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- A VIAGEM DA VOLTA: ETNICIDADE, POLíTICA E REELABORAÇÂO CULTURAL NO NORDESTE INDíGENA I " ndios no Nordeste? Ín- dios tem na Amazônia, no Mato Grosso Eis uma visão popular. .r A An- tropologia no Nordeste é a Antropologia das culturas brasileiras e do campesinato. Etnologia In- dígena é feita na Amazô- nia." Eis uma declaração acadêmica, antropológica As duas são errôneas, como revelam apenas visões limi- tadas. Na verdade, os po- vos indígenas no Nordeste manifestam presença de uma maneira muito mais visivel, vigorosa e destemida que vinte ou trinta anos atrás. Eles tornaram-se um assunto da polí- tica indigenista, por diversas demandas quanto à terra e à assistência governamental, e, desse modo voltaram a ser percebidos pelos antropó- logos, depois de várias décadas de desinteresse. A história desses povos no século :xx é muito fascinante, como eles organizaram, em algumas regiões já nos anos 30, lutas políticas pela segu- rança e reconquista de seus territórios que po- dem ser vistas como antecedentes regionais dos movimentos indígenas contemporâneos, sem que se tenha estudado isto até agora. O livro presente é uma publicação impor- tante, como ele reúne uma série de estudos ain- da não publicados em outro lugar. Trata-se de uma coletânea de capítulos de diversas teses de DE JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA (ORG.) mestra do e doutorado, de- fendidas entre 1992 e 1996 no Programa de Pós-Gradu- ação em Antropologia So- cial (PPGAS) do Museu Nacionaíl UFRJ, sob a ori- entação de João Pacheco de Oliveira. Assim, o livro re- presenta menos uma sinopse de pesquisas antro- pológicas contemporâneas sobre os índios no Nordes- te, mas principalmente das do Museu Nacional. As pes- quisas desenvolvidas na UFBA são mencionadas apenas perifericamen- te, enquanto as realizadas na UFC, por Sylvia Porto Alegre e seus alunos, não aparecem em lugar nenhum. Além de apresentar estudos etnográficos, há a pretensão de contribuir para os debates teóricos sobre etnicidade por exem- plos pouco levados em consideração até agora. O título da coletânea é meio enigmático e susceptível de interpretações heterogêneas, como sua seleção e seu significado são pouco claros. Qual é o destino da viagem da volta e quem faz a viagem: os índios ou os pesquisadores? Oli- veira explica, ao menos, que o destino não é retorno algum a um imaginário nostalgicamente venerado e desconectado do presente. Os índios do Nordeste são comparados a migrantes obri- gados a reinventarem suas tradições, e essas reinvenções devem ser apresentadas e analisa- A Viagem da Volta: Etnicidade, Política e Reelaboraqâo Cultural no Nordeste Indígena (Territóri- os Socfais, 2) Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999, 350 pp. POR PETER .CHRÕDER Antropólogo, Ph.D. pela Uhiversidade de Bonn, Alemanha. Professor Visitante do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Cultural, Universida- de Federal de Pernambuco/UFPE. Consultor Externo do PPTAL (Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal) PptaVFUNAl/GTZ (Brasília) 142 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS v.32 N. 1/2 2001

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-A VIAGEM DA VOLTA:

ETNICIDADE, POLíTICA E REELABORAÇÂO CULTURAL NONORDESTE INDíGENA

I

" ndios no Nordeste? Ín-dios tem na Amazônia,no Mato Grosso Eis

uma visão popular. .rA An-tropologia no Nordeste é aAntropologia das culturasbrasileiras e docampesinato. Etnologia In-dígena é feita na Amazô-nia." Eis uma declaraçãoacadêmica, antropológicaAs duas são errôneas, comorevelam apenas visões limi-tadas. Na verdade, os po-vos indígenas no Nordestemanifestam presença de uma maneira muito maisvisivel, vigorosa e destemida que vinte ou trintaanos atrás. Eles tornaram-se um assunto da polí-tica indigenista, por diversas demandas quantoà terra e à assistência governamental, e, dessemodo voltaram a ser percebidos pelos antropó-logos, depois de várias décadas de desinteresse.A história desses povos no século :xx é muitofascinante, como eles organizaram, em algumasregiões já nos anos 30, lutas políticas pela segu-rança e reconquista de seus territórios que po-dem ser vistas como antecedentes regionais dosmovimentos indígenas contemporâneos, sem quese tenha estudado isto até agora.

O livro presente é uma publicação impor-tante, como ele reúne uma série de estudos ain-da não publicados em outro lugar. Trata-se deuma coletânea de capítulos de diversas teses de

DE JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA (ORG.) mestra do e doutorado, de-fendidas entre 1992 e 1996no Programa de Pós-Gradu-ação em Antropologia So-cial (PPGAS) do MuseuNacionaíl UFRJ, sob a ori-entação de João Pacheco deOliveira. Assim, o livro re-presenta menos umasinopse de pesquisas antro-pológicas contemporâneassobre os índios no Nordes-te, mas principalmente dasdo Museu Nacional. As pes-quisas desenvolvidas na

UFBA são mencionadas apenas perifericamen-te, enquanto as realizadas na UFC, por SylviaPorto Alegre e seus alunos, não aparecem emlugar nenhum. Além de apresentar estudosetnográficos, há a pretensão de contribuir paraos debates teóricos sobre etnicidade por exem-plos pouco levados em consideração até agora.

O título da coletânea é meio enigmático esusceptível de interpretações heterogêneas, comosua seleção e seu significado são pouco claros.Qual é o destino da viagem da volta e quem faza viagem: os índios ou os pesquisadores? Oli-veira explica, ao menos, que o destino não éretorno algum a um imaginário nostalgicamentevenerado e desconectado do presente. Os índiosdo Nordeste são comparados a migrantes obri-gados a reinventarem suas tradições, e essasreinvenções devem ser apresentadas e analisa-

A Viagem da Volta: Etnicidade, Política eReelaboraqâo Cultural no Nordeste Indígena (Territóri-

os Socfais, 2)Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999, 350 pp.

POR PETER .CHRÕDER

Antropólogo, Ph.D. pela Uhiversidade de Bonn,Alemanha. Professor Visitante do Programa de

Pós-Graduação em Antropologia Cultural, Universida-de Federal de Pernambuco/UFPE.

Consultor Externo do PPTAL(Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras

Indígenas da Amazônia Legal) PptaVFUNAl/GTZ(Brasília)

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-das por estudos localizados através de descri-ções densas. Esta exigência, no entato, não écumprida na sua plenitude, como a "densidade"das descrições (no estilo geertziano), às vezes,deixa a desejar.

O primeiro capítulo é uma introdução teó-rica às diversas questões abordadas no livro. Oli-veira critica as diversas visões convencionais queas antropologias regionalista e americanista têmdos índios no Nordeste, encarando-os ou como"remanescentes" pouco interessantes culturalmen-te ou como assuntos de estudos meramenteregionalistas. A Etnologia Indígena no Nordestetem sido até agora uma etnologia menor, emboraofereça condições excelentes, no contexto nacio-nal, de debater questões antropológicos de inte-resse global, em particular aquelas relacionadascom etnicidade e territorialidade. O livro, então,não devia ser entendido, segundo a apresenta-ção do organizador, como uma tentativa deetnologia regionalista, mas sim como uma contri-buição a debates teóricos através de exemplosde uma região. Como sempre, ler um texto deJoão Pacheco de Oliveira é um grande prazer.

Seguem sete capítulos com o mesmoenfoque temático (emergências étnicas), mas comabordagens diferentes, seja com a políticaindigenista como ator e propulsor principal, sejacom a dinâmica indígena no centro da atenção.A maioria desses capítulos, como partes de te-ses anteriores, merece, na verdade, resenhasseparadas que, no entanto, não podem ser rea-lizadas por falta de espaço.

O texto de Sidnei Peres sobre a açãoindigenista no Nordeste 0910-1967) analisa comoas políticas do SPI influenciaram os rumos e asestratégias das manifestações étnicas, com rela-ção às terras indígenas. Infelizmente, Peres per-de-se muito na análise de discursos indigenistascomo manifestações de poder político, sem dei-xar claro, no entanto, se os discursos constituí-ram o meio ou a base do poder. Se tiverem sidoa base, não fica claro como e porquê. Menospós-estruturalismo teria deixado a análise maisaguda e a leitura mais agradável.

Henyo Trindade Barreto Filho contribuiucom um texto muito bem escrito sobre a gêneseda sociedade Tapeba, no município de Caucaia,na região metropolitana de Fortaleza, e os pro-blemas que surgem com os esforços de definirfronteiras étnicas num contexto local de secularconvivência íntima entre população indígena enão-indígena. Outro texto muito bem escrito éo de Sheila Brasileiro sobre a emergência étnicados Kiriri, da Bahia, suas conquistas territoriaise seu faccionalismo. Neste caso, é fascinanteobservar como a terra conquistada coincide,aproximadamente, com o contorno da antigaaldeia missionária do século XVIII.

O texto de Rodrigo de Azeredo Grünewaldsobre a etnogênese dos Atikum, na Serra do Umá(PE), é um dos mais interessantes do volume.Antes dos contatos com o SPI, estes índios eramde fato uma população camponesa que em quasenada diferia dos regionais, mas com suareelaboração das origens étnicas, transforman-do as diversas em só uma, e por aprenderem,com outros grupos indígenas, como desenvol-ver e manifestar sinais diacríticos étnicos, con-seguiram o reconhecimento oficial do órgãoindigenista como grupo de "remanescentes in-dígenas" e o atendimento a suas reivindicaçõesterritoriais. Trata-se de um exemplo por exce-lência de etnicidade instrumental. Grünewaldcorrói duas ilusões típicas do indigenismo brasi-leiro. Uma, ele chama a ilusão autóctone, isto é,a tentativa de definir a "autenticidade" de umgrupo indígena com relação aos aborígenesamericanos pré-coloniais, o que é um empreen-dimento vão, como questiona a legitimidade deformações étnicas resultantes de processos co-loniais e pós-coloniais, que reivindicam os di-reitos de minorias étnicas. Que grupo indígenacontemporâneo pode realmente comprovar umadescendência linear e ininterrupta de grupos de500 anos atrás, de que mal se conhecem os no-mes e a cultura? E que grupo indígena podecomprovar com certeza que seus antecedentesde 500 anos atrás habitavam justamente os mes-mos territórios atualmente habitados por eles? A

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outra ilusão é a territorialou a ilusão da áreaindígena, como as fronteiras étnicas são fluidase não coincidem automaticamente com os limi-tes das terras indígenas demarcadas.

Outro texto muito interessante é o de JoséMaurício Andion Arruti sobre os Pankararu e asemergências étnicas no sertão do São Francisco.Arruti apresenta a trama das relações interétnicasindígenas responsáveis pelo surgimento de novasetnicidades na região através de migrações e apoiopolítico. Havia e ainda há verdadeiras liderançasperegrinas, que "ensinam" a outros grupos ao as-sumirem uma identidade étnica indígena e reivin-dicar seus direitos especiais. Nenhum capítulo delivro descreve e analisa tão bem a autodinâmicadas emergências étnicas no Nordeste. A análise éfeita, no melhor estilo etnográfico, pelas categori-as indígenas, que são metafóricas, comparando osPankararu com uma árvore que produz "pontosde rama" (as novas etnicidades).

Em comparação com os textos anteriores,é mais difícil se entusiasmar com as contribui-ções de Sílvia Aguiar Carneiro Martins, sobre osXukuru-Kariri, de Alagoas, e de Carlos Guilher-me do Vaíle, sobre os Tremembé do Ceará. Ahistória e situação contemporânea dos Xukuru-Kariri, que já foram matéria de capa da revistaEpoca, são tratadas por citações extensas de no-mes de indivíduos e famílias, esclarecem pouco,sem que o leitor possa conhecer melhor o con-texto etnográfico. O caso interessante dosTremembé, no entanto, é apresentado por con-ceitos que podem complicar mais do que expli-ca. Por exemplo, categorias como "lugar", "zona"ou "região" são substituídas por "situação/ões".A vila de Almofala não é um lugar onde convivemindígenas e não-indígenas, mas uma "situaçãointerétnica". Ou leiam esta frase: "Havia articula-ção entre a esfera produtiva da pesca, sobretudoo da lagosta, com a agricultura, especialmente ados coqueirais." (p. 285) O autor não podia dizersimplesmente, que os moradores do lugar prati-cam uma economia mista, diversas atividades?

Um tema recorrente na maioria dos textosé o papel da dança e ritual do toré, escolhido

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pelo órgáo indigenista e até por alguns antropó-logos como sinal diacrítico decisivo da"indianidade" no Nordeste, como se sua presen-ça ou ausência indicasse a "autenticidade" daidentidade étnica. A demanda governamental de"saber o toré", sugerida por trabalhos etnológicosantigos, fez com que os grupos indígenas noNordeste não só aperfeiçoassem as performancesdo toré, mas também que eles o usassem estra-tegicamente para reivindicar seus direitosterritoriais. Mais tarde, o toré tornou-se um dossímbolos mais fortes das identidades étnicas re-gionais, defendido pelos próprios índios.

Os textos, na totalidade, levantam umasérie de críticas legitimas quanto à conceituaçãodos grupos indígenas no Nordeste: são "rema-nescentes", "índios misturados" ou "autóctones"?Cada uma dessas categorias é insuficiente paraentender as novas etnicidades. A etnologiaamericanista, com sua evitação notória dos mes-tiços, e as etnografias convencionais, que iso-lam os grupos estudados de seu contexto social,

1não fornecem os instrumentos conceituais paraentender os povos indígenas no Nordeste.

Oliveira faz uma avaliação crítica do con-ceito de etnogênese, mas, em uma contradiçãoirônica, são os próprios alunos que o aplicam.Alguns autores, como Arruti, decidiram substi-tui-lo por "emergência étnica" ou "socíogênese",mas a análise dos textos revela que se trata ape-nas de uma troca de rótulos. E isto não é a únicaincongruência conceitual do livro. Em vários tex-tos percebe-se com nitidez que os conceitos deidentidade étnica e etnicidade são usados comose fossem sinônimos, e o leitor fica com a im-pressão que ainda não se sabe definir com cla-reza, o que é etnicidade.

As opções teóricas escolhidas pelos auto-res são bem distintas daquelas comuns nosestudos brasileiros da etnologia amazônica,referenciados principalmente ao estruturalismofrancês e seus desdobramentos contemporâne-os. Eles optaram por uma convergência entre aAntropologia Política e os estudos de etnicidade.Embora Oliveira tenha criticado num texto ante-

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rior que os debates teóricos brasileiros em tornode etnicidade estão pegados demais a poucostextos de Fredrik Barth dos anos 60 e 70, semlevar mais em consideração outros autores e ostextos posteriores de Barth, esta limitação é re-petida no livro: teorias de etnicidade parecemser, antes de mais nada, teorias de Barth e aoutra literatura de etnicidade não é posterior a1985. Eu sempre achou muito reduzida as basesbibliográficas e etnográficas dos debates brasi-leiros sobre etnicidade. Ao ler o livro presente,lembrei me do projeto de pesquisa para a tesede livre-docência de Erwin Orywal, um colegada Universidade de Colônia, na Alemanha, quecontinha um anexo bibliográfico de 55 páginas(O apenas com literatura de etnicidade. Há umaliteratura vasta com bons exemplos comparati-vos e complementares da África, Ásia e Europaque podiam fecundar mais os debates brasilei-ros sobre etnicidade.

Além dessas observações, há uma sériede aspectos formais que deixam a desejar.Quanto às referências bibliográficas, 69 não seencontram na bibliografia no final do livro, sen-

do que o leitor procura em vão 23% das 303referências totais. A própria bibliografia é defi-citária, como suas informações são incompletas,dificultando reconhecer as publicações citadas.Por exemplo, não se citam, em muitos casos,nem o editor ou organizador de uma coletâ-nea, ainda que este não seja o mesmo autor docapítulo citado, nem as páginas de capítulosou artigos. Os mapas que deviam acompanharos textos várias vezes não são atuais ou nãocombinam com os textos. Além disso, geral-mente são incompletos, porque não contêm umbom número de citações ou outras informaçõescontidas nos textos. Estas deficiências formaisdificultam a leitura, mas mostram ao mesmo tem-po que o livro teve um "parto" acelerado, en-quanto a "gestação" durava vários anos.

Não obstante as críticas feitas nesta re-senha, o livro representa uma das melhores emais importantes publicações atuais sobre osíndios no Nordeste, permitindo aprender mui-ta coisa, até mesmo o leitor experiente. O li-vro merece muitos leitores.

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