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IR. JEAN-DOMINIQUE, O.P. A VERDADE ESTUDO FILOSÓFICO TRADUÇÃO: EURO B. DE BARROS APÊNDICE: PASCENDI DOMINICI GREGIS, DE SÃO PIO X EDIÇÕES SANTO TOMÁS CAMPO GRANDE/RIO DE JANEIRO

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  • IR. JEAN-DOMINIQUE, O.P.

    A VERDADE

    ESTUDO FILOSFICO

    TRADUO:

    EURO B. DE BARROS

    APNDICE:

    PASCENDI DOMINICI GREGIS,

    DE SO PIO X

    EDIES

    SANTO TOMS CAMPO GRANDE/RIO DE JANEIRO

  • 2003 Edies Santo Toms

    A VERDADE,

    de IR. Jean-Dominique, O.P.,

    sado originalmente nos nmeros

    2, 3 e 4 da revista Le Sel de la Terre,

    Couvent de la Haye-aux-Bonshommes,

    49240, Avrill, Frana.

    TRADUO:

    Euro B. de Barros

    APNDICE:

    Pascendi Dominici Gregis,

    de So Pio X

    Direitos de edio em lngua portuguesa

    reservados s EDIES SANTO TOMS,

    Rua Praia de Ondina, 37, Jardim Autonomista,

    Campo Grande, Mato Grosso do Sul, 79022-492.

    Tels.: (67) 3025-5274 e 8115-8522

    (21) 2528-3333 e 9666-2522.

    Site: www.edicoes.santotomas.com.br .

    E-mails: [email protected]

    [email protected].

    COORDENAO EDITORIAL:

    Marcel Assuno Barboza

    REVISO:

    Paulo Afonso Hernandez

    CAPA E PROJETO GRFICO:

    Sandra Gorz

    QUADRO DA CAPA:

    O Filsofo (de Rembrandt)

  • NOSSO ESPECIAL AGRADECIMENTO REVISTA LE SEL DE LA TERRE,

    QUE GENTILMENTE NOS PERMITIU

    A PUBLICAO DESTE ESTUDO.

  • SUMRIO

    I ................................................................................. 9

    Prembulo ............................................................ 13

    Artigo 1 Definio e Diviso da Verdade ..... 21

    II ................................................................................ 33

    Artigo 2 A Verdade Est no Julgamento ...... 35

    III .............................................................................. 47

    Artigo 3 O Verdadeiro e o Ser ....................... 49

    Artigo 4 O Verdadeiro e o Bem ..................... 61

    Concluso ............................................................. 67

    Apndice: Pascendi Dominici Gregis, de So Pio X ... 71

  • I

    A naja uma serpente terrvel. Ela cospe seu veneno a dois metros de distncia. Apontando para os olhos da vtima, cega-a, temporria ou definitivamente, e assim esta se torna presa fcil.

    Desde as nossas origens, a serpente tem o triste privilgio de representar o demnio, em razo da malcia e da mordida mortal que a caracteriza. Parece no entanto que, passados alguns sculos, a tcnica demonaca evoluiu. No contente em nos morder o calcanhar, como a vbora, descobriu um veneno que nos cega. A vbora tornou-se naja. Vejamo-lo.

    No incio do Cristianismo, o demnio atacava a f suscitando heresias. Mas a Igreja valeu-se dessas negaes fazendo delas ocasies para proclamar seus dogmas, ainda com mais fora e clareza. Oportet haereses esse, preciso que haja heresias (1 Co. 11, 19). Para fazer surgir almas e uma Igreja negadoras do objeto da f, seria preciso cegar a inteligncia humana, tornar-lhe impossvel qualquer contato com o verdadeiro. Assim fazendo, a f se diluiria no relativismo, as almas se perderiam sem o perceber.

    Como fcil de constatar, o atentado obteve xito.

    Quem nunca fez a seguinte experincia: falar durante uma hora com uma pessoa com o propsito de lev-la de volta Igreja; argumentar com toda a sabedoria; responder claramente a todas as suas objees; e, no entanto, ouvi-la dizer ao despedir-se: Tudo o que voc disse interessante, mas a sua verdade. O que importa estar bem onde nos encontramos? Ou: Muito bem... tudo isso era

    verdade... no passado.

    Estas reflexes revelam um mal profundo e universal. De fato, dizer que a verdade subjetiva atentar contra a nossa prpria inteligncia, na sua estrutura ntima e no seu exerccio natural. interditar qualquer conhecimento verdadeiro.

    Nesta anlise, seguiremos o papa S. Pio X na sua encclica Pascendi (8 de setembro de 1907). Sua Santidade enxergou numa falsa teoria do conhecimento o agnosticismo o ponto de partida do modernismo ( 6). E assim resume suas causas: Trata-se da aliana da falsa filosofia com a f, as quais, ao se misturarem, formam uma massa cheia de erros, danificando todo o sistema da f ( 58).

    Entre os remdios contra o modernismo, S. Pio X destaca, como o melhor, o ensino da filosofia

    que nos legou o Doutor Anglico (Santo Toms). E advertiu os professores de que desprezar Santo

    Toms, sobretudo nas questes metafsicas, traz prejuzos graves ( 63).

    A fim de seguir essas ordens do Santo Padre, voltamo-nos para Santo Toms de Aquino, o qual tratou, em vrias obras, da questo da verdade. Contentar-nos-emos em apreciar quatro artigos da Suma Teolgica, que nos do um resumo cativante do seu pensamento (I. q. 16, a.1 a a.4). Os citados artigos no constituem um tratado sistemtico do assunto, mas nos permitem refutar os erros e preceitos em voga na atualidade. Este estudo se desenvolver em cinco partes:

    Prembulo: A Necessidade da Verdade;

    Art. 1: Definio e Diviso da Verdade;

    Art. 2: A Verdade no Homem Que Conhece;

    Art. 3: A Verdade quanto Coisa Que Conhecida;

    Art. 4: A Verdade e o Bem.

  • PREMBULO

    Santo Toms extrai a definio de verdade, no seu primeiro artigo, de um fato supostamente admitido por todos: Chama-se verdadeiro aquilo para o qual tende a inteligncia. A verdade aquilo que toda a inteligncia busca.

    Santo Toms, dirigindo-se a pessoas de bom senso, no precisa explicar por que, assim como a vontade quer o bem, assim a inteligncia busca o verdadeiro. Segue adiante sem parar.

    Infelizmente, constatamos que essa evidncia negada por muitos contemporneos. Existem, certamente, inimigos ardorosos da verdade, isto , pessoas que a combatem por causa daquilo que crem ser verdadeiro, porm estamos, tambm, e cada vez mais, em face de um estado de esprito mais perigoso ainda. o indiferentismo. Toda curiosidade extinta, os espritos esto embotados, j no h sede de verdade. Vamo-nos encarregar, neste prembulo, de pr sob todas as luzes a ordenao1 essencial da inteligncia verdade.

    E no somente porque essa ordenao o ponto de partida do estudo de Santo Toms, mas porque aqui se verifica, mais uma vez, o adgio: No se faz beber um asno que no tem sede!

    Para isto, compreendamos bem o mtodo por seguir. Queremos esclarecer o seguinte fato: a inteligncia de todo homem feita para a verdade. Assim como a retina feita para receber a luz, e o pulmo o oxignio, a inteligncia tambm necessita conhecer a verdade. a sua prpria vida.

    Contudo, essa afirmao, se no se pode demonstrar, tambm no discutvel. uma evidncia.

    Diante de uma evidncia, s temos duas coisas a fazer: constatar que ningum poderia mudar de assunto (neste ponto, preciso observar o comportamento humano), e, a seguir, examinar com ateno cada um dos termos da evidncia, de modo que sua conformidade salte aos olhos.2

    I OS HOMENS VIVEM DE VERDADES

    queles que negavam a existncia de princpios (isto , verdades ao mesmo tempo indemonstrveis e indiscu-tveis), Aristteles respondia simplesmente: No preciso pensar em tudo o que se diz.3 Noutras palavras, voc pode sempre negar essas verdades com sua lngua, mas seu esprito no pode recus-las sem destruir-se, e voc as utiliza sem cessar.

    Um simples olhar na vida dos homens permite-nos constat-lo. Observemos o homem supostamente ais indiferente verdade existente: ele nos mostrar que, se pode negar com a boca a necessidade da verdade, sua vida inteira, porm, tensionada por esse desejo.

    Esse homem nasceu como todos. Ento, o que foi que disse? No parou de perguntar: por qu?, o que isto? Atravs dessas perguntas a verdade das coisas que reclamava.

    Tendo crescido, vai escola, talvez venha a cursar longos anos na universidade. Por que tantos esforos? Sobre o que versaram seus exames? Sobre a verdade. o verdadeiro que se entregou a ele, pouco a pouco. o verdadeiro conhecimento das coisas que se esperava dele.

    Terminados os estudos, deseja casar-se. E ento, mais do que nunca, o que exige da sua futura esposa? A verdade. A verdade do seu sim, a verdade do seu amor. Por nada no mundo quereria construir sua vida conjugal sobre uma mentira.

    O homem estabeleceu-se, tem um bom trabalho, mas deseja subir de nvel. Para tanto, busca informar-se. Pode-se imaginar o nmero de vezes que, durante sua vida, ter aberto um jornal ou um livro, ligado a televiso, ou o rdio, para saber das notcias. Seria impressionante. Ora, com cada um desses gestos o que procura ele? A verdade. Entende que lhe so fornecidas informaes verdadeiras.

  • Nosso homem festeja seu aniversrio. Para regar a refeio, traz de sua adega uma das suas melhores garrafas. Que espera do rtulo? Como sempre, a verdade. Mas que falta de sorte, logo na frente dos seus convidados, se em lugar do vinho generoso anunciado, lhes servisse um vinagre!

    E o que, dizer ento, de quando fica doente? Prepara-se para ser atendido por um mdico da mais alta competncia, e no por um charlato. Aquele lhe far um diagnstico verdadeiro.

    II ANLISE DA INTELIGNCIA E DA VERDADE

    Se observarmos agora, de mais perto, a vida da inteligncia, em si e nas suas relaes com as demais

    faculdades, apreenderemos, imediatamente, a necessidade que ela tem da verdade como de seu objeto prprio.

    1) A Vida da Inteligncia

    Uma breve anlise da linguagem bastar para que nos demos conta disso. A linguagem , de fato, a expresso imediata da vida do esprito. como sua traduo fiel.

    Ora, se observarmos com ateno, perceberemos que, a despeito da sua infinita complexidade, a linguagem humana pode reduzir-se a proposies muito simples.

    A afirmao diz: A B. A negao: A no B. A pergunta : A B?

    Parece que o centro da linguagem, o eixo em torno do qual se articula, o verbo ser.

    Pois isto no passa da manifestao exterior da nossa inteligncia, que se encontra, pois, toda centrada no ser. na medida em que alcana o ser das coisas que ela encontra seu repouso. o que se verifica com os dois sentidos do verbo ser:

    seja quando significa a existncia real, como quando se diz: Pedro , Deus ;

    seja quando significa a natureza da coisa, ou uma das suas qualidades, por exemplo: Pedro marceneiro, Pedro doente.4

    Ora, alcanar o ser das coisas conhec-las tais como so na realidade. o contrrio da iluso, estar em verdade. Tal , pois, a atividade vital da inteligncia, a conquista da verdade.

    2) A Inteligncia em Suas Relaes com a Vontade e a Imaginao Observemos, agora, o papel da inteligncia em face das demais a potncias, isto , a vontade e a

    imaginao. Veremos, pois, claramente, que uma inteligncia privada da verdade fraca, j no tendo nenhuma

    influncia sobre as faculdades que deveria dirigir.

    Primeiro a vontade. um apetite espiritual que se dirige para o bem.

    Mas, por si mesma, a vontade cega. Ela deseja o bem tal qual a inteligncia lhe apresenta. Somente a inteligncia pode conhecer o que bom para ns e, depois, o que far nossa felicidade.

    O que a vontade espera, pois, da inteligncia que ela lhe dite o verdadeiro bem, a verdade. Uma inteligncia privada da verdade seria como um cego que conduzisse outro cego. O Evangelho nos diz a conseqncia disso: os dois infelizes caem juntos no buraco (Mt. 15,14).

  • O mesmo ocorre com a imaginao, se a entregamos a si mesma. Todos sabemos que prodigiosa fecundidade tem a imaginao. Sonhar, enfeitar ou enegrecer os fatos, reduzi-los ou amplific-los, inventar ou adivinhar, tudo isso corre por sua conta.

    Mas ningum ignora seus limites. Por ela mesma, no h nenhuma aquisio do real. Um homem pode imaginar que ganhou na loto, planejar suas frias e reorganizar sua vida, mas isto no o tornar mais rico. Em tal imaginar encontrar, ao contrrio, a fonte de cruis decepes.

    Podem-se adivinhar os desgastes de uma imaginao entregue sua fantasia. Assim como a sensibilidade, ela uma boa serva, mas uma m patroa. O que ela pede, pois, inteligncia que a dirija, isto , que lhe diga no que ela est de acordo com o real ou no. Ainda a verdade.

    V-se, definitivamente, que a inteligncia s pode exercer sua autoridade sobre a vontade e a imaginao na medida em que est iluminada pela verdade.

    3) A Alegria da Verdade

    -nos dado um sinal nesta sede da inteligncia pela alegria que ela prova quando alcana uma verdade. Observemos:

    a alegria da criana que se maravilha diante de tudo o que v;

    a alegria do pesquisador que descobre uma nova lei aps dias de trabalho;

    a alegria dos amigos que se estimam;

    a alegria do filsofo que penetra, pouco a pouco, a natureza das coisas, a harmonia do universo e, alm, a causa primeira. O cume da felicidade, disse Aristteles, a inteligncia das coisas belas e

    divinas.5

    Essas alegrias que, a ttulos diversos, so o fruto de um conhecimento verdadeiro nos ensinam uma lei geral: a alegria da verdade. Gaudium de veritate.6 Muito fraca para as verdades de ordem inferior, ela se torna universal e triunfante quando se pe sobre as realidades mais altas.7

    Concluamos este prembulo olhando o caminho percorrido: os homens vivem, necessariamente, com a idia da verdade. A posse da verdade a prpria vida da inteligncia, a condio para cumprir seu papel sobre as demais potncias, a fonte dessa alegria.

    Fica claro, pois, que o indiferentismo, em face da verdade, um erro contra a natureza. Negar a necessidade da verdade negar a prpria inteligncia, rebaixar o homem ao plano do animal. Deixaremos, de bom grado, aos defensores dessa tese o cuidado de destruir o homem e povoar os zoolgicos.

    Quanto a ns, esforar-nos-emos para trazer a lume essa atividade fundamental da vida humana, quer dizer, o conhecimento da verdade por meio da inteligncia.

  • ARTIGO 1 DEFINIO E DIVISO

    DA VERDADE

    A fim de descobrirmos em que consiste, exatamente, a verdade, acompanharemos Santo Toms no seu primeiro artigo, que leva o ttulo: A verdade est nas coisas, ou to-somente na inteligncia?

    A linguagem corrente utiliza o termo verdade em dois sentidos. Para comear, diz-se que uma coisa verdadeira, por exemplo: este cinto de couro legtimo (verdadeiro), tal acontecimento nos causa verdadeira felicidade, tal homem um verdadeiro artista. Quer-se dizer com isso que a coisa em questo realiza plenamente sua definio, ou que ela corresponde perfeitamente inteno de quem a faz. Essa verdade se chama verdade ontolgica.

    Por outro lado, empregamos o termo verdade para dizer que tal propsito verdadeiro, tal assero verdadeira, ou, ao contrrio, que tal concluso falsa. a verdade lgica.

    Dessas duas acepes, qual convm mais propriamente verdade? A resposta de Santo Toms vai-nos dar a definio de verdade.

    Uma vida consagrada verdade uma vida sacrificada, por certo, pois se trata de restaurar a ordem destruda, isto , a primazia da contemplao. Mas ela tambm est subentendida na alegria e no entusiasmo da pesquisa, no maravilhar da descoberta.

    Seu caminhar pode resumir-se em trs proposies.

    1. H verdade quando h conhecimento completo.

    2. H conhecimento quando h certa presena do objeto naquele que o conhece, e, pois, certa conformidade da inteligncia coisa.

    3. A verdade est, pois, primeiramente na inteligncia (verdade lgica), e secundariamente nas coisas (verdade ontolgica).

  • Estas so as duas primeiras asseres de Santo Toms que nos interessam aqui, para que definamos o que a verdade.

    1) H Verdade Quando H Conhecimento Completo

    Santo Toms parte do princpio que verificamos no prembulo: Chama-se verdadeiro aquilo para o qual tende a inteligncia.

    Ora, aquilo para o qual tende a inteligncia o conhecimento. Ela busca conhecer o que a cerca, to profundamente quanto possa.

    A verdade , portanto, o carter do nosso conhecimento: estar na verdade, conhecer as coisas realmente. O verdadeiro o termo em que o conhecimento repousa, seu bem, sua perfeio, seu

    coroamento; ao passo que o erro o seu insucesso, seu aborto, seu mal, sua imperfeio.8

    Se digo, por exemplo, que tal homem marceneiro, celibatrio e protestante, enquanto ele de fato confeiteiro, casado e catlico, eu no o conheo realmente, no estou na verdade.

    A rigor, no h conhecimento completo que no seja verdadeiro. Um conhecimento falso no um co-nhecimento.

    Do mesmo modo que a essncia de um retrato conformar-se ao modelo, e, se no o faz, j no um retrato, assim tambm a natureza do conhecimento corresponder ao seu objeto, adaptar-se exatamente a ele; se no o faz, no existe como conhecimento; se o faz, est tudo dito, ele verdadeiro.9

    (Notemos, entretanto, que um conhecimento pode ser inteiramente verdadeiro sendo limitado. Este sempre o nosso caso. No sabemos absolutamente tudo e, no entanto, sabemos algumas coisas.)

    2) Como Se Realiza o Conhecimento?

    Esta questo nos conduzir noo exata da verdade. Santo Toms diz, sem explicaes: H

    conhecimento na medida em que o conhecido est no conhecedor.

    Aqui reside a dificuldade: Como o objeto conhecido pode estar naquele que conhece?

    Perguntemo-lo, antes, linguagem corrente. Numerosas expresses traduzem a idia de conhecimento, com termos que expressam certa posse, uma tomada:

    Recebe-se uma informao; compreende-se (aprende-se com) um problema; assimila-se uma idia; abraa-se toda uma questo; possui-se um motivo, ou, ao contrrio, ele nos escapa.

    Certas comparaes so tomadas da nutrio: fala-se em devorar um livro; nutrir-se da Bblia; ter digerido bem um texto (= t-lo compreendido bem). Diz-se, tambm, que tal discurso nos enriqueceu.

    Essas expresses sugerem a idia de que conhecer tomar, captar algo de real, possu-lo em si de certa maneira. Por exemplo: quando acabamos por surpreender uma ao encoberta, ou por saber um segredo, sentimos perfei-tamente que, da em diante, levaremos conosco esse fato, ou nos sentimos um pouco como o ladro que leva seu roubo.

    Em resumo, o conhecimento um ato pelo qual a inteligncia toma o objeto que conhece, tornando-o presente nela de certa maneira.

    Essa presena no poderia ser fsica, certamente. No pode ser seno espiritual, dado que a inteligncia que a recebe , ela prpria, espiritual.

    No nos proporemos, aqui, a questo a respeito de como uma coisa material pode estar presente numa inteligncia espiritual. Vamo-nos contentar em constatar que essa presena uma informao.

  • A inteligncia, antes de conhecer, como um quadro-negro (tabula rasa, disse Aristteles). Quando posta em contato com seu objeto, ela recebe um aperfeioamento, como se fosse um acrscimo, que no outra coisa seno um simulacro do objeto. De certa maneira ela se torna seu

    objeto pela informao que recebe dele. A inteligncia se transforma de acordo com o seu objeto, e se modela sobre ele.

    O objeto conhecido a perfeio daquele que conhece, diz Santo Toms.10

    Vinculemos esses resultados nossa primeira afirmao (H verdade quando h conhecimento

    completo), e seremos, ento, levados a constatar o que a verdade: A verdade est na inteligncia na

    medida em que esta se torna conforme coisa inteligida.

    Tornar conforme quer dizer que a forma, isto , a determinao que aperfeioa da em diante a

    inteligncia, a luz que a clareia, uma similitude da coisa conhecida.

    A inteligncia que conhece verdadeira (ela est na verdade) enquanto tem uma similitude com a

    coisa conhecida, similitude que sua forma tanto quanto a conhece.11

    A inteligncia verdadeira na medida em que est identificada (adaequatur) coisa conhecida.12

    Encontra-se a verdade na inteligncia na medida em que ela apreende a coisa tal qual .13

    Isso o que exprime esta definio de verdade, formulada por um filsofo rabe do sculo X (Isaac), e reproduzida aqui por Sto Toms: Veritas est adaequatio rei et intellectus: A verdade a adequao (= confor-midade, correspondncia) entre a inteligncia e a coisa.

    Esta definio completa? No, porque resta precisar em que ato da inteligncia reside a verdade (o julgamento). Este ser o segundo artigo de Santo Toms. Mas agrada por enquanto, porque suficiente para responder questo que se pe: a verdade reside, com propriedade, na inteligncia. Ela est nas coisas secundariamente.

    Ficaremos ns, tambm, com esta definio, porque ela lana uma luz muito forte sobre o nosso objeto, e vai permitir-nos responder, j, a certas opinies errneas.

    A lio principal que ela nos d consiste em que a verdade uma relao entre dois termos: um sujeito que conhece e o objeto conhecido. Relao de conformidade e, portanto, de dependncia, que resulta de ter sido o sujeito transformando, aperfeioado por tal ou qual caracterstica do objeto.

    Os erros mais importantes que encontramos a esse respeito provm, precisamente, do esquecimento da existncia de um dos dois termos da relao, isto , do objeto conhecido. Apontaremos quatro.

    a sinceridade que faz a verdade.

    a maioria que faz a verdade.

    orgulho pretender possuir a verdade.

    A verdade evolui.

    RESPOSTAS A ALGUMAS OBJEES

    I SINCERIDADE E VERDADE

    O que conta estar bem consigo mesmo... estar de acordo com a sua conscincia... ser feliz como se

    ... dizer o que se pensa... o que vale a espontaneidade da palavra ou do gesto.

    Essas reflexes voltam, freqentemente, aos lbios dos nossos contemporneos. Elas desenvolvem uma mesma idia: a sinceridade que faz a verdade. Estar na verdade consiste, ento, em estar conforme a uma coerncia interior, em no encontrar nenhum obstculo, nenhuma dvida no desenvolvimento da nossa vida psicolgica.

  • A primeira resposta que podemos dar a essa opinio constatar que os asilos esto cheios de pessoas coerentes consigo mesmas, que seguem sua conscincia. Pode-se at pensar que os maiores inimigos da humanidade, como Herodes ou Stalin, tenham sido homens sinceros. Esse critrio de verdade , pois, muito fraco!

    Isso aparece ainda mais claramente se nos reportarmos definio de verdade. Limitar a verdade sinceridade negar um dos termos da adequao. A verdade deixa de ser a conformidade com a coisa real que ela conhece. fazer do conhecimento como que um jogo solitrio. Para que haja verdade preciso uma comparao, um contato com o real. o que expressou Aristteles: Tu no s branco

    porque julgamos que sejas branco, mas, ao contrrio, julgamos que s branco porque o s na realidade. Donde manifesto que a disposio da coisa (aquilo que a coisa em si mesma) que a causa da verdade do pensamento e da palavra...14 No se pode expressar melhor o carter objetivo da verdade. Voltaremos ao assunto no Artigo 3.

    II MAIORIA E VERDADE. A primeira opinio a que respondemos destruiria a verdade limitando-a conformidade de um

    homem consigo mesmo.

    A segunda que se nos apresenta faz consistir a verdade na conformidade com a opinio da multido. O que diz a maioria das pessoas, o que se diz, o que pensa a opinio pblica, os

    produtos do sufrgio universal, ou at aquilo que se diz na televiso, a esto os critrios da verdade

    de muitos dos nossos contemporneos.

    O mal mais grave ainda, quando assistimos, simplesmente, a uma demisso da inteligncia. Como a opinio anterior, esta no s no d conta do objeto real por conhecer, mas, em acrscimo, destri o prprio sujeito, interditando-lhe sua atividade prpria de apreenso imediata do real, de raciocnio, de verificao. Ela se afasta ainda mais da definio da verdade. Reco-nheamos, da mesma maneira, que em certos casos, supondo que os homens sejam direitos e bem-informados, o que foi crido por todos, e por toda a parte, tem certa chance de ser verdadeiro. Porm esse acordo universal no mais que um indcio de verdade, no um critrio absoluto.

    III POSSE DA VERDADE: ORGULHO OU HUMILDADE?

    A terceira opinio toma a forma de reprovao freqentemente dirigida s testemunhas da verdade: Dizeis ter a verdade? Que orgulho! Que auto-suficincia! Filsofos bem mais inteligentes que vs tm sabido reconhecer seus limites. Ademais, as constantes controvrsias entre os homens bem provam a inanidade da vossa pretenso. Valeis mais que os outros? A isto respondemos: sim e no.

    Sim, orgulho pretender ter a verdade, se ns mesmos a fazemos. Sim, orgulhosa a inteligncia que deseja ser a regra da verdade, e que se esfora por constru-la. Veremos nos artigos seguintes que esse , precisamente, o erro fundamental dos filsofos contemporneos. Citemos, a ttulo de exemplo, Jan Jaurs (1859-1914), mestre do pensamento daqueles que nos governam: Toda verdade que no vem de ns uma mentira. Se o prprio Deus aparecesse diante das multides de forma palpvel, o primeiro dever do homem seria recusar obedincia, e consider-lo como a um igual com quem discute, e no como a mestre que o tivesse submetido.15

    Ao contrrio, a definio da verdade que resgatamos mostra-nos o estado de total dependncia da inteligncia em face do real.

    Longe de ser uma marca de orgulho, a posse da verdade , portanto, a marca de certa humildade. o sinal de que a inteligncia soube deixarse gravar e ser informada.

    um sinal muito importante que nos impede de seguir por caminho falso.

  • A inteligncia no aborda a verdade como um superior. Aproxima-se como um mendigo, um inferior. A inteligncia est a servio da verdade, e no o inverso. Servio afetuoso, por certo, e entusiasmado, porm respeitoso.

    So Bernardo desenvolve essa idia no incio do seu tratado sobre Os Graus da Humildade e do Orgulho. A verdade a que ele visa o prprio Nosso Senhor, a Verdade. Mas o que ele diz tambm se aplica, muito bem, s parcelas de verdades que podemos esperar.

    Comenta a palavra de Jesus: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo. 14, 16). O Caminho a humildade que conduz Verdade. Para justificar sua interpretao, cita Nosso Senhor: Aprendei de

    mim, que sou doce e humilde de corao (Mt. 11, 29). Ele se oferece, pois, como modelo de humildade e doura. Se for imitado, no se andar nas trevas, mas luz da vida (Jo. 8,12). Ora, o que

    a luz da vida seno a verdade, a verdade, digo, que ilumina todos os homens deste mundo e lhes mostra o verdadeiro caminho? [...] Considero o caminho, isto , a humildade, e desejo o fruto, quer dizer, a verdade. [...] O conhecimento da verdade se encontra no alto da escada da humildade.

    S. Bernardo cita, igualmente, e comenta no mesmo sentido, a prece de Nosso Senhor (Lc. 10, 21): Eu vos dou glria, meu Pai, Senhor do Cu e da Terra, cujo conhecimento das coisas encobristes isto , a verdade aos sbios isto , aos orgulhosos e que revelastes aos pequenos isto , aos humildes. Por a se v que a verdade coberta para os soberbos e revelada aos humildes.

    IV A VERDADE EVOLUI

    Esse novo slogan tambm freqentemente encontrado: O que dizeis interessante, mas valia noutros tempos; o que era verdadeiro ontem, j no o hoje.

    A definio de verdade continua a nos dar a resposta. O critrio da verdade a conformidade da inteligncia ao real. Da, se o objeto conhecido no muda, a verdade no mudar. Ao contrrio, se o objeto muda, o que dizamos dele j no ser verdadeiro.

    Se encontro um menino, por exemplo, que mede um metro e se afirmo: Ele mede um metro, estou na verdade. Se alguns anos depois, ao passo que o menino cresceu 20 cm, eu continuo a afirmar que ele mede um metro, estou em erro. A verdade mudou. Ao contrrio, se afirmo do menino, nessas duas pocas, que ele tem natureza humana e, portanto, que deve obedecer a tais leis e que feito para o Cu, ento digo uma verdade que no muda.

    A permanncia (ou, ao contrrio, a variao) da verdade decorre da permanncia (ou mudana) do objeto. Decorre da caracterstica objetiva da verdade.16

    Eis, portanto, as caractersticas da verdade que a sua definio nos permite conhecer, e que essas objees fizeram ressaltar: a verdade objetiva, imutvel (na medida em que o objeto imutvel)

    Essa mesma definio guiar o prosseguimento do nosso trabalho. A verdade, sendo a adequao da inteligncia ao real, e portanto uma relao entre dois termos, far com que seja necessrio estudar o papel especial desses dois termos na gnese da verdade.

    O artigo 2 estudar a verdade do lado da inteligncia. Em que ato da inteligncia se situa, e como ela a nasce.

    O artigo 3 considerar a verdade do lado do objeto.

    Um ltimo artigo nos permitir tirar algumas concluses prticas ao estudar as relaes entre o bem e a verdade.

  • II

  • O primeiro artigo da questo em que Santo Toms estuda a verdade, na Suma Teolgica (I, q. 16, a. 1), permitiu-nos resgatar a definio da verdade: A verdade a adequao entre o real e a inteligncia.

    Na sua simplicidade, essa definio parece evidente, e no dever suscitar nenhuma dificuldade.

    No entanto, quando se estudam de perto os sistemas de pensamento que dirigem a vida intelectual da Europa desde o sculo XVII, verifica-se que todos tm como ponto de partida a negao dessa definio. Essa rejeio como um fundo comum que une todos eles.

    Isso aparece, por exemplo, num manual de preparao para um exame de filosofia.

    No captulo verdade, um resumo histrico descreve assim a concepo da verdade na Idade Mdia:

    Na Idade Mdia, a famosa adequao entre a coisa e o esprito o que constitui a doutrina da

    verdade. A verdade , ento, a conformidade e adequao do nosso pensamento s coisas.

    Muito bem.

    O texto prossegue em forma de comentrio: Mas o que pode significar uma verdade-cpia? Toda verdade supe uma construo, no uma fotografia pura e simples da realidade.

    Aps essa execuo sumria, passa imediatamente aos dois filsofos que solaparam tal concepo realista: Descartes e Kant.17

    Uma oposio quase generalizada caracteriza a questo. Ns a abordamos como a um divisor de guas. Segundo a posio que tomamos, nossa vida intelectual, moral, poltica, religiosa se estabelecer em mundos totalmente diferentes. Mais do que em qualquer outro lugar, no temos a direto de nos enganar.

    Os que nos objetam a argumentao incitam-nos, igualmente, a prolongar nosso estudo a partir do mesmo ponto em que o deixamos. Essa verdade-cpia, que eles recusam, e que seria como que uma fotografia, onde o sujeito permanece puramente passivo, essa verdade no aquela da adequao. No a do realismo. Vemo-nos obrigados a precisar e defender esta ltima.

    ARTIGO 2 A VERDADE EST

    NO JULGAMENTO

  • A verdade nos apareceu como uma relao de conformidade, no seu ato de conhecimento, com o real. No seu segundo artigo, Santo Toms estuda a verdade do lado do primeiro termo, a inteligncia. No terceiro, estud-la- do lado do real.

    Ele procede da seguinte maneira: compara a verdade lgica (verdade na inteligncia) com a verdade ontolgica (verdade das coisas), a fim de deduzir sua diferena e melhor determinar a primeira.

    Verdade ontolgica consiste na conformidade de uma coisa com a inteno daquele que a fez. Uma

    coisa verdadeira enquanto possui a forma18 que responde sua natureza.19 Noutros termos, uma coisa verdadeira quando deve ser para ser tal coisa e no outra. Fala-se, assim, de um couro verdadeiro (legtimo), de uma casa verdadeira. So verdadeiros na medida em que suas formas prprias constituem as coisas e a inteligncia do seu autor.

    A verdade na inteligncia, que estamos tratando, ser, tambm, uma igualdade de formas.

    Conformidade da natureza concreta da coisa, como no primeiro caso, com, desta vez, toda a inteligncia que a conhece.

    Quando uma inteligncia conhece, possui em si uma similitude intelectual da coisa, chamada conceito. Esta uma nova perfeio da inteligncia que faz com que ela conhea realmente a coisa. Esse conhecimento ser verdadeiro quando houver conformidade entre os dois: A inteligncia, quando conhece, verdadeira na medida em que possui uma similitude da coisa conhecida.

    Mas bem se v pela experincia que, para estar na verdade, no basta ter em si o conceito de uma coisa, nem que esse conceito seja conforme ao real. preciso mais.

    Para que haja verdade, necessrio extrair essa conformidade.

    Demos um exemplo: Vejo uma vaca que pasta no campo. Experincias anteriores tinham formado em mim o conceito de vaca, que renasce na ocasio desse encontro, conceito que corresponde, efetivamente, natureza desse animal. Haver verdade quando eu tiver feito a relao entre esse conceito e a coisa real, quando eu conhecer a conformidade do animal minha inteligncia, e quando eu afirmar: este animal uma vaca.

    A inteligncia conhece e diz a verdade quando julga que a coisa tal qual a forma (o conceito) que ela extrai.

    A questo do nosso artigo esta:

    Em que faculdade do conhecimento se situa a verdade assim entendida? Qual pode realizar essa comparao entre o conceito e o real, e afirmar sua conformidade? Para responder a isso, Santo Toms procede por eliminao, passando em revista as potncias cognitivas do homem.

    1) O Conhecimento Sensvel

    Como os outros animais, o homem dotado de sentidos que o abrem ao mundo exterior, permitindo-lhe certo conhecimento.20

    O conhecimento sensvel comea pela atividade dos sentidos externos (viso, audio, tato, olfato, gosto). uma percepo imediata do objeto fisicamente presente. Cada um apreende uma qualidade particular do real (cor, som etc.), ao receber uma similitude sensvel. O sentido da viso tem em si uma similitude do objeto visvel.21

    O conhecimento sensvel pode pretender a verdade?

    Sim, de certa maneira, dado que por ele o sujeito recebe uma imagem sensvel do objeto. Cada sentido atinge imediatamente seu objeto, e, deste fato, a imagem que leva fiel ao objeto.22 Porm essa conformidade, ela prpria, no conhecida. O sentido no percebe essa semelhana com o real. O

    sentido da viso no conhece a relao que h entre a coisa que ele v e o que representa.

  • No h, pois, propriamente, verdade lgica nos sentidos. Se se diz que a sensao verdadeira, sobretudo sobre o modelo da verdade ontolgica. A verdade pode estar nos sentidos (no

    conhecimento sensvel) como numa coisa verdadeira(ut in quadam re vera).

    2) A Primeira Operao do Esprito

    O conhecimento sensvel, por exato que seja, no menos limitado. Ele no nos entrega seno as caractersticas fsicas do real. Ora, o homem no se contenta com esses conhecimentos. Ele quer ler mais profundamente nas coisas, quer descobrir o que as coisas so em si mesmas.

    Um homem, por exemplo, acaba de apanhar, no seu jardim, um dorforo do Colorado. A uma amiga intrigada que lhe pergunta que animal esse, ele no responde assim: Mede sete milmetros, rajado de preto e branco, tem tal cheiro. Ele dir: um inseto, um coleptero, um dorforo do Colorado.

    Noutras palavras, revelar ao interlocutor a prpria natureza dessa coisa, o que ela , abstraindo suas qualidades sensveis. Ora, este o fato da inteligncia.

    Uma vez que a natureza de uma coisa ultrapassa suas propriedades fsicas, a uma potncia imaterial que ele voltar a aderir, isto , inteligncia. E, de fato, o primeiro contato da inteligncia com o real sensvel consiste em abstrair a natureza. Essa primeira operao do esprito se chama a

    simples apreenso. Sua funo descobrir o que a coisa, ler sua qididade.23 Por abstrao, forma o conceito da coisa.

    Encontramos nessa operao da inteligncia o assento da verdade, que estamos procurando neste artigo?

    RESPOSTAS A ALGUMAS OBJEES

    Como dissemos no incio, a doutrina realista da verdade enfrentou uma violenta oposio. Os limites do nosso trabalho no nos permitem apresentar e refutar, pormenorizadamente, os grandes filsofos que se fizeram chefes de escolas. Contentar-nos-emos em focalizar trs objees, dentre as mais propagadas, e a responder a elas brevemente.

    I Nossos sentidos nos enganam. Muitas experin-cias o comprovam, como, por exemplo, o basto metido na gua que parece quebrado, as miragens no deserto, o sonho que parece verdadeiro. Ora, considerando que a doutrina realista da verdade est fundada sobre o conhecimento sensvel, ela como que um castelo construdo na areia...

    Santo Toms responde a isso, nos artigos 2 e 3 da I, q. 17. Ele observa, simplesmente, o funcionamento do conhecimento sensvel. Um sentido conhece uma coisa na medida em que uma

    similitude da coisa est nele [...] assim como na viso h uma similitude da cor (a. 2). Ou o sentido informado diretamente pela similitude do objeto que lhe prprio (a. 3), isto , pela qualidade

    sensvel que ele considera na coisa fsica (a cor pela vista, o som pela audio etc.). porque o sentido externo atinge imediatamente o seu objeto, sem nenhum intermedirio, que o percebe infalivelmente. O sentido no tem falso conhecimento quanto sensibilidade que lhe prpria, a no ser por acidente,

    e em casos pouco numerosos. Porque isto decorre, ento, do fato de o sentido no receber a forma sensvel como lhe convm, por causa de uma m disposio do rgo. Por exemplo: alimentos doces so tidos como amargos por causa de uma doena que produz infeco na lngua (a. 2).

  • Essa exatido do conhecimento dos sentidos externos , alis, uma evidncia, porque toda a instituio do nosso conhecimento, e mesmo da nossa vida, pende dele. Neg-la seria condenar-se a uma vida puramente vegetativa.

    A experincia comum bem o demonstra. Para verificar se uma coisa existe ou no, o primeiro reflexo do homem toc-la, v-la, senti-la. E, antes de aceitar uma nova tese cientfica, todos diro: preciso controlar, preciso ver.

    O exemplo do basto que parece quebrado no um erro dos sentidos. O sentido da viso transmitiu fielmente as informaes que recebeu. O erro est no julgamento, que afirma: Este basto est quebrado. Erro ocorrido porque o sujeito procedeu como se o basto fosse a nica realidade. No

    considerou a existncia da gua, que seus sentidos tambm revelaram, e que causou a aparncia quebrada do basto. O mesmo ocorre com a miragem.

    Quanto ao sonho, a objeo , pelo menos, estranha, porque compara duas coisas incomparveis. O julgamento de quem est acordado, como dissemos, forma-se graas atividade conjugada de dois princpios de conhecimento: sensao e inteligncia. No caso do sonho, falta o primeiro fato. O julgamento, se o h, no pode ser um conhecimento real que percebe a existncia real do seu objeto, mas somente um jogo de imaginao. Um (o julgamento no estado de viglia) um julgamento autntico, e pode, pois, pretender a verdade. O outro (no sonho) permanece no imaginrio, e fonte de iluso.

    Acontece que aquele que diz sonhar estando acordado, ou que diz ser ilusria uma sensao verdadeira, ou possui sentidos defeituosos, ou se recusa a render-se ao seu veredicto. H um caso especial, fora do normal, e que merece ser tratado como tal. No porque certas pessoas vem vermelho o que verde que ningum pode estar seguro de que aquilo que v vermelho ou verde. O fato de haver cardacos no obriga a concluir que no se possa discernir um corao so de um doente. No caso em questo, um homem normal tem um meio infalvel para saber se est no real: so os seus sentidos.

    preciso sustentar que os sentidos no nos enganam, e que eles so o ponto de partida de todo conhecimento humano verdadeiro.

    II Todo conhecimento alm do sensvel impos-svel. Aquilo que se chama pensamento ou conceito no passa de associao de imagens.

    Citemos, por exemplo, o filsofo francs Condillac (1715-1780): O julgamento, a reflexo, os desejos, as paixes etc. so apenas sensaes que se transformam diferentemente.24 razovel concluir que no temos, inicialmente, mais do que sensaes, e que nossos conhecimentos e paixes so os efeitos dos prazeres e penas que acompanham as impresses dos sentidos. De fato, quanto mais refletirmos, mais nos convenceremos de que a nica fonte da nossa luz e dos nosso sentimentos.25

    Trs fatos experimentais respondem a essa objeo. Eles so tomados, cada um, de uma idade diferente da vida de um homem.

    O primeiro a gnese da vida intelectual de uma criancinha. Ela no pode exercer, no incio, seno o seu conhecimento sensvel. Neste, h um conhecimento imediato das coisas e das pessoas que a cercam. Ela reconhece antes seu pai e sua me. medida que posta em contato com um nmero maior de pessoas, passa a operar distines e reagrupamentos. Passa a distinguir os homens e as mulheres, reunindo todos para diferenci-los do co. Depois, distingue, entre as mulheres, as da famlia (mame, titia...) das de fora. Ao fim de alguns meses, desenvolvendo-se-lhe o esprito, ela se volta, cada vez mais, para um conhecimento j no somente sensvel e particular, mas imaterial e universal. Nas coisas que a rodeiam, ela no verifica somente os traos particulares, mas tambm as caractersticas comuns e as naturezas.

  • Tomemos, agora, o caso de um menino de sete anos. Seu pai o leva a uma estao ferroviria pela primeira vez. Ei-lo numa plataforma, de onde v uma locomotiva. No tardar a perguntar: O que isto?

    Se o pai responde: azul, o menino no ficar satisfeito. E assim permanecer se, a cada O que

    isto?, ouvir como resposta: Isto mede quinze metros, de ao etc. Essas repostas, ao contrrio, s

    iro atiar sua curiosidade e aumentar sua impacincia. O fato que ele tem sede de outra coisa. O que seu esprito busca est alm dessas qualidades sensveis. Porm, se seu pai responde: uma mquina

    dotada de um grande motor que a faz andar sozinha e puxar vages, permitindo, assim, s pessoas viajar, a inteligncia do menino se satisfaz. Ele compreende, enfim, o que a coisa, conhece sua natureza. Elabora um conceito que poder aplicar, quando for o caso, a qualquer outra locomotiva. Essa descoberta lhe permitir, at, segundo a vivacidade do seu esprito, alcanar realidades ainda mais espirituais, como a causalidade eficiente, o movimento etc.

    Uma terceira mostra de idade d-nos um exemplo similar. A juventude uma idade em que a alma bem formada est pronta para empregar toda a sua vitalidade a servio dos ideais maiores, a idade dos grandes questionamentos. No limiar da vida adulta, o jovem se interroga, com certa ansiedade, a respeito dos fundamentos sobre os quais construir sua vida. O que o homem, a felicidade, o bem, a justia, a organizao poltica da cidade, Deus, a religio, o amor etc.?

    Ora, somos obrigados a constatar que essas realidades ultrapassam, infinitamente, a ordem das coisas sensveis. Isso aparece melhor se se considera a energia e, por vezes, o herosmo de que o homem capaz para defender essas verdades, energia e herosmo que o fazem ir, freqen-temente, contra as exigncias da sensibilidade.

    Essas trs observaes nos indicam, claramente, que o esprito humano se situa em uma ordem de coisas diversa da dos sentidos. H, em cada homem, um apetite natural da inteligncia, como que um instinto, que a compele a buscar, alm do sensvel, a prpria natureza das coisas. Ela advinha que essas qualidades sensveis no lhe informam a realidade em toda a sua plenitude. a prpria essncia da coisa, o que ela , que a inteligncia quer alcanar.

    O conhecimento sensvel ligado a tal ou qual realidade material, ele particular, e pode traduzir-se por uma imagem.

    O conhecimento intelectual, ao contrrio, imaterial, universal, e pode portar realidades que ultrapassem qualquer imagem (Deus, a verdade, o dever etc). Elas so irredutveis.

    III O subjetivismo: A doutrina realista da verdade sufocante. O homem nela no tem a parte criativa e extensora que lhe devida. A verdade uma cons-truo.

    O pai dessa maneira de ver Kant. L-se no prefcio da 2 edio da Crtica da Razo Pura: Admitiu-se, at aqui, que todos os nossos conhecimentos deveriam regular-se pelos objetos; mas, nessa hiptese, todos os nossos esforos para estabelecer, a respeito desses objetos, qualquer julgamento a priori pelo nosso conhecimento no conduziria a nada. Que se pesquise, ento, uma vez, se no seramos mais felizes, nos problemas metafsicos, supondo-se que os objetos se regulam pelo nosso co-nhecimento.26

    Essa estrutura de pensamento a priori se espalhou por toda a parte. Dela encontramos traos sob a pena de Joo Batista Montini, futuro papa Paulo VI: Estou persuadido de que um pensamento meu, um pensamento da minha alma, vale para mim mais do que tudo no mundo.27

    Descrevemos acima a atividade complexa que conduz o homem verdade. Essa atividade pe em jogo todas as suas faculdades; ele ativo. Porm sua ao no uma construo. Ela consiste, pelo contrrio, numa adaptao do sujeito ao real. Conhecer uma coisa no invent-la, descobri-la tal qual .

  • A diferena profunda entre o subjetivismo e o realismo pode ser assim resumida: o realista um livro, o livro do real. O subjetivista escreveu-o.

    Pode-se, ento, perguntar por que esse livro preten-samente escrito, inventado, construdo pelo homem, contm tantos sofrimentos, surpresas, mistrios.

    Ademais, esse sistema de pensamento no destri o amor?

    Pode-se, de fato, amar o que no se conhece? Ora, se conhecer algo dar-lhe feitio, se todo conhecimento transformante, no amamos no outro seno aquilo que nele tenhamos posto No o amamos por ele mesmo, tal qual , mas somente tal qual queremos que seja.28

    Uma analogia encerrar nossa resposta a essa objeo e resumir o conjunto deste artigo. Um homem tem sobre sua mesa um lpis e uma rgua. Suponhamos que ele deseje saber a dimenso desse lpis. Como far para o saber? Tomar a rgua e a aproximar do lpis. Tirar a medida do lpis, a qual ler na escala. Ento, observando o lpis e a medida, poder afirmar: Este lpis mede 14,5 cm.

    Qual a causa da verdade dessa afirmao? Foi a rgua que fez o comprimento do lpis? No, foi o lpis que informou rgua o seu comprimento.

    O mesmo ocorre no conhecimento humano. O lpis o real. A rgua a inteligncia. Esta

    aproximada (ou melhor, entra em contato imediato) de seu objeto pelo conhecimento sensvel. A

    simples apreenso abstrai do real sua natureza, ou uma qualidade que a determina. O julgamento extrai o conceito abstrato e o objeto, e afirma sua conformidade. Estar na verdade se se deixar informar pelo objeto. Veritas consisti in commensuratione intelectus ad rem, a verdade consiste na medida da inteligncia pela coisa.29

    Resta-nos, para fechar este estudo, comentar os artigos 3 e 4 desta mesma questo 16, onde Santo Toms estuda as relaes da verdade com o ser e com o bem.

    Para nos estimular no trabalho, leiamos o comentrio de Santo Toms sobre as palavras do Senhor: Eu sou a Verdade (Jo. 14, 16). Introduzindo-nos no prprio corao de Deus, que dita o seu Verbo eternamente, ele nos indica o cume da verdade, para o qual devem tender todos os nossos esforos. Deixa-nos, assim, imaginar como uma s filosofia pode servir f tornando-a mais penetrante. Enfim, mostra-nos a disciplina a que dever submeter-se aquele que queira atingir a verdade total: Aderir ao Verbo, entrar na escola de Jesus Verdade. Aos homens que tm sede de verdade, diz Jesus: Eu sou a Verdade. A verdade lhe vem por ele mesmo, pelo fato de que ele prprio o Verbo. A verdade no

    nada mais do que a adequao da coisa com a inteligncia, o que se realiza quando a inteligncia concebe a coisa tal qual . A verdade da nossa inteligncia nos vem, pois, do nosso verbo, que a sua concepo (o verbo interior o conceito que nasce na inteligncia quando ela conhece. a presena

    imaterial, como a proclamao, em ns, da coisa conhecida que nos torna a inteligncia semelhante coisa). Entretanto, mesmo que o nosso verbo seja verdadeiro, ele no a prpria verdade, dado que no verdadeiro por si mesmo, mas pelo fato de que adequado coisa conhecida.

    Para a inteligncia divina, a verdade volta ao Verbo de Deus. Mas o Verbo de Deus verdadeiro por si mesmo, dado que no medido pelas coisas, ao passo que, ao contrrio, as coisas no so verdadeiras seno na medida em que alcanam certa similitude com o Verbo. E, pois, o Verbo de Deus a prpria Verdade.

    E, como ningum pode conhecer a verdade se no adere verdade, necessrio que quem deseje conhecer a verdade adira ao Verbo.

    III

  • Assim como um menino segue seu pai, passo a passo, ao longo de um passeio na montanha, ns nos propomos a estudar o problema da verdade seguindo Santo Toms de Aquino, na questo 16 da primeira parte da Suma Teolgica.

    No Prembulo, constatamos a necessidade vital, para todo homem, de conhecer a verdade.

    O primeiro artigo permitiu-nos chegar definio da verdade. Ela a conformidade da inteligncia com o real. A verdade nos apareceu, ento, como uma relao entre dois termos: a realidade existente, de uma parte, e a inteligncia no seu ato de conhecimento, de outra.

    No segundo artigo, estudamos essa relao do lado do sujeito que conhece. Mostrando que a verdade se situa na segunda operao do esprito, o julgamento, Santo Toms acentua, consideravelmente, o seu carter objetivo. Porque o julgamento que opera o retorno ao real concreto. Com essa afirmao, ele atinge a existncia das coisas.

    Resta-nos, agora, considerar essa mesma relao em conformidade com o lado do real. Vamos faz-lo luz do terceiro artigo dessa questo.

    O artigo quarto, em que Santo Toms estuda a ordem que existe entre o verdadeiro e o bem, estender o problema da verdade vida humana inteira, moral.

  • ARTIGO 3 O VERDADEIRO E O SER

    Consideramos, at aqui, a verdade na inteligncia que conhece. Falta-nos compar-la, agora, com a existncia real das coisas. H uma prioridade qualquer de uma sobre a outra? Uma condicionada pela outra? A questo formulada naturalmente, porque, se o verdadeiro anterior ao ser, o pensamento precede a existncia das coisas. Caso contrrio, se o ser tem prioridade sobre o conhecimento, parece que deve escapar apreenso de qualquer inteligncia.

    Essa questo se reveste de importncia particularmente atual. No sculo XVII, renascia na Europa uma corrente de pensamento que se ampliou desde ento, o idealismo. Para este, a realidade o pensamento, a idia. O pensamento anterior ao ser. Descartes (1596-1650) considerado, com justia, seu precursor.

    Depois de ter aplicado uma dvida sistemtica a todos os conhecimentos que tinha admitido at ento, fez essa descoberta, brotada como uma luz fulgurante do fundo do seu esprito: Penso, logo

    existo.

    Mas, imediatamente depois,30 observei que, enquanto queria assim pensar, tudo era falso, era necessrio que eu fosse alguma coisa. Notando que esta verdade: Penso, logo existo, era to firme e

    segura, que as mais extravagantes suposies dos cpticos31 no eram capazes de abal-la, julguei que poderia receb-la, sem escrpulos, como o primeiro princpio da filosofia que procurava. 32

    Penso, logo existo. Em outros termos, isto me permite afirmar eu existo, e, em seguida, a

    existncia das coisas a certeza interior que se impe minha conscincia: Eu penso. o testemunho

    da minha inteligncia quando ela se observa a si mesma. O fato de que eu existo sustentado por essa luz do esprito que me diz que eu penso.

    E esse axioma o primeiro princpio da filosofia que buscava, isto , a fonte donde dimana todo o

    meu pensamento. Assim, todos os meus conhecimentos provm, por um raciocnio lgico, de certezas indubitveis, dessas idias claras e distintas que nascem na minha conscincia. [...] O primeiro [preceito] era [...] no haver nada em meus julgamentos alm daquilo que se apresentava to claramente, e to distintamente, ao meu esprito, que eu no teria nenhuma possibilidade de pr em dvida.33

    Assim, aps ter posto em dvida o testemunho dos sentidos, a prpria existncia das coisas, escolhi como ponto de partida essas idias claras e distintas que descubro no meu esprito. O critrio de

    verdade , pois, a conscincia, aquilo que o pensamento encontra nele mesmo quando se dobra sobre si prprio.

    A verdade, em resumo, cessa de ser relativa ao ser, para estar ligada nica luz interior do esprito, pensando-se este a si prprio.

    Cuidemos de no passar muito depressa por essas descobertas, como faria um turista enfadado diante do qinquagsimo quadro de uma galeria. O Petit Larousse (1967) chama nossa ateno para essas novidades. No verbete Descartes, lemos: Suas meditaes fundaram a metafsica moderna, arruinaram a escolstica e estabeleceram um mtodo novo de direo da razo.

    Seramos tentados, primeira vista, a duvidar dessa afirmao. Como ver, nas linhas acima, um princpio to corrosivo, capaz de arruinar, para sempre, a filosofia escolstica?

    O Larousse no viu corretamente. Se fosse verdadeira, a novidade introduzida por Descartes destruiria todo o pensamento realista, at o prprio exerccio mais elementar da razo humana.

    Para persuadir-nos, comecemos por uma imagem.

  • A filosofia realista (Aristteles Santo Toms) como o lustre imponente e harmonioso de um grande salo vienense. Todas as peas de cristal esto dispostas com competncia, e a solidez e a elevao do conjunto esto asseguradas por um pequeno gancho pendurado no teto.

    Como destruir de um s golpe o maravilhoso arranjo? Atacando o gancho. Destruir este significa arruinar o lustre.

    O gancho que sustenta todo o pensamento realista, o princpio a que podem reduzir-se todas essas afirmaes, , precisamente, o objeto do nosso artigo, a primazia do real. a evidncia indubitvel da existncia das coisas e das leis elementares do ser, como da aptido natural da inteligncia para conhecer o real.

    o bastante para enfatizar a importncia do assunto que estudamos.

    Eis como Santo Toms responde a Descartes, cerca de quatrocentos anos antes:

    Seu raciocnio simples.

    Assim como o bem diz respeito a um apetite, a verdade diz respeito a um conhecimento.34

    Uma coisa cognoscvel na medida em que , e seu modo de ser determina o grau de conhecimento de que susceptvel.35

    Resulta que o ser e a verdade so conversveis. A verdade adiciona ao ser somente uma analogia (comparatio) a uma inteligncia: o fato de ser conhecida por uma inteligncia. No caso da verdade ontolgica, o verdadeiro e o ser so idnticos segundo a substncia. 36 Tudo aquilo que , verdadeiro, e vice-versa.

    No caso da verdade lgica, a verdade conversvel com o ser ut manifestivum cum manifesto, como o que manifesta com o que manifestado (ad 1). A verdade uma proclamao na inteligncia daquilo que , uma leitura do ser, a manifestao naquele que conhece da existncia e da natureza do objeto.

    A lio simples, a da primazia do real.

    O mundo que me envolve existe realmente, indepen-dentemente de mim. E entrega-se ao meu conhecimento precisamente porque existe.

    A verdade o real enquanto conhecido exatamente. Real que no esperou ser conhecido para existir.

    Essas poucas linhas de Santo Toms responderam ao sistema de Descartes? Sim, contanto que saibamos extrair delas toda a sua riqueza. Se as observarmos atentamente, constataremos, com certeza, que destroem os trs erros principais da metafsica moderna: a dvida universal, a fonte da certeza, o

    mtodo a priori.

    I DESCARTES CONTRADIZ-SE

    Examinemos o mtodo seguido por Santo Toms. S ele j toda uma lio. Para demonstrar a ordem entre o ser e o verdadeiro, ele volta ao conhecimento, que o miolo do seu raciocnio. Verifiquemos que pe diante dos nossos olhos no uma construo do esprito, mas um fato natural, cotidiano, indiscutvel: o conhecimento. Se voc busca a verdade, a ela que deseja conhecer. Mas, se voc deseja conhecer, porque j sabe que existe algo por conhecer.

    ento que aparece, claramente, a contradio interna do sistema de Descartes, que se dedica a fundar uma metafsica nova, em que possa provar absolutamente tudo, incluindo a existncia das coisas e de ns mesmos. Com que ttulos o faz? Como filsofo e matemtico. Por que esse trabalho? Para conhecer. Antes at de pr-se a trabalhar, nosso homem afirma seu desejo de conhecer. E quando diz: Quero conhecer, admite, de fato, que h qualquer coisa por conhecer, e que existe um eu. No

    pode duvidar dessas existncias sem negar a si mesmo.

    Tomemos uma imagem. Suponhamos um professor de fsica no pas dos mudos. Ele se aproxima do quadro-negro e comea a aula escrevendo: At hoje, todos temos acreditado que se poderia escrever num quadro-negro com um giz. Esse juzo antecipado no cientfico. preciso p-lo em dvida e

  • prov-lo rigorosamente. Isto o que tentarei fazer diante de vocs nesta manh. Se a demonstrao no for comprobatria, ser preciso destruir todos os quadros-negros da escola.

    No faltar aluno provido de bom senso para denunciar o ridculo da situao. Se o professor pega num giz e escreve que nega a possibilidade de escrever com um giz, mente a si mesmo.

    Seu prprio gesto pressupe que ele est absolutamente certo, ainda que no o queira confessar, da existncia do giz e do quadro-negro, bem como da aptido deste para receber a impresso do giz.

    No que estamos tratando, o quadro-negro a inteligncia humana; o giz o real existente, real que informa a inteligncia quando ela conhece. O ato mais elementar do conhecimento humano admite, impli-citamente, sua existncia.

    V-se, quanto quele que pe em dvida, que esta no passaria de um instante, e por uma questo de mtodo. Quanto existncia real das coisas, e de si mesmo, o mtodo tomista o seguinte: demonstrar-lhe que se contradiz, que serra o galho em que est sentado. Trata-se de devolver o indivduo quilo que ele v; dissipar as nuvens dialticas que lhe ofuscam a viso; sacudi-lo um tanto rudemente, a fim de arranc-lo da sua embriaguez metafsica, ou do seu entusiasmo oratrio.37

    Talvez seja suficiente lembr-lo de que ele mesmo, no mais do que qualquer outro idealista, no vive de acordo com os seus princpios. Descartes no parou para pensar ao beber o leite da sua me! E ningum pra, numa longa demonstrao, sobre a existncia do seu corpo para sentar-se mesa.

    II O CRITRIO LTIMO DA VERDADE

    Fica bem destrudo aquilo que se substitui. Assim, para demonstrar a falsidade do ponto de partida do sistema cartesiano (isto , a dvida universal), preciso demonstrar a correo do ponto de partida do pensamento realista.

    Vimos que a pretenso de tudo poder demonstrar , em si mesma, uma contradio. Na origem do pensamento deve, pois, encontrar-se uma certeza que no pode ser demonstrada nem tem necessidade de s-lo, um conhe-cimento primordial que se impe por si mesmo, isto , uma evidncia.

    O termo evidncia se emprega, em primeiro lugar, em relao ao sentido da viso. Um objeto est em evidncia, uma coisa evidente quando saltam aos olhos, quando so visveis ao primeiro golpe de vista. No se pode deixar de v-los, a no ser que se seja cego.

    Aplicado ao conhecimento intelectual, esse termo exprime a qualidade de um objeto que aparece em plena luz ao esprito. Sua verdade se impe pelo prprio fato da sua presena.

    A evidncia essa sorte de clareza por que o objeto manifestado inteligncia, e arrebata sua adeso de maneira imediata e infalvel.

    Quais so as evidncias primeiras que esto na origem de todas as nossas certezas?

    Para Descartes, como j vimos, o testemunho do seu prprio pensamento. Pondo em dvida toda evidncia vinda do exterior, ele v-se reduzido a indagar ao seu prprio esprito, trabalhando sobre si mesmo. S sero evidentes, para ele, as idias claras e distintas, nascidas do seu prprio conhecimento por uma sorte de autofecundao.

    Santo Toms, no artigo em que nos encontramos, mostra a futilidade desse novo princpio, fazendo-nos constatar que uma coisa cognoscvel na medida em que .

    Isto no quer dizer, somente, que no se pode conhecer uma coisa que no existe. Quer dizer, sobretudo, que a inteligncia humana, quando conhece uma coisa, no se contenta em ver a natureza universal (a qididade) do seu objeto, mas a alcana como a um existente. Ela apreende, ao mesmo tempo, se bem que de maneira diferente, tanto a sua natureza (donde forma um conceito) como esta perfeio que a pe fora do nada, a existncia.

    o fato de ter existncia real que torna o objeto cognoscvel. por este aspecto que ele se entrega, antes de tudo, inteligncia.

  • Santo Toms nos pe no mago do conhecimento. Desvela o ponto de contato mais ntimo da inteligncia com o real, e contesta o princpio de Descartes. A fonte primeira da certeza no pode ser a idia clara, mas o real.

    O objeto natural da inteligncia o ser concreto existente, no ela mesma.38 Antes de poder ter conscincia de si mesma, preciso que conhea, que esteja em contato imediato com seu objeto. preciso que se abra a uma realidade que ela no inventou. No existe pensamento de nada. A inteligncia , naturalmente, orientada para o ser.39

    , pois, no contato inicial da inteligncia com o ser que preciso buscar a evidncia, a certeza primeira anterior a todo raciocnio. Ela nasce dessa primeira abertura da inteligncia existncia das coisas, na qual esta se entrega quela, e na qual o sujeito v, pelo fato mesmo de que conhece, sua aptido de extrair o verdadeiro.

    As evidncias primeiras resumem-se nesta simples afirmao: Eu conheo alguma coisa.

    Afirmao que pressupe uma trplice evidncia:

    a existncia das coisas que me envolvem;

    a existncia desse euque conhece; e

    a aptido da inteligncia para conhecer, sua ordenao natural ao ser. Noutras palavras: a possibilidade e a existncia da verdade.

    Nesse contato inicial e imediato, o ser entrega inteligncia suas prprias leis. So os primeiros princpios do ser: o princpio de identidade e de no-contradio (o ser ; o no ser no ; todo ser o que ; no se pode ser e no ser ao mesmo tempo, e sob o mesmo aspecto); o princpio de causalidade (tudo aquilo que no por si por outro); o princpio de finalidade (todo agente age para um fim)...

    So evidncias que no se podem negar sem interditar todo conhecimento, e da toda verdade, toda linguagem, toda vida.

    III O MTODO A POSTERIORI

    Nosso artigo nos permite replicar um terceiro defeito do sistema cartesiano: seu mtodo a priori.

    Aps ter duvidado de tudo, e depois de ter posto nas idias claras e distintas da sua conscincia a

    fonte da certeza, Descartes construiu todo o seu sistema filosfico sobre o modelo das matemticas. Todas as suas afirmaes no so mais que juzos a priori. O primado do pensamento sobre o real, que presidiu gnese do conhecimento correto, se estende a todo o cognoscvel. O sujeito pensante reconstri, logicamente, o real, a partir dos postulados da sua conscincia.

    Uma frase do nosso artigo derruba essa nova pretenso.

    A verdade (lgica) conversvel com o ser: ut manifestivum cum manifesto; assim como o que manifesta (o conhecimento), tambm o que manifestado (o real).

    Santo Toms nos d aqui a disciplina individual que deve seguir aquele que quer conhecer a verdade. Em qualquer nvel que seja, a verdade no passa de uma manifestao daquilo que . Para estar na verdade, o homem deve retornar, sem cessar, ao concreto; deve unir-se ao real de modo o mais cerrado possvel. A primazia do real, que vimos na origem do conhecimento, retorna por toda a busca da verdade. A verdade no para ser inventada, ela nasce do contato fecundo da inteligncia com o real. O ponto de partida do conhecimento humano deve ser a posteriori.

    Isto no exclui a possibilidade, e nem sequer a necessidade, do juzo a priori, o silogismo, que nos permite descobrir novas verdades a partir de coisas j conhecidas. Mas esse mesmo raciocnio extrai esses elementos da observao, e se completa com um julgamento, e, pois, com um retorno existncia concreta.

  • Um exemplo ser mais eloqente que um discurso para ilustrar esse fato. o mtodo seguido por Aristteles na elaborao da sua Poltica.

    Ele no comea sua busca afirmando, a priori, definies nebulosas. Observa os homens. Esse primeiro contato com o real lhe entrega um fato de experincia: a necessidade e o desejo, em todo homem, de dar continuidade espcie, e sua tenso para um bem que no saberia alcanar sozinho. Outra constatao: aquele que deseja satisfazer a necessidade da reproduo deve unir-se a uma mulher pelos laos do casamento, e, para atingir sua perfeio, o homem deve pr-se sob a autoridade de outro.

    Em seguida, permanecendo fiel ao seu mtodo a posteriori, Aristteles prossegue em sua observao: essas famlias, e esses embries de sociedade, se renem em aldeias, depois em cidades, sendo a cidade a primeira comunidade humana autnoma e auto-suficiente para levar o homem ao seu bem.

    Bem se v que no h nisto tudo nada de petio de princpio nem de a priori. Tudo observao do real. o realismo aplicado poltica.40

    Pode-se imaginar, atravs desse exemplo, as incidncias prticas da questo da verdade. Hoje, um pensamento separado do real, e que pretende refazer o mundo desde seus fundamentos, as empurra mais do que nunca, como bem se pode constatar.

    Ns o veremos, mais claramente ainda, no artigo seguinte:

    ARTIGO 4 O VERDADEIRO E O BEM

    Este artigo estender o problema da verdade a todo o agir humano.

    A vontade , de fato, o princpio imediato de toda ao humana. Um ato dito propriamente humano quando voluntrio. Ora, o objeto da vontade o bem. A vontade um apetite, um

    desejo de bem que o faz ser procurado quando dele se privado, e que faz repousar, quando j est este possudo.

    A questo das relaes entre o verdadeiro e o bem pe em causa toda a nossa conduta. Se o verdadeiro tem precedncia sobre o bem, ento toda a vida humana dever deixar-se dirigir pela verdade.

    Dar, ao contrrio, prioridade ao bem sobre o verdadeiro dar o papel determinante vontade. ela que ser a regra primeira da qualidade dos nossos atos. Ser suficiente ter querido autenticamente uma coisa para que ela seja boa.

    V-se, facilmente, o abismo que separa esses dois pontos de vista, e as conseqncias desastrosas que teria um erro quanto a essa questo.

    Isto aparece mais claramente, ainda, quando se consideram as trs teses mais aceitas na atualidade a esse respeito. Elas abordam, respectivamente, por trs aspectos diferentes, o problema seguinte: a vontade em si mesma (o voluntarismo), a ao (o pragmatismo), a vida (o existencialismo).

    O voluntarismo pe a vontade acima da inteligncia. O ato da vontade ser bom j no em razo do objeto a que ele visa, mas pela sua conformidade a uma lei arbitrria, ou a outra vontade. A vontade j no ser boa ou m por referncia verdade. Monsenhor Lefebvre contava uma anedota que d um exemplo convincente dessa tortura espiritual: Encontrando, um dia, um alto prelado, apresentou-lhe as razes da sua reao dentro da Igreja, as heresias propaladas ou toleradas pelas mais altas autoridades. O prelado assim respondeu: Eu prefiro errar com o Papa a ter razo contra o Papa. Noutros termos:

  • Vale mais sacrificar a verdade do que contrariar a vontade da autoridade. O bem, objeto da vontade, superior verdade e independente dela.

    O pragmatismo pe a verdade a servio da ao. A verdade o que til no presente, o que eficaz, o que funciona. Seus representantes mais conhecidos so Friedrich Nietzsche (1844-1900),41 William James (1842-1910), Edward Le Roy (1870-1954), Maurice Blondel (1861-1949). Citemos, como exemplo, esta declarao de Napoleo I: Acabei com a Guerra da Vendia fazendo-me catlico; estabeleci-me no Egito fazendo-me muul-mano, ganhei os espritos na Itlia fazendo-me ultra-montano. Se governasse um povo de judeus, reconstruiria o templo de Salomo.42

    O existencialismo pe a vida (o vivido) acima da verdade objetiva. O vivido a expresso livre e espontnea do eu, o desenvolvimento vital da pessoa. Vejamos dois exemplos famosos:

    Dostoievsky disse: Se Deus no existisse, tudo seria permitido. A est o ponto de partida do existencialismo [...] se a existncia precede a essncia, no se poder jamais explicar por referncia a uma natureza humana imvel e congelada; dito de outra maneira, no h determinismo, o homem livre, libertado [...] se suprime Deus Pai, qualquer um pode inventar os valores [...]. E, alis, dizer que inventamos os valores no significa outra coisa seno isto: a vida no tem sentido a priori [...] cabe a voc dar-lhe um sentido, e o valor nada mais do que esse sentido que voc escolher.43

    Dostoievsky, em O Esprito Subterrneo, pe estas palavras na boca de um dos seus heris: Meu Deus, que me importa a natureza? Que me importa a aritmtica se, por uma razo ou por outra, no me agrada que dois vezes dois so igual a quatro? [...] O que convm ao homem a independncia, no importa a que preo [...]. Aceito que dois vezes dois so igual a quatro uma coisa bonita, mas, no fundo, dois vezes dois so igual a cinco no to mal.44

    Essas citaes bastam para verificarmos a origem comum dessas trs teorias. Trata-se de uma inverso do verdadeiro e do bem. Ou seja, um ato de vontade, uma ao, uma vida no so boas com referncia verdade objetiva, e, por ela, ao real, mas encontram em si mesmas, no seu dinamismo prprio, a sua legitimidade. Tornam-se valores absolutos.

    Para responder a isso, bastar reproduzir, quase palavra por palavra, o seguinte texto de Santo Toms: O verdadeiro primeiro com relao ao bem de maneira absoluta. Por duas razes:

    Pelo fato de que o verdadeiro est mais prximo ao ser, que anterior ao bem. Certamente, o verdadeiro observa o prprio ser, absoluta e imediatamente. (A inteligncia alcana diretamente o ser tal qual ele .) Ao passo que o ser dito bem de acordo com certa perfeio. , por certo, enquanto tem certa perfeio que o ser desejvel e, portanto, bom.

    Isso decorre do fato de que, de acordo com sua natureza, o conhecimento precede o apetite. ( famoso o adgio nihil volitum nisi praecognitum, nada pode ser desejado se no antes conhecido.) Ora, como a verdade se relaciona ao conhecimento, e o bem ao apetite, o verdadeiro primeiro com relao ao bem. (Ainda que seja a mesma realidade concreta que , que verdadeira, e que boa).

    Vejamos como estas linhas respondem s correntes do pensamento expostas acima. A verdade precede o bem, e isto quer dizer que, assim como a inteligncia no est no bem seno quando se submete ao real, assim tambm a vontade no boa se no se adapta verdade.

    na medida em que o homem se deixa conduzir pela verdade, isto , pelo conhecimento do real tal qual ele , que o homem pode alcanar o bem, e da uma verdadeira felicidade.

    Ao contrrio, pr o bem fora do verdadeiro emancipar-se de toda regra objetiva, deixar o capricho correr solto, , por isto mesmo, proibir-se da felicidade autntica.

    A sociedade contempornea d-nos de tudo isso abundantes confirmaes, que se encontram, entre outras:

    na multiplicao dos casos de cncer devido ao desprezo s mais elementares regras da higiene corporal (abuso do lcool, do fumo, contraceptivos);

    na monstruosa epidemia da AIDS;

  • no crescimento assustador da delinqncia e dos traumas psicolgicos, frutos dos falsos princpios da educao e do divrcio;

    nas falncias sucessivas dos regimes socialistas, decorridos duzentos anos;

    na morte dos perseguidores da f, que sobrevivem, freqentemente, com doenas repugnantes ou at na loucura.45

    No h verdadeira felicidade que no seja uma felicidade verdadeira, isto , uma felicidade fundada na verdade, nascida dela como o fruto nasce da flor.

    CONCLUSO

    O caminho que percorremos, em busca da verdade, fez-nos reencontrar numerosas objees.

  • Antes de concluir este estudo sumrio, gostaramos de voltar, uma vez mais, a essas objees. No para apresent-las novamente, nem para discuti-las, mas para tirar delas algumas lies prticas e, dessa maneira, faz-las servir verdade.

    Santo Toms, por certo, advertiu-nos no seu Comentrio Metafsica de Aristteles: Aquele que se aprofunda no estudo da verdade beneficiado de dois modos pelos outros: recebemos ajuda direta daqueles que encontraram a verdade [...]. Os pensadores so ajudados indiretamente por seus antecessores, que com seus erros do motivos aos outros para descobrir a verdade por meio de uma reflexo mais sria. Convm, em conseqncia, que sejamos reconhecidos a todos aqueles que nos ajudaram a conquistar o bem da verdade.46

    Ressaltem-se trs lies concernentes ao nosso assunto:

    para nossa vida intelectual, a necessidade de uma reeducao;

    para nossa vida moral, a lealdade;

    nas nossas relaes com os prximos, o zelo da verdade.

    1) Uma reeducao

    fcil constatar que as objees contra o realismo do conhecimento no repousam nas bibliotecas. Elas penetram profundamente a alma dos nossos contem-porneos, atingindo neles as iniciativas mais vitais da mente humana. Propagaram-se num formidvel contgio. Nem sequer os mais lcidos, nenhum de ns pode dizer-se perfeitamente imune a esse flagelo. Fomos todos tocados, mais ou menos, pelo mal. Os a priori de Descartes, o subjetivismo de Kant, a sede de independncia do existencialismo marcaram-nos o esprito, imprimiram em ns um comportamento em face do verdadeiro.

    A gravidade e a extenso desses erros convidam-nos uma obra de reeducao, que no consiste em nos fechar num saber gigantesco, mas em buscar a cura do mal intelectual dos nossos tempos.

    preciso que reencontremos a sade da inteligncia, que forjemos em ns um esprito realista, o que no se far sem muito trabalho longo, por vezes penoso pela freqncia assdua aos bons autores, e por uma forte dose de humildade.

    2) A lealdade

    As correntes de pensamento que mencionamos nos dois ltimos artigos tm isto em comum: a fuga do real.

    Na ordem do conhecimento, como em Descartes, ou na ordem do agir humano, como no existencialismo, assistimos a este espetculo aflitivo: o homem foge da verdade. Pretende retirar do seu ntimo o verdadeiro e o bem, recusa regular seu esprito, ou sua vida, pelo ser objetivo das coisas.

    Poder-se-ia aplicar-lhe o que diz o Salmo 35, a respeito do mpio: Noluit intelligere ut bene ageret (v. 2): Ele no quer refletir para agir bem. No quer obedecer a uma regra externa. Aceita desconhecer a verdade. Aceita a eventualidade de estar em erro de preferncia a curvar-se.

    Essa mentalidade nos convida, ao contrrio, a uma grande lealdade em face da verdade. J que a entrevimos, tomemo-la como ao sol da nossa existncia. Em face de tal ou qual vcio, de tal ou qual hbito malfico, de tal ou qual conivncia com o mal, no fechemos os olhos, como quem no viu. Ao contrrio, declaremos guerra, em ns, iluso, a fim de estabelecer, na nossa vida, o reino da verdade.

    3) O zelo da verdade

  • Nosso estudo deu-nos, muitas vezes, oportunidade de reencontrar este princpio fundamental: toda inteligncia humana feita para a verdade. A verdade o bem da inteligncia e a fonte dos demais. Ela a luz da estrada para a felicidade.

    Ora, uma luz no brilha para si somente, ela clareia tudo sua volta. Pela sua prpria natureza, a luz se expande e busca ultrapassar as fronteiras da noite.

    Assim fazendo, ela exerce a suprema caridade da verdade. Fornece aos homens a raiz de todos os outros bens, a libertao das cadeias que os mantm cativos.

    A extenso prodigiosa do erro no nosso sculo no deve, pois, desencorajar-nos, nem fazer-nos dobrar sobre ns mesmos. Todas as inteligncias so feitas para a verdade, e tm sede de sab-la. S ela salvar nosso mundo do naufrgio em que est metido.

    O estudo da verdade dever, portanto, dar nascimento a uma atividade generosa, para a glria da verdade e o servio dos nossos irmos.

    Uma frase resume essas trs exortaes: o amor verdade. So Paulo escreveu aos

    Tessalonicenses que aqueles que se perdem perecem porque no abriram seus coraes ao amor da verdade para serem salvos (2 Tess. 2, 10). Ele nos aponta a disposio que deve reinar em nossas

    almas: a docilidade, a humildade, o amor verdade.

    APNDICE

    PASCENDI DOMINICI GREGIS*

    (SOBRE AS DOUTRINAS MODERNISTAS)

    SO PIO X Carta encclica de 8 de setembro de 1907.

    Aos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e outros Ordinrios em paz e comunho com a Santa S Apostlica. Venerveis Irmos, sade e beno apostlica!

    INTRODUO

    A misso, que nos foi divinamente confiada, de apascentar o rebanho do Senhor, entre os principais deveres impostos por Cristo, conta o de guardar com todo o desvelo o depsito da f transmitida aos Santos,

    repudiando as profanas novidades de palavras e as oposies de uma cincia enganadora. E, na verdade, esta providncia do Supremo Pastor foi em todo o tempo necessria Igreja Catlica; porquanto, devido ao inimigo do gnero humano, nunca faltaram homens de perverso dizer (At 20,30), vanloquos e sedutores (Tit 1,10), que cados eles em erro arrastam os mais ao erro (2 Tim 3,13). Contudo, h mister confessar que nestes ltimos tempos cresceu sobremaneira o nmero dos inimigos da Cruz de Cristo, os quais, com artifcios de todo ardilosos, se esforam por baldar a virtude vivificante da Igreja e solapar pelos alicerces, se

    dado lhes fosse, o mesmo reino de Jesus Cristo. Por isto j no Nos lcito calar para no parecer faltarmos ao Nosso santssimo dever, e para que se Nos no acuse de descuido de nossa obrigao a benignidade de que, na esperana de melhores disposies, at agora usamos.

  • E o que exige que sem demora falemos antes de tudo que os fautores do erro j no devem ser

    procurados entre inimigos declarados; mas, o que muito para sentir e recear, se ocultam no prprio seio da Igreja, tornando-se destarte tanto mais nocivos quanto menos percebidos.

    Aludimos, Venerveis Irmos, a muitos membros do laicato catlico e tambm, coisa ainda mais para

    lastimar, a no poucos do clero que, fingindo amor Igreja e sem nenhum slido conhecimento de filosofia e teologia, mas, embebidos antes das teorias envenenadas dos inimigos da Igreja, blasonam, postergando todo o comedimento, de refor-madores da mesma Igreja; e cerrando ousadamente fileiras se atiram sobre tudo o que h de mais santo na obra de Cristo, sem pouparem sequer a mesma pessoa do divino Redentor, que,

    com audcia sacrlega, rebaixam craveira de um puro e simples homem.

    Pasmem, embora homens de tal casta, que Ns os ponhamos no nmero dos inimigos da Igreja; no

    poder porm pasmar com razo quem quer que, postas de lado as intenes de que s Deus juiz, se aplique a examinar as doutrinas e o modo de falar e de agir de que lanam eles mo. No se afastar, portanto, da verdade quem os tiver como os mais perigosos inimigos da Igreja. Estes, em verdade, como dissemos, no j fora, mas dentro da Igreja, tramam seus perniciosos conselhos; e, por isto, por assim dizer nas prprias veias e entranhas dela que se acha o perigo, tanto mais ruinoso quanto mais intimamente eles a conhecem. Alm de que, no sobre as ramagens e os brotos, mas sobre as mesmas razes que so a F e suas fibras mais vitais, que meneiam eles o machado. Batida pois esta raiz da imortalidade, continuam a derramar o vrus por toda a rvore, de sorte que coisa alguma poupam da verdade catlica, nenhuma verdade h que no intentem contaminar. E ainda vo mais longe; pois, pondo em obra o sem nmero de seus malficos ardis, no h quem os vena em manhas e astcias: porquanto fazem promiscuamente o papel ora de racio-nalistas, ora de catlicos, e isto com tal dissimulao, que arrastam sem dificuldade ao erro qualquer incauto; e, sendo ousados como os que mais o so, no h conseqncias de que se

    amedrontem e que no aceitem com obstinao e sem escrpulos. Acrescente-se-lhes ainda, coisa aptssima para enganar o nimo alheio, uma operosidade incansvel, uma assdua e vigorosa aplicao a todo o ramo de estudos e, o mais das vezes, a fama de uma vida austera. Finalmente, e isto o que faz desvanecer toda esperana de cura, pelas suas mesmas doutrinas so formados numa escola de desprezo a toda autoridade e a todo freio; e, confiados em uma conscincia falsa, persuadem-se de que amor de verdade o que no passa de soberba e obstinao. Na verdade, por algum tempo esperamos reconduzi-los a melhores sentimentos e,

    para este fim, a princpio os tratamos com brandura, em seguida com severidade e, finalmente, bem a contragosto, servimo-nos de penas pblicas.

    Mas vs bem sabeis, Venerveis Irmos, como tudo foi debalde; pareceram por momento curvar a

    fronte, para depois reergu-la com maior altivez. Poderamos talvez ainda deixar isto despercebido se tratasse somente deles; trata-se porm das garantias do nome catlico.

    H, pois, mister quebrar o silncio, que ora seria culpvel, para tornar bem conhecidos Igreja esses

    homens to mal disfarados.

    E visto que os modernistas (tal o nome com que vulgarmente e com razo so chamados) com

    astuciosssimo engano costumam apresentar suas doutrinas no coordenadas e juntas como um todo, mas dispersas e como separadas umas das outras, a fim de serem tidos por duvidosos e incertos, ao passo que de

    fato esto firmes e constantes, convm, Venerveis Irmos, primeiro exibirmos aqui as mesmas doutrinas em um s quadro, e mostrar-lhes o nexo com que formam entre si um s corpo, para depois indagarmos as causas dos erros e prescrevermos os remdios para debelar-lhes os efeitos perniciosos.

    I. EXPOSIO DO SISTEMA E SUA DIVISO

    E, para procedermos com ordem em to abstrusa matria, convm notar que cada modernista representa

    e quase compendia em si muitos personagens, isto , o de filsofo, o de crente, o de telogo, o de historiador, o de crtico, o de apologista, o de reformador; os quais personagens todos, um por um, cumpre bem os distinga todo aquele que quiser devidamente conhecer o seu sistema e penetrar nos princpios e nas conseqncias das suas doutrinas.

    1. O modernista filsofo

  • Comeando pelo filsofo, cumpre saber que todo o fundamento da filosofia religiosa dos modernistas

    assenta sobre a doutrina que chamamos agnosticismo. Por fora desta doutrina, a razo humana fica inteiramente reduzida considerao dos fenmenos, isto , s das coisas perceptveis e pelo modo como so perceptveis; nem tem ela direito nem aptido para transpor estes limites. E da segue que no dado razo elevar-se a Deus, nem conceder-lhe a existncia, nem mesmo por intermdio dos seres visveis. Segue-se, portanto, que Deus no pode ser de maneira alguma objeto direto da cincia; e, tambm com relao histria, no pode servir de assunto histrico. Postas estas premissas, todos percebem com clareza qual

    no deve ser a sorte da teologia natural, dos motivos de credibilidade, da revelao externa. Tudo isto os modernistas rejeitam e atribuem ao intelec-tualismo, que chamam ridculo sistema, morto j h muito tempo. Nem os abala ter a Igreja condenado formalmente erros to monstruosos. Pois que, de fato, o Conclio Vaticano I assim definiu:

    Se algum disser que o Deus nico e verdadeiro, criador e Senhor nosso, por meio das coisas criadas no pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razo humana, seja antema (De Revel., Cn. 1); e

    tambm:

    Se algum disser que no possvel ou no convm que, por divina revelao, seja o homem instrudo acerca de Deus e do culto que lhe devido, seja antema (Ibid., Cn. 2); e, finalmente:

    Se algum disser que a divina revelao no pode tornar-se crvel por manifestaes externas, e que por

    isto os homens no devem ser movidos f seno exclusivamente pela interna experincia ou inspirao privada, seja antema (De Fide, Cn. 3).

    De que modo porm os modernistas passam do agnosticismo, que puro estado de ignorncia, para o

    atesmo cientfico e histrico, que, ao contrrio, estado de positiva negao, e por isso, com que lgica do no saber se Deus interveio ou no na histria do gnero humano passam a tudo explicar na mesma histria, pondo Deus de parte, como se na realidade no tivesse intervindo, quem o souber que o explique.

    H entretanto para eles uma coisa fixa e determinada, que o dever ser atia a cincia a par da histria,

    em cujas raias no haja lugar seno para os fenmenos, repelido de uma vez Deus e tudo o que divino.

    E dessa absurdssima doutrina ver-se-, dentro em pouco, que coisas seremos obrigados a deduzir a respeito da augusta Pessoa de Cristo, dos mistrios e da sua vida e morte, da sua ressurreio e ascenso ao cu.

    Este agnosticismo, porm, na doutrina dos modernistas no constitui seno a parte negativa; a positiva

    acha-se toda na imanncia vital.

    Eis aqui o modo como eles passam de uma parte a outra. A religio, quer a natural quer a

    sobrenatural, mister seja explicada como qualquer outro fato. Ora, destruda a teologia natural, impedido o acesso revelao ao rejeitar os motivos de credibilidade, claro que se no pode procurar fora do homem essa explicao. Deve-se, pois, procurar no mesmo homem; e, visto que a religio no de fato seno uma forma da vida, a sua explicao se deve achar mesmo na vida do homem. Daqui procede o princpio da

    imanncia religiosa. Demais, a primeira moo, por assim dizer, de todo fenmeno vital deve sempre ser atribuda a uma necessidade; os primrdios, porm, falando mais especialmente da vida, devem ser atribudos a um movimento do corao que se chama sentimento. Por conseguinte, como o objeto da religio Deus, devemos concluir que a f, princpio e base de toda a religio, se deve fundar em um sentimento, nascido da necessidade da divindade.

    Esta necessidade das causas divinas, no se fazendo sentir no homem seno em certas e especiais

    circunstncias, no pode de per si pertencer ao mbito da conscincia; oculta-se primeiro abaixo da

    conscincia, ou, como dizem com vocbulo tirado da filosofia moderna, na subconscincia, onde a sua raiz fica tambm oculta e incompreensvel. Se algum, contudo, lhes perguntar de que modo essa necessidade da divindade, que o homem sente em si mesmo, se torna religio, ser esta a resposta dos modernistas: a cincia e a histria, dizem eles, acham-se fechadas entre dois termos: um externo, que o mundo visvel; outro interno, que a conscincia.

    Chegados a um ou outro destes dois termos, no se pode ir mais adiante; alm destes dois limites acha-

    se o incognoscvel. Diante deste incognoscvel, seja que ele se ache fora do homem e fora de todas as coisas visveis, seja que ele se ache oculto na subconscincia do homem, a necessidade de um qu divino, sem

    nenhum ato prvio da inteligncia, como o quer o fidesmo, gera no nimo j inclinado um certo sentimento particular, e este, seja como objeto, seja como causa interna, tem envolvida em si a mesma realidade divina e assim, de certa maneira, une o homem com Deus. precisamente a este sentimento que os modernistas do o nome de f e tm como princpio de religio.

  • Nem acaba a o filosofar, ou melhor, o desatinar desses homens. Pois nesse mesmo sentimento eles no

    encontram unicamente a f; mas, com a f e na mesma f, do modo como a entendem, sustentam que tambm se acha a revelao. E que o que mais se pode exigir para a revelao? J no ser talvez revelao, ou pelo menos princpio de revelao, aquele sentimento religioso que se manifesta na conscincia? Ou tambm o mesmo Deus a manifestar-se s almas, embora um tanto confusamente, no mesmo sentimento religioso? Eles ainda acrescentam mais, dizendo que, sendo Deus ao mesmo tempo objeto e causa da f, essa revelao de Deus como objeto e tambm provm de Deus como causa; isto , tem a Deus ao mesmo

    tempo como revelante e revelado. Segue-se daqui, Venerveis Irmos, a absurda afirmao dos modernistas, segundo a qual toda a religio, sob diverso aspecto, igualmente natural e sobrenatural. Segue-se daqui a promscua significao que do aos termos conscincia e revelao. Daqui a lei que d a conscincia religiosa, a par com a revelao, como regra universal, qual todos se devem sujeitar, incluindo a prpria autoridade da Igreja, seja quando ensina, seja quando legisla em matria de culto ou disciplina.

    Entretanto, em todo este processo donde, segundo os modernistas, resultam a f e a revelao, deve

    atender-se principalmente a uma coisa de no pequena importncia, pelas conseqncias histrico-crticas que da fazem derivar. Aquele Incognoscvel de que falam no se apresenta f como que nu e isolado; mas,

    ao contrrio, intimamente unido a algum fenmeno que, embora pertena ao campo da cincia ou da histria, assim mesmo, de certo modo, transpe os seus limites. Este fenmeno poder ser um fato qualquer da natureza, contendo em si algum qu de misterioso, ou poder tambm ser um homem, cujo talento, cujos atos, cujas palavras parecem nada ter de comum com as leis ordinrias da histria. A f, pois, atrada pelo Incognoscvel unido ao fenmeno, apodera-se de todo o mesmo fenmeno e de certo modo o penetra da sua vida. Donde se seguem duas coisas.

    A primeira uma certa transfigurao do fenmeno, por uma espcie de elevao das suas prprias

    condies, que o torna mais apto, qual matria, para receber o divino.

    A segunda uma certa desfigurao, resultante de que, tendo a f subtrado ao fenmeno os seus

    adjuntos de tempo e de lugar, facilmente lhe atribui aquilo que em realidade no tem; o que particularmente se d em se tratando de fenmenos de antigas datas, e isto tanto mais quanto mais remotas so elas.

    Destes doi