a violÊncia silenciadora das chamas · violência surgir da linguagem, da estrutura, dos fatos...

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X A VIOLÊNCIA SILENCIADORA DAS CHAMAS Candice Firmino de Azevedo 1 Resumo: Nawal Marwan silencia por cinco anos. Seus filhos, Jeanne e Simon, tentam entender o obscuro silêncio da mãe apenas após a sua morte, depois de ter acesso a um testamento enigmático. Assim, os fragmentos da identidade de cada personagem são desenhados em um enredo novo, em uma nova história que traz à tona o irrepresentável, o silenciável. Em “Incêndios” (2003), do libanês Wadji Mouawad, ficamos diante da violência social, simbólica, estilística e pessoal às quais os personagens estão submetidos, em uma dramaturgia aberta que traz a violação do sujeito como principal consequência da guerra civil. Estupro, incesto, quebra da figura arquetípica relacionada ao feminino, tortura, dor, analfabetismo, o irrepresentável viola constantemente nossa cômoda leitura. Somos violentados pela narrativa que evidencia diversas formas de violar-se e de violar o outro. À luz dos estudos de Foucault (1987), de Vidal (2012), de Benjamin (1994), de Hall (2015) e de Waiblinger (1986), nos propomos a reconstruir a história da Nawal, consumida pelo fogo dos acontecimentos que entrecortaram sua vida para, a partir de então, podermos compreender o silêncio como discurso das mulheres, que como ela, silenciam como resposta ao (in)evitável destino. Palavras-chave: Violência, Silêncio, Silenciamento, Identidade, Feminino Dentre as narrativas míticas e modernas, o fogo aparece como elemento natural que marca as mudanças, as reformas, as evoluções da humanidade. Basta pensarmos em Prometeu, que rouba o fogo do Olimpo com o intuito de agradar aos homens. Mesmo provocando a fúria dos grandes deuses, ele oferece à raça humana a oportunidade de conhecer o poder reformador do fogo, capaz de fazer ressurgir algo novo a partir da destruição provocada pelo calor das chamas. Da mesma forma, o fogo aparece em outras tantas histórias como o elemento símbolo da transformação, tal como acontece com a Fênix, que renasce das cinzas e traz a esperança de um voo de penas novas. Também, historicamente, o fogo aparece como a justificativa simbólica para a purificação das almas julgadas perdidas pelos tribunais inquisitórias da Idade Média. Era por meio da queima na fogueira que as mulheres podiam renascer novas e puras, segundo os critérios aplicados para as punições durante a Inquisição. O fogo sempre como símbolo de conhecimento, de possibilidade de mudança por meio da descoberta do novo e da dor que derrete a pele, formando um outro tecido capaz de revestir os ossos e a alma. O fogo e sua capacidade de transformação. Tendo em vista essa carga simbólica, nos deparamos com a leitura do texto teatral “Incêndios” (2003), de Wadji Mouawad. A narrativa traz como protagonista Nawal Marwan, uma mulher que silencia por cinco anos sem dar explicações e que deixa para os filhos um testamento capaz de fazê-los redefinir tudo o que acreditavam como verdade pessoal. Com essa proposta, o 1 Docente de Língua Portuguesa e Literaturas do IFRN, campus São Gonçalo do Amarante, RN / Brasil; Doutoranda em Teoria da Literatura, UFPE, Recife, Brasil.

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Page 1: A VIOLÊNCIA SILENCIADORA DAS CHAMAS · violência surgir da linguagem, da estrutura, dos fatos narrados, da escolha lexical, enfim, de todas as camadas do texto. Dividido em 4 atos,

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

A VIOLÊNCIA SILENCIADORA DAS CHAMAS

Candice Firmino de Azevedo 1

Resumo: Nawal Marwan silencia por cinco anos. Seus filhos, Jeanne e Simon, tentam entender o obscuro silêncio da

mãe apenas após a sua morte, depois de ter acesso a um testamento enigmático. Assim, os fragmentos da identidade de

cada personagem são desenhados em um enredo novo, em uma nova história que traz à tona o irrepresentável, o

silenciável. Em “Incêndios” (2003), do libanês Wadji Mouawad, ficamos diante da violência social, simbólica,

estilística e pessoal às quais os personagens estão submetidos, em uma dramaturgia aberta que traz a violação do sujeito

como principal consequência da guerra civil. Estupro, incesto, quebra da figura arquetípica relacionada ao feminino,

tortura, dor, analfabetismo, o irrepresentável viola constantemente nossa cômoda leitura. Somos violentados pela

narrativa que evidencia diversas formas de violar-se e de violar o outro. À luz dos estudos de Foucault (1987), de Vidal

(2012), de Benjamin (1994), de Hall (2015) e de Waiblinger (1986), nos propomos a reconstruir a história da Nawal,

consumida pelo fogo dos acontecimentos que entrecortaram sua vida para, a partir de então, podermos compreender o

silêncio como discurso das mulheres, que como ela, silenciam como resposta ao (in)evitável destino.

Palavras-chave: Violência, Silêncio, Silenciamento, Identidade, Feminino

Dentre as narrativas míticas e modernas, o fogo aparece como elemento natural que marca

as mudanças, as reformas, as evoluções da humanidade. Basta pensarmos em Prometeu, que rouba o

fogo do Olimpo com o intuito de agradar aos homens. Mesmo provocando a fúria dos grandes

deuses, ele oferece à raça humana a oportunidade de conhecer o poder reformador do fogo, capaz de

fazer ressurgir algo novo a partir da destruição provocada pelo calor das chamas. Da mesma forma,

o fogo aparece em outras tantas histórias como o elemento símbolo da transformação, tal como

acontece com a Fênix, que renasce das cinzas e traz a esperança de um voo de penas novas.

Também, historicamente, o fogo aparece como a justificativa simbólica para a purificação das

almas julgadas perdidas pelos tribunais inquisitórias da Idade Média. Era por meio da queima na

fogueira que as mulheres podiam renascer novas e puras, segundo os critérios aplicados para as

punições durante a Inquisição.

O fogo sempre como símbolo de conhecimento, de possibilidade de mudança por meio da

descoberta do novo e da dor que derrete a pele, formando um outro tecido capaz de revestir os ossos

e a alma. O fogo e sua capacidade de transformação.

Tendo em vista essa carga simbólica, nos deparamos com a leitura do texto teatral

“Incêndios” (2003), de Wadji Mouawad. A narrativa traz como protagonista Nawal Marwan, uma

mulher que silencia por cinco anos sem dar explicações e que deixa para os filhos um testamento

capaz de fazê-los redefinir tudo o que acreditavam como verdade pessoal. Com essa proposta, o

1 Docente de Língua Portuguesa e Literaturas do IFRN, campus São Gonçalo do Amarante, RN / Brasil; Doutoranda em

Teoria da Literatura, UFPE, Recife, Brasil.

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dramaturgo libanês contemporâneo leva ao palco uma “dramaturgia aberta”, marcada em sua

profundidade pelo drama moderno, um desdobramento do teatro épico.

Ao fazer um estudo acerca da obra de Brecht, Benjamin (1994) discorre acerca da condição

assumida pelo teatro moderno no que diz respeito à manutenção de determinadas características do

teatro épico. Neste último, a peça é o resultado de uma “orquestra” que trabalha em prol da

execução de um conjunto de elementos em busca da perfeita conjugação de gestos capazes de

contar a história. No teatro épico, o texto não é o fundamento, e sim roteiro de trabalho capaz de

interromper as ações. Assim, aos demais elementos teatrais é dada a possibilidade de interferir na

construção do que vem a ser encenado, conservando “do fato de ser teatro a consciência incessante,

viva e produtiva” (Benjamin, 1994, p. 81). Dessa forma, o teatro épico assume o caráter socrático

da narrativa, de forma dura e pura, trazendo à cena o constante questionamento acerca da

concatenação da própria estrutura do texto em suas constantes reformulações sugeridas pelo gesto,

pela performance que marca a dinamicidade da vida representada no palco. Temos, então, o drama

moderno como a produção teatral que, apesar de romper com o burilamento das épicas clássicas,

conserva a importância do gesto como marca fundamental da construção coletiva do texto, assim

como propõe Mouawad quando do processo de produção, evidenciando o “confronto constante

entre a ação teatral, mostrada, e o comportamento teatral, que mostra essa ação” (Benjamin, 1994,

p. 88).

A sobreposição de cenas aparece, no texto, como um recurso que serve à abertura dramática.

As rubricas são responsáveis pela indicação da mistura de espaços e tempos, mas, aos poucos, as

cenas são intercortadas abruptamente, sem indicação de palco. A tomada de consciência dos

personagens, assim como o processo de descoberta dos fatos a serem narrados são representados a

partir da sobreposição, o que pode ser percebido como um recurso cênico que busca construir a

narrativa como um mosaico a ser desvendado. Nawal Marwan, mãe dos gêmeos Simon e Jeanne,

carrega uma fragmentação própria da pós-modernidade (Hall, 2015) representada não apenas pelo

fato de ser uma mulher desconhecida dos filhos e marcada pela falta de unidade, mas pelo corpo do

próprio texto enquanto estrutura fundamental. Dessa forma, o leitor acaba sendo surpreendido pela

falta de limites de tempo e espaço no decorrer da narrativa, sendo provocado a buscar as partes

dessa mulher que vai surgindo a partir do que é contado. Assim como para os filhos, aparece para o

leitor uma Nawal desconhecida, um novo elemento aos poucos visível dentro de um polígono.

“Incêndios”, como um drama moderno, assume o compromisso com o gesto a partir do

momento em que deixa transparecer, inclusive em sua macro e microestrutura, a opção pelo jogo de

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cenas marcado pela atitude socrática da performance sugerida pelo texto escrito, na medida em que

sobrepõe cenas, tempos e espaços em cada ato. A estrutura acaba por violar a expectativa do leitor

de um texto que siga um padrão temporal, solavancando-nos de nossa confortável leitura linear.

Somos jogados meio ao turbilhão de pensamentos confusos e cenas entrecortadas, perdendo-nos,

por instantes, assim como acontece com os próprios personagens. Compartilhamos das ações e dos

gestos do outro, à medida que somos assaltados pelas dúvidas que a estrutura do texto provoca na

nossa leitura.

Percebemos, então, que estamos diante de um texto que “desafia o pensamento comum”

(Vidal, 2012, p. 87) e que essa provocação é o resultado de uma atitude de não aceitação da

violência como território possível. Somos violentados pela narrativa que evidencia diversas formas

de violar-se e de violar o outro. Estamos diante de uma narrativa do inenarrável, do impensável e do

silenciável, que viola, inclusive, a nossa mais ingênua percepção de leitura. “Incêndios” faz a

violência surgir da linguagem, da estrutura, dos fatos narrados, da escolha lexical, enfim, de todas

as camadas do texto.

Dividido em 4 atos, o drama retoma o simbolismo do fogo em relação ao processo de

revelação pelo qual passa Nawal e os gêmeos. O texto é uma reflexão sobre a origem, o começo, os

motivos que desenham o destino. Observamos, então, uma narrativa do tempo que constrói,

desconstrói e reconstrói, e de uma mulher que se afirma, depois da morte, por meio da reescritura de

sua própria história, de seu enredo consumido pelas chamas.

Viol(ent)ar como destino (in)evitável

É possível rebelar-se do destino traçado pelas moiras do tempo?

Nawal cresce em um acampamento marcado pela disputa de espaço e pela miséria, causadas

pela violência da guerra civil entre refugiados e nativos. Não se sabe ao certo os motivos que levam

aos ataques, mas as consequências se firmam fortemente entre as pessoas provocando a descrença

social e afetiva. Na sua comunidade ninguém sabe ler, ninguém sabe escrever. O analfabetismo é a

regra, assim como a intolerância e o moralismo.

Esse é o começo de tudo. Um início revelado aos poucos na narrativa. Um começo nunca

contado aos gêmeos Jeanne e Simon e revelado, primeiramente, para o leitor, após a leitura do

testamento de Nawal e dos enigmas propostos para os filhos:

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Jeanne,

O tabelião Lebel vai te entregar um envelope.

Esse envelope não é para você.

É destinado a seu pai

Seu e de Simon.

Encontre-o e entregue a ele esse envelope.

Simon,

O tabelião Lebel vai te entregar um envelope.

Esse envelope não é para você.

É destinado a seu irmão.

Seu e de Jeanne.

Encontre-o e entregue a ele esse envelope. (p. 26)

A rejeição dos filhos, diante dos estranhos pedidos da mãe, evidencia uma primeira forma de

violência: era preciso deixar-se violar para que o testamento se cumprisse. Todos os conceitos de

identidade foram colocados em xeque pelos irmãos, que se viram atordoados diante da possibilidade

de terem as histórias pessoais redefinidas de forma tão abrupta. Começamos a observar a violência

como elo de ligação entre as camadas do texto, pois com essa cena inicial os personagens (e os

leitores) vão sendo tomados pela violação constante do corpo, dos valores sociais, do conceito de

sanidade, da representação mítica do amor, da linguagem, da estrutura do texto/cena. Ao passo que

a narrativa desvenda os mistérios, a cena se afirma “como lugar de consolo impiedoso” (p. 08), ou

seja, o destino não perdoa, mas consola por ser a verdade.

A violência social

A história de Nawal é reconstruída para Jeanne, ao passo que a filha decide desvendar os

enigmas propostos pela mãe . Em um jogo cênico espaço-temporal, a narrativa traz em flash-back o

passado: Nawal Marwan vive em um acampamento de refugiados, onde o acesso à leitura e à escrita

não existia. Ela, assim como a sua família e os demais, está imersa no inóspito terreno da iminente

guerra civil. Não há fé. Não há esperança nem crença no amor. O mundo é mostrado, mas é

silenciado porque não há o que dizer dele. Não há palavra, nem verbo que se faça carne.

Contra todas as expectativas e experiências, Nawal se apaixona por Wahab e viola o

moralismo estabelecido pelos demais. Ela subverte o estabelecido e vive um amor escondido do

primitivismo da moral e, ao descobrir que está grávida, percebe-se diante do grande paradoxo

inicial de sua vida: a felicidade será a sua infelicidade.

O “Incêndio de Nawal”, no primeiro ato, é marcado pelo paradoxo do fogo (destruição /

construção) que representa as consequências familiares da gravidez: a cicatriz causada pela

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queimadura. Nawal está diante da primeira forma de silenciamento ao contar sobre o filho para a

mãe, Jihane.

JIHANE Esquece o teu ventre! Essa criança não é da tua conta. Não é da conta da tua família, não é da

conta da tua mãe, não é da conta da tua vida.

NAWAL Coloco a minha mão aqui, já até vejo o rosto dela.

JIHANE O que você vê não importa! Essa criança não é da tua conta. Ela não existe. Ela não está aí. (p. 43)

A negação é a primeira forma de silenciamento e, consequentemente, de violência a qual

Nawal é submetida, justamente por aquela que deveria ser a responsável por protegê-la. A

indisciplina demonstra a não docilidade do corpo de Nawal, que destoa do grupo do qual faz parte

quando deixa-se levar pelo coração ao se entregar a Wahab, e sua punição é a sujeição a qual vai

estar submetida pela autoridade que reconhece socialmente: a mãe. Disciplinar é necessário para

que se mantenha a ordem social, mesmo que, para tanto, seja preciso violar a subjetividade do

outro. Para Foucault (1987, p. 167), a disciplina é o resultado de “uma observação minuciosa do

detalhe, e ao mesmo tempo um enfoque político dessas pequenas coisas, para controle e utilização

dos homens” segundo as necessidades de manutenção social. A violência inicial é exercida pela

afirmação dos detalhes morais que impõem a negação da subjetividade dos que insurgem,

subvertem a ordem, seja pela gravidez ou simplesmente pela coragem que Nawal demonstra ao se

apaixonar por Wahab.

O analfabetismo dos refugiados, que se encontram no acampamento, também é uma marca

da violência social a qual estes personagens estão submetidos. Nazira, a avó de Nawal, assume o

papel da Velha Sábia do grupo, demonstrando um olhar crítico acerca das relações sociais

estabelecidas no acampamento e de como isso atingiu a neta.

NAZIRA Tudo isso vem da miséria, Nawal. Nenhuma beleza em volta de nós. Só a raiva de uma vida dura e

que machuca. Marcas de ódio em cada esquina. Ninguém aqui para falar delicadamente. Você tem

razão, Nawal, o amor que você tinha para viver, você viveu e a criança que você vai ter será tirada

de ti. Não te sobra nada. Lutar contra a miséria, talvez, ou então afundar nela. (p. 45)

Queima em chamas a infância de Nawal, dando origem ao ciclo que permeará toda a sua

vida, marcada pela busca do filho levado embora pela parteira Elhame e da promessa feita a ele

logo após nascer: “Aconteça o que acontecer, te amarei pra sempre!” (p. 47)

Uma forma de subverter a ignorância vivida por todos daquele lugar, é tendo a coragem de

aprender a ler, escrever, contar, falar. É quebrar o silêncio ao qual todos parecem estar condenados.

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A avó Nazira, em seu leito de morte, faz Nawal prometer romper com a sucessiva linha primitiva a

que sua família está submetida.

NAZIRA [...] Nawal, não diga sim. Diga não. Recusa. Teu amor foi embora, tua criança foi embora. Ele fez

um ano. Há apenas alguns dias. Não aceita, Nawal, não aceita nunca. Mas para poder recusar é

preciso saber falar. Então, se arma de coragem e trabalha duro! Escuta o que uma velha mulher

que vai morrer tem pra te dizer: aprende a ler, aprende a escrever, aprende a contar, aprende a

falar. Aprende. É tua única chance de não se parecer conosco. Promete isso pra mim.

NAWAL Te prometo.

NAZIRA Vão me enterrar daqui a dois dias. Vão me colocar na terra, com a cara virada pro céu, sobre o

meu corpo eles vão lançar, cada um, um balde d’água, mas eles não vão marcar nada sobre a pedra

pois nenhum deles sabe escrever. Você, Nawal, quando você souber, volta e grava meu nome

sobre a pedra: “Nazira”. Grava meu nome pois eu cumpri as minhas promessas. Estou indo

embora, Nawal. Para mim, está terminado.

Nazira sabia que Nawal reescreveria a história de todos daquele lugar, inclusive a sua

própria. O silêncio de não ter o domínio da palavra seria quebrado por alguém e isso marcaria um

novo tempo.

Ao voltar para cumprir a promessa feita à avó, ela torna-se a exceção. Dominar as palavras,

apesar de ser visto com descrença pelos mais velhos, é motivo de admiração dos mais jovens, como

Sawda, uma mulher que admira Nawal e enxerga, então, a oportunidade de também quebrar com a

regra imposta pela cultura daquele lugar: ela quer aprender a ler e a escrever e decide acompanhar

Nawal na busca por seu filho, com o intuito de reescrever também a própria história. Meio ao

turbilhão de dor causado pela guerra entre milicianos e refugiados, as palavras são as munições, os

cartuchos das armas: “Uma palavra e tudo se ilumina” (p. 56).

A violência estilística

A forma como o dito se apresenta na superfície do texto indica os interditos possíveis. A

leitura que fazemos vai muito além do próprio texto, sugerindo relações semânticas representadas

pela escolha de determinados termos ou, no caso do texto teatral, a indicação dos gestos que

mobilizam a performance cênica.

Nos estados contemporâneos, abandonados ao espetáculo, em que somos expropriados da

possibilidade de comunicação, da linguagem enquanto instrumento de comunicação, abre-

se a possibilidade de pensar a linguagem como puro meio, o que definiria uma nova

política. (Vidal, 2012, p. 89)

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Ao trazer a violência como linguagem na fala do personagem Simon e na forma como são

descritas as atrocidades da guerra civil, Mouawad possibilita ao leitor interagir com a história pela

forma como a história é contada. A indiferença do filho, diante da mãe e de seus pedidos, é

evidenciada na escolha de termos que indicam o desprezo deste por Nawal. As relações são

permeadas pelo discurso da violência, desde o léxico até a forma como a morte é banalizada. A

linguagem concretiza, estruturalmente, a descrença e a desumanização.

SIMON Ela infernizou as nossas vidas até o fim! Vaca! Velha puta! Vaca de merda! Filha de uma cadela!

Velha cretina! Vaca velha! A pior piranha da raça dela! Ela realmente encheu a porra do nosso

saco até o final! A gente pensava todo dia há muito tempo ela vai morrer, essa vaca, ela vai parar

de atazanar a gente, ela vai parar de nos dar nojo essa cretina! [...] (p. 27)

A linguagem do palavrão, do desrespeito, é resultado do desgosto que Simon carrega em

relação ao silêncio da mãe. Constantemente, Jeanne e Simon tiveram seus sentimentos violentados

pela ausência de Nawal, que nunca conseguiu demonstrar o amor que se espera de uma mãe. Somos

surpreendidos pela linguagem usada pelo filho, ao mesmo tempo em que percebemos a dor que ele

carrega. A linguagem indisciplinada é a tônica da obra, também demonstrada na forma como as

cenas das ruas em estado de guerrilha são descritas.

NAWAL Eu estava dentro do ônibus, Sawda, eu estava com eles! Quando nos encharcaram com gasolina eu

gritei: “Não sou do acampamento, não sou uma refugiada do acampamento, sou uma de vocês,

procuro meu filho que tiraram de mim!” Então eles me deixaram descer, e depois, depois, eles

atiraram, e de repente, realmente de repente, o ônibus explodiu com todos os que estavam ali

dentro, explodiu com os velhos, as crianças, as mulheres, tudo! Uma mulher tentava sair pela

janela, mas os soldados atiraram nela, e ela ficou assim, montada na borda da janela, seu filho no

colo no meio do fogo, e sua pele derreteu, e a pele da criança derreteu e todo mundo foi queimado!

[...] (p. 77)

O leitor/espectador é constantemente violentado pela linguagem que demonstra a

banalização da morte como arma que ataca e que defende.

Longa sequência de barulhos de britadeiras que encobrem inteiramente a voz de Hermile Lebel. Os jatos no

gramado espirram sangue e inundam tudo. Jeanne sai.

O “sangue” espirrando no gramado é um exemplo de como a linguagem viola a cena

cotidiana e de como o autor opta pela abertura do drama para a metaforização do passado. Há,

constantemente, a utilização da palavra como resultado de uma escolha política, assim como sugere

Vidal (2012) quando apresenta a violência como um recurso de representação da produção

contemporânea. Em “Incêndios”, a linguagem, a cena e as noções de tempo e espaço são

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violentadas a todo momento, assim como os personagens são expostos à violência dos fatos que

fizeram com que todos tivessem as suas histórias. A descoberta do destino como consequência

inevitável começa a se desenhar por meio da palavra.

A violência simbólica

O que se espera de uma mãe? Qual o tratamento e como são as demonstrações que atendem

às expectativas sociais e simbólicas em relação à figura materna? Para Waiblinger (1986, p. 17), “os

mitos da procriação, do nascimento e da vida [...] refletem o ‘conhecimento’ das grandes conexões,

tanto do cosmo como da alma humana” e a Grande Mãe, enquanto figura arquetípica, é a maior

forma de representação da divina capacidade de criar.

Nawal é um exemplo do poder social desse arquétipo. O filho do amor por Wahab conhece,

mesmo que por instantes, a mãe arquetípica que tenta proteger e que promete amor eterno. Em

contrapartida, Jeanne e Simon sofrem com a recusa de Nawal de exercer esse papel, o que os faz

nutrir um sentimento de ódio pela mãe.

SIMON [...] Por que nesse testamento de merda ela não diz uma única vez a palavra “meus filhos” pra

falar da gente?! A palavra “filho”, a palavra “filha”! Não sou otário! Não sou otário! Por que ela

diz “os gêmeos”?! “A gêmea e o gêmeo, filhos saídos do meu ventre”, como se a gente fosse um

monte de vômito, um monte de merda que ela foi obrigada a cagar! Por quê?!

A revolta de Simon, diante da aparente indiferença da mãe, é o resultado da violação da

figura materna arquetípica que, inconscientemente, ele sente falta. A utilização da linguagem chula

é a forma mais nítida de representação de seu descaso diante de Nawal. Para Waiblinger (1986, p.

31), “o primeiro amor da vida de um homem é a própria mãe. No recôndito de sua alma, ele ficará

sempre ligado a esse primeiro amor, e nunca irá esquecê-lo, mesmo que não tenha consciência do

fato. [...] Nunca o homem consegue superar a decepção que sua mãe lhe proporciona, no momento

em que ela o abandona”. Aqui, esse abandono não é apenas simbólico, mas vivido por Simon de

forma concreta, tendo em vista o pouco que ele conhece da história de vida de Nawal.

De forma menos passional que o irmão (constantemente abalado pelo abandono que sentia

da mãe), Jeanne se aprofunda na busca da Nawal que não conhecia, levando consigo o casaco de

brim verde com o número 72 nas costas recebido quando da leitura do testamento. Para conhecer o

silêncio da mãe, é preciso que ela perca-se e desenrede a própria história. O violento processo de

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epifania pelo qual a personagem passa é o resultado de uma Jeanne que veste-se de Nawal,

simbolicamente representada pelo casaco.

A violência pessoal: a destruição de si

As chamas que queimam na narrativa fazem surgir novos conceitos acerca do que venha a

ser Nawal, Jeanne, Simon e, inclusive, a infância. Paradoxalmente, a dor causada pelas queimaduras

provocadas pelo fogo serve a um exercício de reflexão acerca das verdades que colocamos sobre

nossa identidade, sobre quem somos. O caos é gerador, é violador e inovador. A destruição tem

como consequência a reestruturação.

Estamos diante de uma narrativa que, em todo momento, nos provoca a reconhecer a

fragmentação de nossa identidade, quando percebemos o processo de redefinição pelo qual passam

os personagens. A identidade torna-se uma “celebração móvel”, formada e transformada

continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas

culturais que nos rodeiam (Hall, 2015). Ou seja, o sujeito assume identidades diferentes em

diferentes momentos, identidades que não são unificadas em torno de um “eu” coerente, mas

contraditórias, empurrando em diferentes direções, provocando contínuos deslocamentos. Se

sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque

construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”. No

caso de “Incêndios”, temos a história da quebra desse confortável conhecido enredo sobre si

mesmo. Os personagens precisam se violar para encontrar a própria história, a verdadeira história de

suas origens. Esse é um texto que evidencia o silêncio (e silenciamento) como parte de um processo

de autopunição e purgação. Silenciar é uma forma de violar a própria identidade em detrimento da

história pessoal.

Me enterrem nua

Me enterrem sem caixão

Sem roupa

Sem reza

E o rosto virado para o chão.

Me coloquem no fundo de um buraco,

Com a cara contra o mundo.

[...]

Nenhuma pedra será pousada sobre minha tumba

E meu nome gravado em lugar nenhum.

Nada de epitáfio para aqueles que não cumprem suas promessas

E uma promessa não foi cumprida.

Nada de epitáfio para aqueles que mantém o silêncio. (p. 25/26)

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Nawal prometeu que encontraria o filho tirado dela na infância, fruto da rebeldia em amar. O

enterro inominado é o resultado da quebra do ritual de ser lembrada em um epitáfio por ser digna

dessa lembrança, assim como ensinou sua avó Nazira.

Para Jeanne e Simon, quem é essa mãe que está sendo desenhada após o enterro? Que

histórias ela viveu? Quais segredos ela guardou que fazem-na acreditar na punição de ser esquecida

pelo mundo?

Aos poucos, os pequenos fragmentos da identidade de Nawal Marwan são desvendados

pelos filhos e pelos leitores/plateia: Nawal viveu uma história de amor, engravidou, teve seu filho

levado embora e prometeu reencontrá-lo. Ela quebrou o ciclo de analfabetismo da comunidade,

voltou para cumprir uma promessa a sua avó, e, meio à procura que motivava sua vida, se envolveu

diretamente com a guerra entre milicianos e refugiados, tornando-se símbolo da resistência.

Conhecer a história da mãe, faz com que Simon e Jeanne conheçam a própria história. Eles passam

a testemunhar o irrepresentável, o silêncio incompreendido da mãe.

Presa pelo assassinato do chefe dos milicianos Chad, Nawal era submetida às mais variadas

formas de violação do sujeito: estupro, tortura, humilhação. O seu carrasco era Abu Tarek, homem

perverso do qual ficou grávida. Na cela nº 7, ela pariu duas crianças, que foram levadas pelo

carcereiro para serem jogadas em um rio, como acontecia com tantas outras crianças que nasciam

na prisão. Eram Jannaane e Sarwanne, que foram criados por um camponês que as encontrou ainda

vivas.

Nawal ficou conhecida como “a mulher que canta”, pois rompia o silenciador tormento da

tortura com as canções que aprendeu com sua amiga Sawda. Por isso Abu não a matou. Gostava de

sua voz.

A violência extrema é irrepresentável, mesmo que aconteça. Se, eticamente, a violência

extrema não deve ser retomada, em “Incêndios” vemos a violação dessa noção de

representabilidade. Somos violentados pela forma esteticamente possível de tornar visível o incesto,

o assassinato, o estupro etc. Abu Tarek sintetiza o horror da guerra civil, a banalização extrema da

vida e da morte, a descrença no homem abandonado em seu próprio destino, a violação do sujeito

pelo inevitável ódio que permeia uma guerrilha.

[...] Os frutos da mulher que canta nasceram do estupro e do horror, eles saberão acabar com os

gritos perdidos das crianças jogadas no rio. (p. 102)

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O jogo cênico ajuda a redesenhar a identidade de Jeanne, agora Jannaane, e de Simon,

Sarwane, ao passo que reconstrói o julgamento de Abu Tarek a partir da leitura do caderno

vermelho, deixado como herança para Simon quando da procura pelo irmão perdido. No caderno

tinha registrado o depoimento de acusação de Nawal:

NAWAL [...] Meu depoimento, eu o farei olhando para o meu carrasco. Abu Tarek. Pronuncio o seu nome

pela última vez na minha vida. [...] Através de mim, são fantasmas que lhe falam. [...] Meu nome

não lhe dirá nada, meu número de puta também não. Talvez, mas tem uma coisa que saberá

quebrar a barreira de seu esquecimento. A mulher que canta. Está lembrado agora? O senhor sabe

como sua raiva agia sobre mim, me suspendendo pelos pés, me dando choques com água

misturada à descarga elétrica, enfiando pregos sob minhas unhas, apontando para mim a pistola

descarregada. O tiro da pistola, a morte por um triz e a urina sobre o meu corpo, a sua, na minha

boca, no meu sexo, e seu sexo no meu sexo, uma vez, duas vezes, três vezes, e tantas quantas

vezes que o tempo se rompeu. Meu ventre que incha do senhor, sua tortura infecta no meu ventre e

sozinha, o senhor quis que eu ficasse sozinha, sozinha para parir. Duas crianças, gêmeos. O senhor

me obrigou a não amar as crianças, a cria-las na dor e no silêncio.

Abu Tarek, apesar de ser colocado no papel do carrasco, também tem uma identidade

marcada pela difusão e pelo deslocamento. Ele é o resultado de um destino inevitável, assim como

acontece com Sawda que passa a contemplar a morte com indiferença, diante de tantos exemplos de

atrocidades que é submetida.

O carrasco do outro, capaz de sujeitar os prisioneiros à violação da própria subjetividade por

meio da tortura, é a consequência da própria identidade violentada pelo destino que tivera. Abu

antes era Nihad, menino roubado do orfanato, para onde Elhame levara o filho perdido de Nawal, e

criado pelos milicianos. Mesmo em busca da mãe, Nihad acaba desistindo de sua procura para se

dedicar à guerrilha, se tornando um dos mais temidos atiradores do grupo e, posteriormente, sendo

encaminhado para a prisão de Kfar Rayat como carrasco, assumindo o novo nome.

Abu é disciplinado e temido, um dos mais sanguinários carrascos e, talvez, o matador mais

frio de muitos. Na narrativa, segue a descrição de algumas situações em que Abu Tarek trata a

morte com tamanho desdém, colocando-a como recurso para o exercício da fotografia, por exemplo.

Ele é o resultado do inevitável caminho a ser percorrido desde a malfadada separação da mãe.

Segundo Foucault (1987, p. 164), o sujeito assujeitado à disciplina serve a uma “mecânica

do poder” e é mais obediente quanto é mais útil. “Forma-se então uma política das coerções que

são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de

seus comportamentos”, que, consequentemente, vão incidir no deslocamento da identidade cada vez

mais fragmentada.

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Diante da verdade apresentada aos gêmeos, Jeanne já silenciada presencia o silêncio de

Simon, que fica inerte perante a nunca imaginada realidade.

Ele ainda não disse uma palavra. Ele ficou com Chamseddine, e quando saiu, Jeanne, seu irmão

estava com o olhar da sua mãe. Ele não disse nada o dia inteiro.

Nem no dia seguinte, nem dois dias depois. Ficou no hotel. Eu sabia que você estava em Kfar

Rayat. Não queria arrancá-la a sua solidão, mas Simon se calou, Jeanne, e estou com medo. Talvez

a gente tenha ido longe demais para saber a verdade. (p. 120)

“Incêndios” é o drama da impotência diante da aleatoriedade, do paradoxal silenciamento do

cantar, da contradição exercida pelo destino marcado pela miséria da guerra e da ignorância.

Aparece o silêncio como violação do sujeito, de sua identidade, ao mesmo tempo em que também

assume o papel de refúgio e de consolo. “A infância é uma faca enfiada no pescoço” (p. 26) e faz

com que as histórias sejam contadas por alguém. Nunca é uma lembrança isenta de interferências,

do discurso do outro. A vida que gira ao redor da faca é o que deve servir de consolo para ninar

cada imagem da história que está em migalhas, afinal de contas, “para além do silêncio, tem a

felicidade de estar junto. Não há nada mais lindo do que estar juntos” (p. 129). E, assim, o que antes

é uma história contada pelo ódio e pelo esfacelamento das relações familiares, se torna a narrativa

da verdade que tem sua origem no amor.

Referências

BENJAMIN, Walter. Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht. In: Magia e técnica, arte e

política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 78 – 90.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 12ª edição. Rio de Janeiro:

Lamparina, 2015.

MOUAWAD, Wadji. Incêndios. Tradução Angela Leite Lopes. 1ª edição. Rio de Janeiro: Cobogó,

2013.

OLIVEIRA, Luiz Alberto. Um corpo estranho: civilização e pós-humanismo. In: Civilização e

barbárie. São Paulo: Companhia das letras, 2004, p. 301 – 318.

VIDAL, Paloma. Configurações do comum na narrativa latino-americana contemporânea. In:

Escritas da violência. Rio de Janeiro: Letras, 2012, p. 86 – 93.

WAIBLINGER, Angela. A grande mãe e a criança divina: o milagre da vida no berço e na alma.

São Paulo: Cultrix, 1986.

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WARNER, Marina. Da fera à loira: sobre contos de fadas e seus narradores. São Paulo:

Companhia das Letras, 1999.

The silencing violence of the flames

Abstract: Nawal Marwan silences for five years. Her children, Jeanne and Simon, try to understand

the dark silence of their mother only after her death, after having access to an enigmatic will. Thus,

the fragments of the identity of each character are drawn in a new storyline, in a new story that

brings out the unrepresentative: the silence. In “Incendies” (2003), of the Lebanese author Wajdi

Mouawad, we are placed in front of the social, symbolic, stylistic and personal violence to which

the characters are subjected, in a open dramaturgy that brings the violation of the subject as the

main consequence of the civil war. Rape, incest, breaking of the archetypal figure related to the

feminine, torture, pain, illiteracy - the unrepresentative violates our comfortable reading. We are

violated by the narrative which shows various forms of violating yourself and violating the other. In

the light of the studies of Foucault (1987), Vidal (2012), Benjamin (1994), Hall (2015) and

Waiblinger (1986), we proposed to reconstruct Nawal’s story, consumed by the fire of the events

which intersect her life so that, from then on, we can understand the silence as the discourse of

women, who like her, silence in response to the (un) preventable fate.

Keywords: Violence, Silence, Silencing, Identity, Female