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“A única opção razoável é a abolição do capitalismo”: entrevista com Anselm Jappe 1 Anselm Jappe é representante na França da teoria crítica do valor, uma teoria crítica que relê Marx através da abstração induzida pela mercadorização do mundo. Esta crítica radical (no sentido de ir “à raiz”) do capitalismo, realizada no âmbito da revista alemã Krisis nos anos 1990 e 2000, se distingue profundamente, entretanto, de outras escolas marxistas por sua rejeição de alguns elementos-chave como a luta de classes. O autor havia apresentado esta teoria ao público francês em 2004, em As aventuras da mercadoria, republicado nas edições La Découverte estes dias, enquanto aparece na mesma editora sua nova obra, A sociedade autofágica. Anselm Jappe descreve o lento desenvolvimento do capitalismo por meio do narcisismo crescente do sujeito. A indiferença e a crueldade do capitalismo, obcecado pelo valor quantitativo para o mundo real, encontram-se espelhadas na indiferença e na crueldade do narcísico em relação aos outros. In fine, o indivíduo, submetido a esta pulsão de morte do capitalismo, acaba por entrar em um processo de ressentimento e de autodestruição. A sociedade capitalista parece fadada a se devorar a si mesma e a única saída parece ser a abolição do capitalismo, pois as tentativas reformistas do marxismo tradicional não conseguiram se situar fora do sistema do valor de mercado. Em uma entrevista concedida à Mediapart, Anselm Jappe volta-se para alguns dos principais temas de sua teoria: sobre seu diálogo com a psicanálise ou com certos ensaístas críticos da sociedade neoliberal, sobre sua crítica do marxismo tradicional e sobre o futuro do capitalismo. 1 Entrevista publicada originalmente no dia 13 de novembro de 2017, por Romaric Godin, no jornal francês Mediapart: www.mediapart.fr/journal/economie/131117/la-seule-option-raisonnable-est-labolition-du- capitalisme. A pedido de Anselm Jappe, para esta tradução pequenos ajustes foram feitos em relação ao original.

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Page 1: “A única opção razoável é a abolição do capitalismo ... · ensaístas críticos da sociedade neoliberal, sobre sua crítica do marxismo tradicional e sobre o futuro do capitalismo

“A única opção razoável é a abolição do capitalismo”: entrevista com Anselm Jappe1

Anselm Jappe é representante na França da teoria crítica do valor, uma teoria crítica que

relê Marx através da abstração induzida pela mercadorização do mundo. Esta crítica

radical (no sentido de ir “à raiz”) do capitalismo, realizada no âmbito da revista alemã

Krisis nos anos 1990 e 2000, se distingue profundamente, entretanto, de outras escolas

marxistas por sua rejeição de alguns elementos-chave como a luta de classes. O autor

havia apresentado esta teoria ao público francês em 2004, em As aventuras da

mercadoria, republicado nas edições La Découverte estes dias, enquanto aparece na

mesma editora sua nova obra, A sociedade autofágica.

Anselm Jappe descreve o lento desenvolvimento do capitalismo por meio do narcisismo

crescente do sujeito. A indiferença e a crueldade do capitalismo, obcecado pelo valor

quantitativo para o mundo real, encontram-se espelhadas na indiferença e na crueldade

do narcísico em relação aos outros. In fine, o indivíduo, submetido a esta pulsão de morte

do capitalismo, acaba por entrar em um processo de ressentimento e de autodestruição. A

sociedade capitalista parece fadada a se devorar a si mesma e a única saída parece ser a

abolição do capitalismo, pois as tentativas reformistas do marxismo tradicional não

conseguiram se situar fora do sistema do valor de mercado.

Em uma entrevista concedida à Mediapart, Anselm Jappe volta-se para alguns dos

principais temas de sua teoria: sobre seu diálogo com a psicanálise ou com certos

ensaístas críticos da sociedade neoliberal, sobre sua crítica do marxismo tradicional e

sobre o futuro do capitalismo.

1 Entrevista publicada originalmente no dia 13 de novembro de 2017, por Romaric Godin, no jornal francês

Mediapart: www.mediapart.fr/journal/economie/131117/la-seule-option-raisonnable-est-labolition-du-

capitalisme. A pedido de Anselm Jappe, para esta tradução pequenos ajustes foram feitos em relação ao

original.

Page 2: “A única opção razoável é a abolição do capitalismo ... · ensaístas críticos da sociedade neoliberal, sobre sua crítica do marxismo tradicional e sobre o futuro do capitalismo

O livro que você publicou estes dias, A sociedade autofágica, explora em detalhe o

tornar-se sujeito na sociedade capitalista. Você o concebe como prosseguimento de

As aventuras da mercadoria, que expunha para o público francês a teoria crítica do

valor?

É evidentemente uma continuação, mas mais pessoal. A obra As aventuras da mercadoria

apoiava-se principalmente em grandes teóricos da crítica do valor, notadamente naqueles

que escreviam na revista alemã Krisis. Depois, uma parte destes últimos, notadamente

Robert Kurz, fez esta teoria evoluir em direção a uma teoria da crítica do sujeito, que

inclui uma crítica do Iluminismo. Eu desenvolvi paralelamente minhas próprias ideias,

interessando-me igualmente pelo aporte da psicanálise. Neste sentido, eu fui

particularmente marcado pela leitura de Christopher Lasch e de suas obras A cultura do

narcisismo e O mínimo eu, mas também retomei as obras de Herbert Marcuse e Erich

Fromm. A isto foram acrescentadas várias outras leituras importantes para a gênese do

livro, como a do sociólogo Luc Boltanski, ou ainda de Dany-Robert Dufour, com quem

eu não estou totalmente de acordo, mas cuja leitura me pareceu suficientemente

estimulante para me dar vontade de respondê-lo. É este percurso, que durou dez anos, que

me permitiu construir A sociedade autofágica.

A teoria crítica do valor sublinha a abstração que o capitalismo, por natureza, impõe

ao mundo. Este é o ponto de partida da sua demonstração?

O que é importante compreender é que a teoria crítica do valor não é uma teoria puramente

econômica. Ela se inscreve na continuidade do pensamento de Karl Marx, que empreende

uma crítica da economia política e não a elaboração de uma teoria econômica particular.

Mercadoria, trabalho abstrato, valor e dinheiro não são, em Marx, categorias puramente

econômicas, mas categorias sociais que formam todas as maneiras de agir e de pensar na

sociedade. Isto não está sempre explícito em Marx, mas é o que se pode extrair de seus

escritos. É por isso que eu considero o valor um “fato social total”, no sentido que o

entende Marcel Mauss.

Essas categorias são, como diria Emmanuel Kant, formas a priori, formas vazias que são

como moldes onde tudo deve entrar. Assim, na sociedade capitalista, tudo toma a forma

de uma pura quantidade de dinheiro e, para além disso, de uma pura quantidade em geral.

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Isto vai, então, muito além do que unicamente o fato econômico. Essas categorias não

são, entretanto, fatos antropológicos que existiriam em todos os lugares e sempre. São

formas que progressivamente se impõem aos outros domínios da vida, notadamente às

relações sociais. Vê-se isto com a emergência do “eu quantificado” no quadro da

mensuração, por exemplo, das performances esportivas. A quantificação monetária é uma

das formas mais visíveis da sociedade capitalista, mas não é a única.

A primeira parte do seu livro descreve a história do sujeito confrontada à abstração

imposta pelo capitalismo.

Sim, mas é importante compreender a natureza desta abstração. A abstração, enquanto

tal, é um fenômeno mental que é, evidentemente, uma ajuda para apreender o real. Como

não se pode sempre falar de uma árvore particular, então se recorreu a um conceito geral

de árvore. Mas trata-se, aqui, de outra coisa. Trata-se de uma abstração, o valor, que pode

assumir não importa qual forma real pela quantificação. Toda realidade pode ser reduzida

a uma quantidade de valor. Ela torna-se, então, uma “abstração real”, conceito que não

está explicitamente presente em Marx, mas que foi desenvolvido no século XX. E isto

tem impactos muito concretos. Um brinquedo ou uma bomba tornam-se assim apenas

quantidades de valor abstrato, e a decisão de interromper ou de continuar sua produção

depende da quantidade de mais-valor que esses objetos contêm.

Nós não estamos mais aqui na visão marxista clássica de uma dialética entre base e

superestrutura, na qual a economia impunha-se e o resto se adaptava a ela. Aqui, trata-se

de uma forma geral abstrata, o valor, que se expressa em todos os níveis. Eu gosto, dessa

maneira, de citar o linguista alemão Eske Bockelmann que sublinha que no século XVII

a música passou de uma medida qualitativa para uma medida quantitativa. E esta

abstração se exprime, no mesmo momento, na nova física de Galileu ou na nova

epistemologia de Descartes.

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É aqui que toma forma um dos elementos-chave do seu pensamento, a noção de

fetichismo. Fundado pelo homem, o valor dita sua lei ao homem. Um conceito que,

segundo você, permite apreender a natureza do capitalismo para além das críticas

habituais.

No conceito marxiano de fetichismo, que resulta do que disse, o que porta o valor não

tem nenhuma importância. Um brinquedo ou uma bomba são apenas formas passageiras

de outra forma de realidade invisível, a quantidade de trabalho abstrato, quer dizer, o

valor. Uma vez compreendido isto, pode-se ir além da simples visão moralista da

sociedade capitalista. O produtor de bombas produz bombas não porque ele é insensível

moralmente, mas porque ele é submetido a esta lógica fetichista. A imoralidade pode ser

acrescentada, mas ela não é o motor. E, de resto, na sociedade capitalista, esse fetichismo

atinge também os operários. Aqueles que fabricam bombas não querem perder seus

empregos. Todos participam desta realidade, pois todos estão submetidos ao fetichismo

da mercadoria e do valor.

Não é necessário, entretanto, se limitar a uma visão muito sistêmica da realidade. Existe

também um nível de realidade feito de ideologia e de mentalidades. Os indivíduos não

são marionetes. Para se impor, o capitalismo deve passar pelos sistemas de motivação e

de gratificação. É a cenoura agitada diante do asno. Essas motivações são apenas

secundárias, elas podem sempre ser substituídas por outras. O que é essencial para o

sistema é a existência de uma estrutura psíquica específica. E é aqui que se joga a questão

do narcisismo do sujeito.

A escola freudomarxista havia tentado identificar e combater esta estrutura

psíquica, mas você afirma que suas análises não são hoje mais pertinentes.

A primeira geração dos marxistas, aquela da II Internacional (1889-1914), desenvolveu

um paradigma economicista. Todas as pessoas estariam supostamente agindo apenas por

seus interesses econômicos. Mas esta visão não chegou a explicar porque milhões de

operários massacraram-se com entusiasmo durante a Primeira Guerra mundial, nem

porque eles se voltaram, em seguida, para os movimentos fascistas e autoritários.

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Foi então que marxistas como Wilhelm Reich ou Erich Fromm salientaram a importância

de estruturas psíquicas no interior do capitalismo, utilizando a teoria de Freud, até ali

rejeitada pela esquerda como “burguesa”. Esse freudomarxismo explicou como as

estruturas autoritárias podiam se reproduzir pelo complexo de Édipo. Em Freud, este

complexo é percebido como uma garantia de civilização, mas os freudomarxistas fizeram

dele um fator de dominação das estruturas familiares. Nos anos 1950 e 1960, pensadores

como Herbert Marcuse desenvolveram ainda a ideia de que a libertação não passava

somente pela política, mas também pela libertação dos constrangimentos familiares e

sexuais. Este pensamento teve muito sucesso e conduziu a mudanças de costumes

duradouras.

A questão que eu me coloquei no meu livro foi a de saber se essa mudança representou,

no final das contas, um progresso. Sem partilhar as visões de autores como Lasch e

Dufour, que podem provocar consequências reacionárias, pode-se levar seus diagnósticos

críticos a sério. Pois, se, por um lado, esta evolução para a liberdade individual é

evidentemente positiva, por outro lado, o diabo, tendo saído pela porta, entrou novamente

pela janela. É preciso constatar que o indivíduo saído desta evolução é fundamentalmente

ainda mais fraco, justamente por causa da fraqueza de seu supereu. Ele é a presa das

pulsões do consumo de mercadorias. E, de fato, assiste-se a uma reversão maior. O

“partido da desordem”, anteriormente aquele dos revolucionários, tornou-se o do sistema

capitalista.

Esse sujeito “ideal” para a mercadoria corresponde a uma nova fase da história

capitalista, esta da emergência do neoliberalismo. Entretanto, neste livro como nos

precedentes, você adverte contra uma crítica do capitalismo que seria reduzida

unicamente à sua forma neoliberal.

A forma neoliberal representa, efetivamente, a forma mais recente e uma das mais

hediondas do capitalismo. Mas ela não constitui alguma coisa de fundamentalmente

diferente da fase precedente, aquela dos Trinta Gloriosos e do capitalismo dos

monopólios. No entanto, hoje, na esfera política, as críticas do capitalismo mais

difundidas são somente críticas do capitalismo neoliberal e, quando demandamos a elas

o que entendem por sociedade não capitalista, eles propõem geralmente uma visão

idealista dos Trinta Gloriosos. Da minha parte, eu não sou nostálgico da sociedade que

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generalizou a linha de montagem, uma das piores abjeções da história humana, e na qual

a mercadorização da natureza era objeto de um amplo consenso. Eu não acredito que seja

necessário idealizar o fato de que o direito à escravidão fosse um pouco melhor repartido

do que hoje, como faz, por exemplo, Bourdieu.

E você sublinha, aliás, que esta crítica reduzida do neoliberalismo pode conduzir a

uma nostalgia de certa forma de autoritarismo.

Eu sou muito cético quanto à ideia desenvolvida por Dany-Robert Dufour segundo a qual

o neoliberalismo seria uma “ruptura civilizacional”. Parece-me difícil opor, como ele faz,

um sujeito fundamentalmente fraco atual a um sujeito supostamente forte que teria

existido até os anos 1970. Alguns poderiam ter uma nostalgia desse suposto sujeito forte,

paternalista. Para mim, o sujeito neoliberal é muito mais uma nova etapa de um processo

de enfraquecimento que começou bem antes. Não se pode jogar as misérias de ontem

contra as misérias de hoje. A “ruptura civilizacional” situa-se bem antes do

neoliberalismo.

Nesse caso, contudo, por que o sujeito neoliberal, como você mostra, está sujeito ao

narcisismo, enquanto o sujeito da “antiga forma de capitalismo” estava mais

submetido a uma neurose clássica, como havia identificado o freudomarxismo? Não

existe aí uma forma de “ruptura”?

O que eu tento mostrar é que o capitalismo nasce efetivamente entre o fim da Idade Média

e o século XVII. Ele nasce com essa tendência narcísica que faz parte da sua estrutura de

base, pois existe no valor uma forma de renegar o mundo. É por isso que se pode destacar

já no cogito de Descartes essa forte tendência narcísica. Mas eu penso que o capitalismo

estava presente enquanto potência no sentido aristotélico e que ele coexistiu com formas

sociais mais antigas contra as quais durante muito tempo lutou, como o feudalismo ou o

paternalismo. Levaram-se séculos para vencer as escórias de outras épocas e, para retomar

um termo hegeliano, coincidir com seu próprio conceito.

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Com as crises dos anos 1970 o capitalismo atingiu, então, esta forma mais próxima

do seu conceito. E o conceito é precisamente o de uma indiferença em relação ao

mundo, particularmente perigosa para a humanidade e o planeta.

Marx sublinha que o valor é o produto do trabalho abstrato. Para ele, toda atividade

produtiva no capitalismo tem, com efeito, duas faces. A primeira é que ela produz alguma

coisa concreta que satisfaz necessidades. A segunda é que toda atividade necessita de um

dispêndio de energia que se pode medir pelo tempo. Está aí a fonte do valor, e assim toda

atividade se equivale, não tem diferença qualitativa, mas unicamente diferenças de

quantidade de tempo dispendido, portanto, de trabalho abstrato.

Ora, o capitalismo não se interessa senão pelo mais-valor, ou, dito de outro modo, pelo

valor superior ao inicialmente investido. Ele se interessa, então, somente pela quantidade

de valor criado por cada atividade. E, em face do valor, existe uma igualização do mundo.

Todas as coisas se equivalem e são apenas porções mais ou menos grandes da mesma

substância. Todos os objetos e serviços tem que justificar sua existência não pela

satisfação de uma necessidade ou de um desejo humano, mas pela quantidade suficiente

de mais-valor que eles representam.

Antes mesmo da luta de classes, da injustiça ou das desigualdades, encontra-se o que eu

chamo – para retomar as palavras de Joseph Conrad – “o coração das trevas” do

capitalismo: esta indiferença total para com o conteúdo e para com o que é próprio do ser

humano. É uma diferença fundamental com as sociedades pré-capitalistas, as quais,

quaisquer que tenham sido seus aspectos desagradáveis, não tinham essa dinâmica cega

que consiste em uma acumulação sem finalidade de alguma coisa que não tem conteúdo

próprio.

Esta cegueira é precisamente aquela do sujeito narcísico, que é o sujeito próprio do

capitalismo.

Segundo a leitura de Freud que faz Christopher Lasch, o narcisismo se forma durante a

primeira infância, antes do complexo de Édipo. A criança quer, então, evitar a separação

com o mundo ambiente e não quer reconhecer que se é dependente sempre de alguma

coisa mais forte do que nós. Ela compensa sua impotência real com uma toda-potência

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imaginária e mágica que passa por um desejo de fusão com o mundo exterior. O

narcisismo, tal como é comumente entendido, não é senão uma forma do narcisismo

freudiano. Mas, em realidade, todo mundo tem um componente narcísico e o que eu estou

expondo é que a forma atual do capitalismo conduz menos para uma extensão do número

de narcisistas do que para um forte aumento da “taxa de narcisismo” na população inteira.

O narcísico não interiorizou a existência do mundo exterior, ele passa ao largo, ele não o

conhece. Ele conhece apenas seu eu, como pura função da existência, e é por isso que eu

considero que o cogito de Descartes era já extraordinariamente similar ao narcisismo. O

mundo exterior não é senão uma extensão de seu próprio eu, que ele pode manipular à

vontade e dispor segundo suas próprias fantasias. O narcísico não pode estabelecer

verdadeiras relações de amizade ou de amor, porque, para ele, todos os outros são

intercambiáveis. E é aqui que é incorporada a noção de valor em Marx. Pois mesmo que

para o valor todos os objetos e as pessoas sejam intercambiáveis e não sejam senão

encarnações temporárias de uma “substancia” única, embora imaginária, o mundo real

não é para o narcísico senão uma vaga hipótese em que nada tem autonomia própria.

O narcísico pode se adaptar a todas as circunstâncias, a todos os empregos, a todas as

pessoas... Compreende-se que o indivíduo fordista dos anos pós-guerra, com seus valores,

sua moral, sua poupança, tenha se tornado disfuncional com a ampliação da esfera

mercantil.

Como você evocou, o “partido da desordem” tornou-se aquele do capitalismo,

notadamente pela glorificação da flexibilidade e da mudança permanente. O que é

chamado comumente de “reformas”, que começou pela esfera econômica,

notadamente o mercado de trabalho, tende hoje a se alargar para o resto da

sociedade. São elas, desde então, um sintoma desta vontade de tornar o sujeito mais

narcísico?

Sim, o que é demandado hoje, antes de tudo, é a flexibilidade. É preciso estar pronto para

mudar de trabalho, de parceiros, até mesmo de sexo. Tudo o que está fixo é considerado

como mau. Isto não significa que todo mundo seja tão flexível assim, mas é uma pressão

social constante.

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Você sublinha o quanto esta pressão do capitalismo atual agrava a crise narcísica do

sujeito, provocando desastres psíquicos que chegam até aos assassinatos em massa.

Como se exerce esta pressão?

A abstração dominante tem necessidade de alguma coisa de substancial sobre a qual se

enxertar para se tornar real. No início do processo capitalista, esta forma de organização

concernia apenas a certos setores da sociedade e a certos países. Balzac descreve em As

ilusões perdidas um mundo parisiense tornado narcísico com a irrupção do capitalismo.

Mas estes valores, tornados hoje dominantes, seriam, naquele momento, marginais.

Segui-los seria também fruto de uma escolha, de uma decisão amadurecida. Era possível

permanecer à margem e rejeitá-los.

Valores como autonomia, flexibilidade, espírito de iniciativa, que eram anteriormente

necessários para se tornar ministro, são doravante necessários para obter qualquer

emprego. É um dos aspectos mais desprezíveis da sociedade moderna. A escolha não é

mais possível. Ora, esta exigência pesa sobre os indivíduos.

Tanto que eles acreditam que o curso de suas vidas não depende senão deles, que eles são

os artesãos do próprio destino. Ora, o indivíduo contemporâneo não tem realmente

controle sobre nada. Está aí uma forma suplementar de culpabilidade. Doravante não se

tem mais desculpa de ser uma mulher, um provinciano, um proletário. Se não somos bem

sucedidos, é nossa própria culpa. Os indivíduos tornam-se, então, sobrecarregados de

expectativas geralmente irrealistas em relação a si mesmos. E isto cria sofrimentos reais.

Nas sociedades mais tradicionais e até na sociedade fordista, o indivíduo podia se revoltar

contra uma ordem exterior exploradora. O operário podia cruzar os braços para desafiar

o contramestre, o empregado doméstico podia roubar seu empregador... Atualmente, não

se pode mais se revoltar contra uma ordem exterior, mas somente em relação a si mesmo,

em relação ao seu próprio gozo. Acaba que, a partir de então, odeia-se a si mesmo. O

supereu interior é mais punitivo do que o supereu exterior. Não nos terá sido, portanto,

muito útil nos desvencilhar do complexo de Édipo, pois estamos agora entregues a um

supereu ainda mais implacável e difícil de nomear e combater.

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Nesta luta consigo mesmo a tecnologia não é, para você – e é ainda uma diferença

importante em relação aos marxistas tradicionais –, um meio para a libertação.

O narcisismo tem parte ligada à tecnologia. É o vetor da ilusão de toda-potência. Ela ajuda

o indivíduo a permanecer em uma forma constante de adolescência que é, de resto, uma

noção relativamente moderna. Como resumia perfeitamente Yves Saint-Laurent, nossa

época é a primeira em que as mães querem parecer suas filhas e não o inverso. Pela

primeira vez na História crescer não é percebido como uma vantagem. Assiste-se a uma

recusa da idade e, portanto, da maturação. A flexibilidade abole a maturação da

personalidade.

No final do seu livro você propõe a abolição do capitalismo como a única saída. Mas

como realizar esta abolição enquanto justamente o sujeito narcísico aparece como o

principal guardião desta ordem capitalista destruidora?

Como eu já indiquei, a questão é menos a de um indivíduo plenamente narcísico do que

a de uma “taxa” global de narcisismo que pode mudar. É possível reconhecê-lo e

combatê-lo, observando-se a si mesmo com certa distância. A sociedade está cheia de

tentativas de recuperar as formas de ajuda mútua. Muitas pessoas não estão prontas para

viver como os tubarões do mercado financeiro que aparecem nos filmes americanos. Nem

toda forma de consciência desapareceu.

A lógica abstrata depara-se sempre com o vivo e com o sensível. Esta luta é reencontrada

precisamente nos sofrimentos do indivíduo. Esta imagem desenvolvida pelos liberais, de

um indivíduo feliz porque ele apenas maximiza seu benefício pessoal, não corresponde,

evidentemente, a nada de real. A ditadura econômica é tão contrária às nossas

necessidades e aos nossos desejos que estamos em conflito permanente com ela.

As pessoas não seguem uma lógica única nos diferentes aspectos de suas vidas. Pode-se

ter uma carreia pessoal e se inquietar, ao mesmo tempo, com a construção de um depósito

de lixo perto de sua casa, pode-se também sofrer fraturas na sua vida, tomar consciência

de certos fatos... Constata-se, por exemplo, uma consciência crescente em relação aos

pesticidas. Eu não sou, portanto, forçosamente pessimista.

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Em contrapartida, você não espera nada das formas de luta postas em prática pelo

marxismo tradicional.

Eu não penso que se possa ter uma linha de combate com um grupo social no qual apostar

para sair do capitalismo, como se podia acreditar em períodos anteriores, notadamente no

que concerne ao proletariado. Os migrantes que chegam à Europa geralmente sonham se

tornarem burgueses europeus. Seu lugar na sociedade não determina sua reação à

sociedade atual, para mim, porque as catástrofes ecológicas que são consequências da

essência do capitalismo afetam todo mundo.

O marxismo tradicional focaliza sua atenção na distribuição do dinheiro e do valor, sem

recolocar em questão a existência destes dados. Historicamente, esta crítica se concentrou

na esfera financeira. É o que retomam hoje os populistas. Evidentemente, eu acho o

mundo financeiro pouco simpático, mas a financeirização da economia é apenas uma

consequência da crise do capitalismo, não sua causa. É ilusório pensar que se resolveria

todos os problemas eliminando um cardume de tubarões do mercado financeiro que

colaboram com os políticos.

Em contrapartida, existe uma ditadura da economia sobre a sociedade, e isso é para mim

o conceito central. Esta ditadura nem sempre é fácil de identificar. Às vezes é bastante

fácil: quando se quer construir uma mina de ouro em um local protegido, por exemplo,

ou no caso do projeto do aeroporto de Notre-Dame-des-Landes. Mas outras vezes é mais

difícil, como quando se inventam dispositivos inúteis para ocupar o espírito das crianças.

Mas meu ponto de vista é de ter uma desconfiança sistemática em face da economia. Por

exemplo, existe atualmente uma polêmica em torno dos contadores [de consumo de

energia] Linky: alguns advertem sobre os riscos potenciais, outros negam sua existência.

Eu teria a tendência, da minha parte, de pensar que se uma companhia quer instalá-los, é

forçosamente por má razão. Não existe pressuposição de inocência para quem gere o

processo econômico e técnico. E se boas decisões são tomadas, como por exemplo a

interdição de um pesticida, isso será sempre contra sua vontade, e geralmente muito tarde.

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Nesse quadro, deve-se novamente colocar a questão, como antes fez Rosa

Luxemburgo: reforma ou revolução?

A questão me parece ultrapassada. Hoje uma revolução sob a forma de uma “tomada do

palácio de Inverno” parece impossível e o reformismo sempre reforçou o poder existente.

As verdadeiras reformas, hoje, seriam de fato já uma revolução. Pois o sistema capitalista

é incapaz de se reformar. Se se observa os compromissos assumidos quanto ao clima ou

à biodiversidade nos anos 1990, que já eram insuficientes, eles não foram respeitados. E

é a mesma coisa no domínio econômico: depois da crise de 2008 tomaram-se medidas

cosméticas contra os excessos do mercado financeiro, e rapidamente elas foram

abandonadas. Em uma lógica da concorrência todos os atores desconfiam uns dos outros.

Se se chega a um acordo entre os atores do capitalismo, não se estaria mais no capitalismo.

O que define o capitalismo é precisamente a concorrência entre atores anônimos que nada

relacionam entre eles. O que é mais razoável, então, é abolir o capitalismo.

Para você o capitalismo corre, de toda maneira, para sua perdição...

O marxismo tradicional pensou que se a insatisfação material do proletariado não o

conduzisse para derrubar o capitalismo, este último perduraria. O que eu defendo é o

contrário: esta contradição que o capitalismo porta inicialmente no seu seio, este

esgotamento da fonte do valor com a substituição do trabalho pela tecnologia ao longo

dos últimos anos, tomou tal amplitude que o capitalismo não sobrevive senão com

muletas como a financeirização. O sistema está em face de seus limites internos, ao que

se acrescentam limites externos como a crise ecológica. Ele serra o galho sobre o qual

está assentado. O capitalismo sabota a si mesmo. Ele não resolve nenhum dos seus

problemas fundamentais. O capitalismo está em vias de esgotar-se e isto impulsiona para

a criação de alternativas. Pois uma sociedade fundada no valor é uma sociedade inviável

no plano humano. Existem mil campos de batalha contra esta lógica econômica da

valorização sempre mais evanescente e que toca agora em domínios como o serviço para

pessoas idosas ou para crianças. Progressivamente, é necessário subtrair cada vez mais

terreno do mercado e do Estado. Eu penso que não se chegará a nada, todavia, com a

política, as leis e os parlamentos.

Traduzido por Pedro Henrique de Mendonça Resende