a varredor de carcaÇas a. d. feldman amigos ou rivais. o quanto ... conversando imaginativamente...

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A VARREDOR DE CARCAÇAS

A. D. FELDMAN

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A MÃO DIREITA(para J. D. Salinger)

A carne viva e cúmplice. Fiel e presen-te em todos os momentos. Até as mãos secansam um dia. Se enrugam, perecem.Escravas de desejos controlados e que nossurpreendem.

A mão direita sempre realizou mais quea esquerda. Ambas morrem juntas. A na-tureza não julga as justiças do fazer, so-mente do ser. Num ímpeto de cólera a mãodireita pega uma faca e corta a sua gêmeasem piedade. A outra caída, mistura-se como sangue que flui do braço como gotas dechuva. A direita atira a faca longe e tentainutilmente aplaudir o que fez.

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A SUBIDA DE ELIAS

Um dia todos se cansam. Não há maisânimo e parece que os minutos são eter-nos. Facilmente chegamos a este dia. To-dos as manhãs experimentamos um pou-co deste estado. Hoje porém é o último deElias.

Elias acordou. Olhou à sua volta. Nadaviu apesar da sala cheia de móveis e so-nhos. Ergueu o corpo com dificuldade. Nãoque fosse velho. Tinha apenas trinta anos.Pensou em telefonar mas desistiu. Foi aobanheiro. Trancou a porta.

Retornou calado. Sentou-se na cama.Admirou suas mãos. Foi à cozinha. Pegouuma faca e retornou para sua cama. Dei-tou-se novamente. Olhava o teto comoquem imagina estrelas. Parou.

Pegou a faca e num instante cortou umpedaço de sua coxa. Sem dor. Sem medo.Puxou os nervos para fora e jurou que nãomais andaria naquele mundo. O sangueescorrendo pelo lençol refletia a luz qua-se-morta daquele quarto. Pensou nova-mente em telefonar. Desistiu.

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Cortou mais um pedaço de sua pele ecomeçou a se devorar. A fome de si eramuito grande. Mastigava suas fibras comoum animal. Sem medo, sem dó tirou maisalguns nervos antes que desmaiasse.

O telefone começou a tocar mas nãomais haviam forças. O silêncio era sua úl-tima resposta.

Quando a polícia chegou em seu apar-tamento o corpo já estava imóvel sobre acama com apenas a perna esquerda e umsorriso de desdenho para com os que aquicontinuam.

Um jornal no dia seguinte misturou areportagem sobre a morte de Elias com olançamento de mais um ônibus espacial.“O morador do apartamento foi lançado emuma bola de fogo que pôde ser observadaa quilômetros de distância do local.”

A nota com a errata nunca foi publi-cada.

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AS NUVENS

As nuvens eram as únicas que se mo-viam em toda a Avenida Paulista. Desafi-ando os prédios e as torres ousavam pas-sar por entre eles com um ar de indiferen-ça. Os policiais olhavam fixamente o trân-sito. Uma senhora caída atraia olhares cu-riosos. Vendedores ambulantes gritavamas costumeiras frases sem sentido. Não ti-nham resposta. Continuavam gritando. Asluzes dos carros estavam acesas, pois cho-via. As águas nos pára-brisas eram o quede mais próximo tínhamos das nuvens. Aimparcialidade devorava os pedestres. Aspoças d’água refletiam o céu cinzento epoluído. As luzes das ruas começavam abrilhar. Senhoras dentro dos apartamentoscorriam para fechar as janelas. A chuvaaumentava gradativamente. De repente umraio cortara os céus. Aquela claridadeefêmera arrancava medo de dentro daslembranças mais íntimas. Os motoristas re-clamavam que o rádio oscilava. Todos cor-riam. Inutilmente corriam. As nuvens eramas únicas que sempre voltariam mesmoque a Avenida não mais existisse, mesmosem nada saber sobre todo o movimentodaqui de baixo.

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O CHEIRO DA GRAMA MOLHADA

Fazia tempo que não chovia. O céu es-curo durante o temporal trazia lembrançasque passavam vagarosas. As gotas de chu-va salpicavam na janela querendo entrarnaquele mundo privado. Inutilmente escor-riam. Os pensamentos se alternavam entreo medo dos raios e o estrondo do trovão.

Quando garoto perguntava aos maisvelhos de onde vinham as águas da chuvae por que os raios nervosos e cheios deódio tinham de rasgar o céu daquele modo.Nada ouvia. Tremia no canto do quarto erezava. A chuva pararia sempre dez minu-tos após seu pedido. Seu controle da na-tureza era perfeito. Uma comunicação in-fantil capaz de alterar fenômenos.

Hoje tudo é diferente. Deus morreu. Umcientista de universidade conseguiuenterrá-lo definitivamente. Sem dúvidas esem mais questionamentos. O enterro tevear de cerimônia. Mas como era de se es-perar, poucos compareceram. Ele não tevedireito a nada. Apenas chuva.

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Ninguém trouxe outra coisa para subs-tituir o que o cientista havia matado. Ape-nas a chuva. A chuva insistia em cair. Cho-via todos os anos. Chovia sempre.

O poder infantil deu lugar ao silêncioque hoje observa as gotas frenéticas pula-rem no vidro. Só as águas falam enquantoos olhos fixos no vazio esperam a chuvapassar para sentir o cheiro da grama mo-lhada que exala de todos os jardins.

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O CRUZAMENTO

A ambulância pedia passagem comgritos que eram ouvidos a cem metros dedistância. Os motoristas nervosos suavamtentando achar uma brecha naquela inun-dação de veículos. Os motores rosnavamsem parar. As pessoas se acumulavam nasruas para ver o que acontecia mais adian-te. Um policial tentava desesperadamentecontrolar o trânsito. Uma mulher que vinhada feira fazia o sinal-da-cruz. O rapaz dobar dizia limpando o balcão que aquilo jáera normal. A ambulância berrava e o mo-torista gesticulava com as mãos para queo caminho se abrisse. O céu nublado nãose manifestava. O sinal trocava de verdepara amarelo e de amarelo para vermelhoe vice-versa sem que os carros andassem.Alguns motoristas curiosos saíram dos car-ros para ver o carteiro que fora atropelado.As cartas manchadas de sangue espalha-das no asfalto eram o testemunho dabarbárie. Um celular tocou perto do inci-dente e a mulher que o atendera descre-via a cena para uma vizinha do outro ladoda cidade que naquele momento fazia umbolo. Os mendigos aproveitavam o espíri-

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to de caridade e reforçavam suas esmolascom aquelas pobres almas que doíam pelocarteiro. O carro que o jogou tinha desa-parecido. A senhora que vinha da feira dis-se que parecia um importado verde, en-quanto o jornaleiro achava que era um jipeazul. As informações daltônicas pulavamde boca em boca sem que se chegasse auma conclusão. A ambulância abriu cami-nho raspando o pára-lama do carro de umexecutivo que jurava que ia processar o es-tado. Os atendentes imobilizaram o qua-se-morto e o levaram para dentro do fur-gão. Enquanto confirmavam qual hospitalpoderia atendê-lo, um ônibus na rua trans-versal retirava vários espectadores e oslevava embora. A confirmação veio. Asirene voltou a gritar por passagem. Asportas da ambulância se fecharam. Umcachorro vagabundo que lambera o sacode cartas corria atrás dela. O bolo seriaservido naquela mesma tarde. Os legumese as frutas da feira estavam frescos. O ve-lho pão com manteiga na chapa ainda eraa melhor sugestão.

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O DESENHO DO PRATO

A cozinha agitada indicava que haviagente naquela casa. Os meninos no terre-no baldio ao lado ouviam o barulho das pa-nelas enquanto corriam atrás de uma lagar-tixa. A filha sonhava enquanto a mãe enxu-gava as mãos no avental. O cheiro de co-mida impregnava os pensamentos. A meni-na lentamente era atirada ao passado.

Lá brincava de realidade. Via o pai che-gando cansado após mais um dia de tra-balho árduo e repleto de desesperanças.Corria em sua direção para ganhar umabraço. Aquele abraço era uma fotografiana imaginação. O pai ajeitava o cabelo quecaía sobre os olhos e agachava para rece-ber o conforto. A justificativa para a exis-tência se realizava ali.

Três dias depois deste abraço o paihavia partido. Segundo sua mãe, um ser queela não conseguia explicar o havia levadopara muito longe. A única lembrança daque-le dia foram as flores que enchiam a casa.

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De repente a mãe ao seu lado coloca-va comida no prato e aos poucos tampavao desenho de rosas azuis. Novamente erapossível ouvir as vozes dos meninos. Pe-los gritos a lagartixa já deveria estar nomesmo jardim que o seu pai.

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O FILHO DE MÍRIAM

Ela era jovem. Bonita. Quando ele aconheceu ela já carregava a vida em seuventre. Apaixonada com o amor que sóuma jovem sente. Havia se entregado aoque naquele instante tinha sido a eternida-de. Ele nunca soube se era uma vida vin-da do amor pelo inimigo invasor ou de den-tro da comunidade. Não quis saber. Nun-ca soube. Ele quis Míriam. Ela o aceitou.

O menino nasceu. O chamou de paiaté os sete anos e depois nunca mais.Havia um desejo de preenchimento na pa-lavra pai. O menino já rapaz e mais tardehomem sempre quis o pai. O pai era o amorde sua mãe. O pai era qualquer um na ruae ninguém no mundo. A solidão devorousua alma corroendo seus sentimentos. Ogrito abalou a todos. A dor despertou osinimigos e a consciência. Hoje o filho deMiriam é conhecido em todas as esquinas:filho do amor que viveu no vazio da procu-ra. Morreu injustamente. Não virou rei nemfez milagres. Pendurado com outros doishomens sem nomes deixou Míriam semnada. Sua última frase foi dirigida ao pai

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que nunca experimentara. A mãe nuncadissera o nome. O não-pai estava esque-cido. Ele era a única realidade.

Três dias depois da execução a mãelocalizou o corpo indo para o incinerador...

As fábricas de morte da Europa funci-onaram por vários anos durante a guerra.Hoje: o mundo respira o filho junto com ovento a procura do pai.

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O IRMÃO

Noite quente de verão: quarto abafa-do. Suor. O tempo gruda nas paredes epassa tão lentamente que chega a ser per-cebido. Calado um homem pensa. Pensase teria brincado com o irmão. Se teriamido a algum parque juntos. Se teriam segostado. Sido amigos ou rivais. O quantoteriam rido ou chorado. Ou teriam apenasum e não outro. Pensa e imagina o tempoescorrendo pelas paredes trazendo a figu-ra de seu pai para junto dele no quarto.Conversando imaginativamente com ummorto. O delírio da perda subia lentamen-te por suas veias já entristecidas com a ce-rimônia de sétimo dia. A partir daquelemomento o mundo e o ambiente daquelequarto não mais seriam compartilhados edivididos por pai e filho. Sozinho. Pensa-va. A imagem do irmão era uma incógnitasem fim. Um labirinto sem entrada e ummar sem água. Há momentos que somosenganados por nossos desejos e devemosapenas dormir. O tempo se encarregará denos trazer à superfície da existência mes-mo que não desejemos. Ele pensava. Pen-

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sava no irmão. Imaginava repetidamentea mesma coisa: se teriam ido juntos a al-gum parque, se teriam sido rivais ou ami-gos, se teriam se odiado como somenteirmãos se odeiam, se teriam divido comchoros e lágrimas o mesmo pai, o mesmoquarto. Enquanto isso, o tempo escorrialentamente para o fundo do relógio quegritava com sons frenéticos que era horade qualquer pessoa normal estar dormin-do. Obedecendo às ordens, trocou rapida-mente de roupa e se deitou. Chorou pordezoito minutos e adormeceu. A dor ficariacomo ele, adormecida. Sonhou sonhos jásonhados e repetitivos. Quando acordouna manhã seguinte abriu os olhos com maistranqüilidade. Ele nunca teve um irmão.Seu pai havia solicitado que a mãe abor-tasse devido ao risco que ela correra paraele estar ali. Tomou um copo de café re-quentado e foi trabalhar.

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O JARDINEIRO

A morte é a melhor maneira de se co-nhecer um ser humano. O silêncio de ummorto é a vingança pela indiferença. As fa-ces de um velório retratam as pessoas deum modo tão explícito que seria inadmissí-vel a eternidade. Um homem que gosta deir a velórios não é necessariamente umnecrófilo. Ele pode ser qualquer um. Imagi-nar o próprio corpo apodrecendo não é nadamais do que uma consciência extrema.

Na esquina de uma praça com umaavenida que leva a um bairro classificadocomo nobre há um canteiro central. Nocanteiro há árvores e grama. Na gramaobjetos espalhados: latas, papelão e sa-cos pretos. O cheiro que exala das plantasé intimidado pelo odor de um homem queali apodrece vivo. Carcomido pelo tempocada instante é uma ausência. O mundoao seu redor passa a oitenta quilômetrospor hora e pára no farol a cem metros. Aindiferença do sol e das pessoas queimasuas entranhas já quase que totalmente de-bilitadas. Não há suor. Não há lágrimas.Só buzina quando o farol abre e alguém

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tem a ousadia de se distrair. Não conse-gue mais se levantar. As pernas já não orespeitam. Arrasta-se para perto de umadas árvores quando é obrigado a urinar.Os tornozelos feridos, ressecados e comvermes que saltam da pele raspam na gra-ma gelada dando um instante de alívio. Dor.Alívio e dor se alternam como o passar dossegundos. Pesado para si próprio rastejapara voltar e sentar num colchão abando-nado. Deita. Nunca mais acorda. Aquelafoi a última vez que ele viu o sol. Três diasdepois um jardineiro, desconfiado de umcão que corria para o canteiro central evoltava com sangue nos pêlos, encontrouo resto daquele ser. Após a remoção o jar-dineiro o acompanhou até ser enterrado.O canteiro foi limpo. Horrorizado, o jardi-neiro passou a roubar flores de túmulos esalas de velório para dar a qualquer umque ainda tivesse vida.

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O ÔNIBUS

Era um dia quente. O ônibus abria ca-minho no meio do trânsito sem nenhumapiedade. Solavancos jogavam os sonhosdos passageiros para mais tarde. Naquelerecinto ambulante cada um vivia um ins-tante pessoal e distante. Estar lá era comonão existir. O som de buzinas e a fumaçaficavam para fora da janela. A senhora bemidosa observava suas veias saltadas namão enquanto lamentava a morte do mari-do. O cobrador escorregava em sua pol-trona e contava o dinheiro das passagenscomo se fosse seu. Imaginara fugir comtudo, porém a imagem de uma santa aolado do motorista continha sua idéia. Umsenhor engravatado tentava ler um jornal.As letras frenéticas pulavam para dentrode seus olhos ao mesmo tempo que arru-mava o bigode. Lá dentro ninguém temnome. A cada minuto mais alguns metrossão conquistados. Mais pensamentos sãoconsumidos. Ao lado da porta traseira umrapaz murmurava numa língua indecifráveluma música bem animada. O ônibus párade repente.

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Três senhoras sobem e cumprimentamo motorista, enquanto um garoto perguntasobre o trajeto do ônibus. Uma moça sobesilenciosamente e senta atrás do motoris-ta. Cada um experimenta no ônibus umaimagem insólita de si mesmo. Todos autô-nomos num transporte coletivo. Cada umindo para um destino diferente; todos nomesmo lugar. Somente o motorista estásozinho. Conduz em silêncio. Solitário.Olhando o mundo lá fora: um relógio nopulso de um pedestre, três moças atraves-sam a rua fora da faixa, um senhor pas-seia com o cachorro. Outro ônibus no sen-tido contrário refletia a insolubilidade daalma deste homem. O ônibus pára definiti-vamente. É o ponto final. Os passageirosdescem. O cobrador fala com o fiscal. Omotorista lança os documentos pessoaispara fora da janela. Rasga o bolso da ca-misa. Pega uma arma. Aponta. Atira. Osangue escorre pelo vidro e cai na sua pró-pria fotografia do lado de fora do ônibus.

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O PREGO

O prego caiu de um caminhão. Pulouduas vezes antes de parar na pista centralcom a cabeça no sentido oposto ao tráfe-go. Conforme os carros iam passando oprego girava. Refletia a luz do sol. Brilhavacom uma naturalidade perversa. Girava.Dançava no asfalto. Ônibus, caminhões,carros e motos desprezavam sualuminosidade. Silêncio. Veículos. Silêncio.Veículos. Estouro: um carro de passeioteve o seu pneu perfurado pelo prego. Ohomem que o guiava voltava para casa umdia antes do previsto para fazer uma sur-presa para sua mulher e seu filho após se-manas de trabalho. Tinha estado na frentedo caminhão nos quilômetros iniciais, po-rém havia resolvido parar num posto paratomar um refresco. O prego tinha sido fa-bricado há semanas numa cidade vizinhae utilizado numa obra. No final fora coloca-do no caminhão para ser levado a outralocalidade. O caminhoneiro estava guian-do por todo o trajeto com a habilitaçãovencida. Além de ter tomado o suco, o ho-mem também havia urinado. Comprara al-

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gumas flores. Entrara no carro, voltando àestrada para em vinte minutos ser abatidopelo prego. No acidente perdeu o controleda direção. Atravessou o canteiro centrale bateu de frente em um caminhão comum container que vinha do exterior commateriais elétricos que seriam vendidospela metade do preço dos materiais nacio-nais. Os veículos de emergência chega-ram minutos após o desastre. Socorreramo motorista do caminhão que teve um cor-te na testa. O homem e as flores ficaramno canteiro oposto. Os curiosos observa-vam o corpo rasgado pelos estilhaços eferragens enquanto outro prego caia da-quele mesmo caminhão 30 quilômetrosadiante.

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O PROFESSOR

No intervalo entre dois pensamentosos desejos fluem sem medo. O planeta giraindiferente. Anoitece. As luzes das estre-las alcançam a retina trazendo um passa-do geometricamente morto. As estrelasnem mais existem, porém continuam a in-vadir os olhos. O silêncio noturno é rasga-do por doses de barulhos que os carros emotocicletas fazem. Lentidão. A noite pas-sa vagarosamente. Uma luz acesa no ter-ceiro andar de um prédio residencial reve-la a insônia do professor. Sozinho. Cala-do. Fumando um cachimbo, observa o pas-sar do tempo. Morosidade. Pedagogica-mente analisa-se. Mãos, braços, expecta-tivas, juntas. Pêlos, unhas, sonhos, pernas,dentes, paixões e ossos. Tudo é revistocomo num teste. Passa outra motocicletae o raio das rodas refletem a luz da rua.Gradualmente o planeta vai devorando océu. Em instantes o sol aparecerá.Demoradamente preguiçoso. Ele vai até acozinha, prepara o café. Bebe. Escova osdentes sem se olhar no espelho. Joga águanos olhos que brilham sem motivo. Veste

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uma camisa com bolso. A calça e o sapatode sempre. Pega uma caneta no pote aolado da estante e parte para mais um dia.Se ele agüentar o tédio orbital cotidiano,conseguirá se aposentar em três semanascom honra e estrelas no currículo.

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O SACRIFÍCIO DE ISAAC

O menino voltava para casa de mãosdadas com o pai. Chorando com tanta dorque a mãe até se assustou ao vê-lo. Elanem sabia que os dois tinham saído. Elaagiu durante aquele período como se omundo transcorresse normalmente. Foramas lágrimas que caíram em seus pés des-calços que a deixaram sem compreensão.O pai calado nada disse. O silêncio só eraquebrado por soluços que o menino davanos intervalos entre um grito de medo eoutro de desespero. Sarah pegou seu filhoe foi até o canteiro olhar flores e pássarosenquanto o pai calado permaneceu emcasa fitando o teto. O menino aos poucosia se distraindo e o sal de suas lágrimasgrudado na volta de seus olhos ainda re-fletia a luz do sol que se punha no horizon-te. Ele poderia não estar mais lá. Poderiadeixar de ser. Nunca mais ter visto o pôr-do-sol. Não ter mais sonhos. Ele poderianão mais sentir o vento em sua face. Nãover as flores nem paisagens. Nem nuncamais regar sua planta preferida no jardim.Contudo, o menino voltara para casa com

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uma ferida que seus filhos já não teriamde carregar: o vazio. Vazio que nos teriatragado para tão longe que hoje não esta-ríamos julgando a atitude do pai que jáhavia adormecido quando a mãe e o filhoretornaram do jardim.

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O SONHO

Terminou de escrever a última linha.Dobrou o papel. Jogou o restante dospapeis no lixo. Pegou um pincel reservadopara as ocasiões especiais e assinou seunome: Isaías. Fechou a porta que davapara um vestíbulo anexo. Tirou as roupaspesadas e adormeceu. Sonhou sonhos ememórias tão profundos que numa fraçãode segundos já era outro dia. Rezou. Foiaté a porta certificar-se de que tudo estavabem como sempre. Rezou. Lavou as mãose o rosto acariciando a face com uma tran-qüilidade angustiante. Sentou-se à mesa.Rezou. Bebeu e comeu e rezou. Instantespassados no silêncio da mais íntima satis-fação. Aguardou o mensageiro que chegourasgando a porta, vindo do outro canto dacasa. Pegou os escritos e correu para oseu ofício enquanto a irmã permaneceriaem casa. Os escritos debaixo do braço nãosabiam que só muitos anos mais tarde al-guém desconfiaria de que houve dois es-critores. Hanna sonhava com o futuro...inatingível... longe...

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O VARREDOR DE CARCAÇA

Era segunda-feira, ninguém havia com-parecido para preencher aquela vaga. Oselecionador municipal aguardava semnenhuma pressa. Arrumava o jornal sobrea mesa, tirava o pó do telefone que quan-do não berrava por horas era atendidocomo se um doutor estivesse sendo inter-rompido no meio de uma cirurgia.

A fumaça do cigarro se misturava aoar grosseiro do departamento e tornava-se nítida com o filete de luz que trazia vidaàquela sala morta. As poeiras dançavamritmadas no vazio do ambiente, enquantoo selecionador coçava os fios do bigodepensando no almoço que sua mulher teriacolocado na marmita. O tempo passavalento com o nada que acontecia. Os pen-samentos daquele homem eram tão vaga-rosos quanto sua vida centrada na carrei-ra pública, no deus comum e no futuro ób-vio. A mediocridade era parte da alma des-te ser moldado nas mais frias armas doséculo XX.

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Dois minutos após a seção ter sidoaberta, um senhor magro com os olhos in-seguros e com a pele retorcida pelo tempoentra calmamente na repartição. O jeitoacanhado e medroso, submisso e brasilei-ro de um pobre que ainda tem respeito pelosignificado da repartição é tão evidentequanto o descaso que ambos representam.O velhote pediu licença e perguntou sobrea vaga. O selecionador municipal o devo-rou com os olhos treinados para avaliar omaltrapilho perfeito para o cargo. Pareciaser esta a chance de promoção. Contrata-se um para ficar de joelhos para outro le-vantar o pescoço. Um ar de felicidade seergueu sobre o setor. Explicou que o tra-balho consistiria em pegar os sacos plásti-cos pretos e caminhar pelas rodovias, quesão as artérias da cidade, retirando as car-caças dos cachorros abandonados e atro-pelados pelo destino. Assinou a ficha. Masnunca registrou uma só carcaça e o usode algum dos sacos. Com a reforma feitaanos mais tarde, descobriram que o ho-mem magro catalogado como revisor dalimpeza urbana se alimentava do fruto deseu trabalho para sobreviver...

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E U

Quando esquecemos de nosso nomeé que a liberdade se faz presente. Cansa-do da inação, levantei. Recusei-me a abrira janela, pois a presença do sol se faziaindiferente à minha. Não troquei de roupa,apenas me despi. Abri a porta do quartoque já não era mais meu. Aquele ambienteseria lembrado pelos outros como um lu-gar estranho. Não me importava. Atraves-sei a sala cheia de móveis e sem vida. Atelevisão ligada fora do ar era a prova deque havia estado lá durante a noite. Nãodesliguei. Agarrei as chaves como um guer-reiro segura sua arma. Abri a porta comconsciência e força. Saí. Vi o hall do ele-vador vazio e gelado. Resolvi utilizar asescadas. Subi degrau por degrau. Andarpor andar. Passo a passo. Até o momentoem que percebi que não estava completa-mente nu. O relógio em meu pulso esquer-do mostrava a hora, os minutos, os segun-dos, o dia, o mês, o ano. Era quinta-feira.Chegando no último andar abri a porta queleva à cobertura. Uma brisa gelada comuma maciez violenta tentou me perturbar.Meus cabelos revelaram a velocidade dos

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fatos enquanto voavam ao vento. Olheipara baixo e vi pessoas gritando e apon-tando para mim. Subi no parapeito. Vi osprédios vizinhos. Uma agitação marcava omomento. Meu coração acelerou. Olhei.Respirei. Tirei o relógio e o deixei no chão.Dei um passo... um frio na barriga... tudomuito agitado diante de meus olhos repa-rei que... se pulasse teria de dizer tudomuito rápido.

Fui preso. Agora providenciaram umacalça, uma camiseta e um psiquiatra. Ama-nhã talvez possa voltar para casa. A polici-al que me acompanhou até aqui pegouminha identidade em casa e a trouxe parao doutor. Amanhã. Talvez amanhã quandoela devolver meu nome eu possa voltarpara casa. Normal. Talvez.

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SÃO PAULO

São Paulo. Quarta-feira. Um dia a mais,qualquer. Os despertadores já haviam to-cado há pelo menos duas horas. Ruas eavenidas estavam cheias. Os motores exi-giam combustível enquanto motoristas pro-curavam por algum espaço. Somos livrespor isso acordamos cedo, vamos ao tra-balho e você à escola, dizia um pai ao fi-lho, inconformado com aquela lentidão.São Paulo é assim: imensidão de espaçocomprimido. Tudo apertado. Tem de dartempo. N’outro veículo um celular chama-va desesperadamente por resposta. Umpedestre atravessava por entre os veícu-los sem medo. O sinal brincava e coloria aurbanidade. Uma secretária passava ba-tom. Os olhos atentos ao trânsito. Dois mi-nutos, cinco metros. Mais dois minutosmais metros. Aquela morosidade dos veí-culos era justificada a cem metros dali. Hádez minutos um motoqueiro e sua garupacaíram. Um caminhão qualquer teria sidoum possível responsável. Sirenes gritavampor uma brecha. Policiais apitavam com fu-ror. Mas era tudo inútil. O sangue no asfal-to começava a coagular. Os olhos parados

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nada mais viam. As buzinas imploravampor lugares inexistentes. Um a um os car-ros passavam pelos corpos como num ve-lório. Diferentes reações em cada face,muitas vezes nenhuma. Os apitos frenéti-cos tentavam apressar as reverências. Ummenino via os dois abraçados. Um execu-tivo continuou fazendo a barba para ganhartempo. Todos queriam sair dali. Os sonhosnão podiam se perder naqueles minutos.Não choveu naquele dia.

Misturando o cenário paulistanofrenético e anônimo a elementosjudaicos bíblicos e modernos, oscontos refletem uma urbanidadecaótica da vida em sociedade.

Personagens sem nomes,profissionais, transeuntes e motoristas

tentam vencer o tempo, o vazio e aprópria cidade para realizar seus

desejos banais ou devaneios maisíntimos. A frieza e a indiferença sãomarcadas por saídas violentas quelevam o leitor a uma reflexão mais

profunda do significado damodernidade trazendo para a ficçãoum cotidiano comum e muito rápido.Transformando a crítica à falta de

sensibilidade e perspectiva empalavras e situações típicas dasgrandes cidades, somos atiradosdiante de um espelho cujo reflexo

dependerá exclusivamente dedetalhes que devem ser apreendidosdurante a leitura. A responsabilidade

de cada um e a culpa vêm à tonaatravés de referências bíblicas queadotam pontos de vistas e cenários

diferentes da leitura tradicional. E, porfim, a psicologia de cada personagem

é construída dentro de uma técnicaque utiliza o mínimo de palavras

possível, fazendo uso da situaçãovivenciada, deixando sua construção

final para o leitor.

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áfi

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