a vida na praça roosevelt - dea loher

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Dea Loher

A VIDA NA PRAA ROOSEVELT

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Personagens: Sr. Mirador, um policial Sra. Mirador, sua mulher, costureira Vito, dono de fbrica Concha, sua secretria Aurora, cantora, velha, mas ainda com tima aparncia, travesti Bingo, cantadora de nmeros de um salo de bingo Raimundo, vulgo Mundo, desempregado (papel quase mudo) E dois antigos colegas de trabalho de Mundo Homem de terno, mala e celular A Maria dupla Bibi Casal na janela Tambm duas testemunhas caladas: Mulher dentada com espelho Homem com elefantase Suzana Mulher com ossos A pea se passa em So Paulo. Observaes: Aurora, Bibi e Suzana so Transexuais. No fizeram cirurgia para mudana de sexo. O tema musical de Aurora : Manh to bonita manh ... (Manh de Carnaval, cf. Virgnia Rodrigues: Sol Negro).

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01. LARANJAS I Sr. Mirador na cama de hospital. em coma, respirando artificialmente. Sra. MIRADOR Eu voltei. Em voz baixa: Est ouvindo Pausa. Para voc. Estou de volta. Pausa Estou de volta Silncio Voc chupou laranjas demais. Pausa Dizem que voc chupou laranjas demais. Dizem que voc pode ouvir Pausa. Eu pensei que a culpa fosse tua e disse que a culpa tua. Tira uma laranja da bolsa, descasca-a com as mos. Se voc tivesse outra profisso se tivesse tido outra postura em relao profisso ele ainda estaria vivo. Se voc fosse outro. se voc tivesse sido outro. Tira uma laranja aps a outra da bolsa e descasca-as com as mos Ele adorava chupar laranjas. Nada alm de laranjas a vida toda. Parte a fruta com as mos. Dizem que voc est morrendo. Dizem que voc consegue me ouvir. Mas voc tambm me entende. Pensei que era uma boa ocasio, para voltar at que a morte nos separe

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Pausa. As laranjas derreteram as suas mucosas a acidez varou as paredes do estmago perfurou seu intestino. Dizem que a sua laringe, faringe e o cu da boca esto corrodos. Mostra a lngua. Deixa ver seus lbios Ri. Descasca laranjas, rasga a fruta com as mos Dizem que a acidez no pra de corroer que o sangue vai inundar a sua barriga dizem, que voc sente dor quando respira dizem que voc vai morrer de fome, mas antes de morrer de fome vai morrer de sede. Pausa. assim Pausa. assim. Voc queria saber como . Uma morte lenta, voc queria morrer como ele morreu. Pausa fedendo a laranja em pleno vero. Mandei embrulhar dzia por dzia s as boas e as docinhas. Vou trazer uma por uma aqui para que o cheiro faa voc lembrar. Pausa. Voc vai ter que se lembrar..

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02. SR. MIRADOR Sou apenas um policial. Meu posto ficava na Praa Roosevelt. A Praa Roosevelt um lugar feio e torto. Um lugar onde tudo parece estar fora do lugar, at as rvores, no posso dizer que a amo. No meio da praa tem uma igreja de pedra e passa uma avenida de quatro pistas na porta de entrada. O nosso posto fica esquerda da igreja, uma construo de concreto e direita de um estacionamento subterrneo. Deixaram os pltanos em volta da igreja. Ali moram os traficantes. Eles moram nas rvores, dormem ali e penduram suas roupas nos galhos e, s vezes, quando algum dos moradores passa embaixo das rvores eles cospem na cabea deles, cospem em voc ou mijam na tua cabea. Os esconderijos deles ficam debaixo da calada, nas galerias onde a canalizao se bifurca. Eles levantam as tampas do esgoto, na cara de todo mundo e descem os pacotes com a mercadoria, em lugares que podem vigiar do alto das rvores, mas ningum, nem criana, nem a vendedora de bombons , ningum, nem aqueles que moram nos nichos subterrneos, que se instalaram ali, num lar passageiro, ousaria roubar qualquer coisa deles. Nos prdios em volta da praa, ficam os bordis. Nos bordis assim: vamos supor que um prdio tenha 18 andares. Ento, voc vai at a entrada, digamos que l pelas nove ou dez da noite e paga, uns 50 reais. Voc pega o elevador at o 18 andar. A voc procura um quarto com uma mulher ou um homem, ou uma mulher que homem ou um homem que mulher, ou com os dois, em cada andar voc pode escolher uma coisa diferente ou uma pessoa diferente. E a voc vai trepando por todos os andares at chegar no trreo s 7 da manh. Pausa. Da ainda tem uns botecos e um monte de escritrios, um salo de bingo, uma costureira, ali do outro lado o ponto dos travestis e uma pequena fbrica de... produtos de metal. Ri. No fundo, a Praa Roosevelt to boa ou to ruim como qualquer outra praa nessa cidade. Ou talvez eu devesse dizer, como qualquer outra praa que eu conheo. Eu no conversava muito com os meus companheiros. Eles faziam seus negcios sem mim, isso no foi inteligente da minha parte. O que eu podia fazer? Eu sou assim. Eu tinha sorte. Eles me deixavam em paz. Muitas vezes eu por ali sozinho noite, pelas ruas, nenhum dos meus companheiros fazia isso, proibido at. At isso eles deixavam, talvez eles quisessem que eu tivesse um outro fim Um dia entrei numa livraria para descobrir por que a praa tinha o nome de Roosevelt. Que significa isso, perguntei a uma senhora atrs do balco. Uma pergunta simples: meu trabalho no tinha sentido. Eu sabia. Talvez fosse diferente se eu conseguisse encontrar relao nas coisas. Roosevelt fez o que, exatamente? E por que essa praa de merda tem esse nome? O que esse Franklin tem a ver com a gente? Onde est a nossa histria e onde eu apareo. No pode ser tudo pura arbitrariedade. Tem de haver uma razo para eu estar aqui. Pausa. A minha desgraa comeou numa noite em que vi algum debaixo das 5

rvores e quis acreditar que fosse coincidncia. Eu me aproximei devagar e a coincidncia saiu correndo. Saiu correndo e sumiu. Mas eu tinha reconhecido ele. Por que eu estava aqui. Por que eu tinha de ver meu filho aqui. Pausa. A mulher do balco disse que antes precisaria pesquisar um pouco. Eu nunca fiquei sabendo o resultado.

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03. Dois antigos colegas de trabalho de Mundo. Qu qui c ouviu fala do Mundo. Mundo. Pausa. Num sei de quem c t falando Raimundo. Mundo. Aquele que tava com a gente na fbrica. Torneiro tamm. No final tava fazendo os buraco nus tambor. A foi pro oio da rua. No. Que. Lembro. Mas no, o que que eu tinha que t ouvido Ta l na Praa Roosevelt. Como Como o que. Como que d pra ficar ali. No cho, numa cadeira, numa pedra, sei l. Pausa. Num t entendendo. Do lado dum poste, onde meio verde e claro, no gramadinho, na beira da Praa Roosevelt, perto da rua. E da Da que ele t sentado ali agora Como assim, t l agora, pra sempre ou qu Parece Pausa. C conta cada histria besta C num conhece ele. Mai no mesmo, c num conhece o Mundo de jeito manera Mai claro que eu conheo, eu conheo ele sim, t trabaiei Conhece nada, eu qui conheo ele, ento num fica dizendo que eu fico contando histria besta Pausa. Pra de dizer que eu to mentindo. Eu num falei que c ta mentindo. Pausa. Ce desconfiado. Parece. Pausa. Ele perdeu a casa porque num conseguia mais pag o aluguel. Sem teto, orgulhoso demais pra pedir esmola, fica a parado do lado do poste. Silncio. D um tempo. verdade. verdade. Pausa. D um tempo. Podia acontecer com a gente tambm. Muito antes do que c imagina. D um tempo.m ele Ento, por isso que t te falando. Pra, seno ce vai levar umas porrada. Ta pensando que vai estragar a minha noite ou o qu, ta pensando que eu num cunsigo pensar sozinho, ou ce acha 7

o que, que eu fico pensando no que o dia todo, quando fico aqui sentado bebendo minha cerva e saio por a catando as lata de alumnio. Ce pensa nos troco que vai junt quando vend as lata, bundo, nisso que c pensa. Cala essa boca j, seu fio duma gua. Silncio. Tava pensando num troo. Eu quiria fal coc porque me passou uns troo na cabea. Ou caga ou desocupa a moita. Tava pensando se por acaso ele num tinha nenhum amigo Num parece. Acho que comigo num ia acontecer um troo desse porque eu ia poder me encostar no barraco dum amigo por uns tempo e tal. Claro, ele ia trabai proc, ganh dinhero, enche teu bucho e ainda te emprest a mui dele, ia dividir tudo coc, um bundo solidrio. Tava pensando Caraio, porque num pergunta pro Mundo onde ele passou os ultimo trs mis. Vai ver que num abrigo e chega uma hora que c que mandar num genta mais. Pausa. Pois , bundo, claro que eu ia ajudar oc, mas no pra sempre, tudo tem limite, o dinheiro em primeiro lugar. E quando nois dois num tiver mais servio, j pensou nisso, quem que vai segur a barra de quem. Pausa. To dizendo que o Mundo num qu sab de mais nada. ia, quem fala assim por que num tem outro jeito. Conhece a raposa e as uva Fica l o dia todo, s ali e quando c pergunta, ele diz O qu. Num diz mais nada. Parou de fal. Pausa. E o cara vive do qu, ou j vir santo que s precisa de gua, nada de po, nada pra mastig, j ta flutuando qui nem indiano, j pass pro lado de l ou qu. Num gento quando c fica tirando sarro Pausa. O povo por a d comida pra ele, vem do mercado, sacola na mo, deixam uma banana l, um pacote de leite, meia salchicha Pausa. S isso. S isso. Pausa. Uns tempo atrs, deu na cabea dele de escrev. Dia e noite. Dia e noite escrevendo em papel, papelo, depois ele dava de presente pra quem aparecia.. Uns versinho ou qu. Umas prece Umas prece Umas prece Pausa. 8

D um tempo. Prece, versinho, essas merda, que bosta, prece, o que o Mundo ia pedir, pra que. Diz que o povo vai l e conta umas histria pra ele conta tudo. A vida inteira. Ele fica escutando. E a tinha essas prece. Pausa. Por um tempo. Agora num sei de mais nada. Um biscoito da sorte vivo Num gento quando ce fica tirando sarro. Ento, vamu passar l agora, que a c vai ver Num credito. Vamos l agora que c vai ver, seu bundo, a quem sabe c pega no tranco. Vo at ele. Chove. Algum est sentado ali debaixo de um saco de lixo preto, imvel. Parece uma esttua embrulhada. Os dois esperam um tempo, calados. Nada acontece, a chuva cai.

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04. Escritrio. CONCHA Fico aqui num escritrio grande. Doze mesas, vinte e quatro cadeiras, parece uma sala de aula. As mesas esto vazias, as cadeiras abandonadas, como se fosse frias. As grandes frias de demisso. Meu lugar fica no meio da sala, tento preencher o mximo de espao possvel, tento parecer mais, como se eu fosse muito mais gente, muito mais. A porta do corredor que d no escritrio fica prxima minha mesa. Tambm por isso fico no meio da sala. Se o diretor da fbrica entra, ele fica obrigatoriamente na minha frente, a sua secretria chefe. Me reporto a ele. Agora sou passado e futuro numa s. Em mim ele v os funcionrios do escritrio que um dia trabalharam aqui, que ele demitiu. E em mim ele deve ver o potencial que apesar de tudo ainda est sua frente. Relaxa, ri, balana a cabea. Pausa. Pega um espelhinho e se olha nele. CONCHA No d para perceber pela minha cara. No d para perceber nada. Minha aparncia permite pensar num futuro, com certeza. Entra Vito. VITO Pode ir mais cedo para casa hoje, Concha. E o senhor.

CONCHA VITO

Tambm vou para casa mais cedo

Silncio. CONCHA VITO No estamos indo mal.

No sei como a senhora vai. No entendo. O negcio vai to bem.

CONCHA VITO

Muito bem. Bem demais. Ento por que vive demitindo cada vez mais pessoas.

CONCHA VITO

Toda manh, a senhora me pergunta como estou indo. Mas no pergunta por mim, na verdade quer saber como vai a empresa. S isso interessa senhora.

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CONCHA VITO

Foi para isso que me contratou.

No fui eu quem contratou a senhora, foi o meu pai que a contratou; eu herdei a senhora como herdei as mesas e as cadeiras e as luminrias e as cortinas daqui e as mquinas l embaixo do galpo e at o carro dele e o motorista dele. E tudo horrvel. Mveis de escritrio horrveis, velhos e furados pelas traas. Graas a Deus, o carro pifou. Graas a Deus, o motorista teve um derrame, pelo menos no preciso mais olhar para ele. E desculpe-me se eu digo isso, Concha, mas a senhora est de novo com um fedor insuportvel de coco de gato. Eu posso entender sim que difcil ficar sozinha, mas por que esses seus bichos fedem tanto. por causa da - deve ser por causa da comida.

CONCHA VITO

Tem cheiro de lixo.

Silncio. CONCHA VITO O que vai ser das pessoas, sem trabalho.

Vo acabar morrendo. Mais cedo ou mais tarde. Ta uma coisa em que a senhora ainda no tinha pensado, Concha. Porque se tivesse pensado uma nica vez e fosse uma funcionria competente, no s uma herana manchada do meu pai, a senhora j teria me avisado h muito tempo. Ou no. A gente morre. Mais cedo ou mais tarde. Isso uma grande verdade.

CONCHA devagar

VITO Vou explicar uma coisa para a senhora, Concha, uma coisa que talvez a senhora no entenda, eu mesmo s entendi recentemente, mas eu quero muito que a senhora tambm entenda. CONCHA Tem uma coisa que eu tambm quero deixar bem clara para o meu chefe. No sou deficitria. No sou uma mulher solitria que foi abandonada pelo marido e agora tem mania de gato e passa a noite na frente da televiso cheia de almofadas de reumatismo vivas enfiadas nas costas. Fui eu que mandei ele pro inferno. E eu tenho trs filhos adultos. Que no precisam mais de mim. Isso eles tem que agradecer a mim mesma. Pronto. Agora vamos comparar. O senhor tem o qu, alm da gastrite. Para Vito Eu posso tentar. VITO Eu tive de demitir 17 trabalhadores no ltimo meio ano. E onze funcionrios do escritrio.

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CONCHA Por que teve. Quer economizar em qu. Os negcios vo bem. Os demitidos odeiam o senhor.. VITO E vou demitir mais ainda. Vou demitir a senhora tambm. Alis, por ltimo. Porque preciso da senhora at o fim. Mas no vai demorar mais muito tempo. A sero todos, todos os 48 funcionrios e esse ponto ser fechado. isso. Mesmo se nenhum de vocs achar trabalho, o que eu duvido, no vo morrer de fome. No vo morrer de fome. Mas mesmo nesse caso, mesmo nesse caso, vamos ter 48 esfomeados mais os esfomeados das outras filiais que eu tambm vou fechar. E agora pergunto senhora, Concha, agora pergunto sua conscincia, quantas pessoas morreram no ano passado. Por PAF.

CONCHA Por PAF?1 VITO Perfurao por arma de fogo. Como assim, onde, no mundo inteiro ou o que.

CONCHA VITO

S aqui, s nessa cidade. Pffff, alguns milhares.

CONCHA VITO

Cinco mil quinhentos e trinta e quatro. Pausa. E agora eu pergunto a senhora o que so quarenta e oito esfomeados hipotticos diante 5.534 assassinados reais. mas o senhor est comparando alhos com bugalhos?

CONCHA VITO No

CONCHA Bobagem? VITO No. Causa e efeito. Pausa. T caindo a ficha? Claro, - t claro que sim. Entendi.

CONCHA VITO

Fico feliz. Pausa. Fico muito feliz.

Silncio. VITO O rapaz apareceu de novo?

CONCHA Que rapaz?

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urspr. PAF: perfuraao por arma de fogo oder projetil de arma de fogo

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VITO

Aquele que esteve aqui atrs de trabalho. Faz umas semanas. Aquele que a senhora me disse que ficou esperando duas horas por mim.

CONCHA Nunca mais eu vi. Sabe l o que aconteceu com ele. VITO Eu gostaria de ter falado com ele, explicado por que no vou contratar mais ningum. No tenho certeza se ele ia ter entendido isso.

CONCHA VITO

Se ele voltar, se ele for um daqueles persistentes, me avise imediatamente. Sai.

CONCHA Rapaz bonito, de uns 19 ou 20. Foi bom ele ter ficado aqui umas duas horas. Durante duas horas eu no fiquei sozinha. O pai dele policial ali na praa. E ele adora chupar laranja. Os dedos dele estavam amarelos, no de cigarro, das laranjas. Ele carregava esse cheiro, de fruta recm-cortada, fruta ctrica, a roupa sobrava nele. Gostei. Silncio. Ele disse uma frase estranha, disse com esse trabalho eu ia poder ganhar mais respeito. Ia salvar a minha vida. Pega o espelho e se olha nele. CONCHA No posso contar nada para ele. Pausa. No posso contar para ele de jeito nenhum. Meu ex-marido est com uma nova mulher. Jovem. Tambm no posso contar para ele. As crianas. Roberto est na Flrida, falta pouco para as provas, Ronaldo em Florianpolis com o beb recmnascido, Liliana est estudando enfermagem em Belm. Talvez pudesse contar para ela. Pausa. No, no d.

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5. Mundo continua sentado debaixo do saco de lixo. Aurora se aproxima, pra perto dele, espera. Cantarola. Manh to bonita manh ... AURORA Esse lugar no bom para voc. Pausa perigoso Pode acreditar em mim Mostra as rvores Eu fico observando os caras. Eles ainda no se meteram com voc mas vai chegar o dia em que eles vo perceber que voc sentado a, intil, sabe bem, bem intil, meu bem e a vo te apagar. Eu no posso te oferecer um lugar para dormir, meu barraco t cheio. Eu divido com a Bibi, voc conhece ela, s vezes passa por aqui de madrugada, como eu, mas ela vestida de mendiga tem clientes que gostam dela assim. E a ela leva os caras l pr casa apesar de eu j ter proibido mais de cem vezes Ri. Pausa. Por outro lado eu no quero visitar a Concha por causa da minha alergia a gatos. Cada vez tem mais na casa dela. As condies de multiplicao ali devem ser fantsticas. Na casa da Concha os gatos se multiplicam feito baratas na casa dos outros. Ento temos que procurar um lugar neutro. Ri Um lugar de ningum Ri Vigiada por um mudo Uma testemunha muda Voc ainda escreve preces Pausa Oh, Raimundo, Mundo, po, sai da sai desse teu saco. Como que voc consegue respirar No d nem para fumar desse jeito

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Pausa. Sai fumaa de um buraquinho no saco. Pausa. Eu sei, voc no tem mais trabalho mas caracaracaravoc, eu tambm estou frita Surge um cigarro pelo buraco. Deus te pague Aparece Concha Onde foi que voc se meteu. CONCHA AURORA Vem comigo at o cemitrio. Ah no, de novo no. .

CONCHA Eu tive aquela conversa desagradvel com o meu chefe. Um chefe herdado do paidele , mas eu tambm sou herana do pai, e ele me trata como se eu fosse um tapete comido pelas traas ou uma porcelana chinesa velha, que no final daquelas falsas, que no tm valor. Pausa. E agora chega. Vou entrar no nibus e ir at o cemitrio So Lus. AURORA para Mundo Ela sempre faz isso. Quando est mal, vai pro cemitrio, senta na grama e fica olhando essa solido. Esse deserto de covas. No d pra chamar de outra coisa, um cemitrio de pobres. E o sobrinho dela est enterrado ali. E o meu Paulinho, que Deus o tenha. CONCHA O cemitrio So Lus fica bem longe l na zona sul, leva mais de duas horas at eu chegar l, tenho que pegar trs condues e daqui a uma hora j vai escurecer. Temos que sair j. AURORA E a gente se conheceu l Eu no quero ir. Vamos tomar um caf.

CONCHA para Mundo Ele se chamava Rodrigo. s vezes eu levo uma vela para ele e uma flores, para ele saber que eu no me esqueci dele. AURORA Ela sempre faz isso. Quando fica mal, vai at o cemitrio. Eu no digo nada. CONCHA para Mundo Rodrigo era ajudante de pintor, tinha 17 anos e estava no alto de uma escada para pintar a parede, quando um cara virou a esquina e derrubou ele da escada. Ele tinha a misso de matar um menino que queria sair fora de um bando de criminosos e esse foi o fim do meu sobrinho. Morte por engano. O bom Deus deve ter dado risada. AURORA O cemitrio parece uma lavoura. , uma lavoura de Deus. No tem rvores, nem flores, nem bancos. A maior parte dos tmulos est abandonada, se afundam na terra cobertos pelo mato e capim, aqui e ali sobra uma cruz torta. 15

CONCHA Eu fico imaginando se os mortos sassem das covas, eu ia poder ouvir todas as vozes deles. Cada uma ia me contar um acontecimento, o mais importante acontecimento da sua vida e nenhuma nica biografia se perderia. AURORA Eu acho que ela gosta disso. Por que ser. Voc parece to normal, a mrbida sou eu. CONCHA Fico imaginando as vozes desses rostos: naquele muro meio alto esquerda da entrada, centenas de imagens ovais com o retrato dos mortos. Sem nomes. S os rostos. E ali eu me encontrei com ela. Aurora. No dia 25.11 do ano passado. Aponta para Aurora. Usava um modelito brega e parecia uma dama. AURORA E eu disse para esse barrilzinho, para essa codorna podre, parada ali no meio do barro com seus sapatinhos de secretria que logo pus reparo CONCHA Fique mais um pouco aqui, ela disse. Estou vendo os retratos esmaltados. Um por um. AURORA Conhece algum deles. Ela balana a cabea.

CONCHA Caso encontre um rosto cado, perdido nesse deserto, ento entregueo administrao do cemitrio por favor. Eles vo colar no muro, para que ao menos por um tempo fique em ordem. Chegue mais perto.. AURORA E eu olhando os retratos. Um por um.

CONCHA. Conhece algum deles. Ela balana a cabea. Caso reconhea um rosto e saiba a quem pertence, um nome, uma histria, uma data de morte, ento diga porque a a gente pode juntar o rosto com os familiares. Chamase jogo da memria, mas quem vai ser o ganhador. AURORA No muro no tm muitos lugares vazios, de um rosto que tenha sido reconhecido e tirado de l. De volta famlia. CONCHA AURORA CONCHA Pausa. CONCHA Aurora no tem coragem de ir sozinha ao cemitrio. Ela tinha um namorado, deve ter sido faz uma eternidade, que um dia foi encontrado 16 No. Silncio. Muito bonito, seu vestido.. Lindos sapatos nos seus ps. Assim a gente foi ficando amiga.

morto na cama, -- o vrus -- , e os ossos dele esto guardados num nicho. A Aurora diz que aqui assaltam mulheres sozinhas . Ento ela vem uma vez por ano de nibus e deixa as flores na entrada. AURORA Voc tem de encarar os fatos, a Concha disse para mim, eles no vo assaltar voc por ser mulher, mas por no ser. Ento no fica se borrando nas calas. E a vamos juntas procurar o tmulo do coitado do meu Paulinho, eu j me esqueci onde ele est enterrado. CONCHA Assim a gente foi ficando amiga. AURORA Concha me disse, Aurora, sinceramente, os teus cabelos esto horrorosos, mas eu gosto das tuas unhas. E eu disse, Concha, sua concha do brejo, voc devia ir ao dentista. Voc devia ir ao dentista antes de abrir a boca desse jeito. Pausa. E assim vamos ficando amigas. Pouco a pouco. CONCHA , bem devagar. Pausa. Quando contei para ela do meu chefe e dos negcios dele e do Paraguai, a testa dela ficou sombria. Eu digo a ela que no pior que ficar oferecendo a bunda siliconada nessas boates fedidas, como voc faz. AURORA Eu digo que sou uma artista e que voc no entende nada disso; mas um dia vai te acender uma luz, o amanhecer de Crdoba, o amanhecer, como fica feliz pelo dia, como fica feliz pela vida, como luta por cada dia, e pela vida que havia sido negada a ela; mas esse corao, essa alma, ainda assim tenta ser ela mesma... CONCHA Meu Deus, ela to pattica .

AURORA Mas ela me escuta, Concha me escuta. Eu animo ela. No verdade Concha. CONCHA A histria do Panam. Conta a histria do Panam. No, conta como voc roubou o amante do delegado em Santa Cruz e foi expulsa da cidade. No conta conta do quebra pau do outro dia. AURORA Nunca me meti em quebra pau, nunca, qual . Mas voc no me escuta, voc no me escuta. CONCHA Ento conta de quando voc era menino. AURORA Vou precisar de um trago ento. Mundo enfia um cigarro para fora do buraco. Aurora fuma. CONCHA Mundo, escuta. Para a crnica. Ele ainda est escrevendo a crnica.

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AURORA O menino de 12 anos, que era eu, saiu correndo do quarto de hotel onde o homem, que consertava carros na garagem do hotel tinha acabado de meter o pau no cu dele; o menino de 12 anos, que era eu, desceu correndo as escadas, passou pelo saguo, desceu a rua para casa, escondeu-se no seu quarto, limpou o sangue da bunda com as toalhas brancas que a sua av tinha bordado e que a me encontrou no dia seguinte debaixo da cama, mal lavadas, molhadas. Enrique Enrique Enrique, meu irmo se chamava assim, Enrique o que voc aprontou com o meu menino Enrique j tinha estado preso por causa de uma briga. Enrique Enrique Enrique, Enrique deu de ombros mas por acaso o homem, que estuprou o menino de doze anos que era eu, tambm se chamava Enrique e os gritos da minha me ecoaram pela rua, to alto que eu pensei que o outro Enrique ia ouvir e pensar que eu tivesse dedurado ele e a ele nunca mais ia pagar 100 cruzeiros pela minha bunda, porque ele deu, ele deu 100 cruzeiros pela minha bunda, e eu, eu pensei que agora que as minhas pregas j tinham se arrebentado mesmo, agora que eu conheo a dor, eu vou morder os dentes e cada dia ele vai ter de dar um pouco mais, esse Enrique, pelo meu silncio e pelo prazer dele, e quem sabe o meu tambm; mas enquanto eu pensava meu tio apareceu e disse, o menino estava no hotel, estava num quarto com o mecnico, e trouxeram o Enrique dos carros; e ele vestia uma cala branca e uma camisa branca e disse com seus dentes brancos, o menino me seduziu, passou dias me rodeando e rodeando o carro e ele queria 150 cruzeiros, para dormir comigo, j pensou, 150 cruzeiros, isso quase o que a minha irm ganha no correio, , eu levei ele pro meu quarto, arrastei ele pelo brao, verdade, para castigar ele e antes que eu percebesse ele me tirou 150 cruzeiros da gaveta e saiu correndo e agora eu estou querendo o meu dinheiro de volta, e alm disso, acaso eu tenho cara de bicha, isso tambm vai custar extra pela difamao. O menino de 12 anos, que era eu, foi trancado no seu quarto. Pausa. Eu vesti as roupas da minha irm e fiquei me exibindo pela janela para as pessoas que passavam na rua. Minha me dizia voc vai acabar como a Marlene Fernandes que canta no puteiro com uma banda, o meu pai me pegou pelo brao e disse lute, lute meu filho pelo que tem dentro de voc. Seja l o que for. Depois disso a minha me nunca mais falou comigo e eu falsifiquei a minha identidade; com 15 anos, eu me emancipei e deixei a cidade com um grupo de dana e ainda levei comigo as castanholas mais preciosas da minha me, cor-de-rosa, presente do meu pai de Castilha, que eu trago comigo. Longa pausa. CONCHA AURORA CONCHA AURORA E assim a gente foi ficando amiga. Pausa. Agora j estou melhor. A histria animou voc.. A histria me animou.. Isso significa que no vamos ao cemitrio. 18

CONCHA Vamos at o bar. Espera. Pega uma mquina fotogrfica. Junta todo mundo a. Uma foto a cada dia. Bate a foto. As duas saem. Pausa. Concha volta, com um cigarro aceso. Enfia pelo burcao do saco. Mundo fuma. CONCHA Eu no posso contar para ela. Eu no posso contar para ela. Ela minha amiga e eu no posso contar para ela. Silncio. D de ombros. Eu no posso contar para ela. Silncio. Ainda por cima ela tem alergia a gato. s vezes ela tosse por causa de um pelinho que fica na minha roupa, por acaso. No d para escovar com mais cuidado ainda. Aurora odeia gatos. Ento o que eu posso fazer. Pausa. Eu no posso contar para ela. Sai..

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06. Mundo. Homem de terno, mala e celular. HOMEM DE TERNO, MALA E CELULAR Meu nome Joo. , Joo. Esta a minha mala. J no mais nova. Mas uma mala. Dentro dela, vou mostrar pra vocs: um terno, um celular . O resto das minhas coisas eu estou vestindo: as calas, a camiseta e as sandlias,. E espera a dinheiro, 15 reais e 33 centavos. Tem um problema: estou procurando emprego e o meu pai vai ser enterrado. Amanh. A quinhentos quilmetros daqui. S chego l de nibus. A passagem custa uma fortuna, que eu no tenho. Pois . Tenho de vender o celular. Ou o terno. Ou a mala. Pausa. Deixei meu nmero em oito lugares, escritrios, fbricas. Procurar trabalho como malabarismo, sempre tem alguma coisa que fica no ar. Pausa. O celular no vai dar, de jeito nenhum. Ningum vai poder me ligar para avisar do emprego. A mala. A mala daria se eu no precisasse dela para guardar o terno. Como vou levar o terno limpo e sem estragar sem uma mala. Por outro lado, sem o terno eu tambm no ia precisar mais da mala. Ento posso vender o terno e a mala. Mas como vou arrumar um emprego sem terno, com essa trapo que estou usando. Sou funcionrio de escritrio. Imagina s num escritrio, como vai ser. . No tenho gravata, t, isso ainda d para passar. Tem que fechar o olho. No tenho camisa. A camiseta branca na verdade para usar por baixo, d pra ver pelo tecido, claro que d vergonha, mas de repente eu posso imaginar que sou um Marlon Brando, com esse corpo, ele sempre andava de camiseta, ou eu fecho o palet at o alto. Claro que ficava melhor se eu raspasse os pelos do peito. Mas com o qu. Com o qu. Melhor eu pegar um guardanapo de papel, que arrumo em qualquer boteco e enfio assim na frente, no decote, como antigamente como chamava, camisa de peito, sei l; os guardanapos tm uma estampa listrada, nem fica ruim no e tem a vantagem que, precisando, fcil de trocar. Uma camisa descartvel. E aqui, no bolso de fora do palet, os guardanapos tambm so muito teis. Eu j vi numa revista, mas eu acho, que agora no meu caso seria exagerado. Sapatos tambm faltam, s tenho esse chinelo de dedo, mas as pernas da cala so bem compridas, eu puxo elas para baixo, e para frente e na entrevista eu cruzo os ps debaixo da cadeira, atrs e a ningum vai ver. Pausa. Olha os ps de Mundo. Ele tem sapatos. Sapatos de verdade. O terno necessrio, sem ele a coisa no vai pra frente. Barbeiro no posso pagar, eu mesmo corto. Ou um colega me ajuda. Todos temos o mesmo corte de cabelo, reto na frente por cima da testa, cados dos lados num ngulo de 90 e atrs, na altura do queixo, da direita para a esquerda, quer dizer que o mais importante so as linhas retas, para no parecer desgrenhado. E quando no d para lavar s pentear para trs com um pente mido, pra ficar no jeito, mas se houver tempo eu pego um saquinho de acar o melhor logo pegar no bar junto com os guardanapos ento coloco um pacotinho de acar na mo e misturo com cuspe at formar uma massa lquida, bem fresquinha junto as palmas das mos e divido em duas partes a s espalhar uniformemente por todo o cabelo. Bem suave e 20

com delicadeza, por favor. Depois no vai me ficar parecendo um punk morto. Isso, junto com o terno, sempre pega bem. Abaixa-se e desamarra um dos cadaros dos sapatos de Mundo. No posso me dar ao luxo da moda. J tive um cinto com pinos de metal, alternado, um pino, um furo, o pino encaixava no furo. Couro preto, pra l de chique, combinava muito bem com o terno. O problema era que a cala era muito larga e comprida demais. Quando eu colocava o cinto eu tinha que virar a cala por cima e dobrar. A cala ficava parecendo uma saia de pregas, uma saia-cala pregada colorida. Fiquei com vergonha. Abaixa e desamarra o outro cadaro. A vendi o cinto e um compadre de uma oficina de costura me fez essas pences na cala, para que assentassem, vou mostrar, ficou assim, uma pence de cada lado e na frente e atrs de cada perna. Agora no fica escorregando toda hora. agora s estou esperando um telefonema, a podia comear a minha entrevista. Espera. Senta-se ao lado de Mundo. . Acho que vou vender a mala. Vou procurar uma sacola limpa e um jornal velho. Esfrego as folhas do jornal uma na outra para ficarem bem macias, como seda. E para tirar o grosso da tinta preta, se no fica todo manchado. Vou dobrar bem dobradinho, e embrulhar com jornal, talvez eu encontre papelo pra colocar no meio para dar estabilidade a s cuidar bem da sacola. Melhor ainda, eu sento em cima que a j fica passado.; Isso mesmo. Abre a mala. Por acaso voc no est precisando de uma mala. Algum precisa de uma mala. Troco mala por passagem. Troco mala por passagem. D um sopapo em Mundo que cai para trs, abaixa-se , tira os sapatos dele, joga-os dentro da mala e sai correndo com o furto.

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07. LARANJAS II Cena como em Laranjas I. SRA. MIRADOR No foi voc quem decidiu. Ningum te perguntou. Nem a mim Ser um policial Com um filho desses. Um honesto e outro com as mo sujas. Ele gostava tanto de laranja. Comia com a casca. No, mordia elas mordia elas com a casca. Pegava uma dzia inteira escovava as frutas debaixo da gua quente, uma depois da outra, mordia, arrancava um pedao com a casca e chupava o suco com dentes lngua e lbios, no final ainda com todo cuidado, com dentes lngua e lbios conseguia separar a pele branca da casca, para rasgar o mnimo possvel desprendia a pela branca da casca, passava um tempo mastigando bem. Era um prazer ficar vendo. Ver meu filho chupando laranja Me dava o maior prazer na vida. Meu filho chupador de laranja, devorador de laranja, apreciador de laranja era to autntico. Eu esquecia todo o resto ao redor dele quando eu via ele chupando laranja. Pausa O que ele mais gostava era da pelinha Branca da fruta. Pausa Ele cuspia os caroos no cho. e deixava as cascas carem. em toda parte. Onde fosse. Na cozinha, na sala, na banheira onde ele estivesse, simplesmente deixava as cascas carem, 22

simplesmente cuspia os caroos. A casa inteira cheirava a laranja, quando chegava em casa e jantava, porque o jantar dele era s laranja. Sempre comia laranja noite Sempre noite. Nunca de manh. Ou ao meio dia. Sempre noite. Depois, voc comeou a comer laranja. A qualquer hora do dia, da tarde, da noite. Sempre. A qualquer hora. Por isso que voc est deitado a morrendo. Voc no comeu mais nada alm das laranjas. Porque voc queria ser como o meu filho. Pausa Antes de sair de casa noite, Ele tambm comia laranja. Ele praticamente saa todas as noites. Toda noite comia suas laranjas antes de sair. Voc tambm no ficava em casa . noite. Cada vez mais o turno da noite. Cada vez mais. Eu no pregava o olho. Ficava esperando por ele e por voc tambm. Escorreguei no corredor nessas laranjas de merda cascas de laranja de merda nesse bagao nojento chupado. Escorregava na sujeira dele, toda hora. Eu deixava ali, queria que ele mesmo limpasse pelo menos uma vez pelo menos uma vez que ele mesmo limpasse, essa nojeira, queria colocar ele de joelhos que ele lambesse, essa sujeira de laranja de merda, o suco de dentro da fruta estragando, queria bater nele, pra que ele no ficasse cuspindo e deixando cair tudo no cho por no se importar com 23

quem morava com ele afinal algum vai limpar a minha sujeira desse mundo algum vai limpar a merda da minha bunda, s ficar um tempo sem eu limpar se eu passar um tempo fedendo por a ele arrastava os ps pelas laranjas quando voltava pra casa de madrugada. E voc acha que eu no cheiro Acha que eu no cheiro -Voc acha que eu s sinto o cheiro dessa tua pele de laranja Voc acha que eu no sei o que voc est fazendo A sola dos ps grudentas O lenol amarelo -Tinha cheiro doce, adocicado Pausa. Ele sempre tinha cheiro de laranja --

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08. SR MIRADOR Ele no voltou para a Praa, claro que no. Fazia os seus negcios em outro lugar e eu sabia que ele fazia em outro lugar. Eu podia sentir. Eu notava nos gestos dele, nas mos, que ele s vezes esfregava na costura da cala, as unhas que ele escovava debaixo da gua corrente, apressado, como se pudesse lavar o cheiro, as marcas, o conhecimento do seu negcio no crrego. Eu via pelo cabelo, que ele penteava molhado toda manh, eu via pelo cinto que ele ajeitava, os sapatos que usava, eu via pelo gorro que s tirava da testa quando pensava que no tinha ningum olhando. Eu reconhecia todos os momentos que eu tinha visto centenas de vezes quando escurecia, noite na praa Roosevelt, quando eles esto juntos, aparentemente ociosos, s vezes brigando feito gatos no cio, mas na verdade sempre atentos, quase eletrizados, antes de guardar a muamba debaixo do concreto da calada e antes de subir nas rvores para dormir. Meus companheiros recebiam a parte deles e tambm dormiam. Eu no recebia nada e no dormia nem de noite nem de dia. Talvez eu preferisse at que o meu filho fosse um cliente, no um dos que vendem, sim, eu queira que fosse comprador, a talvez ainda tivesse tido esperana. Eu sabia que ele estava procurando trabalho, um trabalho de verdade, com salrio fixo. Ele se candidatou na fbrica ali na praa e no arrumou emprego. Pausa. O que ia ser dele? s vezes ele ficava dias e noites desaparecido. Comecei a procurar por ele, de noite, sozinho.

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09. Noite. Concha se arrasta pela praa carregando uma caixa grande de papelo. Tem algo vivo dentro dela. Ela tenta deixar a caixa em vrios lugares. Fala com Mundo por precauo voc no viu nada, no viu nada, voc no tem nada com isso. Por fim deixa a caixa debaixo de uma rvore e vai embora. Volta depois de um tempo, novamente indecisa, pega a caixa e sai andando.

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10. Bar vazio, exceto por Vito e Bingo sentados em mesas separadas. Cada um com uma bebida frente. Vito olha ao redor com rigor. Silncio. Televiso transmite jogo de futebol. VITO No entendo nada de futebol. Nada de nada. Absoluta e radicalmente nada. Provavelmente eu sou o nico aqui que no entende nada de futebol. Precisando de ajuda, s o senhor dizer.

BINGO VITO

S preciso de um pouco de ar puro. S isso. Sair da rotina. Mudar de ambiente. Um outro ngulo. E a senhora est atrs de qu.

BINGO Eu detesto o ar puro. O sol que brilha. O campo cheio. As famlias levando suas crianas pr l. Uma barulheira. Pausa. E isso num dia de folga, isso eu no agento. VITO O senhor trabalha com o qu. BINGO VITO BINGO Silncio BINGO Pausa. VITO BINGO Pra quem. Pros outros. Gol. Isso vai lhe interessar menos ainda que o futebol. Experimente. Estou num momento de mudana. Preciso poupar a minha voz.

Silncio. Bingo fala palavras sem som. BINGO alto, devagar Um a zero. Vinte e trs e dezenove. Vito olha preocupado. Pausa. VITO Veja s, que estranho. Faz oito anos que tenho meu escritrio no prdio aqui do lado. Mas nunca tinha entrado aqui antes. Nem uma nica vez.

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BINGO VITO

Por qu.

. Por qu. Silncio. Sempre fiz tudo como o meu pai. A fbrica, o escritrio, eu herdei do meu pai e ele nunca entrou aqui. Talvez por isso.

BINGO O senhor velho demais para fazer tudo como seu pai. Olhe para o senhor. O senhor no pai tambm. VITO ri No, no sou no. Sou s filho. Infelizmente. Pausa. Meu pai morreu faz dois anos. BINGO baixo VITO Oito. Dois.

. Pausa. Meu escritrio mais ou menos do tamanho desse lugar aqui e s tem duas mesas. A dele e a minha. Numa distncia parecida com essa entre a gente aqui. Pausa. A gente discutia tudo um com o outro, eu no encomendava uma chave de fenda sem perguntar para o meu pai. Faz dois anos que fico sozinho no escritrio, faz dois anos uma cadeira vazia e uma mesa vazia. com elas que eu falo, como se meu pai estivesse presente.

Silncio. VITO Isso significa que eu falo comigo mesmo. Eu s imagino que falo com o meu pai, mas na verdade eu falo comigo mesmo. BINGO Silncio. VITO limpa a garganta Armas. BINGO VITO Harpas. Cordas para harpas. No. Tambores. Tambores. Fabrica o qu..

BINGO Tambores e cordas para harpas. Combinao esquisita. Eu tocava bateria. VITO BINGO VITO BINGO Tambores. Tambores para revlver. Oh. Ah sei. A senhora v como . Fim de papo. A senhora j no me conhece mais. No, eu

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VITO

Tudo bem. Para mim tanto faz. Se a senhora soubesse quanto vezes isso j me aconteceu, a coisa mais normal. Todo mundo quer segurana, quer proteo, todo mundo quer que a polcia ande armada, todo mundo quer ter o direito de se defender por conta prpria numa situao de risco, com um revlver pequenininho, uma pistolinha de bolsa de mulher, no verdade e a senhora pensa o qu, que esses brinquedos vem de onde, que eles caem do cu, que o bom Deus joga de l de cima pra cair na cidade? No, eu

BINGO

VITO T certo. No precisa falar comigo. J no falo com mais ningum mesmo. Dou as ordens para a minha secretria e a vou para a minha sala e por cima da cadeira vazia atrs da mesa vazia vejo o rosto vazio do meu pai e falo comigo mesmo. BINGO Est vendo, j eu falo o dia inteiro, por isso VITO Cuide da sua voz. Claro. Pausa. melhor mesmo. Cuidar da nossa voz. Vamos parar de falar. Pausa. Como a minha me. Ri. Quando chego em casa, falo com a minha me. Toda noite. Toda noite. Toda manh. Mas ela no responde. Ela no fala mais. Estourou uma veia aqui em cima e ento adeus. Pausa. Ela no faz mais nada, nadinha. Reformei a casa para ela, para que as enfermeiras pudessem andar com ela na cadeira de rodas por todos os lados. Quatro enfermeiras se revezam em turnos. Ela no se mexe, no move um membro, ela alimentada com uma sonda. A nica coisa que faz engolir. Engolir, dormir, cagar. Silncio. Ela a nica pessoa com quem eu converso. uma planta. Eu converso com uma planta. Pausa. Eu suponho que ela sinta alguma coisa mas no sei o qu. Observo a planta, dou comida, olho nos olhos dela, dou banho, dou carinho, penteio, cheiro. Pausa. Coloco no sol, deixo cair luz no rosto e nas mos. Pausa. No sei. Silncio. Essa a minha vida. Produzo armas e amo uma planta. BINGO O senhor s vezes tambm tem a impresso que essa sua vida aqui no a sua vida de verdade. VITO Como assim.

BINGO Assim. Como se a vida que estava destinada ao senhor estivesse em outro lugar. Que existe. Existe em outro lugar. Mas que em algum momento o senhor perdeu o caminho. Pausa. Tomou uma deciso errada uma nica vez. E agora a sua verdadeira vida est acontecendo sem o senhor. VITO BINGO Nunca pensei nisso.. Num mundo paralelo. 29

VITO

E como fazer para juntar as duas de novo. Como fazer para conseguir voltar para a sua vida de verdade.

BINGO No sei. Mas s vezes eu duvido que a minha vida possa ter sido planejada assim, que eu tenha que passar o dia todo ditando nmeros. Porque isso o que eu fao, profissionalmente. por isso que eu no gosto de ficar falando. Preciso cuidar a minha voz. E eu tambm treino. Nos intervalos. Os nmeros tm de ser apresentados discretamente, delicadamente, mas ainda assim com nitidez, num volume apropriado. Vou mostrar como. Vai at o proscnio, fala um monte de nmeros, como no salo de bingo. Quando fico rouca, fao um gargarejo de manh e de noite com folha de pitanga macerada, deixo curar por vinte minutos. Essa a minha vida. T certo, no passo fome e no fabrico armas. Ento isso. Silncio. BINGO Talvez o senhor no esteja mais acostumado, mas isso agora foi uma pergunta. Dirigida ao senhor. Ento isso. VITO BINGO VITO Meu nome Vito. Fico muito feliz por ter conhecido a senhora. Bingo. E como a senhora se chama.

BINGO Bingo. Meus amigos me chamam de Bingo..Pausa. T certo. O senhor foi honesto comigo, vou ser honesta com o senhor tambm. Na verdade, no tenho nenhum amigo. Mas s vezes fico imaginando que eu teria alguns e que esses amigos me chamariam de Bingo. Pausa. Agora o senhor pode imaginar onde eu trabalho. Quer dizer isso vai durar pouco. As casas de Bingo vo ser fechadas. O jogo vai ser proibido. Pausa. Fica o futebol. Pausa. Eu s treino por fora do hbito. Porque at agora no apareceu outra coisa para mim. Mas isso passageiro. Tenho certeza absoluta. VITO Me lembro da poca em que eu achava muita coisa possvel. Mas da. A gente aprende logo a aceitar a cama de pregos que a vida d pra gente. A gente se deita nela e aprende a no gritar de dor. Uma cidade inteira de faquires. Mas vai melhorar quando a gente comear a mostrar as nossas feridas.

BINGO pensa Tambm j experimentei yoga para relaxar, mas no adiantou muito. Mas eu no fico insatisfeita o tempo todo. VITO isso mesmo o que eu acho.

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BINGO s vezes eu at que acho a minha profisso legal. Achava. Pelo menos eu trazia sorte para as pessoas. Veja bem, o legal que, tanto faz o nmero que eu cantar, sempre tem algum que ganha. Pausa. Apresentadora de telejornal, apresentadora de telejornal eu no podia ser. Mas locutora de bingo outra coisa. Uma locutora de bingo quase como se fosse uma fada lotrica. Pausa. Era era quase como uma fada lotrica. Silncio. VITO Que besteira. Isso uma grande besteira muito grande. Pause. Que coincidncia mais besta. BINGO VITO Qual.

que eu estou demitindo os meus funcionrios. J so 28. E cada vez aumenta mais. No final, vou acabar fechando a fbrica.

BINGO Gol. Pausa. Contra. Um a um vinte e quatro minutos, nmero 11.. Pausa. No tenho pena nenhuma. Pausa. Vito ri. BINGO Pausa VITO Eu estava feliz com a minha vida. Era feliz. Pelo menos eu achava que era. No conhecia outra coisa. Pausa. Mas sabe, quando eu penso no meu futuro, que vai continuar o mesmo e eu tambm vou continuar o mesmo, quase que no d para agentar. BINGO VITO Entendo. E por qu. O senhor est falido.

Posso contar uma coisa pra senhora. Posso contar uma coisa que ainda no contei para ningum. Pode. Claro.

BINGO VITO

Alguma coisa mudou. Desde que eu comecei a ficar sozinho no escritrio. Sozinho comigo mesmo. Ningum me apressando. A papelada na minha mesa aumentando, formando pilhas tortas e eu sem vontade nenhuma, nem de pegar na mo. Se tinha alguma coisa muito urgente pra tratar, a minha secretria resolvia. Eu podia passar um tempo sem fazer nada. No fazia a menor diferena. A menor diferena. Pausa. Eu passava tardes inteiras na janela, olhando a praa l embaixo, a igreja, o posto policial. Pausa. E da, uma noite, quando o sol estava se pondo, as folhas das rvores em brasa, um policial saiu da guarita e se aproximou de um menino que estava debaixo 31

das rvores. O menino tinha alguma coisa nas mos e entregou para algum na rvore, sei l, um traficante mirim, entregando seu servio, talvez algum papelote que sobrou, no consegui perceber. Ele v o guarda, se assusta e sai correndo. O homem atrs dele. Eu fico admirado com esse pacto silencioso, a gente deixa vocs em paz e vocs a gente, mas esse guarda resolveu correr atrs do moleque, com uma cara desesperada, chama ele, o moleque correndo, a mo do homem pega o revlver, j puxou o revlver, ento ele percebe e fica parado. Ele ainda grita alguma coisa para o moleque, que nem vira a cabea e some. BINGO Conheo o policial. Seu Mirador. Seu Mirador sempre faz a ronda sozinho. s vezes fica parado na porta do salo de bingo e assiste uma rodada. s vezes eu dou uma cartela pra ele. Uma baratinha. Ele nunca ganha nada. VITO Fiquei pensando no sistema de alarme que tem de cuidar da segurana da minha casa, fiquei pensando quantas vezes eu mesmo fui ameaado; quando eu era criana os ladres entraram pela garagem, cortaram a garganta do cachorro, amarraram os meus pais, pegaram um isqueiro e queimaram as sobrancelhas do meu pai. Pausa. Todas essa lembranas no me assustavam mais. Eu s no via o sentido delas. Achava a minha vida sem sentido. No horrio do expediente, comecei a ler livros de histria que so ainda do tempo de escola. E a fiquei pensando que no fundo a histria de um pas a histria das suas armas. No a histria das guerras, s das armas. Onde, por quem e para que so produzidas, o que fazem com elas. E voc vai saber exatamente com quem est lidando. Silncio E a eu comecei a demitir os meus funcionrios. BINGO Silncio. VITO Estou me sentindo libertado. E a conseguiu o qu com isso.

SR MIRADOR Foi nessa hora que entrei no bar. De novo longe do posto. De novo procurando. Pretendia beber umas cervejas mas, na verdade, eu queria observar as pessoas, queria encontrar uma pista, uma pista que me levasse ao meu menino, s pessoas com quem ele fazia negcios na noite. VITO olha algumas vezes irritado para o Sr. Mirador, no o reconhece de imediato. Bingo cumprimenta-o, acenando calada. Veja s. Veja s. Tira um catlogo da bolsa, folheia-o, forando Bingo a olhar. Calibre 38, todos os tipos, a palheta para a polcia, seguranas, vigias. Aqui eu sou tenho uma filial, aqui s fao os tambores. A matriz no Paraguai. De l fao os melhores negcios. Quer dizer, fazia. A senhora entende agora

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BINGO

Entendi perfeitamente.

VITO olha para o Sr. Mirador ele. Foi ele quem eu vi. Apontou a arma para um menor de idade, um menino, bem menino, ele BINGO VITO Por favor, se acalme. Ele deve ter tido suas razes para isso.

No me interessa. Tanto faz. Para mim tanto faz. Se traficante ou policial, tanto faz. Ele estava com a minha arma, que eu fabriquei. Meus trabalhadores. Ele podia ter matado o menino e teria sido o meu assassinato. Pausa. Passei anos na frente desse posto policial, todo dia eu vejo batida policial, toda vez que ultrapasso a fronteira, eu passo pelas armas que eu mesmo produzi. Mas tanto faz para quem. No faz a mnima diferena, caguei, seu Man vende presunto parma, onde que tem uma boa arma, arma arma. No faz diferena. Eu sabia, claro, mas eu nunca tinha entendido. Pausa. At aquele dia. Levanta-se e vai at o Sr. Mirador, estende-lhe a mo. VITO Boa noite. O senhor me d licena de me desculpar. Peo desculpas por ter fabricado a sua arma. O senhor me perdoe, por favor.

Ele no espera pela reao do Sr. Mirador e vai at Bingo. SR MIRADOR Foi a que eu entendi que no tinha sentido mais pedir um trabalho para ele, um trabalho para o meu filho. J era. Eu olhei para as minhas mos e para a foto do meu filho que eu segurava. Olhei para o copo de cerveja na minha frente, a parede, o luminoso e a lmpada queimada nele, olhei para o homem do revlver e sua amiga, como eles mexiam a boca. E eu no escutava eles . Estava completamente sozinho. E sem coragem. BINGO Paraguai. Ah, sei.

SR. MIRADOR E enquanto eles falavam, entrou uma mulher, uma mulher magra, morena com quatro, cinco sacolas cheias de plstico e papelo e jornais. Ela se sentou na mesa entre ns e largou as sacolas. Uma mulher com o rosto enrugado, ombros finos, um casaco amarelo de croch e os cabelos amarrados com um n solto. Ela afundou o brao at o cotovelo numa das sacolas e pescou um espelhinho que ficou segurando sua frente, nas mos um bem valioso, um bem valioso ele prprio e um bem valioso o que mostrava. A mulher observa os dentes, os lbios bem puxados para trs, uma fileira de dentes em cima da outra. Os olhos caminham no pequeno redondo insuficiente do espelhinho da direita para a esquerda, de cima para baixo; as mos movimentam o espelho, para que capte a imagem de cada dente; os lbios se esforam em desnudar o maior nmero de dentes e quanto mais gengiva possvel. Os dentes so fortes e grandes no rosto fino, sem espaos, nenhum dente quebrado, nenhuma runa, nenhuma mancha 33

escura. A mulher levanta o rosto e nossos olhares se encontram. Eu me lembro que sou policial, eu me lembro por que estou aqui. Vou at a mesa dela e mostro a fotografia a ela e pergunto pelo menino. A senhora o viu. E ela faz que sim, os lbios separados se transformam em sorriso, ela faz que sim, faz que sim. Onde, eu pergunto, onde. Ela sorri, alegre, fazendo que sim e pega de novo o espelhinho e admira os dentes, feliz. Silncio. BINGO VITO Paraguai. Ah sei.

, exato. Porque ainda tem isso. Sofri como um porco no Paraguai. O Ningum gostaria de viver num lugar como o Paraguai. Ningum de livre e espontnea vontade, vai quer viver no Paraguai. No Paraguai s vive cachorro. E empregada domstica. O Paraguai o pas mais deprimente de todo o continente. Nem capital tem, ou pior, tem capital mas ningum consegue se lembrar do nome. Ningum sabe o nome da capital do Paraguai. Pode perguntar na rua. Pergunto para a senhora agora, qual a capital do Paraguai.

Longa pausa. BINGO VITO Assuno.

, isso mesmo. Assuno. Pode acontecer. De algum acertar, um em mil, acontece s vezes. A senhora sabe melhor do que eu. Pausa. Mas isso no muda em nada o fato do Paraguai ser um buraco sujo, com ou sem capital. No Paraguai s d cachorro e ladro. E algumas empregadas domsticas. O Paraguai s existe para fabricar armas, s para fabricao de armas, o Paraguai o tero do armamento de guerra. Mas agora j chega. Pergunte a algum na Europa, que queira sair de l, fugir dali, para onde que vai, em qualquer filme, qualquer filme de merda, para onde que as pessoas fogem, para onde que levam a grana com segurana. Para o Rio, claro. Ningum vai para o Paraguai, para levar uma boa vida.

BINGO T certo. VITO Entendeu agora.

BINGO Entendi. VITO por isso que pessoas como eu podem tranqilamente ficar fabricando armas por l. T certo. J entendi.

BINGO

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VITO

Se algum me pergunta onde eu vivo, eu nunca digo Paraguai. Digo Buenos Aires; ou Santiago, tambm bom, ou o Rio, claro, o Rio sempre legal. Cuba tambm d, depende com quem a gente conversa; s vezes vantagem mencionar Havana numa conversa; mas o Paraguai, o Paraguai em qualquer conversa te derruba l em baixo. E da. E com os bingos ento. Tambm no muito diferente.

BINGO

Entra Concha com rao de gatos. CONCHA Seu Vito, o senhor est fazendo o qu aqui.

VITO Respirando. E a senhora. CONCHA VITO Bebendo.

Deixe apresentar. Essa Bingo. Concha, a minha secretria.

BINGO Conheo a senhora de vista. Domingo de manh. Uma hora. Entre onze e uma. CONCHA , domingo de manh dou uma forcinha para minha sorte. No passo de uma hora, se ganhar ou perder, sou rigorosa. s vezes ganho minha rao de gatos. Gosta de gatos BINGO CONCHA No muito. Mas sente-se. Imagine. No quero incomodar.

Os dois convidam ela a se sentar. BINGO CONCHA BINGO Seu chefe bem simptico. Ha. h quanto tempo conhece ele. Um pouco mais que meio tempo. Eu estou contando os gols.

SR MIRADOR Para provar que Bingo no estava errada, o homem do revlver pediu uma garrafa de vinho e uma garrafa de Martini para Concha. E eles se sentaram e conversaram e beberam. Da um homem entrou no local, um homem que tinha elefantase. Era magro, com um corpo de membros delgados, mas no rosto ele tinha elefantase. Aproximou-se da minha mesa e muito educadamente pediu se podia terminar a minha cerveja. Eu disse que sim. Sedento, ele virou toda. Espere um pouco eu disse, espere um pouco, e ergui a mo com a foto do meu filho. Ele olhou triste para mim e balanou a cabea, balanando as bochechas de um lado a outro. Ele perguntou se podia experimentar o vinho e eles disseram que sim e ele virou at a ltima 35

gota. Primeiro pegou o copo, rodou-o de maneira profissional, deixou o resto, que estava no fundo escorrer para dentro da boca e deve ter feito o vinho danar na boca, o que no dava para ver bem por causa da elefantase e da engoliu e disse, ah, tima safra, excelente uva e foi at a porta. Ficamos olhando para ele, ele ainda voltou para beber tambm o ltimo gole de Martini do copo de Concha e todo mundo fingiu que achava aquilo completamente normal. Um sujeito, que voc nunca viu na vida, com elefantase, vem at a tua mesa e bebe o resto do teu vinho, com seu cuspe e batom na borda, enxaga a boca com ele e te fala se presta ou no, te observa enquanto isso, no deixa voc escapar dos olhos azuis ligeiros e da vai embora, o corpo dele descendo a rua, levando a cabea pesada, para dormir em algum canto, com sua sacola cheia de latas de alumnio e uns tnis rasgados nos ps e s depois disso Concha cochicha, mas as mos dele eram de pianista... CONCHA tira a mquina fotogrfica da embalagem Um sorrizinho por favor. Juntem no meio. Uma foto por dia.. Dispara. BINGO Perdemos o final. Dois gols no segundo tempo, aos 81 e 89 minutos. Estou me sentindo estranha, preciso acho, melhor eu ir Levanta, anda alguns passos, desmaia. Vito e Concha juntam umas cadeiras e deitam ela em cima, Mirador fica alerta. Bingo acorda. VITO BINGO CONCHA BINGO Querida Bingo o que aconteceu Ela quase no bebeu nada Sinto muito, tem um cheiro estranho. Um cheiro de no sei, de De lixo , acho que lixo -

CONCHA Sinto muito, isso vem do VITO Est bem agora Concha, agora v para casa. T certo. Estou indo, estou indo. Vou sumir. Tenham uma

CONCHA embriagada boa noite. Sai..

Vito leva Bingo para casa no colo. SR MIRADOR E no final daquela noite, no final daquela noite, Suzana entra no bar. Ela viu voc l de fora, est voltando para casa, atendeu o ltimo cliente e quer te dar um beijo de boa noite. Suzana o mais lindo dos mais lindos travestis, o corpo de Suzana mais esplndido do que um pintor seria capaz

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de pintar, mais esplndido at do que qualquer coisa que a natureza poderia criar; nenhuma mulher nunca vai ter esses msculos suaves, essa carne delicada, esses cabelos brilhantes e volumosos, essa bunda completa, esses seios plenos. Tem homem que dormiu com a Suzana sem perceber que estava transando com um homem; Suzana grande e orgulhosa e ri com uma voz escura, como uma voz de chocolate. Quando era novinha, Suzana ps uma bolsa de silicone na coaa , mas atrevida, no teve pacincia e pulou do repouso para fora da cama cedo demais e a bolsa foi escorregando devagar pela perna durante longos e tortuosos dias, descendo pelo joelho at o tornozelo onde presenteou Suzana com um p eqino e ali Suzana se queixa de inchao. Suzana faz um strip-tease super estonteante, vai usar fitinhas e sininhos dourados no tornozelo inchado ou no vai tirar as botas, Suzana a mais bela das mais belas mas envergonhada e se voc ficar olhando muito tempo pata o tornozelo inchado dela, ela vai fazer voc chorar... Eu no precisava mostrar a foto para ela, eu s perguntei, s perguntei se ela tinha visto o meu filho naquela noite, ela esticou a mo, quase me acariciou a face, faz tempo que no vejo. Samos juntos para a rua, caminhei com ela por um tempo, na esquina estava o homem com elefantase. Pensei que iam combinar alguma coisa nessa noite, o homem com a cara estragada e as mos delicadas, a mulher com o corpo delicado e o ps inchado. E eu, eu esperei, esperei que aparecessem outros seres na rua a quem eu pudesse perguntar pelo meu filho... .

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11. Noite. Concha se arrasta pela praa carregando uma caixa grande de papelo. Tem vida dentro dela. Ela tenta vrios lugares onde deixar a caixa. Fala com Mundo por precauo voc no viu nada, no viu nada, voc no tem nada com isso. Por fim deixa a caixa debaixo de uma rvore e vai embora. Volta depois de um tempo, novamente indecisa, pega a caixa e sai andando. Volta depois de algum tempo, traz a caixa de papelo, pe novamente debaixo da rvore. VOZ DE AURORA Silncio. VOZ DE AURORA Silncio. VOZ DE AURORA Silncio. VOZ DE AURORA qu Silncio. VOZ DE CONCHA Quero me livrar dele. Pausa. Tinha esperana que algum encontrasse ele, que tomasse conta dele. No agento mais. No d mais. Eu queria ir dando de um em um, para poder ficar em paz VOZ DE AURORA Em paz o qu O que est fazendo o gato dentro da caixa Voc vai fazer o O que voc est fazendo com essa caixa Concha, o que que voc est fazendo a Concha Concha

VOZ DE CONCHA Mas voc tem alergia. Voc odeia gatos. Pausa. A eu no consegui. E se algum encontrar e fosse afogar ele. Ou deixar morrer de fome na caixa. Ento eu peguei de volta. VOZ DE AURORA Silncio. VOZ DE CONCHA Eu vou morrer. Pausa. Pode ser que leve ainda algumas semanas. Pode ser. Se eu tiver sorte. Pausa. Cncer linftico. No faz mal Aurora, ao menos eu sei do que eu vou morrer. Eu posso me preparar. Silncio. Concha, o que est acontecendo com voc

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VOZ DE AURORA

Os teus filhos esto sabendo.

VOZ DE CONCHA Ningum, ningum sabe. Voc a primeira. Voc a minha famlia. VOZ DE AURORA VOZ DE CONCHA Vamos hoje no mdico. No adianta, Aurora. Pode acreditar.

VOZ DE AURORA No por tua causa, por minha causa, minha querida, por mim. Pausa. Deve dar para tratar da alergia a gatos. Pausa. Se algum tivesse me dito que eu ia herdar trs gatos VOZ DE CONCHA Silncio. VOZ DE CONCHA Silncio. VOZ DE AURORA No por muito tempo. Amo voc, Aurora. Sete. Pinga deu cria.

Silncio. Gargalhadas, parecendo crianas histricas.

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12. Mundo. Maria. MARIA Como que o jogo se chama. Ainda no foi nem lanado no mercado. Estou testando. Para que eles possam fazer os ltimos acertos no programa que quase perfeito. Voc escolhe um dia, uma hora, um ano, escolhe um lugar. Voc determina o sexo. Voc escolhe a famlia, o Pas, a lngua, a formao. Todo dia voc alimenta o computador com informaes novas. O computador cria uma nova personalidade, uma vida completamente nova. Durante o dia vou at o jornal, no mesmo lugar onde trabalho h mais de quinze anos, um buraco sem janelas, quadrado, onde fica a minha mesa, a minha cadeira e o meu computador. Quando afasto a cadeira, a parte de cima do encosto bate na parede. Com o passar do tempo, ao longo desses quinze anos eu fiz uma marca na parede, como um sinal, daqueles que marcam o crescimento da criana na parede. Minha marca se aprofunda a cada semana, a cada ano, cava na parede, quinze anos no mesmo lugar, quinze anos a mesma altura. expressamente proibido: utilizar os dados pessoais. expressamente proibido querer olhar se o acaso gerou um outro destino no computador. Quando estou de folga quando estou de folga, a... Gostava de ir ao bingo. Era uma distrao. Conhecia as principais casas de bingo da cidade. A que eu mais gostava era a da praa Roosevelt. Um lugar agradvel, com ar condicionado, onde servem caf e gua de graa. A vontade.. Enquanto estiver jogando. A cantadora de nmeros falava com voz abafada, sem enfatizar. Eu gostava. Eu ia atrs da paz, do sossego. Dificilmente eu ganhava. Com o que ganhava, comprava novas cartelas. H pouco tempo, os bingos foram fechados. Fico nos bares em volta. s vezes pego um cineminha. Minhas mos ficam sem ter o que fazer. Pausa A pessoa do computador reage; escreve um dirio para voc, pra voc participar do seu desenvolvimento. Acordei s 7:00h, no tomei caf, atrasada pro trabalho, passei fome no almoo. Caf preto. noite cinema. Quatro cervejas, fumei demais. A pessoa vai ficando sua amiga. Voc se acostuma com ela, com a aparente troca diria de idias. Pausa Eu fiz o que era proibido. Alimentei o computador com a minha prpria data de nascimento. No sei por qu. Pausa. Reconstituir as condies iniciais. Mais uma vez comear do comeo. Pausa. Eu dei pra ela at o mesmo nome. Minha amiga e irm, meu gmeo, meu duplo. Bom dia Maria, dormi mal, tomei duas aspirinas com o estmago vazio, tenho de ir. Perdi muito dinheiro no bingo. Ganho dinheiro no jornal para torrar no bingo. No pago aluguel faz trs meses. Moro na cada da minha me. Quer dizer, a 40

minha me que mora na minha casa. Isso significa que eu tambm no paguei o aluguel da minha me. De noite ela fica me esperando. Nunca me casei. Minha me d a impresso de sair pouco de casa. Pausa. Durante o dia ela sempre ia ao bingo. Eu percebia a barulheira no fundo quando ela me ligava do celular e respondia, quando eu perguntava, que era o barulho da televiso. Se voc est em casa, por que est falando do celular, eu pergunto. Porque eu posso, ela grita do outro lado e desliga. A Maria do computador est cada vez mais parecida comigo. Todo dia aparece com um caso novo a me trata todos bem. Trabalha num jornal e j alcanou o mesmo cargo que eu tenho. Estudei poltica. Queria comentar o que acontecia no mundo. Os artigos de pauta eram para ser meus. Fiquei presa no roteirode cinema. Sinopses. Resumo as vidas inventadas e deixo os outros julgarem. Pausa s vezes folheio para trs, na parte de anncios, escolho um nmero e vou num hotel com um homem. Estou com quarenta e poucos. Eu no tenho nem uma filha, com quem eu possa morar, quando for velha. Mas com a Maria aqui . Posso criar um novo comeo.. Oi Maria. Hoje no fui ao jornal. Passei horas no parque, olhando os cisnes negros, como eles se atiram atrs do po que as pessoas jogam. Ri Na hora do almoo comi sem pagar. Ri. Os talhares foram parar na minha bolsa. E um copo. E a carteira da minha vizinha de mesa. Ri Sa, andei duas quadras e joguei tudo no lixo. Ri. Eu ia mesmo ter de abandonar o jogo de bingo. As dvidas Vamos perder o apartamento. Vou perder o meu trabalho. Talvez agora fique tudo diferente. Agora que eu no posso mais jogar. No tem de ser tudo diferente. Algumas coisas podiam mudar, s algumas coisas. Quando volto para casa, ela parece mais vazia do que antes. Me pergunto com qual lembrana eu vivo. So os mveis que mudam ou sou eu. Ou eu estou comeando a olhar ao meu redor de outra forma. Com os olhos da Maria do computador. Minha me compra pinga para ela, trs reais a garrafa. O primeiro trago, de manh, no caf. Sexta-feira 21:00h, No fui ao cinema como tinha planejado. Perambulei pelas ruas. Abordei um menino no semforo. Bonito, uns quinze ou dezesseis anos. Paguei uma coca para ele e convidei-o para ir em casa. Ele hesitou. O Bingo, o Bingo pura concentrao. Exige toda sua ateno. Voc tem de reagir rpido, no bingo; se perder um s nmero, t fora. O bingo me estimula, como se eu pudesse forar a minha sorte, o meu prmio, se for rpida e boa o suficiente. Como substituir isso. Dentro do carro abri a cala dele e coloquei osexo dele na boca. A faca estava debaixo do banco. Foi fcil. Uma estocada na barriga, o sangue jorrou pelas mos dele, ele queria se proteger. Cortei a garganta dele. Tenho que rir Tenho que rir. Algumas coisas podiam mudar, s algumas coisas. 41

Tenho que rir Tenho que rir. No precisa ser tudo diferente. O que fazer. Ir polcia e dar parte da Maria do computador. Mand-la pra terapia. Deixar ela sofrer um acidente. Pausa. No jogo. De brincadeira. Pausa. Vou marcar uma hora no psicanalista para ela. Minha me me pede mais dinheiro. Diz que foi assaltada saindo do caixa eletrnico. Mentira. Eu entrei no quarto dela. No tem mais mveis ali dentro. s um colcho. Nossa conta est bloqueada porque estourou o limite. No quero mais voltar para casa. A Maria est esperando em casa. Vai ao trabalho obediente, uma semana inteira. Adiou a consulta na terapia. No precisa ser tudo diferente. Um ms depois, Maria matou mais duas outras pessoas. Algumas coisas podiam mudar, s algumas coisas. Uma vendedora de uma mercearia, pouco antes de fechar a loja, um entregador de pizza. Mais um ms e ela atirou no terapeuta, com quem nunca tinha estado, nunca tinha falado, o contato mais prximo tinha sido por um silenciador. Silncio. Onde que arrumei uma pistola com silenciador. Silncio. No jogo. Muito engraado. Silncio. Matei quatro pessoas. De brincadeira. Muito muito engraado. Na realidade no teria sido possvel. Na realidade voc no iria saber onde arrumar uma arma ou como usar uma arma para matar algum. Ou ia. Na realidade eles j teriam te prendido faz tempo. Essa realidade no possvel para voc. Na realidade isso no sou eu. s um programa. Silncio. A nica possibilidade. Mundo mostra uma placa com uma cruz preta pelo buraco do brao. MARIA Voc vai ter que se matar. (Silncio) Vou ter que me matar.

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13. Mundo. Concha. Aurora, com o antebrao cheio de testes de alergia. Silncio. AURORA Adoraria poder ficar com eles. De verdade.

CONCHA Eu sei. Dessensibilizar voc, mal d para falar a palavra, a gente devia imaginar que impossvel. AURORA CONCHA Teria sido uma superao. Mas eu teria feito. Eu sei.

AURORA Talvez voc pudesse troc-los por tartarugas, tartarugas inofensivas e mudas, para mim seria o ideal. CONCHA aborrecida. AURORA Colocar anncio. Doam-se gatos a mos amveis.

CONCHA Voc no tem noo. Passa um tempo e as mos no s deixam de ser amveis como escondem uma faca afiada e ficam especulando com churrasquinho de gato. AURORA Voc no devia ficar imaginando sempre o pior.

CONCHA Em mim fala a voz da experincia. Mundo enfia uma placa pelo buraco do saco: Zo. AURORA O que acha disso.

CONCHA Por mim. AURORA CONCHA AURORA Silncio. AURORA acaricia os cabelos de Concha que perde muitos cabelos. No fica triste. Silncio noite, na entrada. Corao pesado. Bom, estaria resolvido.

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CONCHA Eu queria entender. Queria entender o que acontece com a gente. Se existe alguma ordem. Qualquer uma. Pausa. Eu acho que o nosso crebro est organizado como uma cidade. Tem as ruas principais para os pensamentos, que precisam ser pensados com rapidez e tm congestionamento nos horrios de pico, quando todo mundo vai pra rua ao mesmo tempo; os atalhos para os que so do pedao; esquinas sombrias, angulosas onde os estranhos no se sentem bem; tem as periferias, que cada vez mais vo sendo segregadas; trilhas que foram percorridas um dia, agora cobertas de mato, e ainda tm as quebradas, em todas as regies possveis. Silncio. CONCHA s vezes eu fico imaginando que a gente podia prender um transmissor no sapato de cada cidado, s por um dia. E tornar todos os sinais desses transmissores visveis. A eles iam se mexer como pontos luminosos num espao tridimensional. Vinte e quatro horas. Ia ser lindo, muito lindo. Uma escultura luminosa, leve e arejada, em que o movimento das pessoas na cidade ia ser como o movimento dos pensamentos num crebro. Silncio. Concha arranca mechas de seus cabelos. Aurora fua na cabea, tira a peruca, coloca-a delicadamente sobre os cabelos de Concha, ajeita. AURORA Essa peruca do tempo em que trabalhei de animadora. No Panam. Faz muito tempo. Eu tinha, deixa ver CONCHA Deita a cabea no colo Aurora Dezoito ou dezenove. AURORA Dezoito ou dezenove. O primeiro emprego de verdade depois que fugi de casa. Quer dizer, na verdade eu tinha quinze ou dezesseis. E eu consegui a vaga na boate. Naquele tempo eu ainda era menino. Os gringos gays vinham da Flrida e levavam a gente para o quarto dos fundos. Eu tinha que fazer com que eles enchessem a cara de whiskey e champanhe o mximo possvel. Ganhava uma comisso por cada drinque. Um crdito. Eu vivia disso. Esses malditos estrangeiros ficavam prestando ateno que nem co de guarda, para que voc no deixasse de beber tambm. Eu passava o dia inteiro dormindo, noite ia para o bar, ganhava uma refeio e comprava bebida com os meus crditos, pra curar a ressaca. Pausa. No consegui ver o canal do Panam nenhuma vez. CONCHA AURORA CONCHA Durante cinco meses Cinco meses de cara cheia, direto.. Torta demais para o canal do Panam.

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AURORA Nunca vi o canal do Panam e agora estou aqui na Praa Roosevelt. Isso tambm uma ironia. CONCHA AURORA CONCHA Mas a praa no dele. No do Teddy, do Franklin. Fica tudo em famlia. Voc trepou com eles, com os americanos.

AURORA Iiiiih, eu cuidava da minha reputao. Eu s fazia truque. A gente chamava assim. Era truque, no era puta. , de vez em quando eu me dedicava mais a um ou outro. Mas s quando eu estava a fim. Pensa o qu. Eu queria era cantar e danar. Eu ensaiava na frente do espelho com as castanholas da minha me. Silncio. Toda vez eu dava um jeito de entrar no show, Aurora de Crdoba. Investi todo meu dinheiro em figurinos. No comeo eles ficavam encantados. Quem era essa moa. Na terceira ou quarta entrada, o gerente da boate ficava cismado, entrava no camarim, fungava na minha roupa. Metia a mo no meio das minhas pernas. E a me botava para fora. Pausa. A eu voltava para o meu quartinho dos fundos e continuava enchendo a cara com os gringos. Pausa. Eles eram ricos e generosos, at eles acharem que voc queria passar a perna neles. Nunca mais faturei tanto quanto naquele tempo. Pausa. O Panam foi a glria. Silncio AURORA A nica coisa que sobrou da minha vida so as minhas perucas e os figurinos. Meu armrio parece um compndio de moda. Ri. E meus caminhos tambm contam histrias: os dekolletes do Panam, os vestidos de passeio de Buenos Aires, as rendas brancas da Bahia, os borzeguins empoeirados do interior. S tinha saudade de subir no palco e a: para cada vida uma cano. Para que no se perdesse. Mas no consegui. Voc a nica que me ouve. Silncio. CONCHA Queria te dar isso. Uma lembrana. Entrega uma caixa a Aurora.

AURORA abre a caixa, cheia de fotografias. 2. 4. 94, 23. 10. 81, 5. Junho 02.. CONCHA AURORA CONCHA Uma foto para cada dia. Voc j reparou nelas. Eu registrei e arquivei todas.

AURORA Minha querida, tambm tem alguma em que d pra ver alguma coisa, essas aqui esto todas pretas. 45

CONCHA No verdade. Olha a um trao de luz e acho que essa foi, espera, no primeiro de maio, a mancha vermelha de uma faixa AURORA Concha, Concha, voc passou a vida tirando uma foto por dia, praticamente todas pretas ou desfocadas. CONCHA AURORA Sei l que quebrou a lente da mquina. Mas isso no tem importncia. O que tem ento.

CONCHA A lembrana. Voc vai se lembrar de mim todo dia. Toda vez que voc segurar uma na mo. AURORA Parece um dirio em que a tinta borrou.

CONCHA No, um dirio em que um dia depois do outro no aconteceu nada de especial. Pausa. E agora, mesmo assim est chegando ao fim. Silncio. CONCHA AURORA CONCHA Pausa. AURORA Silncio. AURORA Voc pode escolher o que. No. Vou deixar me surpreender. Canto. Pausa. Canto. Posso pedir uma coisa. O que quiser, meu anjo. Quando chegar a hora, no meu enterro, voc canta...

CONCHA pensa Silncio.

CONCHA Voc a nica pessoa que nunca me disse que eu tenho um cheiro estranho.. AURORA Voc tem perfume de areia mida, de gua do mar, de sal, do sargao, do sol da manh. Adoro o teu cheiro.

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14.

LARANJAS III Como cena 1 e 17. SRA. MIRADOR Fala. Eu queria que voc pudesse falar. Eu queria que voc pudesse dizer como foi para voc. Voc falou tanto na orelha do nosso filho at ele no agentar mais. Voc falou tanto na orelha do nosso filho at ele ficar mudo. At ele no voltar mais para casa noite. Voc seguiu ele. Foi atrs dele, no parou de buzinar na orelha at ele entrar na tua. Voc conseguiu amansar ele. Por amor a voc ele resolveu largar tudo. Agora voc tem um filho morto. Silncio Para mim no fazia diferena, no fazia a mnima diferena. Se o meu filho fosse traficante Ainda ia estar vivo. Pausa. Ns nunca nos casamos na igreja e isso no fez diferena. O homem no vive para satisfazer a vontade de Deus. Ao contrrio. Mas voc no aprendeu nada na tua profisso. Silncio Na ltima noite, Em que o meu filho saiu, o homem comeu uma laranja, uma s. Como se soubesse de alguma coisa. Como se tivesse sentido alguma coisa. O filho no voltou naquela noite. No dia seguinte, ele estava morto. Na noite do outro dia o homem comeou a chupar laranja 47

como o filho. Ele comeu todas as laranjas que tinham sido plantadas para o nosso filho. Que para ele tinham sido colhidas. Que para ele tinham sugado o sol. Ele comeu todas as laranjas, que o nosso filho teria conseguido comer que ele com certeza teria comido comeu at mais. Na cozinha tinha um balde de laranjas, no quarto tinha uma balde de laranjas e na sala tinha montanhas de laranjas no sof. Ele comia com casca e tudo. A casa inteira fedia a laranja. Pelo cheiro parecia que o filho tivesse voltado. Pausa Tinha cheiro de morte. Pausa. Ele no conseguia mais Parar com as laranjas. E eu abandonei ele. A morte tem cheiro de laranja. E eu abandonei ele. Pausa Voc podia levantar o brao Pra dar um sinal, se voc estiver me entendendo. Pausa. A mo. Pausa Voc podia levantar um dedo, se pudesse. Debrua-se sobre ele Agora, a plpebra pisca D uma piscada. Por favor. Silncio Eu te disse Deixa ele em paz. Pausa. E eu ainda estou viva. Eu ainda estou viva.

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15. SR MIRADOR Vou contar essa histria para vocs como nunca contei para ningum. Como eu nunca consegui contar para mim mesmo, como nunca consegui discutir com a minha mulher e muito menos ainda com o meu filho. Posso contar essa histria agora que eu mesmo sa dela, agora que eu sou s um vegetal, que sou uma rua sem sada, uma parte passiva dela, agora, em que est definido e determinado, que nossa vida encontrou o seu destino, sem que eu pudesse entend-la, sem que eu pudesse explic-la, sem que eu pudesse me defender, porque para isso tambm j tarde demais. Queria que imaginassem a minha mulher num vestido de noiva. No precisa ser com sapatos brancos, nem vu, mas dem uma chance dela se mostrar num vestido branco, fora de moda e feliz. A gente nunca se casou na igreja e a gente nem tinha dinheiro para dar uma festa de casamento. Minha mulher j tinha costurado o vestido para ela, em casa de noite, escondida; os pais dela eram catlicos ricos, eu vinha duma famlia evanglica que no tinha nada e que no era nada, e por isso mesmo no deixavam a gente freqentar a igreja deles. Expulsaram a minha mulher de casa, levando uma mala, com o vestido de noiva dentro e no desejaram boa sorte pr ela. Como policial, no d pra ganhar muito. Ento ela comeou a fazer o que ela sabia fazer de melhor: costurar vestidos e vestidos de noiva e ficou famosa como costureira de vestidos de noiva. Um dia uma cliente queimou a barra do vestido dela na vela, na prova do vestido e na pressa, como no tinha mais pano, a minha mulher tirou um pedao do prprio vestido de noiva dela e remendou o vestido da outra, e da, para remendar o prprio vestido de noiva velho, ela tirou um pedao de tecido brocado do vestido de noiva de uma outra cliente, que tinha comprado tecido a mais e a o vestido dela ficou um vestido de noiva com um pedao de brocado de um vestido de noiva com brocado e uma barra de um pedao de tecido brocado de vestido de noiva. Um tempo depois rasgou a blusa de domingo de uma das nossas filhas e a minha mulher sacrificou novamente o vestido e fez uma amputao corretiva de manga do vestido de noiva de brocado. Um dos presentes mais bonitos que consegui dar a ela no natal foi um broche de brocado de vestido de noiva e coloquei no peito dela onde a partir de ento o broche de brocado de vestido de noiva brotava como uma jia de broche de tecido de brocado de vestido de noiva. Naquela noite, nessa noite alucinante da jia de broche de tecido de brocado de vestido de noiva, a gente concebeu o nosso filho, o mais novo dos quatro e o nico menino. Entre ns s vezes, a gente chamava ele, de beb da noite alucinante da jia do broche de tecido de brocado do vestido de noiva. Silncio. Era assim que a gente chamava ele. Silncio. Quando ficou mais velho, a minha mulher mostrava o vestido pra ele de vez em quando, o vestido em que ele foi concebido. Um dia ela voltou a experimentar ele. No servia mais. Ela teve que deixar o zper aberto nas 49

costas. Silncio. Quando ele morreu, ela chegou no hospital com o vestido pendurado no brao, ela se sentou na cama dele, como est sentada na minha agora, e cobriu o corpo frio dele com o vestido de noiva dela. O vestido que a gente nunca usou na igreja. O vestido que a gente usou na cama.

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16. Duas mesas de escritrio, cada uma delas com uma cadeira. Ao lado de uma delas, um ventilador. Na parede, atrs da outra, um retrato do pai. Ao lado, um retrato de.Roosevelt VITO E este o meu escritrio. Silncio. VITO Pois . A decorao mais para prtica. Meu pai no gostava de frescura. Pausa. BINGO VITO Falta um pouco - de verde. O nico luxo que me dou um ventilador. Pausa. Ento senta.

Bingo no sabe aonde. A mesa vazia a do pai, no d para sentar ali. A que est cheia de papis a do Vito, seria indiscreto. VITO vai at a mesa dele e aponta a do pai. Por favor. Sentam-se um de frente para o outro. Bingo sob o quadro do pai. Silncio. VITO No vai dar. Desculpe, no vai dar. Vamos trocar. Trocam de lugar. Silncio. VITO . Pausa. Eu s queira que voc visse onde eu trabalho. Pausa. A gente pode ir embora. No, no espera.

BINGO

Coloca a cadeira dela e manda Vito colocar a dele entre as mesas. Esto um de frete para o outro, joelho com joelho. BINGO Pausa. BINGO A desabou um monte de perguntas na cabea deles. Melhorou.

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VITO

Pela primeira vez ele via o escritrio dele atravs dos olhos de outra pessoa. Pela primeira vez, viu o escritrio atravs dos olhos dela. E viu que era gasto e vazio como a vida dele. A ele ligou o ventilador imediatamente para no virar sentimental.

BINGO O que voc quer fazer quando todo mundo for demitido e as fbricas fecharem, essa daqui e a do Paraguai. O que voc quer fazer com o resto da tua vida, para onde vai seguir a viagem, voc vai me levar, quantos anos voc tem de verdade. VITO Vamos encontrar uma nova ocupao para tua voz. No aeroporto. Num karaok. Todos a mensagens telefnicas do mundo devem ser feitas por voc. Por que voc no tem amigos. Queria te dar um diapaso. Se pudesse fazer trs pedidos por qual voc ia comear. Eu j tenho uma idia. Quando estiver tudo acertado aqui.

BINGO VITO

BINGO Fala logo. VITO BINGO VITO Eu ia querer Fala de uma vez. Queria patrocinar alpinismo.

Silncio. VITO Um dia eu cruzei os Andes de carro. Desde ento vivo sonhando. Vi um lobo. Na neve. E ndios que vivem perto de fontes de gua quente. Acima de quatro mil metros voc sente como se Deus pegasse os teus dois pulmes com as mos, querendo esmagar bem devagarzinho. E voc gosta disso.

BINGO VITO

Tem tanta coisa para fazer. O Der Chimborazzo, o Marmolejo, o Aconcagua.

BINGO No vai ficar bravo comigo, mas voc j funga pra chegar no quarto andar. VITO Claro que eu no. Eu s vou financiar os caras. Os profissionais. Melhor dizendo, os apaixonados. Vou patrocinar os apaixonados pelas montanhas. Vou fundar uma escola de alpinismo, organizar as expedies deles e a nica coisa que eu quero uma bandeira espetada no topo escrita com letras amarelas luminosas- VITO -.

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BINGO VITO BINGO VITO

No fundo vermelho. Voc est me entendendo. Eu fico to feliz quando voc fica feliz.

Ele no sabia o que devia dizer. No sabia como devia dizer pra ela que ele a amava. Pausa. ... que ele a amava ... . Voc tem ferramentas -Voc vem junto comprar uns trecos verdes Uns trecos verdes -

BINGO VITO BINGO VITO

Uns vasos de flores, ou um arbustinho ou um matinho. Voc queria plantas.

BINGO L embaixo na oficina deve ter um machado ou um serrote. Pode me emprestar, por favor. VITO Claro. Um machado, pois no.

Cai um machado do forro. Bingo pega o machado e, calada, comea a picar a mesa do pai. Vito fica assistindo por um tempo. Olha para o alto e mais um machado cai do forro. Ajuda Bingo. Picam a mesa em pedaos pequenos. Pronto. Cansao. Bingo olha para os quadros., Vito: esse o Roosevelt e esse o meu pai. Bingo mira o quadro do pai. Vito: No esse, no. Bingo no conhece piedade, joga o quadro no monte de madeira e manda ver o machado. Vito assiste por um tempo e depois ajuda. Finito. Do trs passos para trs e fumam um cigarro. Bingo: "E a a gente coloca um sof ali, do lado uma mesa de vidro, pra colocar umas coisas, uma lmpada, e do lado uma palmeirinha, hidropnica, mais prtica. Pausa. Vito: Ou o bero." Bingo: Isso mesmo, ou o bero.. Pausa. Bingo: Ou uma cmoda, dessas brancas laqueadas, tipo um aparador, com uns puxadores de metal, brilhantes. Vito: , mas, ou o bero.. Bingo: T, o bero. Bingo: E o que a gente vai fazer com a tua me. Com ela assim meio em coma, meio do lado de l, com a planta, o que a gente faz com ela? Vito: Picar que no. Bingo: No, picar no. A gente fica com ela e pe para tomar banho de sol. Entra Concha. VITO Oi Concha. O que acontece..

CONCHA VITO

A gente acabou de ficar noivo. Pausa. Eu acho.

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BINGO

A gente pode fazer alguma coisa pela senhora.

CONCHA Pode ser. Quero pedir demisso.. VITO Concha, no posso imaginar a minha vida sem a senhora. Pausa. Ela j era secretria desde o tempo do meu pai. Trinta e dois anos.

CONCHA Pois . Justamente. Agora eu no tenho muito mais tempo. Pausa. No quero mais saber de ficar enfiada em escritrio. No quero mais saber de deitar na cama de pregos. Quero luta, canta um trecho Manh to bonita manh ... quero sentir um pouco de felicidade, pelo menos uma vez, uma vez s. Canta. Assim como ver o cu, quando se veste de vermelho, de um vermelho, como se estivesse envergonhado, antes do sol nascer e quando ainda est frio, essa felicidade, essa alegria de ver o dia nascer. Canta. Vou at Foz do Iguau, visitar as cataratas. Durante toda minha vida s viajei a uma distncia de at cinco horas de carro, para praia, nunca para as cataratas. Vou deitar numa espreguiadeira e ficar escutando o barulho da gua caindo, que to alto, que no d para falar com ningum, no d para entender nem as prprias palavras. Fecho os olhos e ergo meu rosto para o cu e sinto a bruma fina trazida pelo vento, j meio dormindo... VITO BINGO E os gatos. Desculpe esse cheiro de novo. Desmaia

CONCHA No so os gatos que esto fedendo assim, Sr. Vito. Sou eu, eu que estou fedendo. So os remdios, a doena. Estou fedendo. E eu no me importo. Quero que todo mundo sinta. Sai. VITO Que remdios. Que doena Bingo, Bingo, acorda

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17. SR MIRADOR Quando abri os olhos, tinha uma mulher sentada no banco de espera com uma caixa no colo. Cabisbaixa, olhava o cho. A caixa parecia ser a embalagem de uma televiso pequena. Eu estava sozinho no posto e cochilei, tinha passado a noite procurando pelas ruas. Limpei a garganta, a mulher ergueu a cabea. Era jovem ainda. Uns trinta e tantos anos, os cabelos amarrados num rabo de cavalo, vestia um vestido de vero azul claro. Levantei e pedi que sentasse minha mesa. Ela se sentou na cadeira de visita, com a mesma postura de antes, segurando a caixa com as duas mos. Disse que precisava de uma autorizao por escrito para levar o corpo de sua filha do cemitrio daqui para o lugar em que nasceu. Ela vinha de uma cidadezinha do Nordeste, como a maioria igual a ela. Imaginei que trabalhasse como empregada na casa de algum rico do bairro. E que na caixa trazia a muda de roupa, o uniforme dela, que ela tinha deixado suado durante o dia. Peguei um formulrio na minha gaveta. Nome, sobrenome, data de nascimento. A filha tinha dezessete anos quando perdeu a vida, numa briga de faca numa discoteca. A mulher no olhava para mim. A filha estava num cemitrio pblico, onde os mortos so exumados depois de quatro anos, para dar vaga a novas covas. Na cidade dela tinha um tmulo da famlia que a av pagava. Eu via pequenas gotas de suor brotarem na testa dela. Perguntei qual era a transportadora. Ela parecia que no entendeu a pergunta. Quem vai ser responsvel pelo transporte, isso precisa constar no formulrio, quem vai levar o cadver para casa. Ela repetia o nome dela e balanava a cabea. O caixo; que empresa vai transportar o caixo. Me encarou pela primeira vez, mexeu os lbios e voltou a baixar a cabea. Senti calor, levantei e abri a porta, as rvores da praa estavam em plena luz do meio dia. Resisti tentao de me sentar ao lado dela e colocar a mo de um jeito amigvel nos ombros dela. Estava justamente comeando a explicar o formulrio de novo quando ela me interrompeu, colocou uma das mos sobre a caixa e disse: No posso pagar nenhuma transportadora. No tem mais cadver. Eu mesma levo a minha filha, de nibus, que vai sair hoje noite. Vou levar os ossos dela para casa. Silncio na sala. Olhei para a caixa, para o rosto da mulher, ela tinha baixado os olhos de novo. Ela no estava chorando. Preenchi o formulrio at o fim. Ouvia o ponteiro do meu relgio bater. Com o nibus que sai hoje noite, ela repetiu. Eu acenei com a cabea quando ela pegou o formulrio da minha mo e sau.

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18. Aurora, Mundo. AURORA canta Manh de Carnaval . Pausa. para Mundo Bom, agora enfim o preto est combinando. Me d um cigarro, amor. Mundo enfia um cigarro pelo buraco. Aurora fuma. Pausa. No deu mais para ela ir ver as cataratas. Mas ela escolheu um cantinho bonito, no cemitrio pblico. L no Jardim So Lus. A nossa Concha. Com vista para o gramado ressecado e d l nas colinas. No foi ningum da famlia dela. Como so as coisas. Enquanto o padre falava e abenoava o caixo, tiros do outro lado do muro do cemitrio. Ningum ligou, s o padre levantou a cabea. As testemunhas caladas foram chegando, uma depois da outra (mulher com dentes e espelho Homem com elefantase, Suzana, mulher com ossos) Da histria da Bibi era que a Concha gostava mais. A Bibi a menina que morou comigo. D para reconhec-la pela teia de aranha tatuada na testa. Tem uns vinte e tantos anos e desde que conheo ela, economiza para fazer a operao. J fez os seios, ramos em trs, a gente se ajudava; injetamos silicone debaixo da pele dela, em volta dos mamilos, recheamos a bunda, arredondamos as coxas, levantamos os ossos da face. T certo que a gente no conseguiu sumir com o pau dela. Entra Bibi. Ento, a Bibi trabalha na rua para juntar dinheiro para poder fazer essa bosta de operao e um dia ela voltou de madrugada para casa, me acordou e disse BIBI Aurora, eu tive um encontro.. Espero que sim. At porque voc precisa de muito muito dinheiro.

AURORA BIBI

No, foi um encontro especial. Acho que encontrei o homem da minha vida. O homem da tua vida.

AURORA BIBI

, escuta s. Eu estava na esquina da Cesrio Motta com a Marqus de Itu, s trs da manh e, alm de mim, nenhuma menina, eu estava completamente sozinha. Pausa. De repente de repente l no fim da Cesrio eu vejo uma luz, assim uma au aurola e quando estou l parada olhando, a luz vai se aproximando, vem vindo na minha direo, tem os contornos de uma pessoa, pra e a algum desce da luz e diz No tenha medo

AURORA

s. Virginia Rodrigues, Sol Negro.

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BIBI

Isso mesmo, no tenha medo. Eu olho meio ofuscada pela luz, e vejo Um homem

AURORA BIBI

Isso mesmo. Um homem forte, com um rosto marcante e cabelos loiros.

AURORA BIBI

No, um homem baixinho, careca e bem, bem magrinho, os braos e pernas compridos e fininhos, e olhos enormes e ele est Est o qu

AURORA BIBI

Est pelado Est pelado

AURORA BIBI

, ele est pelado e verde. Verde Como verde -

AURORA BIBI

O corpo todo.

AURORA Voc viu um cara, que se aproximou de voc num feixe de luz, careca, pelado e verde. BIBI Isso mesmo.

Pausa. BIBI Primeiro eu no tinha certeza se era um homem. Voc no sabe se era um homem

AURORA BIBI

S no comeo. Voc foi com ele, vocs foram pro hotel -

AURORA BIBI

Fomos, pro Glria. Deixaram vocs entrar.

AURORA BIBI

Deixaram. Sabe o que , Aurora, que ele Fala logo

AURORA BIBI

Ele invisvel. 57

AURORA Voc foi pro hotel Glria com um homem pelado, verde e invisvel. BIBI Isso mesmo..Foi isso mesmo que aconteceu. Mas ele sabia falar..

AURORA BIBI

Ele fala a nossa lngua. Pausa. Tambm.. Pausa. Ele disse que ficou me observando por muito, muito tempo e que se apaixonou por mim at as orelhas. Verdes.

AURORA BIBI

Mhm. Pausa. Sabe, Aurora, eu acho que acredito nele. Porque j faz muito tempo que eu tenho a sensao de que algum est me seguindo. T..

AURORA BIBI

E a ele disse que no agentou mais e teve dar um jeito de aparecer. Mas s para mim. E ele tem nome.

AURORA BIBI

Eu no sei o nome dele. Ele marciano.. E vocs Pausa. Vocs treparam, voc e o marciano..

AURORA pensativa BIBI

Feito loucos, Aurora. O qu..

AURORA BIBI

O pau dele bem comprido, assim, e grosso feito o tronco de uma rvore, eu nunca na minha vida vi um troo desses, s que ele -O qu

AURORA BIBI

Invisvel. Pensei que fosse me matar e doeu para cacete. Eu gritei bem alto, e eu at achei que o sangue que estava saindo ia sujar os lenis, ia fazer uma meleca danada, ele mordeu a minha orelha e tambm gritou feito louco, ns dois gritamos feito loucos, foi horrvel. Eu fiquei morrendo de medo, Aurora, e no foi nada bom, apesar de ele me amar. Sei. E ele te deu dinheiro

AURORA BIBI

Como. Queria tudo de graa. Por amor oras. Ele te prometeu alguma coisa. Casamento ou coisa assim. 58

AURORA

BIBI

No. Ainda no. Voc