a viagem a maior flor do mundo

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Ensaio

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  • 471Rev. Let., So Paulo, v.50, n.2, p.471-483, jul./dez. 2010.

    A TEMTICA DA VIAGEM ECOLGICA EM A MAIOR FLOR DO MUNDO, DE JOS SARAMAGO, E NA CURTA-METRAGEM A FLOR

    MIS GRANDE DO MUNDO, DE JUAN PABLO ETCHEVERRY

    Rogrio Miguel PUGA*

    RESUMO: Trs anos aps receber o Prmio Nobel da Literatura, Jos Saramago publica o conto A Maior Flor do Mundo, ilustrado por Joo Caetano, que narra a aventura ecolgica de um jovem heri para longe da zona de conforto da sua comunidade, rumo ao altrusmo. O presente estudo aborda as temticas do crontopo e dos diferentes tipos de viagem, incluindo a ecolgica, enquanto estratgias e motivos literrios quer na narrativa saramaguiana, quer na sua adaptao como curta-metragem pelo guionista e realizador galego Juan Pablo Etcheverry em 2007.

    PALAVRAS-CHAVE: Jos Saramago. Ecocrtica. Viagem. Crontopo. Narrativa flmica. Elementos paratextuais. Metafico.

    As obras de Jos Saramago menos estudadas pela crtica literria so certamente as destinadas ao pblico infanto-juvenil como, por exemplo o conto A Maior For do Mundo (SARAMAGO, 2001), ilustrado por Joo Caetano e publicado, propositadamente sem paginao, j aps a entrega do Prmio Nobel ao escritor, e que adaptado em formato de banda desenhada atravs da curta-metragem A Flor Mis Grande do Mundo por Juan Pablo Etcheverry (2007). O guionista e realizador galego adapta a obra juntamente com a produtora executiva Chelo Loureiro e constri a sua prpria leitura do texto atravs do recurso plasticina e ao desenho animado. Filmada atravs da tcnica de animao stop motion, a curta-metragem dura 10 minutos e venceu, at data, cerca de 11 prmios mundiais, nomeadamente o Prmio do Festival Internacional de Cinema Ecolgico e da Natureza das Ilhas Canrias. Com msica de Emilio Aragn e desenhos de Diego Mallo, a curta-metragem narrada pelo prprio Jos Saramago, que aparece igualmente como personagem da mini narrativa flmica disponvel para visualizao no website do Cineclube do Audiovisual Galego.

    * Doutorado em Estudos Anglo-Portugueses. FCSH. UNL Faculdade de Cincias Sociais e Humanas. Universidade Nova de Lisboa/Fundao para a Cincia e Tecnologia Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies (CETAPS). Lisboa Portugal. 1069-061 [email protected]

    Artigo recebido em 12 de outubro de 2010 e aprovado em dezembro de 2010.

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    Afirmamos num outro estudo (PUGA, 2004) que a metafico uma das caractersticas mais inovadoras deste conto infantil, e o mesmo pode ser afirmado relativamente narrativa flmica, sendo o prlogo de ambas as obras marcado pelo exerccio metaficcional, que frequentemente associado ao paradigma ps-moderno e que enfatiza a tentativa do narrador contar, ou melhor inventar, um conto que se quer simples, como as crianas. Trata-se, portanto, de um jogo retrico durante o qual o narrador-escritor confessa que no consegue contar histrias para crianas, mas comea a relatar como seria a histria que contaria caso o soubesse fazer, e, quando acaba, a histrica est contada.

    A adaptao do conto e a sua transformao em narrativa flmica ou audiovisual por Etcheverry levanta questes sobre a autoria do texto transformado, que obviamente, e apesar de conter vrios excertos do texto original, da responsabilidade do guionista, mas criado a partir do conto original de Saramago. alis bvia a liberdade criativa de Etcheverry ao construir, com a cooperao do autor portugus, a sua verso de A Maior Flor do Mundo (SARAMAGO, 2001), que ora se aproxima, ora se afasta do texto de partida, com o qual mantm forosamente uma relao de intertextualidade no apenas literria mas tambm cultural, saindo a mensagem ecolgica reforada na curta-metragem.

    O incipit e o eplogo metaficcionais das narrativas de que nos ocupamos remetem para a esttica da recepo de um determinado tipo de literatura, a infantil, e acabam por negar a simplicidade que muitas vezes lhe associada. A primeira parte das obras consiste na introduo metaficcional que, no caso do conto, se estende ao longo de quatro pginas at ao momento em que o narrador, que se auto-caracteriza como humilde, apresenta o heri-viajante e tambm deixa clara a sua prpria viagem interior, antes de narrar a do protagonista annimo, pois em tempos achara que a sua histria seria a mais bela escrita desde o tempo dos contos de fadas e princesas encantadas H quanto tempo isso vai! (SARAMAGO, 2001, p.6). A viagem igualmente a do leitor citadino implicado e interpelado pelo narrador, ou seja, o aluno que dever procurar os significados de vocbulos difceis no dicionrio ou perguntar ao professor, remetendo quer para a aprendizagem formal na escola, quer para a aprendizagem informal ou centrada no aluno que age e aprende por si mesmo, como o heri menino (SARAMAGO, 2001, p.9) do conto.

    A viagem um tema recorrente na Obra de Saramago como o demonstram, entre outras, as seguintes obras: A Viagem a Portugal, em 1981, a viagem da Passarola e de Blimunda em O Memorial do Convento, em 1982, A Jangada de Pedra, em 1986, O Conto da Ilha Desconhecida, em 1997 e A Viagem do Elefante, em 2008, sendo essa temtica tambm transportada para a curta-metragem. Relativamente ao ltimo romance por ns referido, o trajeto do elefante no sculo XVI que lhe d ttulo

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    funciona como uma metfora da vida humana, como sugere, desde cedo, a prpria sinopse da obra, tal como o tambm A Maior Flor do Mundo, pois metaforiza, como veremos, o altrusmo, o respeito do ser humano pelo equilbrio ecolgico, bem como vrios tipos de viagem: a aventura geogrfica e interior do protagonista e a viagem da leitura. Esta ltima viagem envolve o narrador e o leitor/espectador criana e adulto, como revela a provocatria sinopse que se encontra na contracapa do livro A Maior Flor do Mundo em forma de interrogao e que, por sua vez, encerra a narrativa flmica galega: E se as histrias para crianas passassem a ser de leitura obrigatria para os adultos? Seriam eles capazes de aprender realmente o que h tanto tempo tm andado a ensinar?. Tal como as demais epgrafes-sinopses nos romances de Saramago, esta estratgia literria encerra uma chave de leitura e de interpretao da mensagem que o Autor quer fazer passar, ou seja, indica ao leitor que os adultos ensinam a generosidade, a Ecologia e o valor do humani(tari)smo desinteressado mas, na realidade, no os praticam, gerando-se, desde cedo, o binmio em torno da inocncia da criana e do solipsismo que caracteriza o mundo adulto. Alis, na curta-metragem o individualismo adulto mais proeminente, pois no a comunidade a procurar o menino que se ausentara, mas apenas os seus pais, juntando-se a aldeia apenas no final, incluindo o Saramago-escritor, para observar a flor vertical que embeleza o horizonte. Por sua vez, essa mesma sinopse-epgrafe que interrompe o enredo da curta-metragem guisa de concluso dialoga intertextualmente com a dedicatria de uma outra obra infanto-juvenil, O Pequeno Prncipe, de Antoine de Saint-Exupry (1993, p.5):

    Peo perdo s crianas por dedicar este livro a uma pessoa grande. Tenho uma desculpa sria: [] essa pessoa grande capaz de compreender todas as coisas, at mesmo os livros de criana. [] Eu dedico ento esse livro criana que essa pessoa grande j foi. Todas as pessoas grandes foram um dia crianas. (Mas poucas se lembram disso).

    Tornou-se j lugar-comum afirmar que raro o romance ou o filme que no narra uma viagem, seja ela geogrfica, cultural ou interior, e o conto de Saramago e a sua adaptao flmica fazem isso mesmo: representam a caminhada de entrega e as descobertas do protagonista que, no tendo nome, se universaliza e simboliza qualquer criana, rumo ao crescimento interior, ao altrusmo incondicional e s impossibilidades a que apenas o sonho d forma. A ao de ambas as narrativas assenta, desde logo, quer na viagem ecolgica do heri menino, que se desloca para longe da sua pacata aldeia e da sua famlia alargada, quer tambm na informao incerta que o narrador do conto veicula ao confessar os seus conhecimentos limitados da ao que narra. Alis, como habitual na literatura infantil, nada no conto e na curta-metragem localizado num tempo e num espao especficos.

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    Relativamente ao contexto de produo e de recepo dos textos literrio e flmico de que nos ocupamos, atentemos numa entrada completa do blog pessoal de Jos Saramago intitulada Histria de uma Flor, na qual o Autor conta a histria de A Maior Flor do Mundo nos formatos de livro e de curta-metragem:

    A pelos comeos dos anos 70, quando eu ainda no passava de um escritor principiante, um editor de Lisboa teve a inslita ideia de me pedir que escrevesse um conto para crianas. No estava eu nada certo de poder desobrigar-me dignamente da encomenda, por isso, alm da histria de uma flor que estava a morrer mngua de uma gota de gua, fui-me curando em sade pondo o narrador a desculpar-se por no saber escrever histrias para a gente mida, a quem, por outro lado, diplomaticamente, convidava a reescrever com as suas prprias palavras a histria que eu lhes contava. O filho pequeno de uma amiga minha, a quem tive o desplante de oferecer o livrinho, confirmou sem piedade a minha suspeita: Realmente, disse me, ele no sabe escrever histrias para crianas. Aguentei o golpe e tentei no pensar mais naquela frustrada tentativa de vir a reunir-me com os irmos Grimm no paraso dos contos infantis. Passou o tempo, escrevi outros livros que tiveram melhor sorte, e um dia recebo uma chamada telefnica do meu editor Zeferino Coelho a comunicar-me que estava a pensar em reeditar o meu conto para crianas. Disse-lhe que devia haver um engano, porque eu nunca tinha escrito nada para crianas. Quer dizer, havia esquecido totalmente o infausto acontecimento. Mas, h que diz-lo, foi assim que comeou a segunda vida de A maior flor do mundo, agora com a bno das extraordinrias colagens que Joo Caetano fez para a nova edio e que contriburam de maneira definitiva para o seu xito. Milhares de novas histrias (milhares, sim, no exagero) foram escritas nas escolas primrias de Portugal, Espanha e meio mundo, milhares de verses em que milhares de crianas demonstraram a sua capacidade criadora, no s como pequenos narradores, tambm como incipientes ilustradores. Afinal, o filho da minha amiga no tivera razo, o conto, de transparente simplicidade, havia encontrado os seus leitores. Mas as coisas no ficaram por aqui. H alguns anos, Juan Pablo Etcheverry e Chelo Loureiro, que vivem na Galiza e trabalham em cinema, procuraram-me com o objectivo de fazer da Flor uma animao em plasticina, para a qual Emilio Aragn j tinha composto uma bela msica. Pareceu-me interessante a ideia, dei-lhes a autorizao que pediam e, passado o tempo necessrio, intil dizer que depois de muitos sacrifcios e dificuldades, o filme foi estreado. Eu prprio apareo nele, de chapu e bastante favorecido na idade. So quinze minutos da melhor animao, que o pblico tem aplaudido em salas e festivais de cinema, como foram, no passado recente, os casos de Japo e Alasca. Como foi igualmente o prmio que acaba de lhe ser atribudo no Festival de Cinema Ecolgico de Tenerife, felizmente ressurgido de uma paragem forada de alguns anos. Chelo veio a nossa casa, trouxe-nos o prmio, uma escultura

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    representando uma planta que parece querer ascender at ao sol e que, muito provavelmente, ir continuar a sua existncia na Casa dos Bicos, em Lisboa, para mostrar como neste mundo tudo est ligado a tudo, sonho, criao, obra. o que nos vale, o trabalho.(SARAMAGO, 2009).

    As 19 ilustraes do conto original poderiam ter influenciado Etcheverry quando este adaptou o conto de Saramago, mas tal no aconteceu, e o imaginrio de ambas as narrativas so distintos e caracterizados por campos semnticos e smbolos diferentes. A mensagem ecolgica bvia em ambas as obras, podendo estas ser interpretadas luz da chamada Ecologia Literria ou Ecocrtica, ou seja, do estudo da forma como a escrita literria representa, comenta e influencia a interao entre o ser humano e a Natureza atravs de temas que normalmente ocupam as chamadas Cincias Naturais, tais como a industrializao, o desenvolvimento, a poluio e o ecocdio, entre outros (GARRARD, 2004; DOBRIN; KIDD, 2004; GERSDORF; MAYER, 2006). Esta leitura do conto e da curta-metragem fortalecida em 2009 pela atribuio do j referido Prmio do Festival Internacional de Cinema Ecolgico e da Natureza das Ilhas Canrias adaptao de Etcheverry.

    A simbologia das duas narrativas assenta na metfora botnica da amizade e da entrega desinteressada ao Outro, neste caso a Natureza, que acaba por retribuir a proteo. No entanto, o protagonista da curta-metragem conta com um novo amigo, o escaravelho personificado cuja presena abre e encerra essa narrativa visual e cuja atividade, tal como a do protagonista, benfica para o meio fsico. O inseto marca uma presena constante na obra de Etcheverry e a sua (nica) ao contnua: vive para empurrar a bola de excrementos que posteriormente utiliza para se alimentar ou para albergar os ovos e alimentar os escaravelhos recm-nascidos. Devido ao fato de os escaravelhos colocarem os seus ovos em excremento dando, assim, origem a novas vidas a partir de um material pouco nobre, os egpcios associam esses animais renovao e ressurreio (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1993). Essa simbologia comunica quer com a leitura que podemos fazer da presena desse animal na curta-metragem, quer com a importncia ecolgica deste ao reciclar excrementos, ao enriquecer os solos agrcolas, ao espalhar sementes e ao manter a higiene do gado bovino (HANSKI; CAMBEFORT, 1991; LOSEY; VAUGHAN, 2006), benefcios implcitos que acentuam a mensagem ecolgica da narrativa flmica relativamente ao conto. Ambas as obras enfatizam, assim, a responsabilidade de manter o equilbrio do meio ambiente. Na narrativa flmica a mensagem ecolgica enfatizada atravs da adaptao livre do enredo, pois a flor murcha devido ao fato de o pai do protagonista arrancar a rvore que lhe fornece sombra para adornar o jardim da sua casa, no pensando no efeito que tal deciso tem nos ecossistemas circundantes. No entanto, o descuido do adulto corrigido pelo filho, a gerao seguinte, ao salvar a flor.

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    A ao principal da curta-metragem tem incio quando o protagonista captura um animal selvagem, o escaravelho, para o transformar em animal de estimao, uma temtica recentemente estudada por Nelson (2000) na literatura norte-americana, acabando o inseto por escapar. O animal em fuga torna-se o motor da viagem rumo ao desconhecido ao ser perseguido para l da segurana do muro da casa pelo menino, que vence o medo atravs de vales ridos e repletos de entulho, junto dos quais se encontra o rio, que a fonte de gua para o salvamento final. O bosque verdejante que o heri temporariamente independente atravessa marca o ritual de iniciao e o ultrapassar de uma fronteira simblica, funcionando como uma linha de limite entre a aridez urbana da aldeia e a aridez natural em que a planta se encontra a definhar. A perseguio do menino observada pelo escritor peripattico modelado em plasticina que se assemelha a Saramago e que narra a histria a partir do que testemunha at regressar a casa, tambm ela rodeada por um muro onde se encontra uma vaso com flores que decerto vieram de montes idnticos quele onde se d o milagre (SARAMAGO, 2001, p.24) referido no conto. Na narrativa flmica, os sentidos como a audio, a observao e o tato so exacerbados durante a viagem ecolgica do pequeno heri que sente a necessidade de explorar a natureza, longe da segurana paterna.

    No que diz respeito aos elementos paratextuais (GENETTE, 1987), as ilustraes do nico conto infantil de Saramago enriquecem a simbologia e a imagtica do texto que, por sua vez, acabam tambm por complementar. Os desenhos de Joo Caetano, por sua vez, dialogam com a histria escrita sobretudo atravs dos relevos e da textura das telas em que a narrao da viagem simultaneamente redigida e desenhada, ou seja, plasmada. Tons ocres, quentes e associados terra caracterizam essas ilustraes que, por sua vez, revelam na abertura do livro de Saramago o idoso Autor sentado secretria em busca de inspirao, rodeado de personagens que o espreitam dos recantos do seu quarto, espao que d progressivamente lugar ao mundo impossvel criado por esse mesmo escritor at que o menino observado a observar o mundo desconhecido que ir explorar. J na curta-metragem o escritor de plasticina assemelha-se a Jos Saramago e no se encontra no escritrio, mas na rua a passear e a escrever, numa atitude ativa, enquanto observa o mundo que o rodeia.

    A ilustrao nas pginas 10 e 11 do conto sugere o efeito de dpaysement ou dplacement (GEERTZ, 1988) que qualquer viajante sente quando deixa a sua zona de conforto ou a esfera da sua civilizao rumo alteridade, que, por sua vez, simbolizada e metaforizada atravs do rio Nilo e de espaos ridos como Marte ou a Lua (SARAMAGO, 2001). A sugesto do extico e do desconhecido conseguida atravs da representao de: globos terrestres, cidades de cdigos de barra, figuras chinesas, selos polacos e norte-americanos, pormenores dos biombos namban que representam a chegada dos portugueses ao Japo no sculo XVI; ilustraes de

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    locais exticos que no final da narrativa so substitudas pelo imaginrio rural e familiar da aldeia natal do heri. Nesse espao campesino, o vesturio, as jias, a arquitetura, os meios de transporte, a religio catlica, o mobilirio e at os gestos ilustrados funcionam como marcadores culturais, e a janela, enquanto espao de fronteira entre o universo domstico e o mundo exterior, continua a marcar uma presena simblica, tal como no incio da ao quando a curiosidade do menino exacerbada. Estabelece-se, assim, um processo a que podemos chamar enumerao visual de elementos exticos e que remete para a alteridade com que o viajante se confronta. Se Longino (1997, p.38) define exotismo como tout signe lintrieur du discours qui indique, dfinit, se rapporte des mondes, des cultures, des langues extrieurs lui-mme,1 o extico, ao gerar dvidas e reflexo, faz normalmente que o protagonista se reveja e se compare com o Outro, definindo-se, assim, a si mesmo. No entanto, esta interpretao da Potica do extico uma leitura sugerida apenas pela riqueza semntica dos elementos visuais ou paratextuais da obra, as ilustraes das pginas 7, 11 e 14 (animais exticos), 8 e 16 (navegadores portugueses no Japo) e 13 23 e 28 (pormenores de mapas de locais exticos), que, por sua vez, funcionam como ekphrases culturais.

    O extico, ao implicar a existncia de diferentes culturas e identidades, enfatiza as geografias implcitas no texto do conto, e explcitas nas ilustraes, bem como as posies que as diversas personagens assumem no espao da ao. O exotismo e o pitoresco so assim temas recorrentes nas ilustraes dos espaos fantsticos da viagem do menino entre culturas, pois ao autor que usufrui da liberdade potica tudo possvel criar. O Outro na breve narrativa de Saramago no assim extico, mas aquele que nos rodeia e que muitas vezes nos to estranho quanto o Outro longnquo. J no mini filme, a dimenso da alteridade extica no existe. O universo (re)criado por Etcheverry um mundo mais moderno do que o do conto, pois a famlia viaja inicialmente de automvel e vive numa zona cinzenta e em construo entre os mundos rural e urbano onde no h lugar para a Lua, para Marte e para o rio Nilo. O mundo flmico suavizado, e o menino heri no fica com os ps a sangrar de tanto andar para regar a flor, que ao crescer de forma hiperblica dialoga intertextualmente com o conto Joo e o P de Feijo, tambm conhecido como Joo e o Feijoeiro Mgico. A altura da planta poder remeter para o ponto de vista da criana, de altura ainda baixa, sendo a focalizao em torno da paisagem uma temtica predominante na curta-metragem, cujo incio apresenta o escaravelho por entre as ervas a empurrar eternamente a sua bola de excremento.

    A criana protagonista no tem total liberdade de viajar a no ser atravs do sonho, sendo, no conto, procurado e encontrado pela populao da sua aldeia, que

    1 Qualquer sinal no interior do discurso que sugere e define a relao com os mundos, as culturas e as lnguas exteriores (traduo nossa).

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    lhe atribui o estatuto de heri com base no gesto altrusta de cuidar de uma flor desconhecida que precisava de ajuda. A comunidade reconhece, assim, a grandeza do gesto humanitrio e ecolgico do jovem heri, demonstrando-lhe isso mesmo atravs do chamado reforo positivo. Como este estudo demonstra, so inmeras as diferenas entre as duas narrativas ao nvel da caracterizao das personagens, do enredo e da simbologia. Na curta-metragem de Etcheverry o ambiente e a comunidade rural so diferentes dos modelos originais, bem como a famlia do menino, apenas composta pelos seus jovens pais, atarefados com a construo de um lar num bairro e comunidade recm-construdos e que se assemelham a um estaleiro de construo civil povoado por maquinaria e gruas e rodeado por campos ridos nos quais a flor se destaca. Na adaptao flmica as palavras do narrador do conto original do lugar s imagens em movimento e sobretudo ao silncio das personagens cujos movimentos so, no entanto, pautados pela msica de Emilio Aragn. O enredo reduzido e centra-se sobretudo no objetivo da viagem ecolgica, ou seja, no salvamento da flor, no se observando, por essa razo, o reconhecimento final do jovem heri por toda a aldeia. Se as adaptaes de romances tendem, regra geral, a desagradar a crticos literrios caracterizados como puristas pela indstria do cinema (ELLIOTT, 2003; LEITCH, 2007), notrio o agrado quer de Jos Saramago, uma voz literria presente no incio e no fim da curta-metragem, quer do pblico espectador que reconhece o romancista como personagem de plasticina e voz off na adaptao visual de Etcheverry.

    No conto, a viagem-aventura tambm tem lugar no espao fsico das pginas do livro onde se encontram representados ou sugeridos os espaos da ao e o tempo cclico da infncia marcado sobretudo pela brincadeira: Logo na primeira pgina, sai o menino pelos fundos do quintal, e, de rvore em rvore, como um pintassilgo, desce ao rio (SARAMAGO, 2001, p.10). A viagem sinnimo de felicidade e liberdade, enquanto o movimento cronotpico2 do menino faz avanar a narrativa em ambas as narrativas. O carcter cronotpico da viagem, bem como as experincias sensoriais e intelectuais enriquecem assim o saber que a criana adquire sobre o mundo que o rodeia, num processo gradual de aprendizagem informal. A viagem, cronotpica por natureza, um tema constante no conto, cuja ao comea e termina no espao familiar da aldeia do protagonista, enquanto na adaptao flmica o menino vive num mundo mais fechado pelo muro do seu jardim e pelo automvel em que se desloca

    2 Bakhtin (2000, p.84) define a dimenso cronotpica do romance como [] the process of assimilating real historical time and space in literature [...] the intrinsic connectedness of temporal and spatial relationships that are artistically expressed in literature [...], it expresses the inseparability of space and time [...]. Spatial and temporal indicators are fused into one carefully thought-out, concrete whole. [[...] o processo de assimilao do tempo real histrico e do espao na literatura [...] a relao intrnseca entre tempo e espao que so artisticamente expressas pela literature [...], expressa a inseparabilidade do tempo e do espao [...]. Os indicadores espaciais e temporais fundem-se tudo concreto e bem estruturado] (traduo nossa).

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    quando a famlia sai do lar. No que diz respeito representao da geografia da viagem na narrativa original, esta mais cosmopolita do que no curta-metragem e tem uma dimenso tambm espacial. O menino sem nome vai de Marte Lua e passa pelo Egito, apresentando-se o universo ficcional marcadamente como cronotpico, embora o espao e o tempo especficos da ao no sejam identificados em nenhuma das obras, o que lhes confere uma certa universalidade e intemporalidade. Segundo a tipologia apresentada por Vice (1997), o crontopo funciona de trs formas: a) como meio atravs do qual o texto representa a histria, ou seja, a viagem ao longo do espao e do tempo, b) como imagem do tempo e do espao no romance a partir da qual a representao da histria (no caso, a viagem) construda, e c) como forma de discutir as propriedades formais do prprio texto em relao a outras narrativas, assentando as estruturas do conto de Saramago e da curta-metragem, em grande medida, na representao dos espaos (des)conhecidos, bem como do tempo em que o processo de descoberta e o regresso se desenrolam. O crontopo relaciona, assim, de forma ntima a vivncia e as aprendizagens humanas com o contexto em que estas tm lugar (MORSON; EMERSON, 1997), no caso o itinerrio da expedio solitria do jovem heri pelos espaos desconhecidos e pela aldeia que aprecia o salvamento da planta.

    O processo de leitura, implcito no exerccio metaficcional das palavras iniciais e finais do narrador, pode tambm ser interpretado como uma viagem em ambas as narrativas. Se Paul Ricoeur (1985, p.xi) define enredo tradicional como [...] the privileged means by which we re-configure our confused, unformed, and at the limit mute temporal experience3 e enfatiza as relaes de causa-efeito que uma narrativa estabelece entre os seus elementos atravs da representao do tempo, a narrativa da viagem que o leitor e o espectador acompanham em A Maior Flor do Mundo linear e baseia-se quer no resumo dos movimentos das personagens, quer em frases que veiculam a ao das personagens de uma forma geral, pois o formato do conto assim o exige: Este menino foi levado para casa, rodeado de todo o respeito, como obra de milagre (SARAMAGO, 2001, p.25). O percurso peripattico do protagonista do conto assenta no auxlio do Outro, ou seja da planta, e, na curta-metragem, no conhecimento do Outro, o escaravelho na curta-metragem. A viagem permite criana um maior conhecimento do mundo que a rodeia, e, se Northrop Frye (1957) afirma que a demanda ou a busca um dos motivos literrios mais universais, o enredo de ambas as narrativas baseia-se na procura do bem atravs de um ato inicial de transgresso (fuga) e da experimentao que tanto caracterizam a infncia.

    No conto, a voz do nosso menino (SARAMAGO, 2001, p.12) simples e o narrador deixa claro que os artifcios literrios so ferramentas do reino da escrita.

    3 A forma privilegiada atravs da qual ns reconfiguramos a nossa experincia temporal que confusa, disforme e no limite muda(traduo nossa).

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    O heri apenas se pergunta se deve ou no partir e quando o faz a aliterao, a enumerao, o visualismo, a soundsape ou paisagem sonora (PUGA, 2010) e a comparao aproximam o rodopiar do texto ao fluir do rio que o viajante observa desde que nascera (SARAMAGO, 2001). Os espaos ultrapassados so descritos atravs das suas formas geomtricas, da adjetivao e da enumerao, mas o jovem tem pressa de chegar ao destino final, como o narrador informa atravs do registo coloquial que caracteriza a pgina 17. O suspense marca a narrativa no momento em que o protagonista v a flor murcha e prova que se encontra atento ao mundo que o rodeia e queles que dele precisam. Na pgina 19, os verbos de movimento no Presente do Indicativo veiculam a azfama repetitiva do menino a atravessar o mundo at chegar Lua e ao rio Nilo cem mil vezes, espao onde recolhe gua para salvar a flor. O sangue nos ps da criana viajante simboliza o seu esforo hercleo at ao momento em que a sombra da planta , atravs da hiprbole, comparada de um carvalho. O heri adormece de fadiga e regressa a casa pelas mos dos pais e dos familiares que o procuram debaixo da flor que se levantara na colina, como que a proteger o menino e a assinalar a sua presena, semelhana da estrela de Belm (AZEVEDO, 2003). A temtica do regresso pe assim fim s aventuras do annimo viajante [...] que sara da aldeia para fazer uma coisa que era muito maior do que o seu tamanho e do que todos os tamanhos. E essa a moral da histria (SARAMAGO, 2001, p.26).

    A metafico presente no incio e no final do conto e da curta-metragem recorda-nos uma vez mais que estamos perante narrativas autoconscientes, tal como as define Robert Alter (1975, p.xi):

    [a] self-conscious novel is one that systematically flaunts its own condition of artifice and that by so doing probes into the problematic relationship between real-seeming artifice and reality [...]. A fully self-conscious novel is one in which [...] there is a consistent effort to convey to us a sense of the fictional world as an authorial construct.4

    Tambm Patricia Waugh (1984) define, entre outras marcas da metafico, a autoconscincia em torno da linguagem, da forma literria ou cinematogrfica e do prprio ato de ficcionalizar, podendo essa estratgia ser observada ao longo das obras de que nos ocupamos, pois as figuras de estilo e os comentrios metaficcionais remetem para o poder da linguagem utilizada pelo narrador e pelas personagens, bem como para o estatuto ficcional desses agentes.

    4 [Um] romance autoconsciente exibe a sua prpria condio de artifcio e ao faz-lo explora a relao problemtica entre o artificial que parece realidade e a realidade [...]. Um romance totalmente autoconsciente aquele [...] em que h um esforo consistente para veicular a sensao do mundo ficcional como um constructo do autor. (traduo nossa).

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    A temtica inicial da incapacidade do narrador-escritor para escrever histrias infantis regressa narrativa no eplogo, e o narrador afirma ironicamente que acaba de apresentar a histria que contaria se fosse capaz. Futuramente, o leitor/espectador-criana poder parafrase-la com palavras mais simples e tornar-se tambm autor de contos infantis, como se de um ciclo ou de uma viagem sem fim se tratasse. Ou seja, a intertextualidade (ALLEN, 2001) tambm um tema implcito no final do conto e da curta-metragem, relacionando-se quer com a viagem que os prprios textos literrios fazem no universo da literatura, quer com a influncia que os autores exercem entre si e com a recuperao de um mesmo episdio ou tema por autores diferentes ao longo dos tempos. A ltima frase das narrativas consiste numa interrogao e exortao indireta ao leitor-criana para que um dia se torne escritor e melhore a histria que agora acaba de ler/ver, ou para que viva como o menino que se tornou um heri ecolgico ao cuidar de quem necessitara do seu auxlio. este o desafio (duplo) que o narrador lana ao leitor que poder reescrever a viagem do menino, tal com Etcheverry o viria a fazer ao responder ao repto de Saramago: Quem sabe se um dia virei a ler outra vez esta histria, escrita por ti que me ls, mas muito mais bonita? [...] (SARAMAGO, 2001, p.29). Recordando o cariz oral(izante) do seu prprio estilo de escrita, Saramago, bem como o guionista galego, parecem concluir em unssono que quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto, e o escritor portugus continuar a lanar esse repto ao seus jovens leitores. O repto do sonho e da viagem que escrita.

    PUGA, R. M. de. The Ecological Voyage Theme in A Maior Flor do Mundo, by Jos Saramago, and in the Short Film A Flor Mis Grande do Mundo, by Juan Pablo Etcheverry. Revista de Letras, So Paulo, v.50, n.2, p.471-483, jul./dez. 2010.

    ABSTRACT: Three years after being awarded the Nobel Prize in Literature, Jos Saramago published the short-story A Maior Flor do Mundo, illustrated by Joo Caetano, which represents the ecological adventures of an altruist young hero far away from the comfort zone of his community. This article studies both the chronotope and the different kinds of voyage (including the ecological) as literary motives both in the narrative and in its screen adaptation, the short film A Flor Mis Grande do Mundo by Juan Pablo Etcheverry (2007).

    KEYWORDS: Jos Saramago. Ecocriticism. Travel. Chronotope. Film Narrative. Paratextual Elements. Metafiction.

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