji Mouawad. A narrativa traz como protagonista Nawal Marwan, uma
mulher que silencia por cinco anos sem dar explicações e que deixa para os filhos um testamento
capaz de fazê-los redefinir tudo o que acreditavam como verdade pessoal. Com essa proposta, o
1 Docente de Língua Portuguesa e Literaturas do IFRN, campus São Gonçalo do Amarante, RN / Brasil; Doutoranda em
Teoria da Literatura, UFPE, Recife, Brasil.
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dramaturgo libanês contemporâneo leva ao palco uma “dramaturgia aberta”, marcada em sua
profundidade pelo drama moderno, um desdobramento do teatro épico.
Ao fazer um estudo acerca da obra de Brecht, Benjamin (1994) discorre acerca da condição
assumida pelo teatro moderno no que diz respeito à manutenção de determinadas características do
teatro épico. Neste último, a peça é o resultado de uma “orquestra” que trabalha em prol da
execução de um conjunto de elementos em busca da perfeita conjugação de gestos capazes de
contar a história. No teatro épico, o texto não é o fundamento, e sim roteiro de trabalho capaz de
interromper as ações. Assim, aos demais elementos teatrais é dada a possibilidade de interferir na
construção do que vem a ser encenado, conservando “do fato de ser teatro a consciência incessante,
viva e produtiva” (Benjamin, 1994, p. 81). Dessa forma, o teatro épico assume o caráter socrático
da narrativa, de forma dura e pura, trazendo à cena o constante questionamento acerca da
concatenação da própria estrutura do texto em suas constantes reformulações sugeridas pelo gesto,
pela performance que marca a dinamicidade da vida representada no palco. Temos, então, o drama
moderno como a produção teatral que, apesar de romper com o burilamento das épicas clássicas,
conserva a importância do gesto como marca fundamental da construção coletiva do texto, assim
como propõe Mouawad quando do processo de produção, evidenciando o “confronto constante
entre a ação teatral, mostrada, e o comportamento teatral, que mostra essa ação” (Benjamin, 1994,
p. 88).
A sobreposição de cenas aparece, no texto, como um recurso que serve à abertura dramática.
As rubricas são responsáveis pela indicação da mistura de espaços e tempos, mas, aos poucos, as
cenas são intercortadas abruptamente, sem indicação de palco. A tomada de consciência dos
personagens, assim como o processo de descoberta dos fatos a serem narrados são representados a
partir da sobreposição, o que pode ser percebido como um recurso cênico que busca construir a
narrativa como um mosaico a ser desvendado. Nawal Marwan, mãe dos gêmeos Simon e Jeanne,
carrega uma fragmentação própria da pós-modernidade (Hall, 2015) representada não apenas pelo
fato de ser uma mulher desconhecida dos filhos e marcada pela falta de unidade, mas pelo corpo do
próprio texto enquanto estrutura fundamental. Dessa forma, o leitor acaba sendo surpreendido pela
falta de limites de tempo e espaço no decorrer da narrativa, sendo provocado a buscar as partes
dessa mulher que vai surgindo a partir do que é contado. Assim como para os filhos, aparece para o
leitor uma Nawal desconhecida, um novo elemento aos poucos visível dentro de um polígono.
“Incêndios”, como um drama moderno, assume o compromisso com o gesto a partir do
momento em que deixa transparecer, inclusive em sua macro e microestrutura, a opção pelo jogo de
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cenas marcado pela atitude socrática da performance sugerida pelo texto escrito, na medida em que
sobrepõe cenas, tempos e espaços em cada ato. A estrutura acaba por violar a expectativa do leitor
de um texto que siga um padrão temporal, solavancando-nos de nossa confortável leitura linear.
Somos jogados meio ao turbilhão de pensamentos confusos e cenas entrecortadas, perdendo-nos,
por instantes, assim como acontece com os próprios personagens. Compartilhamos das ações e dos
gestos do outro, à medida que somos assaltados pelas dúvidas que a estrutura do texto provoca na
nossa leitura.
Percebemos, então, que estamos diante de um texto que “desafia o pensamento comum”
(Vidal, 2012, p. 87) e que essa provocação é o resultado de uma atitude de não aceitação da
violência como território possível. Somos violentados pela narrativa que evidencia diversas formas
de violar-se e de violar o outro. Estamos diante de uma narrativa do inenarrável, do impensável e do
silenciável, que viola, inclusive, a nossa mais ingênua percepção de leitura. “Incêndios” faz a
violência surgir da linguagem, da estrutura, dos fatos narrados, da escolha lexical, enfim, de todas
as camadas do texto.
Dividido em 4 atos, o drama retoma o simbolismo do fogo em relação ao processo de
revelação pelo qual passa Nawal e os gêmeos. O texto é uma reflexão sobre a origem, o começo, os
motivos que desenham o destino. Observamos, então, uma narrativa do tempo que constrói,
desconstrói e reconstrói, e de uma mulher que se afirma, depois da morte, por meio da reescritura de
sua própria história, de seu enredo consumido pelas chamas.
Viol(ent)ar como destino (in)evitável
É possível rebelar-se do destino traçado pelas moiras do tempo?
Nawal cresce em um acampamento marcado pela disputa de espaço e pela miséria, causadas
pela violência da guerra civil entre refugiados e nativos. Não se sabe ao certo os motivos que levam
aos ataques, mas as consequências se firmam fortemente entre as pessoas provocando a descrença
social e afetiva. Na sua comunidade ninguém sabe ler, ninguém sabe escrever. O analfabetismo é a
regra, assim como a intolerância e o moralismo.
Esse é o começo de tudo. Um início revelado aos poucos na narrativa. Um começo nunca
contado aos gêmeos Jeanne e Simon e revelado, primeiramente, para o leitor, após a leitura do
testamento de Nawal e dos enigmas propostos para os filhos:
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Jeanne,
O tabelião Lebel vai te entregar um envelope.
Esse envelope não é para você.
É destinado a seu pai
Seu e de Simon.
Encontre-o e entregue a ele esse envelope.
Simon,
O tabelião Lebel vai te entregar um envelope.
Esse envelope não é para você.
É destinado a seu irmão.
Seu e de Jeanne.
Encontre-o e entregue a ele esse envelope. (p. 26)
A rejeição dos filhos, diante dos estranhos pedidos da mãe, evidencia uma primeira forma de
violência: era preciso deixar-se violar para que o testamento se cumprisse. Todos os conceitos de
identidade foram colocados em xeque pelos irmãos, que se viram atordoados diante da possibilidade
de terem as histórias pessoais redefinidas de forma tão abrupta. Começamos a observar a violência
como elo de ligação entre as camadas do texto, pois com essa cena inicial os personagens (e os
leitores) vão sendo tomados pela violação constante do corpo, dos valores sociais, do conceito de
sanidade, da representação mítica do amor, da linguagem, da estrutura do texto/cena. Ao passo que
a narrativa desvenda os mistérios, a cena se afirma “como lugar de consolo impiedoso” (p. 08), ou
seja, o destino não perdoa, mas consola por ser a verdade.
A violência social
A história de Nawal é reconstruída para Jeanne, ao passo que a filha decide desvendar os
enigmas propostos pela mãe . Em um jogo cênico espaço-temporal, a narrativa traz em flash-back o
passado: Nawal Marwan vive em um acampamento de refugiados, onde o acesso à leitura e à escrita
não existia. Ela, assim como a sua família e os demais, está imersa no inóspito terreno da iminente
guerra civil. Não há fé. Não há esperança nem crença no amor. O mundo é mostrado, mas é
silenciado porque não há o que dizer dele. Não há palavra, nem verbo que se faça carne.
Contra todas as expectativas e experiências, Nawal se apaixona por Wahab e viola o
moralismo estabelecido pelos demais. Ela subverte o estabelecido e vive um amor escondido do
primitivismo da moral e, ao descobrir que está grávida, percebe-se diante do grande paradoxo
inicial de sua vida: a felicidade será a sua infelicidade.
O “Incêndio de Nawal”, no primeiro ato, é marcado pelo paradoxo do fogo (destruição /
construção) que representa as consequências familiares da gravidez: a cicatriz causada pela
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queimadura. Nawal está diante da primeira forma de silenciamento ao contar sobre o filho para a
mãe, Jihane.
JIHANE Esquece o teu ventre! Essa criança não é da tua conta. Não é da conta da tua família, não é da
conta da tua mãe, não é da conta da tua vida.
NAWAL Coloco a minha mão aqui, já até vejo o rosto dela.
JIHANE O que você vê não importa! Essa criança não é da tua conta. Ela não existe. Ela não está aí. (p. 43)
A negação é a primeira forma de silenciamento e, consequentemente, de violência a qual
Nawal é submetida, justamente por aquela que deveria ser a responsável por protegê-la. A
indisciplina demonstra a não docilidade do corpo de Nawal, que destoa do grupo do qual faz parte
quando deixa-se levar pelo coração ao se entregar a Wahab, e sua punição é a sujeição a qual vai
estar submetida pela autoridade que reconhece socialmente: a mãe. Disciplinar é necessário para
que se mantenha a ordem social, mesmo que, para tanto, seja preciso violar a subjetividade do
outro. Para Foucault (1987, p. 167), a disciplina é o resultado de “uma observação minuciosa do
detalhe, e ao mesmo tempo um enfoque político dessas pequenas coisas, para controle e utilização
dos homens” segundo as necessidades de manutenção social. A violência inicial é exercida pela
afirmação dos detalhes morais que impõem a negação da subjetividade dos que insurgem,
subvertem a ordem, seja pela gravidez ou simplesmente pela coragem que Nawal demonstra ao se
apaixonar por Wahab.
O analfabetismo dos refugiados, que se encontram no acampamento, também é uma marca
da violência social a qual estes personagens estão submetidos. Nazira, a avó de Nawal, assume o
papel da Velha Sábia do grupo, demonstrando um olhar crítico acerca das relações sociais
estabelecidas no acampamento e de como isso atingiu a neta.
NAZIRA Tudo isso vem da miséria, Nawal. Nenhuma beleza em volta de nós. Só a raiva de uma vida dura e
que machuca. Marcas de ódio em cada esquina. Ninguém aqui para falar delicadamente. Você tem
razão, Nawal, o amor que você tinha para viver, você viveu e a criança que você vai ter será tirada
de ti. Não te sobra nada. Lutar contra a miséria, talvez, ou então afundar nela. (p. 45)
Queima em chamas a infância de Nawal, dando origem ao ciclo que permeará toda a sua
vida, marcada pela busca do filho levado embora pela parteira Elhame e da promessa feita a ele
logo após nascer: “Aconteça o que acontecer, te amarei pra sempre!” (p. 47)
Uma forma de subverter a ignorância vivida por todos daquele lugar, é tendo a coragem de
aprender a ler, escrever, contar, falar. É quebrar o silêncio ao qual todos parecem estar condenados.
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A avó Nazira, em seu leito de morte, faz Nawal prometer romper com a sucessiva linha primitiva a
que sua família está submetida.
NAZIRA [...] Nawal, não diga sim. Diga não. Recusa. Teu amor foi embora, tua criança foi embora. Ele fez
um ano. Há apenas alguns dias. Não aceita, Nawal, não aceita nunca. Mas para poder recusar é
preciso saber falar. Então, se arma de coragem e trabalha duro! Escuta o que uma velha mulher
que vai morrer tem pra te dizer: aprende a ler, aprende a escrever, aprende a contar, aprende a
falar. Aprende. É tua única chance de não se parecer conosco. Promete isso pra mim.
NAWAL Te prometo.
NAZIRA Vão me enterrar daqui a dois dias. Vão me colocar na terra, com a cara virada pro céu, sobre o
meu corpo eles vão lançar, cada um, um balde d’água, mas eles não vão marcar nada sobre a pedra
pois nenhum deles sabe escrever. Você, Nawal, quando você souber, volta e grava meu nome
sobre a pedra: “Nazira”. Grava meu nome pois eu cumpri as minhas promessas. Estou indo
embora, Nawal. Para mim, está terminado.
Nazira sabia que Nawal reescreveria a história de todos daquele lugar, inclusive a sua
própria. O silêncio de não ter o domínio da palavra seria quebrado por alguém e isso marcaria um
novo tempo.
Ao voltar para cumprir a promessa feita à avó, ela torna-se a exceção. Dominar as palavras,
apesar de ser visto com descrença pelos mais velhos, é motivo de admiração dos mais jovens, como
Sawda, uma mulher que admira Nawal e enxerga, então, a oportunidade de também quebrar com a
regra imposta pela cultura daquele lugar: ela quer aprender a ler e a escrever e decide acompanhar
Nawal na busca por seu filho, com o intuito de reescrever também a própria história. Meio ao
turbilhão de dor causado pela guerra entre milicianos e refugiados, as palavras são as munições, os
cartuchos das armas: “Uma palavra e tudo se ilumina” (p. 56).
A violência estilística
A forma como o dito se apresenta na superfície do texto indica os interditos possíveis. A
leitura que fazemos vai muito além do próprio texto, sugerindo relações semânticas representadas
pela escolha de determinados termos ou, no caso do texto teatral, a indicação dos gestos que
mobilizam a performance cênica.
Nos estados contemporâneos, abandonados ao espetáculo, em que somos expropriados da
possibilidade de comunicação, da linguagem enquanto instrumento de comunicação, abre-
se a possibilidade de pensar a linguagem como puro meio, o que definiria uma nova
política. (Vidal, 2012, p. 89)
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Ao trazer a violência como linguagem na fala do personagem Simon e na forma como são
descritas as atrocidades da guerra civil, Mouawad possibilita ao leitor interagir com a história pela
forma como a história é contada. A indiferença do filho, diante da mãe e de seus pedidos, é
evidenciada na escolha de termos que indicam o desprezo deste por Nawal. As relações são
permeadas pelo discurso da violência, desde o léxico até a forma como a morte é banalizada. A
linguagem concretiza, estruturalmente, a descrença e a desumanização.
SIMON Ela infernizou as nossas vidas até o fim! Vaca! Velha puta! Vaca de merda! Filha de uma cadela!
Velha cretina! Vaca velha! A pior piranha da raça dela! Ela realmente encheu a porra do nosso
saco até o final! A gente pensava todo dia há muito tempo ela vai morrer, essa vaca, ela vai parar
de atazanar a gente, ela vai parar de nos dar nojo essa cretina! [...] (p. 27)
A linguagem do palavrão, do desrespeito, é resultado do desgosto que Simon carrega em
relação ao silêncio da mãe. Constantemente, Jeanne e Simon tiveram seus sentimentos violentados
pela ausência de Nawal, que nunca conseguiu demonstrar o amor que se espera de uma mãe. Somos
surpreendidos pela linguagem usada pelo filho, ao mesmo tempo em que percebemos a dor que ele
carrega. A linguagem indisciplinada é a tônica da obra, também demonstrada na forma como as
cenas das ruas em estado de guerrilha são descritas.
NAWAL Eu estava dentro do ônibus, Sawda, eu estava com eles! Quando nos encharcaram com gasolina eu
gritei: “Não sou do acampamento, não sou uma refugiada do acampamento, sou uma de vocês,
procuro meu filho que tiraram de mim!” Então eles me deixaram descer, e depois, depois, eles
atiraram, e de repente, realmente de repente, o ônibus explodiu com todos os que estavam ali
dentro, explodiu com os velhos, as crianças, as mulheres, tudo! Uma mulher tentava sair pela
janela, mas os soldados atiraram nela, e ela ficou assim, montada na borda da janela, seu filho no
colo no meio do fogo, e sua pele derreteu, e a pele da criança derreteu e todo mundo foi queimado!
[...] (p. 77)
O leitor/espectador é constantemente violentado pela linguagem que demonstra a
banalização da morte como arma que ataca e que defende.
Longa sequência de barulhos de britadeiras que encobrem inteiramente a voz de Hermile Lebel. Os jatos no
gramado espirram sangue e inundam tudo. Jeanne sai.
O “sangue” espirrando no gramado é um exemplo de como a linguagem viola a cena
cotidiana e de como o autor opta pela abertura do drama para a metaforização do passado. Há,
constantemente, a utilização da palavra como resultado de uma escolha política, assim como sugere
Vidal (2012) quando apresenta a violência como um recurso de representação da produção
contemporânea. Em “Incêndios”, a linguagem, a cena e as noções de tempo e espaço são
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violentadas a todo momento, assim como os personagens são expostos à violência dos fatos que
fizeram com que todos tivessem as suas histórias. A descoberta do destino como consequência
inevitável começa a se desenhar por meio da palavra.
A violência simbólica
O que se espera de uma mãe? Qual o tratamento e como são as demonstrações que atendem
às expectativas sociais e simbólicas em relação à figura materna? Para Waiblinger (1986, p. 17), “os
mitos da procriação, do nascimento e da vida [...] refletem o ‘conhecimento’ das grandes conexões,
tanto do cosmo como da alma humana” e a Grande Mãe, enquanto figura arquetípica, é a maior
forma de representação da divina capacidade de criar.
Nawal é um exemplo do poder social desse arquétipo. O filho do amor por Wahab conhece,
mesmo que por instantes, a mãe arquetípica que tenta proteger e que promete amor eterno. Em
contrapartida, Jeanne e Simon sofrem com a recusa de Nawal de exercer esse papel, o que os faz
nutrir um sentimento de ódio pela mãe.
SIMON [...] Por que nesse testamento de merda ela não diz uma única vez a palavra “meus filhos” pra
falar da gente?! A palavra “filho”, a palavra “filha”! Não sou otário! Não sou otário! Por que ela
diz “os gêmeos”?! “A gêmea e o gêmeo, filhos saídos do meu ventre”, como se a gente fosse um
monte de vômito, um monte de merda que ela foi obrigada a cagar! Por quê?!
A revolta de Simon, diante da aparente indiferença da mãe, é o resultado da violação da
figura materna arquetípica que, inconscientemente, ele sente falta. A utilização da linguagem chula
é a forma mais nítida de representação de seu descaso diante de Nawal. Para Waiblinger (1986, p.
31), “o primeiro amor da vida de um homem é a própria mãe. No recôndito de sua alma, ele ficará
sempre ligado a esse primeiro amor, e nunca irá esquecê-lo, mesmo que não tenha consciência do
fato. [...] Nunca o homem consegue superar a decepção que sua mãe lhe proporciona, no momento
em que ela o abandona”. Aqui, esse abandono não é apenas simbólico, mas vivido por Simon de
forma concreta, tendo em vista o pouco que ele conhece da história de vida de Nawal.
De forma menos passional que o irmão (constantemente abalado pelo abandono que sentia
da mãe), Jeanne se aprofunda na busca da Nawal que não conhecia, levando consigo o casaco de
brim verde com o número 72 nas costas recebido quando da leitura do testamento. Para conhecer o
silêncio da mãe, é preciso que ela perca-se e desenrede a própria história. O violento processo de
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epifania pelo qual a personagem passa é o resultado de uma Jeanne que veste-se de Nawal,
simbolicamente representada pelo casaco.
A violência pessoal: a destruição de si
As chamas que queimam na narrativa fazem surgir novos conceitos acerca do que venha a
ser Nawal, Jeanne, Simon e, inclusive, a infância. Paradoxalmente, a dor causada pelas queimaduras
provocadas pelo fogo serve a um exercício de reflexão acerca das verdades que colocamos sobre
nossa identidade, sobre quem somos. O caos é gerador, é violador e inovador. A destruição tem
como consequência a reestruturação.
Estamos diante de uma narrativa que, em todo momento, nos provoca a reconhecer a
fragmentação de nossa identidade, quando percebemos o processo de redefinição pelo qual passam
os personagens. A identidade torna-se uma “celebração móvel”, formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas
culturais que nos rodeiam (Hall, 2015). Ou seja, o sujeito assume identidades diferentes em
diferentes momentos, identidades que não são unificadas em torno de um “eu” coerente, mas
contraditórias, empurrando em diferentes direções, provocando contínuos deslocamentos. Se
sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque
construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”. No
caso de “Incêndios”, temos a história da quebra desse confortável conhecido enredo sobre si
mesmo. Os personagens precisam se violar para encontrar a própria história, a verdadeira história de
suas origens. Esse é um texto que evidencia o silêncio (e silenciamento) como parte de um processo
de autopunição e purgação. Silenciar é uma forma de violar a própria identidade em detrimento da
história pessoal.
Me enterrem nua
Me enterrem sem caixão
Sem roupa
Sem reza
E o rosto virado para o chão.
Me coloquem no fundo de um buraco,
Com a cara contra o mundo.
[...]
Nenhuma pedra será pousada sobre minha tumba
E meu nome gravado em lugar nenhum.
Nada de epitáfio para aqueles que não cumprem suas promessas
E uma promessa não foi cumprida.
Nada de epitáfio para aqueles que mantém o silêncio. (p. 25/26)
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Nawal prometeu que encontraria o filho tirado dela na infância, fruto da rebeldia em amar. O
enterro inominado é o resultado da quebra do ritual de ser lembrada em um epitáfio por ser digna
dessa lembrança, assim como ensinou sua avó Nazira.
Para Jeanne e Simon, quem é essa mãe que está sendo desenhada após o enterro? Que
histórias ela viveu? Quais segredos ela guardou que fazem-na acreditar na punição de ser esquecida
pelo mundo?
Aos poucos, os pequenos fragmentos da identidade de Nawal Marwan são desvendados
pelos filhos e pelos leitores/plateia: Nawal viveu uma história de amor, engravidou, teve seu filho
levado embora e prometeu reencontrá-lo. Ela quebrou o ciclo de analfabetismo da comunidade,
voltou para cumprir uma promessa a sua avó, e, meio à procura que motivava sua vida, se envolveu
diretamente com a guerra entre milicianos e refugiados, tornando-se símbolo da resistência.
Conhecer a história da mãe, faz com que Simon e Jeanne conheçam a própria história. Eles passam
a testemunhar o irrepresentável, o silêncio incompreendido da mãe.
Presa pelo assassinato do chefe dos milicianos Chad, Nawal era submetida às mais variadas
formas de violação do sujeito: estupro, tortura, humilhação. O seu carrasco era Abu Tarek, homem
perverso do qual ficou grávida. Na cela nº 7, ela pariu duas crianças, que foram levadas pelo
carcereiro para serem jogadas em um rio, como acontecia com tantas outras crianças que nasciam
na prisão. Eram Jannaane e Sarwanne, que foram criados por um camponês que as encontrou ainda
vivas.
Nawal ficou conhecida como “a mulher que canta”, pois rompia o silenciador tormento da
tortura com as canções que aprendeu com sua amiga Sawda. Por isso Abu não a matou. Gostava de
sua voz.
A violência extrema é irrepresentável, mesmo que aconteça. Se, eticamente, a violência
extrema não deve ser retomada, em “Incêndios” vemos a violação dessa noção de
representabilidade. Somos violentados pela forma esteticamente possível de tornar visível o incesto,
o assassinato, o estupro etc. Abu Tarek sintetiza o horror da guerra civil, a banalização extrema da
vida e da morte, a descrença no homem abandonado em seu próprio destino, a violação do sujeito
pelo inevitável ódio que permeia uma guerrilha.
[...] Os frutos da mulher que canta nasceram do estupro e do horror, eles saberão acabar com os
gritos perdidos das crianças jogadas no rio. (p. 102)
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O jogo cênico ajuda a redesenhar a identidade de Jeanne, agora Jannaane, e de Simon,
Sarwane, ao passo que reconstrói o julgamento de Abu Tarek a partir da leitura do caderno
vermelho, deixado como herança para Simon quando da procura pelo irmão perdido. No caderno
tinha registrado o depoimento de acusação de Nawal:
NAWAL [...] Meu depoimento, eu o farei olhando para o meu carrasco. Abu Tarek. Pronuncio o seu nome
pela última vez na minha vida. [...] Através de mim, são fantasmas que lhe falam. [...] Meu nome
não lhe dirá nada, meu número de puta também não. Talvez, mas tem uma coisa que saberá
quebrar a barreira de seu esquecimento. A mulher que canta. Está lembrado agora? O senhor sabe
como sua raiva agia sobre mim, me suspendendo pelos pés, me dando choques com água
misturada à descarga elétrica, enfiando pregos sob minhas unhas, apontando para mim a pistola
descarregada. O tiro da pistola, a morte por um triz e a urina sobre o meu corpo, a sua, na minha
boca, no meu sexo, e seu sexo no meu sexo, uma vez, duas vezes, três vezes, e tantas quantas
vezes que o tempo se rompeu. Meu ventre que incha do senhor, sua tortura infecta no meu ventre e
sozinha, o senhor quis que eu ficasse sozinha, sozinha para parir. Duas crianças, gêmeos. O senhor
me obrigou a não amar as crianças, a cria-las na dor e no silêncio.
Abu Tarek, apesar de ser colocado no papel do carrasco, também tem uma identidade
marcada pela difusão e pelo deslocamento. Ele é o resultado de um destino inevitável, assim como
acontece com Sawda que passa a contemplar a morte com indiferença, diante de tantos exemplos de
atrocidades que é submetida.
O carrasco do outro, capaz de sujeitar os prisioneiros à violação da própria subjetividade por
meio da tortura, é a consequência da própria identidade violentada pelo destino que tivera. Abu
antes era Nihad, menino roubado do orfanato, para onde Elhame levara o filho perdido de Nawal, e
criado pelos milicianos. Mesmo em busca da mãe, Nihad acaba desistindo de sua procura para se
dedicar à guerrilha, se tornando um dos mais temidos atiradores do grupo e, posteriormente, sendo
encaminhado para a prisão de Kfar Rayat como carrasco, assumindo o novo nome.
Abu é disciplinado e temido, um dos mais sanguinários carrascos e, talvez, o matador mais
frio de muitos. Na narrativa, segue a descrição de algumas situações em que Abu Tarek trata a
morte com tamanho desdém, colocando-a como recurso para o exercício da fotografia, por exemplo.
Ele é o resultado do inevitável caminho a ser percorrido desde a malfadada separação da mãe.
Segundo Foucault (1987, p. 164), o sujeito assujeitado à disciplina serve a uma “mecânica
do poder” e é mais obediente quanto é mais útil. “Forma-se então uma política das coerções que
são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de
seus comportamentos”, que, consequentemente, vão incidir no deslocamento da identidade cada vez
mais fragmentada.
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Diante da verdade apresentada aos gêmeos, Jeanne já silenciada presencia o silêncio de
Simon, que fica inerte perante a nunca imaginada realidade.
Ele ainda não disse uma palavra. Ele ficou com Chamseddine, e quando saiu, Jeanne, seu irmão
estava com o olhar da sua mãe. Ele não disse nada o dia inteiro.
Nem no dia seguinte, nem dois dias depois. Ficou no hotel. Eu sabia que você estava em Kfar
Rayat. Não queria arrancá-la a sua solidão, mas Simon se calou, Jeanne, e estou com medo. Talvez
a gente tenha ido longe demais para saber a verdade. (p. 120)
“Incêndios” é o drama da impotência diante da aleatoriedade, do paradoxal silenciamento do
cantar, da contradição exercida pelo destino marcado pela miséria da guerra e da ignorância.
Aparece o silêncio como violação do sujeito, de sua identidade, ao mesmo tempo em que também
assume o papel de refúgio e de consolo. “A infância é uma faca enfiada no pescoço” (p. 26) e faz
com que as histórias sejam contadas por alguém. Nunca é uma lembrança isenta de interferências,
do discurso do outro. A vida que gira ao redor da faca é o que deve servir de consolo para ninar
cada imagem da história que está em migalhas, afinal de contas, “para além do silêncio, tem a
felicidade de estar junto. Não há nada mais lindo do que estar juntos” (p. 129). E, assim, o que antes
é uma história contada pelo ódio e pelo esfacelamento das relações familiares, se torna a narrativa
da verdade que tem sua origem no amor.
Referências
BENJAMIN, Walter. Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht. In: Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 78 – 90.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 12ª edição. Rio de Janeiro:
Lamparina, 2015.
MOUAWAD, Wadji. Incêndios. Tradução Angela Leite Lopes. 1ª edição. Rio de Janeiro: Cobogó,
2013.
OLIVEIRA, Luiz Alberto. Um corpo estranho: civilização e pós-humanismo. In: Civilização e
barbárie. São Paulo: Companhia das letras, 2004, p. 301 – 318.
VIDAL, Paloma. Configurações do comum na narrativa latino-americana contemporânea. In:
Escritas da violência. Rio de Janeiro: Letras, 2012, p. 86 – 93.
WAIBLINGER, Angela. A grande mãe e a criança divina: o milagre da vida no berço e na alma.
São Paulo: Cultrix, 1986.
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
WARNER, Marina. Da fera à loira: sobre contos de fadas e seus narradores. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
The silencing violence of the flames
Abstract: Nawal Marwan silences for five years. Her children, Jeanne and Simon, try to understand
the dark silence of their mother only after her death, after having access to an enigmatic will. Thus,
the fragments of the identity of each character are drawn in a new storyline, in a new story that
brings out the unrepresentative: the silence. In “Incendies” (2003), of the Lebanese author Wajdi
Mouawad, we are placed in front of the social, symbolic, stylistic and personal violence to which
the characters are subjected, in a open dramaturgy that brings the violation of the subject as the
main consequence of the civil war. Rape, incest, breaking of the archetypal figure related to the
feminine, torture, pain, illiteracy - the unrepresentative violates our comfortable reading. We are
violated by the narrative which shows various forms of violating yourself and violating the other. In
the light of the studies of Foucault (1987), Vidal (2012), Benjamin (1994), Hall (2015) and
Waiblinger (1986), we proposed to reconstruct Nawal’s story, consumed by the fire of the events
which intersect her life so that, from then on, we can understand the silence as the discourse of
women, who like her, silence in response to the (un) preventable fate.
Keywords: Violence, Silence, Silencing, Identity, Female