a Última fase de surgimento de a gaia ciência

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  • 8/12/2019 A ltima Fase de Surgimento de a Gaia Cincia

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    cadernos Nietzsche 6, p. 75-93, 1999

    A ltima fase de surgimento

    de A Gaia Cinc ia*

    Jrg Salaquarda**

    Resumo:Atravs de uma anlise do processo de correo feito por Nietzsche e

    Heinrich Kselitz (Peter Gast) nas brochuras de prova de A Gaia Cincia, esteartigo esclarece alguns importantes traos do estilo literrio de Nietzsche e rela-ciona-os a perspectivas filosficas essenciais deste livro.Palavras-chave:cincia literatura estilo mestre/discpulo

    Nos efetivos Nietzsche dos Arquivos Goethe-Schiller em Weimar,sob a sigla K 7, encontram-se conservadas 19 brochuras(1) de prova

    tipogrfica e outras 8 pginas impressas paraA Gaia Cincia(doravanteGC). Eles contm uma pletora de correes manuscritas, em grande parteprovenientes de Nietzsche, em menor parte de Gast. As correes vode meras retificaes de erros de impresso at reformulaes e adendosde grande envergadura(2). Elas permitem uma viso penetrante na ltimafase de surgimento desse escrito. Em particular, elas explicitam seu car-ter de transio. Nele Nietzsche leva a termo seu projeto de Ilustrao,iniciado comHumano, Demasiado Humano(HH), e j antecipa, tantoestilstica quanto tematicamente, traos deAssim falou Zaratustra(Za).

    Meus subseqentes comentrios das brochuras de prova tipogrfi-ca prestam-se, sobretudo, explicitao dessas posies estilsticas etematicamente intermedirias de GC. Inicio com algumas indicaes

    * Traduo de Barbara Salaquarda (Viena) e Oswaldo Giacoia Junior (IFCH/UNICAMP).** Professor da Universidade de Viena.

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    concernentes ao surgimento desse escrito (1), descrevo, em seguida, asbrochuras de prova tipogrfica (2) e esboo o curso presumvel do pro-

    cesso de correo (3). Introduzo a anlise valorativa do contedo, pormeio de uma viso de conjunto dos tipos mais importantes de correoque se encontram nas brochuras (4). Em concluso, explicito, em al-guns exemplos centrais, a tendncia principal das alteraes efetuadaspor Nietzsche, por assim dizer no ltimo minuto (5).

    1. Acerca do surgimento de GC

    Para compreender melhor as correes, antecipo algumas infor-maes sobre o pano de fundo biogrfico e filosfico de GC(3). QuandoNietzsche encetou o trabalho nesse escrito, ele o planejava como umprosseguimento deAurora(A). Ainda antes que essa obra fosse publicadano final de junho de 1881, ele j trabalhava numa segunda parte, quedeveria consistir igualmente de cinco livros. Eles deveriam se vinculartematicamente aos cinco j ento publicados, ser dedicados, portanto,ao problema da moral.

    Em agosto de 1881 esse plano foi alterado pela experincia dopensamento do eterno retorno. Em sua prxima publicao, Nietzscheno pde e no quis prescindir desse novo insight que to profunda-mente o ocupava. Porm, no tinha claro para si, nessa ocasio, queimplicaes ele tinha e qual o melhor modo de comunic-lo ao pblico.Na base do trabalho subseqente, jazia um plano modificado: para o

    prosseguimento e encerramento da problemtica da moral, por ele em-preendida emA, Nietzsche previa ento apenas os livros 1-3, que deve-riam consistir tambm no coroado encerramento de sua filosofia dosespritos livres. De acordo com esse plano, ele quis desenvolver o pen-samento do eterno retorno nos livros 4 e 5 e explicitar sua significaoe funo para um pensar futuro.

    Em janeiro de 1882, aps haver concludo os livros 1-3, Nietzschedeixou de lado provisoriamente o manuscrito. De acordo com seu pr-

    prio depoimento, ele no se sentia ainda suficientemente maduro para

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    os pensamentos elementares que ele queria tratar nos livros 4 e 5. Emaluso ao pensamento do eterno retorno, diz-se ento textualmente: A

    se encontra um pensamento que, em verdade, carece de milnios parase tornar alguma coisa. De onde tomo coragem para pronunci-lo! (aGast, 29.1.1882). Nietzsche passou as semanas seguintes juntamentecom Re em Gnova e, em seguida, empreendeu uma viagem pela It-lia. Ainda que continuasse a tomar apontamentos para os planejadoslivros 4 e 5, contudo, no levou adiante a publicao do novo escrito.

    Em abril/incio de maio de 1882, o encontro com Lou Salom deuensejo a Nietzsche para uma outra alterao de seus planos. Ele acredi-

    tou ter encontrado na extraordinria jovem senhora a discpula e herdei-ra espiritual longamente anelada. Para disp-la favoravelmente a essepapel, ele quis pr-lhe mo um resumo escrito do mais recente desen-volvimento de seu pensamento. Como isso devia ocorrer rapidamente,ele utilizou o material j existente para o novo projeto, tentando, porm,dar a ele, no conjunto, uma orientao mais pronunciada em relao sua nova tendncia. J por meio do ttuloA GaiaCincia, com o sub-ttulo la gaya scienzaele afastava o escrito, mais claramente do que atento pretendera, em relao aA. Para os livros 1-3, tomou no essencialas verses j prontas desde o final de janeiro. Das anotaes para oslivros 4 e 5, ele eliminou quase todas as aluses ao pensamento do eter-no retorno, de cuja apresentao ele ainda no se julgava capaz, menosainda em to breve tempo(4). Nessa concepo, dos dois livros anterior-mente planejados resultou apenas um, que se diferenciava dos trs ou-tros menos tematicamente como o havia previsto o segundo plano

    do que sobretudo na disposio fundamental subjacente. Dentre poe-mas que compusera em fevereiro e maro, Nietzsche escolheu 63 e, sobo ttulo Gracejo, Astcia e Vingana, anteps ao escrito essa coletnea,como umPreldio em rima alem.

    Com vistas ao ulterior desenvolvimento, essePreldio e o quartolivro (SanctusJanuarius) deixam-se conceber como prenunciadores deZa. J nesses textos, Nietzsche estava a caminho de uma forma muitopessoal de comunicao, figurando literariamente sua disposio fun-

    damental. Nas cartas de acompanhamento para a remessa do escrito aos

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    amigos e conhecidos, ele destacava especialmente esse momento. Aopor ele venerado Jacob Burckhardt, ele solicitava: eu gostaria especi-

    almente que o senhor pudesse ler o Sanctus Januarius (livro IV) nocontexto, para saber se ele, como um todo, se comunica. E meus ver-sos? (2/3.8.1882). Peter Gast, que havia lido tambm as correes,ele quase conjurava: Faa algumas consideraes (...) sobre o todo e ainteira disposio (ganze Stimmung): comunica-se ela efetivamente?Particularmente: Sanctus Januarius , em geral, compreensvel?(20.8.1882).

    Depois de sua viagem pela Itlia, Nietzsche retirou-se para sua

    ptria no centro da Alemanha, para l concluir o trabalho no manuscri-to, ler as correes e aguardar a publicao do livro. Ele permaneceuem Naumburg da metade de maio at 24 de junho. Uma vez que, emconseqncia das dores de cabea e nos olhos, era-lhe frequentementepenoso ler e falar, sua irm ditava para uma terceira pessoa os textosescolhidos (por Nietzsche NT) para o manuscrito destinado impres-so. Ele se assentava ao lado, efetuava correes onde necessrio, ouditava adendos. Para os prximos dois meses e pouco, recolheu-se ele,para repouso e leitura das correes, em Tautenburg, uma pequena loca-lidade na floresta turngia. Nas ltimas trs semanas, fez-lhe compa-nhia Lou Salom. Final de junho/incio de julho ele ainda estava ocupa-do com a concluso do quarto livro, j tendo remetido de volta os livros1-3 a seu editor Schmeitzner em Chemnitz (cf. a Schmeitzner, 19.6.1882).O livro 4, ele o anunciou ao editor por carta postal em 3.7.1882. A essaaltura, j se houvera iniciado a composio tipogrfica (Drucksatz)(5),

    as trs primeiras brochuras j tinham chegado a Nietzsche. As corre-es e com isso a ltima fase de retoques podiam comear.

    2. As brochuras de prova tipogrfica

    O manuscrito para GCexigiu exatamente 16 brochuras de provatipogrfica, impressas at a ltima pgina (p. 256). Trata-se das brochu-

    ras usuais de oito folhas impressas dos dois lados, ou seja, 16 pginas.

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    O formato das pginas 22 x 13 cm, a superfcie da matriz de composi-o tipogrfica 16,5 x 9,5 cm. A numerao das pginas comea com p.

    1 (folha do ttulo geral) e termina com p. 256 (final do aforismo 342).As pginas de ttulos, as pginas em branco e as respectivas primeiraspginas do Preldio e dos quatro livros so consideradas na numera-o, porm no ostentam nmero de pgina.

    Dois exemplares das brochuras 1, 8 e 10 esto conservados noGoethe-Schiller-Archiv em Weimar. A isso se acrescentam ulteriores 8pginas (p. 129-132 e 137-140) da brochura 9. No conjunto, o materialconsiste, portanto, em 16 x 16 + 3 x 16 + 8 = 312 pginas.

    Das 256 pginas do exemplar completo, 242 pginas contm textoe 6 pginas contm ttulos. A isso se acrescentam 8 pginas em branco.s 56 pginas dos exemplares em duplicata correspondem os seguintesnmeros: 52 pginas de texto e duas pginas respectivamente para ttu-los e pginas em branco.

    Os ttulos se encontram sempre em pginas mpares: o ttulo geralna pgina 1, o ttulo do Preldio Gracejo, astcia e vinganana pgi-na 3, as indicaes primeiro livro, segundo livro e terceiro livro naspginas 21, 81 e 135, a indicao: quarto livro(6)com o ttulo SanctusJanuarius na pgina 195(7). As pginas pares seguintes s pginas dettulos 2, 4, 22, 82, 136 e 196 foram deixadas em branco. O Preldioe o segundo livro terminam em uma pgina mpar; por isso, as pginasseguintes (20 e 134) so igualmente pginas em branco, para que, deacordo com o esquema, o prximo ttulo (primeiro, ou quarto livro) ve-nha a ocupar uma pgina mpar.

    As brochuras de prova tipogrfica foram preparadas por encomendado editor Schmeitzner pela tipografia Teubner em Leipzig. Esta guarne-ceu as brochuras, em baixo esquerda nas respectivas primeiras pgi-nas, com seu carimbo comercial, que tambm continha a data. De acor-do com isso, as brochuras 1-3 foram concludas em primeiro de julho de1882, a brochura 4 em 3 de julho, as brochuras 5 e 6 em 4 de julho, abrochura 7 em 14 de julho, a brochura 13 em 26 de julho, a brochura 14em 27 de julho, a brochura 15 em 29 de julho e a brochura 16 em 8 de

    agosto.(8)

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    Sobre as brochuras 1 (primeiro exemplar), 2 e 8 (primeiro exem-plar) e 13-16, a tipografia consignou, nas respectivas primeiras pginas,

    em baixo direita, Nietzsche em Tautenburg como destinatrio.(9)

    Semdvida, essas brochuras foram diretamente remetidas a Nietzsche. Ne-las se encontram, pois, apenas correes de seu prprio punho.

    A maior parte das brochuras acusa traos de reelaborao mais oumenos extensa e inequvoca, efetuadas por Nietzsche, algumas poucastambm, ou apenas traos de reelaborao por Gast. Trabalhados porPeter Gast so o primeiro exemplar da brochura 1, o exemplar completoda brochura 9 e o segundo exemplar da brochura 10.(10)

    3. O processo de correo

    A partir da troca de correspondncia de Nietzsche com seu editorSchmeitzner e com Gast, assim como de uma anlise valorativa das bro-churas de prova tipogrfica, possvel inferir como poderia ter-se pas-sado o processo de correo.

    A tipografia remetia um exemplar de brochuras respectivamente aNietzsche em Tautenburg e a Gast em Veneza. Ambos liam em seguidaas correes, no que, segundo parece, praticavam uma certa diviso detrabalho. Nietzsche voltava sua principal ateno para osaperfeicoamentos estilsticos, assim como para reelaboraes e adendos.Gast era primacialmente responsvel por erros de impresso ou erros deleitura dos tipgrafos, assim como pela uniformizao da ortografia e

    pontuao. Todavia, ambos atentavam tambm, ao mesmo tempo, parao respectivo domnio do outro. Por vezes, Gast fazia propostas de alte-raes estilsticas e de contedo. Nietzsche se ocupava, por sua vez, emdescobrir erros de impresso e decifrao.

    To logo Gast conclua o trabalho, ele remetia a Nietzsche as bro-churas por ele mesmo corrigidas. Este comparava as retificaes e pro-postas de seu auxiliar com as suas prprias e, por fim, as refundia con-

    juntamente em um exemplar.(11) Nesse processo, ele manifestamente

    efetuava, com freqncia, correes suplementares. No se pode infe-

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    rir, a partir das cartas conservadas, se, na preparao da verso destina-da impresso, ele se apegou a um esquema fixo. Alguns indcios apon-

    tam que ele, por razes pragmticas, tinha por base, em regra, o exem-plar de correo de Gast. Pois neste j se encontravam, bem legivelmen-te inscritas, as correes que, em todo caso, tinham que ser efetuadas.(12)

    Depois do encerramento desse curso de trabalho, Nietzsche envi-ava de volta grfica Teubner o exemplar no qual havia refundido ascorrees. O outro exemplar, ele o conservava consigo. Manifestamenteno se deu ele ao trabalho de, para fins de controle, transportar comple-tamente as correes para esse segundo exemplar. Pois, mesmo levando

    em considerao as correes manuscritas, os textos encontrveis nasbrochuras conservadas muitas vezes no concordam (ainda) literalmen-te com a verso impressa.

    Em alguns casos, depois de ter reunido as correes, Nietzscheainda no se dava por satisfeito com o resultado. Ele comeava a retocarde novo as correes j efetuadas ou inseria outras. Para no confundiros tipgrafos e evitar novos erros na matriz de composio, ele trans-portava o resultado final para o outro exemplar sua disposio e oremetia de novo tipografia. Caso as alteraes tivessem ultrapassadouma certa medida, Nietzsche poderia solicitar um exemplar de reviso.(13)

    Eu resumo: Nietzsche tinha diante de si pelo menos dois exempla-res de cada brochura, dos quais um continha as propostas de correode Gast. Em alguns casos, ele provavelmente pode ter solicitado umterceiro exemplar, presumivelmente um exemplar de reviso. Os exem-plares que, no conjunto do texto impresso e das correes manuscritas,

    continham o texto definitivo da GC(1a. edio), ele os enviava para agrfica. Estes no foram conservados. Nas brochuras que permanece-ram com ele, e por isso foram conservadas, encontram-se consignadasmuitas, na maior parte no todas, das retificaes que ele efetuou notranscurso do trabalho de correo. Inversamente, nelas se encontramalgumas propostas de correo que ele, mais tarde, rejeitou de novo eque por isso no ingressaram na forma definitiva de GC. De algumasbrochuras, foram conservados dois exemplares, que, em parte, acusam

    diferentes ou diversamente elaboradas alteraes textuais. Se, a partir

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    dessas brochuras, preparssemos um exemplar de GC, este apenas empoucos poemas e aforismos concordaria em todos os pormenores com o

    texto dessa obra conhecido por ns. A maioria das partes indicaria des-vios de maior ou menor envergadura. Com isso, as brochuras propiciamuma vista dolhos tanto elucidativa quanto estimulante na oficina detrabalho do escritor Nietzsche, e ademais, na derradeira fase de seutrabalho.

    4. Tipos de correo

    Uma parte considervel do trabalho se destinava, naturalmente,apenas descoberta e eliminao de erros de impresso e decifrao,assim como de ortografia e pontuao incorretas. Tais correes se pres-tavam simplesmente ao restabelecimento da figura do texto formuladapelo autor no manuscrito destinado impresso ou a seu ajustamento sregras (ento vigentes) da lngua alem. Uma parte igualmente conside-rvel das correes visava melhorar o texto original, do ponto de vistaestilstico. Nietzsche, sabe-se bem, era um escritor extremamente cui-dadoso, que desde cedo se esforara por um bom estilo em suas produ-es literrias. Para Lou Salom, ele assim caracterizava a derradeirafase, aqui considerada, do surgimento de GC: Estou agora ocupadocom coisas muito sutis de linguagem; a ltima deciso sobre o textoobriga ao mais escrupuloso ouvir de palavra e frase. Os escultoresdenominam esse ltimo trabalho ad unguem (27/28. 6. 1882). Po-

    der-se-ia designar esse tipo como correo meramente formal, para dis-tingui-la dos adendos e reelaboraes de maior envergadura, com asquais Nietzsche alterou determinadas partes do texto, tambm quantoao contedo objetivo (inhaltlich-sachlich). Em Nietzsche, contudo, es-ses dois aspectos se deixam, no melhor dos casos, apenas diferenciarum do outro, certamente no separar por completo. O prprio Nietzschedeu expresso a isso no conhecido epigrama, tornado proverbial: Cor-rigir o estilo isso significa corrigir o pensamento (...)! (WS/AS131).

    Todavia, na maioria dos casos, pode-se reconhecer uma tendncia das

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    intervenes, que visa mais fortemente essa ou outra direo aquelaquase apenas formal, ou a predominantemente de contedo objetivo.

    Na seqncia esclareo os ditos 4 tipos de correo algo mais pre-cisamente e dou exemplos dos mesmos. Nas maiores reelaboraes eadendos, mais relevantes tambm do ponto de vista objetivo, ingressa-rei mais pormenorizadamente na quinta e conclusiva parte.

    As correes mais simples e freqentes se prestavam eliminaode erros de grafia no manuscrito destinado impresso ou de erros deimpresso e decifrao por parte dos tipgrafos. Isso era tarefa sobretu-do de Gast. Ele era fisicamente mais apto que Nietzsche para suportar

    encargos, enxergava consideravelmente melhor e no sofria, como ooutro, de constantes dores de cabeca. Decerto, os mais evidentes errosde impresso ou leitura tambm no escapavam a Nietzsche. Via de re-gra, porm, ele no os corrigia de imediato, mas simplesmente indica-va, por meio de um trao na margem, que algo ali no estava em ordemno texto e se fiava em Gast quanto ao mais. A se julgar pelas brochu-ras remanescentes, Gast parece ter, ao contrrio, efetuado de imediato acorreo completa.

    Meros erros de impresso ou decifrao dos tipgrafos so, porexemplo, Traube(uvas) por Taube(pomba) (GC 11, KSA 3, 355, l.29; brochura 1, p. 7; corrigido no primeiro exemplar, no segundo mar-cado); Laudor por Landor (GC 92, KSA 3, 458, l. 17; brochura 8,p.114: corrigido apenas no segundo exemplar); Monlaing porMontaigne (GC 97, KSA 3, 452, l. 25; brochura 8, p. 118: tambm scorrigido no segundo exemplar); Formelles (formal) por Formvolles

    (rico em formas) (GC 109, KSA 3, 422, l. 22; brochura 9, p. 137: corri-gido nos dois exemplares); feinsten (os mais sutis) por fernsten (osmais remotos) (GC 125, KSA, 3, 482, l. 1; brochura 10, p. 154: marca-do nos dois exemplares), Gebet (orao) por Hebel (alavanca) (GC131, KSA 3, 485, l .8: um erro grave dos tipgrafos, corrigido nos doisexemplares da brochura 10, p. 158); Originaltt por Originalitt(GC 261, KSA 3, 517, l. 22, brochura p. 192).

    Um outro domnio pelo qual Gast se sentia primacialmente res-

    ponsvel era a unificao da ortografia e pontuao, no por derradeiro

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    pela grafia de maisculas e minsculas. Gast dominava as regras de or-tografia e pontuao melhor que seu mestre. As brochuras 9 e 10 indi-

    cam com evidncia quo cuidadosa e conseqentemente Gast procedia,por exemplo, no tocante s vrgulas. A esse respeito, freqentementeele corrigia no os tipgrafos, mas Nietzsche! Em alguns pontos elecorrigia muito conseqentemente o emprego, por Nietzsche ou pelostipgrafos, da ortografia mais recente em proveito da mais antiga, masento vigente como correta.

    Desse modo, ele alterava correntemente, por exemplo, dies (de-monstrativo NT) por diess, z em palavras estrangeiras como Sozia-

    lismus por c e minsculas por maisculas no demonstrativo das(esse, este, isto, isso NT), ou expresses numricas empregadas subs-tantivamente como einer (um NT).

    Encontrar a palavra mais acertada ou a melhor expresso era algoque falava ao corao de ambos os corretores. Para dar alguns exem-plos: Nietzsche alterou o galicismo Indulgenz pelo mais conhecidoNachsicht (GC 283, KSA 3, 526, l. 21; brochura 23, p. 203), substi-tuiu o prosaico santificado pelo mais plstico canonizado (GC 95,KSA 3, 449; l. 23, brochura 8, p. 115, do segundo exemplar), corrigiuselbst (prprio NT) por selber (prprio NT) (GC 201, KSA 3,506, l. 6, brochura 12, p. 181) e associou a Zwang (coero) o [termo NT] de igual sonorizao inicial Zauber (magia) (GC334, KSA 3,560; l. 3, brochura 16, p. 242).

    Tambm Gast, no mesmo esprito de Nietzsche, se esforava porcorrees dessa espcie. Seu papel no se limitava leitura das corre-

    es em sentido restrito. Num olhar retrospectivo dirigido ao trabalhoem comum com Gast na preparao deHH, Nietzsche caracterizou suafuno nos termos seguintes: (...) ele corrigia tambm, no fundo eraele o prprio escritor, enquanto eu era apenas o autor. (EH. HH. 5).Isso no era mera captatio benevolentiae, mas se ajustava de todo aoque objetivamente se passava. Alguns exemplos podem atestar queanalogamente se passava tambm nos trabalhos de correo de GC. FoiGast quem props explicitar aquele impulso por aquele impulso hu-

    mano (GC115, KSA 3, 474, l. 22, brochura 10, p. 146, do segundo

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    exemplar), e grafar tais juzos, ao invs do genrico julgar (GC110,KSA 3, 470, l. 27, brochura 9, p. 141). Sem dvida, no sentido de

    Nietzsche foi a complementao de fora de seu germe por gnero efora de seu germe (GC 106, KSA 3, 463, l. 32, brochura 9, p. 132).Tambm a transformao do singular de modo que o expectador a temseu tormento ou sua comoo no plural de modo que os expectadorestm a seu tormento ou sua comoo (GC 105, KSA 3, 463, l. 4 s,brochura 9, p. 131) foi uma contribuio de Gast para a figura definitivada GC.

    As correes mais importantes quanto ao contedo objetivo fica-

    ram reservadas a Nietzsche: a subtrao ou acrscimo de aforismos in-teiros, assim como considerveis intervenes no corpo do texto. Nessemomento tardio, Nietzsche efetuou intervenes dessa envergadura quaseexclusivamente em passagens estrategicamente importantes do texto,ou em aforismos nos quais ele havia exposto e discutido opinies eensinamentos para ele particularmente importantes nesse momento.Passagens estrategicamente importantes so sobretudo as partes con-clusivas do livro 2 (reelaborao do aforismo 107), 3 (supresso doaforismo 168, incluso de oito aforismos suplementares 168-175) e 4(supresso do aforismo 335, interveno no aforismo 341). Particular-mente importante para Nietzsche eram os aforismos 2 (honestidade in-telectual), 72 (gravidez fsica e espiritual), 86 (teatro e paixo), 99(Schopenhauer e Wagner), 125(14)(a morte de Deus), 134 (influncia danutrio sobre a cosmoviso), 143 (utilidade do politesmo para a filo-sofia dos espritos livres), 285(15)(utilidade do atesmo para a filosofia

    dos espritos livres). Comentar pormenorizadamente todas, ou mesmoapenas as mais importantes correes, ultrapassaria os limites de umaconferncia ou ensaio. Concentro-me em alguns poucos exemplos, nosquais, a meu juzo, tornam-se particularmente explcitas tendncias t-picas dessa derradeira fase de reelaborao.

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    5. Tendncias da ltima fase de reelaborao

    Quase todas as maiores alteraes e suplementos que Nietzscheefetuou, por assim dizer, no ltimo minuto visavam sublinhar o car-ter pessoal do escrito e ressaltar sua disposio pessoal prenunciadorade Za. Tematicamente, a morte de Deus e sua significao para a moralassediava Nietzsche at o ltimo momento do modo mais intenso. Emsuas ltimas correes e adendos, Nietzsche procurou figurar mais se-dutora e urgentemente os apelos aos indivduos singulares (Einzelne)e aos senhores de si mesmos (Selbsteigene) para a superao das vir-

    tudes de rebanho. O Alm-do-Homem, que se reconhece em suasprprias valoraes e avaliaes, j adquiria contornos, embora Nietzscheempregue essa designao primeiramente no Za.

    Com a carta de 20.08.1882, Nietzsche anunciou a Gast a remessado livro recm publicado e indicou as alteraes e adendos por ele des-conhecidos, em particular as modificadas concluses dos livros segun-do e terceiro e a sua nova avaliao de Schopenhauer e Wagner: tam-

    bm sobre Schopenhauer expressei-me de modo mais claro (talvez ja-mais retorne a ele e a Wagner, tive agora que firmar minha relao comminhas opinies anteriores, pois afinal sou um mestre e tenho o deverde dizer onde permaneo idntico a mim mesmo e onde me tornei umoutro).

    A modificao da parte final do terceiro livro , de fato, bastanteelucidativa. Num olhar retrospectivo (EH, A Gaia Cincia), Nietzschevia proferida a, do modo mais inequvoco, a inverso da anlise crtica

    em apresentao positiva de sua nova doutrina prpria. Ele j tinhaexibido um pressuposto central no originariamente penltimo aforismodo livro terceiro (GC267): ns teramos que nos instituir uma grandemeta, pois com isso nos sobreporamos prpria justia, no apenas aseus prprios feitos e juzes. A se encontra o desafio a no mais seimportar com as virtudes de rebanho, porm a seguir cada um seuprprio caminho. Na verso original, Nietzsche no quis intensificarmais esse apelo a tornar-se-si-mesmo, mas proporcionar a suas leitorase leitores uma pausa para reflexo. No ento aforismo 268 (agora Frag-

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    mento V 16 [11]), originariamente pensado como encerramento do li-vro 3, ele antecipou a censura de que seus novos ensinamentos pode-

    riam no estar a gosto de seus destinatrios. Ele os aconselhava atrat-los como um medicamento amargo, mas curativo, isso , ingeri-los de pronto ento o efeito tambm no deixaria de ocorrer.

    Se Nietzsche queria, pois, de incio, preparar o efeito do quartolivro por meio de uma pausa para reflexo, na verso definitiva, bempelo contrrio, ele intensificou a tenso. Ele eliminou o at entoaforismo 268 e inseriu em seu lugar oito curtas sentenas (aforismos268-275). Acolheu nelas a tese do aforismo 267 e as condensou em ape-

    los curtos, pessoais, colocados a modo de stacato. O novo aforismo 268foi formulado, com efeito, como pergunta e resposta. No entanto, ele jexibe claramente o carter de uma indicao do mestre ao discpuloindependente. O mestre Nietzsche define o herosmo como a disposioa acolher igualmente seu supremo sofrimento e sua suprema esperan-a. O homem herico no se deixa guiar, como o escravo indolente etimorato, por prazer e desprazer, isto , do exterior, mas por suas maisautnticas tendncias. Ele no teme declarar abertamente sua crena(269), sua moral (270, 273) e sua espcie de humanitarismo (274) eimp-los no confronto com outras posies. Como Zaratustra maistarde, Nietzsche v aqui os maiores perigos (...) na compaixo (271)e o selo da liberdade alcanada na capacidade de no mais se enver-gonhar de si mesmo (275), isto , da exteriorizao de suas avaliaes.Em conjunto, os novos aforismos 268-275 apresentam, pois, curtos etticos apelos para tornar-se-si-mesmo no sentido da convico de que,

    depois da morte de Deus, os pesos de todas as coisas tm que ser denovo determinados (aforismo 269). Eles atuam sugestivamente e as-sim devem faz-lo.

    No aforismo 107, o ltimo do segundo livro, Nietzsche resume asignificao da arte para os homens senhores de si mesmos. Duranteo trabalho de correo em Tautenburg, ele modificou consideravelmen-te esse texto. Mas ele se limitou, nesse caso, a supresses e adendospormenorizados no interior do aforismo. A partir do incio at ajuda a

    desviar (KSA 3, 464, l. 18) as duas verses so idnticas. A conscin-

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    cia moral intelectual nos ordenaria hoje enfaticamente a revelarinverdades e mentiras onde quer que as encontremos sobretudo em

    religio, metafsica e moral. Na arte, porm, nos seria permitido repou-sar desse duro dever. Aqui a mentira largamente permitida, porque elase d a conhecer como mentira. Na verso das brochuras de prova tipo-grfica, Nietzsche retocou apenas muito pouco essa assero. Em evo-cao de sua conhecida proposio doNascimento da Tragdia, segun-do a qual a existncia seria justificada apenas como fenmeno esttico,formulou ele aqui: Apenas como fenmeno esttico a existncia nos ainda suportvel. (destaque meu). E concluiu com a exortao a fazer

    bela a existncia, que ele ento voltou a empregar em outro contexto ver como o belo o necessrio nas coisas e, por meio disso, tornar ascoisas belas isto , no incio do livro 4 (aforismo 276).

    Todavia, tambm essa concluso, por fim, no satisfez mais aNietzsche. Na pgina 133 (brochura 9) se encontra o primeiro intentopara uma ulterior reelaborao que mais inequivocamente se vinculavacom a tese do livro sobre a tragdia. Ao suprimir o apenas do incioda frase, que ento passou a: Como fenmeno esttico a existncia nos ainda suportvel, a sentena se deixa compreender do modo seguin-te: para ns, espritos livres, a existncia como fenmeno esttico no ,com efeito, justificada, porm, mesmo assim, ainda suportvel. Entreessa frase e a exortao a fazer belo o mundo, Nietzsche quis alm dis-so(16)inserir o seguinte adendo: e, por meio da arte, -nos dado olho emo para fazer-nos mais belos tambm a ns mesmos. Essas correesou inseres ingressaram tambm na verso definitiva. Finalmente,

    Nietzsche enfeixou-as em cerca de uma pgina de texto suplementar, aque ele acrescentou os motivos da loucura e da sandice, da brincadeira eda soberba, que igualmente preconizam Za. Ademais, incluiu ele, pro-vavelmente no mesmo curso de correo, o motivo da loucura tambmno aforismo 342, ao alterar a (brochura 16, p. 256) sabedoria, comoa se dizia originalmente, por loucura, e do mesmo modo pobrezapor riqueza. Ambos a ser entendidos no sentido de um tratamentosoberanamente jocoso de avaliaes e valoraes vigentes.

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    Na verso impressa, o aforismo 107 termina com a frase: E en-quanto ainda, de algum modo, vos envergonhais de vs mesmos, ainda

    no pertenceis aos nossos! Essa frase prepara o ltimo aforismo doterceiro livro, que, na verso definitiva, se enuncia: O que o selo daliberdade alcanada? No se envergonhar de si mesmo. patente ocarter de apelo dessa assero.

    Na carta a Gast acima citada, Nietzsche se designa como um mes-tre. Esse papel de mestre, mais exatamente, de mestre do eterno retor-no, ele o transferiu, logo em seguida, a seu filho Zaratustra. Essa fun-o, na opinio dele, impe a seu portador a obrigao de exprimir ine-

    quivocamente a moral pessoal isto , cada uma das prprias avalia-es e valoraes positivas e negativas para que os potenciais disc-pulos saibam a que esto se entregando quando seguem um tal mes-tre. Os discursos de Zaratustra prestam-se largamente a esse prop-sito. Aqui, porm, temos a ver ainda com a GCe com o mestreNietzsche.Tornado mestre por meio da experincia dopensamento do eterno re-torno, tendo diante dos olhos, na pessoa de Lou Salom, uma discpulapotencial, ele se esfora at o fim para, em sua mais recente publicao,expor to claramente quanto possvel aquilo contra ou a favor do queele se colocava. Frmula de nossa felicidade, resumiu ele essa ten-dncia anos depois, no incio de O Anticristo(AC), um sim, um no,uma linha reta, uma meta.... Os adendos e suplementos j menciona-dos deixam-se facilmente subsumir sob essa tendncia.

    Face a Gast, Nietzsche destacou um ulterior ponto de vista. Umavez que ele j publicara uma srie de livros, ele teria que dizer a seus

    discpulos potenciais em quais opinies anteriormente expressas eleperseverava, quais teria modificado ou rejeitado. NoPrefcio sua tar-dia autobiografia, Nietzsche exprimiu esse dever sem tomar qualquerconsiderao. Ouvi-me! Pois eu sou tal e tal. Sobretudo no meconfundais! No foi por acaso que, em sua carta a Gast, Nietzschemencionou particularmente Schopenhauer e Wagner nesse contexto. Naverdade, ele h tempo j havia trilhado caminhos prprios, porm osescritos nos quais tinha ressaltado sua proximidade em relao a ambos

    sobretudoNT, SEe WB eram mais difundidos e conhecidos do que

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    tudo o que ele escrevera depois, isto , o inteiro projeto de filosofiados espritos livres. Desse projeto, Nietzsche concebia ento GCcomo

    coroamento conclusivo e, ao mesmo tempo, superao. Portanto, eletinha que, no por ltimo, falar sobre Schopenhauer e Wagner, e eletinha que faz-lo to claramente quanto possvel. De ambos, pois, tratadiferentemente o nosso escrito. A discusso pormenorizada se encontrano aforismo 99, em torno do final do segundo livro. Tambm esseaforismo Nietzsche alterou e retocou at o final.

    O aforismo traz o ttulo: Ospartidriosde Schopenhauer (des-taque meu). A diferenciao entre o prprio filsofo e seus adeptos per-

    mite a Nietzsche destacar o que atraira a ele, isto , o rigoroso sensodos fatos de Schopenhauer, sua boa vontade, clareza e razo (...) a forta-leza de sua conscincia moral-intelectual (...) sua lisura em coisas deigreja e do Cristianismo(17). Ou suas imortais doutrinas da intelectualidadeda intuio, da natureza instrumental do intelecto e da no-liberdade davontade. Tudo isso, podemos inferi-lo, o prprio Nietzsche, entrementestornado mestre, o aprovava antes como depois. Todavia, ele o faziainequivocamente, porque entrevira os traos problemticos deSchopenhauer e os amputara de si: a metafsica da vontade, o carteraparencial da individualidade e do desenvolvimento, o culto do gnio, atica da compaixo.

    Agora, pois, (brochura 8, p. 120) Nietzsche adensou suas conside-raes sobre esses pontos, de incio parcimoniosas, por meio de vriasinseres. Na verso publicada, a passagem se tornou ainda mais por-menorizada. Os excessos e vcios [...de um] filsofo seriam sempre

    aceitos primeiramente e transformados em coisa de f. Desse modo, ospartidrios de Schopenhauer teriam apreendido e desenvolvido aindamais justamente essas tendncias rejeitadas por Nietzsche. Isso valeriatambm para o mais clebre dos schopenhauerianos vivos, RichardWagner. Com este Nietzsche selara um lao de amizade, h mais deuma dcada, sob o signo da comum venerao por Schopenhauer. Seuscaminhos, assim podemos inferir, tinham que se separar novamente,porque Wagner se inclinava cada vez mais para determinados exces-

    sos do filsofo; Nietzsche, ao contrrio, para o rigoroso senso dos

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    fatos. Tambm a caracterizao do desenvolvimento de Wagner,Nietzsche retocou at o final. Se, de incio, ele o deixara ser enganado

    por discpulos de Hegel, no curso das correes ele inseriu, para tan-to, o prprio Hegel (brochura 8, p. 121). A passagem, mantida nogeral: Sim, Wagner seguiu seu mestre mesmo nos caminhos marginais,sim, para baixo, at nas idiossincrasias singulares de seu gosto, ele aassinalou para correo numa folha adicional, que, porm, no foi conser-vada (idem). Na verso publicada, ingressa em seu lugar a seguinte for-mulao garrida: E para isso o estimulou no apenas a inteira secretapompa dessa filosofia, que teria estimulado tambm um Cagliostro: tam-

    bm os gestos singulares e afetos do filsofo foram sempre sedutores.Com a suposio de quejamais novamente iria retornar a Schopen-

    hauer e Wagner, Nietzsche se enganou fundamentalmente. Ambos o ocu-param at o final, particularmente Wagner(18). Contudo, no aforismo 99de nosso escrito, ele formulou pela primeira vez a perspectiva decisiva,na qual ele perseverou desde ento: as duas estrelas-guia de sua juven-tude teriam sido naturezas discrepantes. O que neles era grande e indi-cador de futuro, Nietzsche t-lo-ia conservado e desenvolvido; seus er-ros e faltas, ele os teria superado.

    Abstract:Through an analysis of the process of corretion made by Nietzscheand Heinrich Kselitz (Peter Gast) in the proof-sheet for The Gay Science, thisarticle clarifies some important traces of Nietzsches literary style and relatesthem to essential philosophical views of this book.Key-words:science literature style master/disciple

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    Notas

    (1) N. T:Druckbogen, no original. Trata-se do termo tcnico para provas de impresso,consistentes em grandes folhas tipogrficas impressas, de cuja dobradura e separa-o resultam oito folhas impressas na frente e no verso, correspondendo, portanto, nototal a 16 pginas, ligadas sob a forma de brochura, na qual o autor empreende ascorrees e ajustes em relao ao manuscrito original. Dessa fase inicial de correoresulta uma verso tipogrfica mais depurada, em alemoDie Fahne, que, novamen-te revista pelo autor, d origem matriz tipogrfica para a impresso definitiva dotexto. A composio material de um livro resulta finalmente da encadernao dessas

    brochuras. Tais esclarecimentos visam propiciar uma imagem mais concreta do pro-cesso de trabalho de que se ocupa o presente artigo.

    (2) Apenas esporadicamente considerados nos comentrios daKSA. de se esperar dovolume de comentrios da KGW V/3, em cuja preparao colaborei, uma anlisevalorativa mais minuciosa. Ele ser publicado previsivelmente em 98/99.

    (3) Tratei desse contexto pormenorizadamente no ensaio A Gaia Cincia. Entre filosofiados espritos livres e nova doutrina (Na traduo, optou-se por filosofia dos espritoslivres para traduzirFreigeisterei expresso cunhada a partir do termo nietzscheanoFreier Geist (esprito livre), caracterstico do assim chamado perodo intermedirio

    de sua filosofia, usualmente delimitado pelos comentadores entreHHe Za- NT.). In:Nietzsche Studien (26) 1997, p. 165-83.

    (4) Somente em GC341 ele anunciou o pensamento como experimento. Cf. a esse res-peito meu ensaio: O instante colossal, in:Nietzsche Studien(18), 1989, p. 317-7.

    (5) N.T: Trata-se aqui (Satz) da composio tipogrfica da folha matricial de impresso,que corresponder s respectivas pginas definitivas do futuro livro.

    (6) O texto impresso contm apenas uch o B no foi inserido. Este erro de impres-so no est corrigido.

    (7) Nietzsche acrescentou manualmente em baixo, direita, como mote, o poemaDer du

    mit dem Flammenspeere(Tu com a lana flamejante?) ... e embaixo, esquerda adatao Gnova 1882, que se tornou, no texto impresso Gnova, Janeiro de 1882.

    (8) A brochura 16 j contm a nova numerao dos aforismos, tornada necessria emrazo da insero por Nietzsche de 7 aforismos suplementares no final do terceirolivro. Poderia tratar-se, nesse caso, de um exemplar de reviso: a primitiva brochura16 poderia ter sido ultimada aproximadamente no final de julho tambm. Essa hip-tese se apia nas seguintes consideraes: Nietzsche houvera de ter solicitado exem-plares de reviso das brochuras 13-16, para se certificar que a numerao dos aforismosdesde o incio do quarto livro tinha sido corrigida. Naturalmente, ele retornou essas

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    brochuras (provavelmente com correes adicionais) imediatamente tipografia.Unicamente a brochura 16 permaneceu com ele, por circunstncias no passveis dereconstituio. Sobre isso, a correspondncia no oferece, todavia, nenhuma

    elucidao. Trata-se, portanto, apenas de uma suposio (embora bem fundamentada).(9) Tambm nas pginas 129 e 139 do segundo exemplar incompleto da brochura 9

    Nietzsche consignado como destinatrio.(10) Em duas passagens, o manuscrito contm anotaes manuais de um terceiro punho,

    que indicam os lugares de encontro (Fundorte) dos textos suprimidos por Nietzschenos volumes de pstumos da assim chamadaEdio em oitavo maior: isso concerneaos (suprimidos) aforismos 268 (p. 194) e 336 (p. 242). A caligrafia e a parfrase napgina 194 permitem concluir por A. Seidl, que em 1898/99 atuava como editor noArquivo-Nietzsche. Agradeo a Marie-Luise Haase, que me auxiliou na identifica-

    o das caligrafias de Gast e Seidl.(11) Nietzsche tomou muito a srio as propostas de correo e complementao de Gast.

    Raramente as rejeitou de todo. Quando no as retomava, ele se deixava incitar porelas a alteraes prprias, nas quais fazia livre uso das de Gast.

    (12) No primeiro (completo) exemplar da brochura 9 deixa-se perceber que assim setenha passado pelo menos em alguns casos, provavelmente, porm, em regra. Trata-se aqui de um exemplar corrigido por Gast, no qual Nietzsche anotou em seguidacorrees suplementares. Na primeira pgina dessa brochura (p. 129), Nietzscheanotou finalmente acima, direita: Pronto para impresso ! Friedrich Nietzsche.

    Em regra, Nietzsche teria, depois disso, remetido as brochuras de volta para Teubner.Nesse caso, ele manifestamente no fez isso, presumivelmente porque ainda noestava satisfeito com o aforismo 107 (pp. 132 s.), com o qual havia de concluir osegundo livro. Nietzsche ter tido por base seu prprio exemplar de correo paraulterior reelaborao quando j tivesse efetuado alteraes e adendos de maior en-vergadura e quando nenhum ou poucos erros de impresso tivessem que ser corrigi-dos.

    (13) Das brochuras 13-16, por causa da numerao alterada dos aforismos.(14) E. Biser ocupou-se com isso em vrios trabalhos.

    (15) Na brochura 13, impressa anteriormente ampliao por Nietzsche do encerramen-to do terceiro livro, esse aforismo trazia o nmero 278.

    (16) Em dois movimentos, cujos graus intermedirios no considero aqui mais de perto.(17) A propsito, na reelaborao Nietzsche substituiu Cristianismo por Deus cris-

    to (brochura 8, p. 120). Ele provavelmente se lembrava que Schopenhauer puderarecuperar para o Cristianismo facetas inteiramente positivas, todavia numa inter-pretao atesta, isto , prescindindo da representao crist de Deus.

    (18) Cf. a respeito: Wagner e Nietzsche. Estaes de um encontro epocal. ed. D.Borchmeyer e J. Salaquarda, Frankfurt am Main, 1994.