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T*5^ <M* MICHEL FOUCAULT A VERDADE E AS FORMAS JURÍDICAS mmM 3aedição 5J reimpressão jg_ ws? FbNTIFICIA Universidade Catouca DEPARTAMENTO DE I.ETRAÍV cr' \ EDITORA Rio de Janeiro 2009

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T*5^ <M*

MICHEL FOUCAULT

A VERDADE E AS

FORMAS JURÍDICAS

mmM

3aedição5J reimpressão

jg_

ws?FbNTIFICIA

UniversidadeCatouca

DEPARTAMENTO

DE I.ETRAÍV

cr' \

EDITORA

Rio de Janeiro

2009

II

Gostaria hoje de falar da história de Édipo, assunto queháumano se tornouconsideravelmente fora demoda. Apartirde Freud, a história de Édipo vinha sendo considerada comorelatando a fábula mais antiga de nosso desejo e de nossoinconsciente. Ora, a partir do livro de Deleuze e Guattari,UAnti-CEdipe, publicado no ano passado, a referência aÉdipodesempenha um papel inteiramente diferente.

Deleuze e Guattari tentaram mostrar que o triânguloedipiano, pai-mãe-filho, não revela urna verdade atemjgoral,nem uma verdade profundamente histórica de nosso desejo^Eles tentaram mostrar que esse famoso triângulo edipiàríoconstitui, para os analistas que o manipulam no interior dacura, uma certa maneira de conter o desejo* de garantir queodesejo não venha se investir, se difundir nó mundo que noscircunda, no mundo histórico; que o desejo permaneça nointerior da família e se desenrole como um pequeno dramaquase burguês entre o pai, a mãe e o filho. \-

Édipo não seria pois uma verdade de natureza, mas uminstrumento de limitação e coação queospsicanalistas, a partirdeFreud, utilizam para conter o desejo efazê-lo entraremumaestrutura familiar definida pornossa sociedade em determinado momento. Em outras palavras, Édipo, segundo Deleuze e

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Guattari; não éoconteúdo secreto de nosso inconsciente, masaforma de coação que apsicanálise tenta impor na cura anossodeseje e a nosso inconsciente. Édipo é um instrumento depoder, éuma certa maneira de poder médico epsicanalítico seexercer sobre o desejo e o inconsciente.

Confesso que um problema como este me atrai muito eque eu também me sinto tentado apesquisar, por trás do quese pretende que seja ahistória de Édipo, alguma coisa que temaver não com á história indefinida, sempre recomeçada, donosso desejo edo nosso inconsciente, mas com ahistória de umpoder, um poder político.

Faço um parêntese para lembrar que tudo que tentodizer, tudo que Deleuze, com mais profundidade, mostrou emseu L'Ànti~CEdipeízz parte de um conjunto de pesquisas quenão dizem respeito, ao contrário do que se diz nos jornais, ao

,qüe tradicionalmente se chama de estrutura. Nem Deleuze,nem Lyotard, nem Guattari, nem eu nunca fazemos análise de'estrutura, não somos absolutamente estruturalistas. Se meperguntassem oque faço eoque outros fazem melhor do queeu, diria que não fazemos pesquisa de estrutura. Faria um jogode palavras ediria que fazemos pesquisas de dinastia. Diria,jogando com as palavras gregas ôúvctuiç Ôwaaxeía que procuramos fazer aparecer oque na história de nossa cultura permaneceu até agora escondido, mais oculto, mais profundamenteinvestido; as relações de poder. Curiosamente, as estruturaseconômicas de nossa sociedade são melhor conhecidas, maisinventariadas, melhor destacadas que as estruturas de poderpolítico. Gostaria de mostrar nessa série de conferências de quemaneira relações'políticas se estabeleceram e se investiramprofundamente na nossa cultura dando lugar a uma série defenômenos que não podem ser explicados anão ser que osrelacionemos não às estruturas econômicas, às relações econô-

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micas de produção, mas arelações políticas que investem todaa trama de nossa existência.

Pretendo mostrar como a tragédia de Édipo, a que sepode ler em Sófocles —deixarei de lado oproblema do fundomítico aque ela se liga —é representativa e, de certa maneira,instauradora deum determinado tipode relação entre poder esaber, entre poder político e conhecimento, de que nossacivilização ainda não se libertou. Parece-me, que hárealmenteum complexo de Édipo na nossa civilização. Mas ele não dizrespeito ao nosso inconsciente e ao nosso desejo, nem àsrelações entre desejo e inconsciente. Se existe complexo deÉdipo, ele se dá não ao nível individual, mas coletivo; não apropósito de desejo einconsciente, mas de poder ede saber. Éesta espécie de complexo que eu gostaria de analisar.

A tragédia de Édipo é fundamentalmente o primeirotestemunho que temos das práticas judiciárias gregas. Comotodo mundo sabe, trata-se de uma história em que pessoas —um soberano, um povo — ignorando uma certa verdade,conseguem, por uma série de técnicas de que falaremos, descobrir uma verdade que coloca em questão aprópria soberania dosoberano. Atragédia de Édipo é, portando, ahistória de umapesquisa da verdade; é um procedimento de pesquisa daverdade que obedece exatamente às práticas judiciárias gregasdessa época. Por esta razão oprimeiro problema que se colocaéode saber oque era na Grécia arcaica apesquisa judiciária daverdade. v

Oprimeiro testemunho que temos da pesquisa da verdade no procedimento judiciário grego remonta à Ilíada. Trata-se dahistória dacontestação entre Antíloco eMenelau duranteos jogos que se realizaram na ocasião da morte de Pátroclo.Entre esses jogos houve uma corrida de carros, que, como decostume, se desenrolavaem um circuito com ida e volta,

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passando por um marco que era preciso contornar o maispróximo possível. Os organizadores dos jogos tinham colocadoneste lugar alguém que deveria ser o responsável pela regularidade da corrida que Homero, sem onomear pessoalmente, dizser uma testemunha, íoxcop aquele que está láparaver. Acorridase desenrola eosdois primeiros queestão nafrente nomomento dacurva são Antíloco eMenelau. Ocorreumairregularidadee quando Antíloco chega primeiro, Menelau introduz umacontestação e diz ao juiz ou júri que, deve dar o prêmio, queAntíloco cometeu uma irregularidade. Contestação, litígio,como estabelecer a verdade? Curiosamente, nesse texto deHomero, não se faz apelo àquele que viu, àfamosa testemunhaque estava junto ao marco e que deveria atestar o que aconteceu. Nãoseconvoca oseutestemunho enenhumaperguntalheé feita. Há somente contestação entre osadversários Menelaue Antíloco. Esta se desenvolve da seguinte maneira: depois daacusação deMenelau —"tucometeste uma irregularidade" —e da defesa de Antíloco — "eu não cometi irregularidade" —Menelau lança umdesafio: "Põe tuamão direita natesta doteucavalo; segura com amão esquerda teu chicote ejura diante deZeus que não cometeste irregularidade". Nesse momento,Antíloco, diante deste desafio que é uma prova (épreuve),renuncia à prova, renuncia a jurar e reconhece assim quecometeu irregularidade.

Eis uma maneira singular de produzir a verdade, deestabelecer a verdade jurídica: não se passa pela testemunha,mas por uma espécie de jogo, de prova, de desafio lançado porum adversário ao outro. Um lança um desafio, o outro deveaceitar o risco ou a ele renunciar. Se por acaso tivesse aceito orisco, se tivesse realmente jurado, imediatamente a responsabilidade do que iria acontecer, adescoberta final daverdade seria

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transpostaaosdeuses. EseriaZeus,punindo ofalso juramento,se fosse o caso, que teria com seu raio manifestadp a verdade.

Eisavelhae bastantearcaica práticada provadaverdadeem que esta é estabelecida judiciariamente não por„_umaconstatação, umatestemunha, uminquérito ouumainquisição,mas porumjogo deprova. Aprova écaracterísticadasociedadegrega arcaica. Vamos também reencontrá-la lia Alta IdadeMédia.

Éevidente que, quando Édipo etoda acidade de Tebasprocuramaverdade, nãoéestemodeloqueutilizam. Osséculospassaram. É, entretanto, interessante observar que encontramosaindana tragédia de Sófocles um ou dois restos dapráticade estabelecimento da verdade pela prova. Primeiro, na cenaentre Creonte eÉdipo, quando Édipo critica seu cunhado porter truncado a resposta de Oráculo de Delfos, dizendo: "Tuinventaste tudo istosimplesmente paratomar meupoder,parame substituir". E Creonte responde, sem que procure estabelecer a verdade através de testemunhas: "Bem, vamos jurar. Eêuvou jurar que não fiz nenhum comj^lô contra ti". Isto éditoem presença de Jocasta, que aceita o jogo, que é como que-responsável pela regularidade do jogo. Creonte responde aÉdipo segundo a velha fórmula do litígio entre guerreiros^

Poderíamos dizer, emsegundolugar, queemj:pda apeçaencontramos esse sistema dodesafio edaprova. Édipo, ao saberque a peste dè Tebas era devida à maldição dos deuses emconseqüência deconspurcação eassassinato, responde dizendoque se compromete a exilar a pessoa que tiver cometido estecrime,semsaber,naturalmente, queelemesmoo cometera. Eleestáassim implicado pelo próprio juramento, do modo comonasrivalidades entreguerreiros arcaicos osadversários seincluíam nos juramentos de promessa e maldição. Estes restos da

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velha tradição reaparecem algumas vezes ao longo da peça. Masna verdade toda a tragédia de Édipo se fundamenta em ummecanismo inteiramente diferente. É esse mecanismo deestabelecimento da verdade que gostaria de expor.

Parece-me que esse mecanismo da verdade obedeceinicialmente a uma lei, uma espécie de pura forma, quepoderíamos chamar de lei das metades. Épor metades que seajustam ese eijcaixam que adescoberta da verdade procede emEdipo. Édipo manda consultar odeus de Delfos, orei Apoio.Aresposta de Apoio, quando aexaminamos em detalhe, édadaem duas partes. Apoio começa por dizer: "O país está atingidoPor uma conspurcação". Aesse primeira resposta falta, de certaforma, uma metade: há uma conspurcação, mas quemconspurcou, ou o que conspurcou? Portanto, há necessidade dese fazer uma segunda pergunta eÉdipo força Creonte adar asegunda resposta, perguntando aque édevida aconspurcação.Asegunda metade aparece: oque causou aconspurcação foi umassassinato. Mas quem diz assassinato diz duas coisas. Dizquem foi assassinado eoassassino. Pergunta-se aApoio: "quemfoi assassinado?" Aresposta é: Laio, oantigo rei. Pergunta-se:"quem assassinou?" Nesse momento o rei Apoio se recusa aresponder e, como diz Édipo, não se pode forçar averdade dosdeuses. Fica, portanto, faltando uma metade. Àconspurcaçãocorrespondia a metade do assassinato. Ao assassinatocorrespondia aprimeira metade: "Quem foi assassinado". Masfalta a segunda metade: o nome do assassino.

Para saber onome do assassino, vai ser preciso apelar paraalguma coisa, para alguém, já que não se pode forçar avontadedos deuses. Este outro, oduplo de Apoio, seu duplo humano,sua sombra mortal éoadivinho Tirésias que, como Apoio, éalguém divino, 9eíoç uávtiç, odivino adivinho. Ele está muitopróximo de Apoio, também é chamado rei, ávocÇ; mas é

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perecível, enquanto Apoio é imortal; e sobretudo ele é cego,está mergulhado na noite, enquanto Apoio éodeus do Sol. Eleéametadedesombradaverdade divina, o duplo que o deus luzprojeta em negro sobre asuperfície da Terra. Éesta metade quese vai interrogar. ETirésias responde aÉdipo dizendo: "Fostetu quem matou Laio".

Por conseguinte podemos dizer que, desde a segundacena de Édipo, tudo está dito erepresentado. Tem-se averdade,já que Édipo éefetivamente designado pelo conjunto constituído das respostas de Apoio, por um lado, e da resposta deTirésias, por outro. O jogo das metades está completo:conspurcação, assassinato, quem foi morto, quem matou.Temos tudo. Mas na forma bem particular da profecia, daprediçáo, da prescrição. Oadivinho Tirésias não diz exatamente a Édipo: "Foste tu quem o matou". Ele diz: "Prometestebanir aquele que tivesse matado; ordeno que cumpras teuvotoeexpulses atimesmo". Do mesmo modo, Apoio não havia ditoexatamente: "Há conspurcação e é por isto que a cidade estámergulhada na peste". Apoio disse: "Se quiseres que a pesteacabe, é preciso lavar a conspurcação". Tudo isso foi dito naforma do futuro, da prescrição, da prediçáo; nada se refere àatualidade do presente; nada é apontado.

Temos toda a verdade, mas na forma prescritiva eprofética que écaracterística ao mesmo tempo do oráculo edoadivinho. Aesta verdade que, de certa forma écompleta, total,em que tudo foi dito,, falta entretanto alguma coisa que é adimensão do presente, da atualidade, da designação de alguém.Falta otestemunho doquerealmente se passou. Curiosamente,todaesta velha história é formulada pelo adivinho e pelo deusna forma do futuro. Precisamos agora do presente e do testemunho do passado: testemunho presente do que realmenteaconteceu.

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Esta segunda metade, passado e presente, desta prescrição edesta previsão édada no resto da peça. Ela também édadapor um estranho jogo de metades. Inicialmente é precisoestabelecer quem matou Laio. Isto éobtido no decorrer da peçapelo acoplamento de dois testemunhos. O primeiro é dadoespontaneamente e inadvertidamente por Jocasta ao dizer:"Vês bem que não foste tu, Édipo, quem matou Laio, contrariamente aoquedizoadivinho. Amelhor prova disto éque Laiofoi morto porvários homens no entroacamento de três caminhos". Aeste testemunho vai responder a inquietude, jáquaseacerteza, de Édipo: "Matar um homem noentroncamento detrês caminhos é exatamente o que eu fiz; eu me lembro que aochegar a Tebas matei alguém no etroncamento de três caminhos". Assim, pelo jogo dessas duas metades que se completam,a lembrança de Jocasta e a lembrança de Édipo, temos estaverdade quase completa, a verdade do assassinato de Laio.Quase completa, pois falta ainda um pequeno fragmento: odesaber se ele foi morto por um só oupor vários, o quealiás nãoé resolvido na peça.

Mas isto é somente a metade dahistória de Édipo, poisÉdipo não é apenas aquele que matou o rei Laio, é tambémquem matou o próprio pai ecasou comaprópria mãe, depoisde o ter matado. Esta segunda metade da história falta aindadepois do acoplamento dos testemunhos deJocasta ede Édipo.O que falta é exatamente o que lhes dá uma espécie deesperança, pois o deus predisse que Laio não seria morto porqualquer um, mas por seu filho. Portanto, enquanto não seprovar que Édipo é filho de Laio, a predição não estarárealizada. Esta segunda metade énecessária para que a totalidadeda predição seja estabelecida, na última parte dapeça, peloacoplamento de dois testemunhos diferentes. Um será q doescravo que vem de Corinto anunciar a Édipo que Políbio

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morreu. Édipo, que não chora a morte de seu pai, se alegradizendo: "Ah! Maspelomenos eunãoo matei, contrariamenteaoquedizapredição". Eo escravo replica: "Políbio nãóerateupai .

Temos, assim, umnovo elemento: Édipo não é filho dePolíbio. É então que intervém o último escravo, o que haviafugido depois dodrama, oque havia se escondido nofundo doCiterão, o que havia escondido a verdade^em suaxabana, opastqi• dejovelhas, que échamado para ser interrogado sobre oque aconteceu ediz: "Com efeito, dei outrora aeste mensageiroumacriança quevinha dopalácio deJocasta equemedisseramque era seu filho".

Vemos quefalta ainda ajúltima certeza, poisjoçasta nãoestá presente para atestar quejpi ela quem deu a criança aoescravo. Mas, excetuando esta pequena dificuldade, agora ociclo está completo. Sabemos que Édipo era filho de Laio eJocasta; que ele foi dado a Pqlíbio; que foi ele," pensando ser,filho de Políbio evoltando, para escapar daprofecia, a Tebas,

#que ele nãosabia queerasuapátria, quematou, no entroncamento detrês caminhos, o rei Laio, seu verdadeiro pai. O cicloestá fechado. Ele se fechou por uma série de ençajxÊsJdemetades que se ajustam umas às outras. Como se toda estalonga e complexa história da criança aojnesmo tempo exiladaefugindo daprofecia, exilada porcausa daprofecia, tivessesidoquebrada em dois, e em seguida, cada fragmento partido_denovo em dois, e todos esses fragmentos repartidos em_mãosdiferentes. Foipreciso esta reunião dodeus edoseuprofeta, deJocasta e de Édipo, do escravo de Corinto e do escravo^doCiterão para que todas estas metades e metades de metadesviessem ajustar-se umü_às~oiitras, adaptar-se, encaixar-se ereconstituir o perfil total da história.

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Esta forma, realmente impressionante no Édipo deSófocles, não é apenas uma forma retórica. Ela é ao mesmotempo religiosa e política. Ela consiste na famosa técnica docrúupoÀov, o símbolo grego. Um instrumeato de poder, deexercício de poder que permite aalguém que detém um segredoou um poder quebrar em duas partes um objeto qualquer, decerâmica etc, guardar uma das partes econfiar aoutra parte aalguém que deve levar amensagem ou atestar sua autenticidade. Epelo ajustamento destas duas metades que se poderáreconhecer aautenticidade da mensagem, isto é, acontinuidade0 Poc*er <lue se exerce. Opoder se manifesta, completa seuciclo, mantém s.ua unidade graças a este jogo de pequenosfragmentos, separados uns dos outros, de um mesmo conjunto,de um único objeto, cuja configuração geral éaforma manifestado poder. Ahistória de Édipo éafragmentação desta peça de14e a Posse integral, reunificada, autentifica a detenção dopoder eas ordens dadas por ele. As mensagens, os mensageirosque ele envia eque devem retornar autentificarão sua ligação aopoder pelo fato de cada um deles deter um fragmento da peçae poder ajustá-lo aos outros fragmentos. Esta é a técnicajurídica,políticaereligiosa do que os gregos chamam aljupotov— o símbolo.

Ahistória de Édipo, tal como érepresentada na tragédiade Sófocles, obedece a este oúnfiolov: não uma forma retóricamas religiosa, política, quase mágica do exercício do poder.

Seobservarmos, agora, não aforma deste mecanismo ouojogo de metades que se fragmentam eterminam por se ajustar,masoefeito que éproduzido por esses ajustamentos recíprocos,veremos uma-série de coisas. Inicialmente uma espécie dedeslocamento àmedida_queLasjr^taieije^jusjtam. Oprimeirojogo de metades que se ajustam éo do rei Apoio e do divinoadivinho Tirésias — o nível da profecia ou dos deuses. Em

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seguida, a segunda série de metades que se ajustam é formadapor Édipo eJocasta. Seus dois testemunhos se encontram nomeio da peça. Éo nível dos reis, dos soberanos. Finalmente, aúltima dupla de testemunhos que intervém, a última metadeque vem completar a história não é constituída nem pelosdeuses nem pelos reis, mas pelos servidores e escravos. O maishumilde escravo dePolíbio eprincipalmente o mais escondidodos pastores da floresta do Citerão vão enunciar a verdadeúltima e trazer o último testemunho.

Temos assim um resultado curioso. O que havia sidodito em termos de profecia no começo da peça vai ser rédito sobforma de testemunho pelos dois pastores. E assimcomo a peçapassa dos deuses aos escravos, os mecanismos de enunciado daverdade ou a forma na qual a verdade se enuncia mudamigualmente. Quando o deus e o adivinho falam, averdade seformula em forma de prescrição e profecia, na forma de umolhar eterno etodo poderoso dodeus Sol, naforma doolhar doadivinho que, apesar de cego, vê o passado, o presente e ofuturo. Éesta espécie de olhar mágicq-religioso que faz brilharno começo da peça uma verdade em que Édipo e o coro nãoquerem acreditar. No nível mais baixo encontramos também oolhar. Pois, se os dois escravos podem testemunhar é porquevitam. Um viu Jocasta lhe entregar uma criança para que alevasse para a floresta e láaabandonasse. O outro viu acriançana floresta, viu seu companheiro escravo lhe entregar estacriança ese lembra de tê4a levado ao palácio de Políbio. Trata-se aqui ainda do olhar. Não mais do grande olhar eterno,iluminador, ofuscante, fulgurante do deus e de seu adivinho,mas o de pessoas que viram ese lembram de tet visto com seusolhos humanos. É o olhar do testemunho. É a este olharqueHomero não fazia referência ao falar do conflito e do litígioentre Antíloco e Menelau.

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Podemos dizer, portanto, que toda a peça de Édipo éuma maneira de deslocar a enunciação da verdade de umdiscurso de tipo profético e prescritivo a um outro discurso, deordem retrospectiva, não mais da ordem da profecia, mas dotestemunho. É ainda uma certa maneira de deslocar o brilho ou

a luz da verdade do brilho profético e divino para o olhar, decerta forma empírico e quotidiano, dos pastores. Há umacorrespondência entre os pastores e os deuses. Eles dizem amesma coisa, eles vêem a mesma coisa, mas não na mesmalinguagem nem com os mesmos olhos. Em toda a tragédiavemos esta mesma verdade que se apresenta e se form_ula.deduas maneiras diferentes, com outras palavras, era outrojdis-curso, com outro olhar. Mas esses olharessecorrespondem umao outro. Os pastores respondem exatamente aos deuses epodemos dizeratéque ospastoresossimbolizam. O que dizemos pastoresé, no fundo, mas de outra forma, o que os deuses jáhaviam dito.

Temos aí um dos traços mais fundamentais da tragédiade Édipo: a comunicação entre ospastores e os deuses, entre alembrançados homens e as profecias divinas. Estacorrespondênciadefinea tragédia e estabelece um mundo simbólico emque a lembrança e o discurso dos homens são como que umaimagem empírica da grande profecia dos deuses.

Eis um dos pontos sobre os quais devemos insistir paracompreender este mecanismo da progressão da verdade emEdipo. De um lado estão os deuses, do outro os pastores. Masentre os dois há o nível dos reis, ou melhor, o nível de Édipo.Qual é seu nível de saber, que significa seu olhar?

A este respeito é preciso retificar algumas coisas. Habitualmente se diz, quando se analisa a peça, que Édipo é aqueleque nada sabia, que era cego, que tinha os olhosvendados e amemória bloqueada, pois nunca havia mencionado e parecia

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teresquecido osprópriosgestos aomataro reino entroncamento dos três caminhos. Édipo, homem do esquedmentol__ho-mem do não-saber, homem do inconsciente para Freud.Conhecemos todos os jogos de palavras que foram feitos como nome de Édipo. Mas, não esqueçamos que estes jogos sãomúltiplos e que mesmo os gregos já haviam notado que emOí8íjtot)ç, temos a palavra oíôa que significa aamesmo tempo \tervisto e saber. Gostaria demostrar que Édipo, dentro dggsgmecanismo do^oT&ufJqXov, de metades que secomunicam, jogoderespostas entreospastores e osdeuses, nãoéaquele quenãosabia, mas, ao^contrárío, é aquele quesabia demais. Aquele queunia seusabere seupoder de uma certa maneiracondenável eque a história de Édipo devia expulsar definitivamente dahistória.

O título mesmo da tragédia de Sófocles é interessante:Édipo é Édipo-Rei, Oí8Í3tq\)ç TÚpavvqç.. É difícil traduzir estapalavra TÚDayyoç. Atradução nãodácontadosignificado exato rda palavra. Édipo éohomem dopoder, homem que exerce um^certopoder. Eé característico que o título dapeça de Sófoclesnão seja Édipo, oincestuoso, nem Edipo, oassassino deseu_paiTmosr.JEdipo-Rei. Que significa a realeza de Édfpo?.- . *:> *' o

Podemos notar a importância da temática do poder nodecorrer de toda a peça. Durante toda a peça cj que está emquestão éessencialmentejgjxxler de Édipo êéisso que faz comque elese sinta ameaçado.

Édipo, em todaatragédia, nunca dirá que éinocente, quetalvez tenha feito algo mas que foi contraavontade, que quandomatou aquele homem, não sabia que se tratava de Laio. Essadefesa ao nível da inocência e da inconsciência nunca é feita

pelo personagem de Sófocles em Edipo-Rei.Somente em Edipo em Colona se verá umÉdipo cego e

miserável gemer aolongo da peçadizendo: "Eu nadapodia, os

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deuses me pegaram em uma armadilha que eu desconhecia".Ém Édipo-Reiele não se defende de maneira alguma ao nível desuainocência. Seuproblema é apenas o poder. Poderá guardaro poder? É este poder que está em jogo do começo ao fim dapeça.

Na primeira cena, é na condição de soberano que oshabitantes de Tebas recorrem aÉdipo contra apeste. "Tu tenso poder, deves, curar-nos da peste". E ele responde dizendo:"Tenho grandeinteresse em curá-los dapeste, porque esta pestequevosatinge,meatingetambém emminha soberaniaeminharealeza". Éinteressado em manter aprópria realeza que Édipoquer buscarasolução doproblema. Equando começa asesentirameaçado pelas respostas que surgem em sua volta, quando ooráculo o designa e o adivinho dizde maneira mais clara aindaque é ele o culpado, sem responder em termos de inocência,Édipo diz a Tirésias: "Tu queres meu poder; tu armaste umcomplô contra mim, para me privar de meu poder".

Ele nãoseassusta com a idéia dequepoderia ter matadoo pai ou o rei. O que o assusta é perder o próprio poder.

No momento da grande disputa com Creonte, ele lhediz: "Trouxeste um oráculo de Delfos, mas esse oráculo tu ofalseaste, porque, filho de Laio, tu reinvindicas um poder queme foi dado". Ainda aqui Édipo se sente ameaçado por Creonteaonível do poder e nãoaonível desuainocência ou culpabilidade. O queestáemquestão em todosestes defrontamentos docomeço da peça é o poder.

E quando, no fim da peça, a verdade vai ser descoberta,quando o escravo de Corinto diz a Édipo: "Não te inquietes,não és o filho de Políbio", Édipo não pensará que não sendofilho de Políbio, poderáserfilho de um outro e talvez de Laio.Ele diz: "Disse isso para me envergonhar, para fazer o povo

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acreditat que eu sou filho de um escravo; mas mesmo que euseja filho de um escravo, isto não me impedirá de exercer opoder; eu sou um rei como os outros". Ainda aqui édo poderque se trata. Écomo chefe de justiça, como soberano, queÉdipo, nesse momento, convocará a última testemunha: oescravo do Citerão. Écomo soberano que ele, ameaçando-o detortura, lhe arrancará averdade. Equando averdade éarrancada, quando se sabe quem era Édipo eoque fez —assassinatodo pai, incesto com amãe —que diz opovo de Tebas? "Nóste chamávamos nosso rei". Isto significando que o povo deTebas, ao mesmo tempo em que reconhece em Édipo quem foiseu rei, pelo uso do imperfeito —chamávamos —odeclaraagora destituído da realeza.

Oque está em questão éaqueda do poder de Edipo. Aprova éque, quando Édipo perde opoder para Creonte, asúltimas réplicas da peça ainda giram em torno do poder. Aúltima palavra dirigida a Édipo antes que o levem para ointerior do palácio épronunciada pelo novo rei Creonte: "Naoprocures mais ser osenhor". Apalavra empregada éKpaxeív. Oque quer dizer que Édipo não deve mais comandar. ECreonteacrescenta ainda, aKpáTnaaç, uma palavta que quer dizer"depois de ter chegado ao cume" mas que étambém um jogode palavras em que o a' tem um sentido privativo: "nãopossuindo mais o poder". ãKpécTnoaç significa ao mesmotempo: "tu que subiste até ocume eque agota não tens mais opoder". i ...

Depois disso opovo intervém esaúda Edipo pela últimavez dizendo: "Tu que eras icpáiunoç". isto é, "tu que estavas nocume do poder". Ora, aprimeira saudação do povo de Tebasa Édipo era: %Kpaxwcov Oiôteoioç", isto é, "Edipo todopoderoso!" Entre essas duas saudações do povo se desenvolveutoda atragédia. Attagédia do poder eda detenção do poder

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político. Mas oque éeste poder de Édipo? Como se caracteriza?Suas características estão presentes no pensamento, nahistóriae na filosofia grega da época. Édipo é chamado de PaoiXe-úçáva£,, o primeiro dos homens, aquele quetemaKpáteia, aquelequedetém opoderemesmo deTÚpavvoç. Tiranonãodeve aquiser entendido emseu sentido estrito, tanto quePolíbio, Laio etodos os outros foram chamados também de TÚpavvoç.

Um certo número de características deste poderaparecena tragédia de Édipo. Édipo tem opoder. Mas oobteve atravésde uma série de histórias, de aventuras, que fizeram deleinicialmente o homem mais miserável — criança expulsa,perdida, viajante errante — e, em seguida, o homem maispoderoso. Ele conheceu um destino desigual. Conheceu amiséria e a glória. Esteve no ponto mais alto, quando seacreditava que fosse filho de Políbio e esteve no ponto maisbaixo, quando se tornouumpersonagem errante decidade emcidade. Mais tarde, de novo, ele atingiu o cume. "Osanos quecresceram comigo, diz ele, ora me rebaixaram, ora me exaltaram".

Esta alternância do destino é um traço característico dedois tipos de personagens. O personagem lendário do heróiépico queperdeu sua cidadania esua pátria eque, depois deumcerto número de provas, reencontra a glória e o personagemhistórico do tirano grego do fim doVIe início doVséculos. Otirano era aquele que depois de ter conhecidovárias aventurasechegado ao auge dopoder estava sempre ameaçado deperdê-lo. Airregularidade dodestino é característica do personagemdo tirano tal como é descrito nos textos gregos desta época.

Édipo éaquele que, após terconhecido amiséria, conheceua glória, aquele que se tornou rei após ter sidoherói. Mas,se ele se tornou rei, é porque tinha curado a cidade de Tebasmatando a Divina Cantora, a Cadela que devorava todos

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aqueles que não decifravam seus enigmas. Ele tinha curado acidade, lhe havia permitido, como diz, que ela se reerguesse,que elarespirasse no momento em que havia perdido o fôlego.Para designar esta cura da cidade, Édipo emprega a expressãoõpBcoaav, "reerguer"; âvópGooaav Ttó^iv "reerguer a cidade".Ora, éestaexpressão queencontramosno textodeSólon. Sólonquenãoébemum tirano, mas o legislador, sevangloriava deterreerguido a cidade ateniense no fim do século VI. Esta étambém a característica de todos os tiranos que surgiram naGrécia durante os séculos VII e VI. Eles não somente conhece

ramosaltosebaixos dasorte,mastambémdesempenharam nascidades o papel de reerguê-la através de uma distribuiçãoeconômica justa, como Cípselo em Corinto ou através de leisjustascomo Sólonem Atenas. Eis, portanto, duas características fundamentais do tirano grego tal como nos mostram ostextos da épocade Sófocles ou mesmo anteriores.

Encontramos também emÉdipo umsérie decaracterís- fticas não mais positivas, masnegativas, da tirania. Várias coisas'são reprovadas em Édipo em suas discussões com Tirésias e .Creonte e até mesmocom o povo. Creonte, por exemplo', lhe '"diz: "Estás errado; tu te identificas com esta cidade, cidade em

que não nasceste, imaginas que és esta cidade e que ela tepertence; eu tambémfaço partedestacidade, elanão ésomentetua". Ora, se consideramos as histórias que Heródoto, porexemplo, contava sobre osvelhos tiranos gregos, emparticularsobre Cípselo de Corinto, vemos que se trata de alguém quejulgava possuir a cidade. Cípselo dizia queZeuslhehavia dadoa cidadee que elea haviadevolvido aoscidadãos. Encontramosexatamente a mesmo coisana tragédia de Sófocles.

Do mesmo modo, Édipo éaquele que não dáimportânciaàsleis eque assubstituipor suas vontades esuas ordens. Eleo diz claramente. Quando Creonte o reprovava por querer

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éxilá-lo dizendo que sua decisão não era justa, Édipo responde:"Pouco me importa que seja justo ou não; épreciso obedecer

• assim mesmo". Sua vontade será alei da cidade. Épor isto queno momento em que se inicia sua queda o coro do povoreprovará Édipo por ter desprezado aôíkt., ajustiça. Épreciso,portanto, reconhecer em Édipo um personagem historicamente bem definido, assinalado, catalogado, caracterizado pelopensamento grego do século V: o tirano.

Este personagem do tirano não ésó caracterizado pelopoder como também por um certo tipo de saber. Otirano gregonão era simplesmente oque tomava opoder. Era aquele quetomava opoderporque detinha ou fazia valer ofato de deter umcerto saber superior em eficácia ao dos outros. Este éprecisamente ocaso de Édipo. Édipo éaquele que conseguiu resolverpor seu pensamento,por seu saber, ofamoso enigma da esfinge.Eassim como Sólon pode dar, efetivamente, aAtenas leis justas,assim como Sólon pode reerguer acidade porque era acxpóçTsábio, assim também Édipo pode resolver oenigma da esfingeporque era oxxpóç.

O que é este saber de Édipo? Como se caracteriza? Osaber de Édipo está caracterizado no decorrer de toda apeça.Edipo diz atodo momento que venceu os outros, que resolveuoenigma da esfinge, que curou acidadepor meio do que chamade yvcóuri, seu conhecimento ou sua té%vr,. Outras vezes, paradesignar seu modo de saber, ele se diz aquele que encontrouWnKO-Esta éapalavra que Édipo mais freqüentemente utilizapara designar oque fez outrora eestá tentando fazer agora. SeEdipo resolveu o, enigma da esfinge éporque encontrou. Sequiser salvar de novo Tebas, épreciso novamente encontrar,eupíOKEiv. Oque significa eupírjKetv? Esta atividade de encontrar écaracterizada inicialmente na peça como algo que se fazsozinho. Édipo insiste nisso incessantemente. "Quando resolvi

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oenigma da esfinge, não me dirigi aninguém", diz ele ao povoe ao adivinho. Ele diz ao povo: "Não me pudeste ajudar demaneira nenhuma a resolver o enigma da esfinge; não podiasfazer nada contra a Divina Cantora". E diz a Tirésias: "Mas queadivinho és tu, que nem foste capaz de libertar Tebas da esfinge?Enquanto todos estavam mergulhados no terror eu liberteiTebas sozinho; não aprendi nada com ninguém; não me servide nenhum mensageiro, vim pessoalmente". Encontrar éalgoque se faz sozinho. Encontrar étambém oque se faz quando seabrem os olhos. EÉdipo éohomem que não cessa de dizer: "Euinquiri, ecomo ninguém foi capaz de me dar informações, abrios olhos e os ouvidos; eu vi". O verbo oí5a, que significa aomesmo tempo saber e ver, é freqüentemente utilizado porÉdipo. OiôÍJto-uç éaquele que écapaz desta atividade de ver esaber. Ele é o homem do ver, o homem do olhar e o será até ofim.

Se Édipo cai em uma armadilha éprecisamente porque,em sua vontade de encontrar, ele prolongou o testemunho, alembrança, aprocura das pessoas que viram até o momento emque foi desenterrado do fundo do Citerão oescravo que haviaassistido atudo eque sabia averdade. Osaber de Édipo éestaespécie de saber de experiência. Éao mesmo tempo este sabersolitário, de conhecimento, do homem que, sozinho, sem seapoiat no que se diz, sem ouvir ninguém, quer ver com seuspróprios olhos. Saber autocrático do tirano que, por si só, podeeécapaz de governar acidade. Ametáfora do que governa, doque pilota, éfreqüentemente utilizada por Édipo para designaroque ele faz. Édipo éopiloto, aquele que na proa do navio abreos olhos para ver. Eéprecisamente, porque abre os olhos sobreoque está acontecendo que encontra oacidente, oinesperado,odestino, arú%r|. Potque foi este homem do olhat autocrático,aberto sobre as coisas, Édipo caiu na armadilha.

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O que gostaria de mostrar é que, no fundo, Édiporepresenta na peça de Sófocles um certo tipo do que euchamaria saber-e-poder, poder-e-saber. Éporque ele exerce umcerto poder tirânico e solitário, desviado tanto do oráculo dosdeuses que ele não quer ouvir, quanto do que diz equer opovo,que, em sua sede de poder e saber, em sua sede de governardescobrindo por si só, ele encontra, em última instância, ostestemunhos daqueles que viram.

Vemos assim como o jogo das metades pôdefuncionar ecomo Édipo é, no fim da peça, um personagem supérfluo. Istonamedida em que este saber tirânico, este saber de quem querver com seus próprios olhos sem escutar nem os deuses nem oshomens, permite o ajustamento exato do que haviam dito osdeuses e do que sabia o povo. Édipo, sem querer, consegueestabelecer a união entre a profecia de deus e a memória doshomens. O saber edipiano, o excesso de poder, o excesso desaber foram tais que ele se tornou inútil; o círculo se fechousobre ele, oumelhor, os dois fragmentos da téssera se ajustarame Édipo, em seu poder solitário, se tornou inútil. Nos doisfragmentos ajustados a imagem de Édipo se tornou monstruosa. Edipo podia demais porseu poder tirânico, sabia demais emseu saber solitário. Neste excesso, ele era ainda o esposo de suamãe e irmão de seus filhos. Édipo é o homem do excesso,homem que tem tudo demais, em seu poder, em seu saber, emsua família, em sua sexualidade. Édipo, homem duplo, quesobrava em relação àtransparência simbólica do que sabiam ospastores e haviam dito os deuses.

Atragédia de Édipo está bem próxima, portanto, do queserá, alguns anos depois a filosofia platônica. Para Platão, naverdade, o saber dos escravos, memória empírica do que foivisto, será desvalorizado em proveito de uma memória maisprofunda, essencial, que é a memória do que foi visto no céu

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inteligível. Maso importante éo quevaiserfundamentalmentedesvalorizado, desqualificado, tanto na tragédia de Sófoclesquanto na República de Platão: é o tema, bu melhor, o personagem, a forma de um saber político aomesmo tempo privilegiado e exclusivo. Quemé visado pela tragédia de Sófocles oupela filosofia de Platão, quando situadas em uma dimensãohistórica, quem évisado portrás de Édipo oxxpóç, Édipo osábio,o tirano que sabe, o homem da xé%vn, da Yvcòur|, é o famososofista, profissional do poder político e do saber, que existiaefetivamente nasociedade ateniense daépoca deSófocles. Masportrás dele quem éfundamentalmente visado porPlatão eporSófocles é uma outracategoria depersonagem do queo sofistaera como que o pequeno representante, continuação e fimhistórico: o personagem do tirano. Este, nos séculos VI e VII,erao homem do podere do saber, aquele quedominava tantopelo poder que exercia quanto pelo saber que possuía. Finalmente, sem que esteja presente no texto de Platão ou no de .Sófocles, quem évisado portrás detudoéogrande personagemhistórico que existiu efetivamente, ainda que tomado em umcontexto lendário: o famoso rei assírio.

Nassociedades indo-européias doleste mediterrâneo, fiofinal dosegundo einício doprimeiro milênios, opoderpolíticoera sempre detentorde um certo tipo de saber. O rei e os queo cercavam, pelofatode deteremo poder,detinham um saberque não podiae não devia sercomunicado aos outros grupossociais. Saber e poder eram exatamente correspondentes,correlativos, superpostos. Não podiahaver saber sem poder. Enão podia haver poder político sem a detenção de um certosaberespecial.

É esta forma de poder-saber, que Dumézil, em seusestudos sobre as três funções, isolou, aomostrar queaprimeirafunção, ado poder político, eraadeumpoder político mágico

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•e rehgibso. Osaber dos deuses, osaber da ação que se podeexercer sobre os deuses ou sobre nós, todo esse saber mágico-

• religioso está presente na função política.O que aconteceu na origem da sociedade grega, na

origem da idade grega do século V, na origem de nossacivilização, foi odesmantelamento desta grande unidade de umpoder político que.seria ao mesmo tempo um saber. Foi odesmantelamento desta unidade de um poder mágico-religiosoque existia nos grandes impérios assírios, que os tiranos gregos,impregnados de civilização oriental, tentaram reabilitar em seuproveito eque os sofistas dos séculos VeVI ainda utilizaramcomo podiam, em forma de lições retribuídas em dinheiro.Assistimos aessa longa decomposição durante os cinco ou seisséculos da Grécia arcaica. Equando aGrécia clássica aparece —Sófocles representa adata inicial, oponto de eclosão —oque

,; deve desaparecer para que esta sociedade exista éaunião dopoder edo saber. Apartir deste momento ohomem do podeserá ohomem da ignorância. Finalmente, oque aconteceu aÉdipo foi que, por saber demais, nada sabia. Apartir dessemomento, Édipo vai funcionar como ohomem do poder, cego,que não sabia enão sabia porque poderia demais.

Assim, enquanto opoder étaxado de ignorância, incons-ciência, esquecimento, obscuridade, haverá por um lado, oadivinho eofilósofo em comunicação com averdade, verdadeseternas, dos deuses ou do espírito e, por outro lado, opovo que,sem nada deter do poder, possui em si alembrança ou podeainda dar testemunho da verdade. Assim, para além de umpoder que se tornou monumentalmente cego como Édipo, háos pastores, que &lembram eos adivinhos que dizem averdade.

OOcidente vai ser dominado pelo grande mito de queaverdade nunca pertence ao poder político, de que opoderpolítico écego, de que ovetdadeiro saber éoque se possui

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quando se está em contacto com os deuses ou nos recordamosdas coisas, quando olhamos o grande sol eterno ou abrimos osolhos para o que se passou. Com Platão, se inicia um grandemito ocidental: o de que há antinomia entre saber e poder. Sehá o saber, é preciso que ele renuncie ao poder. Onde seencontra saber e ciência em sua verdade pura, não pode maishaver poder político.

Esse grandemito precisa serliquidado. Foi esse mito queNietzsche começou a demolir ao mostrar, em numerosos textosjá citados, que por trás de todo saber, de todo conhecimento,o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político nãoestá ausente do saber, ele é tramado com o saber.

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