a Última entrevista de manuel bandeira

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A ltima entrevista de Manuel BandeiraNuma tarde de maro de 1964, trs dcadas depois de ter publicado o poema que lhe consagraria: Vou-me embora pra Pasrgada, o poeta Manuel Bandeira fala ao jornalista Pedro Bloch, em sua ltima longa entrevista

Ningum sabe explicar como aquele homem, castigado, tantos anos, pela doena, no amargou. Disse Mrio de Andrade: Eu fico espantado de como h certos homens no mundo! Tu, por exemplo. Essa sublime bondade inconsciente, bem no ntimo, de quem nem sabe que bom. Vou alm. Acho que Manuel Bandeira nem tem plena conscincia de sua imensa envergadura de gente e poeta.Acho que, talvez, os quatro anos que viveu em sua terra, Recife, que explicam, mais que os males, o homem de hoje. Diante de mim est o gigante de nossa poesia: Manuel Bandeira, em seu modesto apartamento, atulhado de livros e calor humano, na Avenida Beira-Mar, no Rio.Do bem que lhe querem todos, da ternura que desperta em quem dele se aproxima, basta dizer que Mrio de Andrade s o tratava de Manu ou Manuelucho; Rodrigo Melo Franco de Andrade lhe deu o nome de Manula; Madame Blank, sua amiga de almoo de todo o dia, o trata de Man. Creio que nunca ningum teve tanto apelido, tanta gente querendo cheg-lo sua amizade. (Edio e seleo de poemas Carlos Willian Leite).

Manuel Bandeira:Do Recife tenho quatro anos de existncia consciente, mas ali est a raiz de toda a minha poesia. Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida que vejo o vazio dos ltimos.

Rua da UnioComo eram lindos os montesdas ruas da minha infnciaRua do Sol(Tenho medo que hoje se chamede dr. Fulano de Tal)Atrs de casa ficava a Rua da SaudadeManuel Bandeira:Meu nome todo Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho. Fisicamente me pareo com mame (D. Francelina): mope, dentua como eu; no resto sou como meu pai

Que importa a paisagem,a Glria,a baa,a linha do horizonte? O que eu vejo o becoManuel Bandeira:Sabe, que meu av reprovou Castro Alves num exame? Ermos trs irmos. Os mais velhos (Antnio e Maria Cndida) j no existem. Sa do Recife com 2 anos. Deles nada recordo. Viemos pro Sul e com 6 (quando da revolta da Esquadra, em 1892) meu pai nos levou de volta pra casa de meu av. Fui com 6 e voltei ao Rio com 10. Mas esses quatros anos Essa coisa de viver, na infncia, num lugar e, depois, ser arrancado dele, isola essa vida dentro da vida da gente.

Hoje no ouo mais as vozesdaquele tempoMinha avMeu avTotnio RodriguesTomsiaRosaOnde esto todos eles? Esto todos dormindoEsto todos deitadosDormindoProfundamente.Manuel Bandeira:Papai, no Rio, no teve sorte. Aos 40 anos passou por crise religiosa. Dele recordo com intensidade o dia em que exclamou olhando, pra mim, menino de 6 anos: impossvel que este menino no saiba ler. Trancou-se comigo na biblioteca, por duas horas. Sa de l lendo. Outra coisa que me tocou fundo foi ouvi-lo exclamar ao morrer: Meu Jesus Cristinho! E eu conto no poema: Mas Jesus Cristo nem se incomodou!

Vai por cinquenta anosQue lhes dei a norma:Reduzi sem danosA formas a forma.Manuel Bandeira:Foi o livro de DAmicis [Edmondo De Amicis, escritor italiano] uma das coisas que mais me marcaram. Ali descobri a literatura e a vida. Isto no Recife. No Rio, eu e meu irmo fomos fazer exame para o Ginsio Nacional (Pedro II). Na casa das Laranjeiras, onde morvamos, nunca faltou po; mas a luta era dura. Nunca briguei com moleque da rua, mas me impregnei do realismo do povo. (Mais tarde conheci a Lapa.) Comecei fazendo versos pretensamente humorsticos. Com a puberdade, versos de amor. Meus namoros eram sempre calados, namoro de caboclo. E eu, menino ainda, vivia amando moas j feitas. Um dia perguntei a meu tio se Vsper rimava com Cadver. Ele disse que no. Descobri, mais tarde, que meu ouvido que estava certo. Tanto se rima consoantemente como toantemente e de outras maneiras. Aprendi que a boa rima a que traz ao ouvido uma sensao de surpresa, no de raridade, seno de uma espcie de resoluo musical. Como nas Pombas [poema de Raimundo Correia]: Raia, sangunea e fresca, a madrugada. Entre outros eu tinha como colegas do Pedro II o professor [Antenor] Nascentes, o Artur Moses, o Souza Silveira, o Lopes da Costa. Acabei bacharel em Letras.

caro rudo embalador,Terno como a cano das amas!Canta as baladas que mais amas,Para embalar a minha dorManuel Bandeira:Como ainda no havia um bom curso de arquitetura no Rio (eu queria ser arquiteto) fui estudar em So Paulo. Aos 18 anos, nas frias do 1 ano para o 2 da Politcnica, fiquei tuberculoso. Durante muitos anos vivi provisoriamente. Hemoptises, tosse, febre, desesperana. Andei de ceca em meca, alopatia, homeopatia, e em junho de 1913 segui para um sanatrio suo (Clavadel). Meu pai ganhava um conto e novecentos. A passagem, ida e volta, custava 900 mil ris. O sanatrio, com balco e quarto, 360 mil ris que valiam 600 francos suos. L fiquei at outubro de 1914. Com a guerra o franco dobrou e eu no pude continuar l. Foi quando perguntei ao Dr. Bodmer: Quanto tempo de vida o senhor me d? A resposta: O senhor tem leses teoricamente incompatveis com a vida, mas nenhum sintoma alarmante. Pode durar uns cinco dez anos. Calcule! (Ento, doutor!, no possvel tentar o pneumotrax? No. A nica coisa a fazer tocar um tango argentino.)

Febre, hemoptise, dispnia e suores noturnos.A vida inteira que podia ter sido e que no foi.Tosse, tosse, tosse.Manuel Bandeira:Na Sua, conheci, como companheiro de sanatrio, o poeta Paul luard e Gala [Gala Dal], que veio a ser sua esposa e, atualmente, a mulher de Salvador Dal.

No quero mais saberdo lirismoque no libertao.Manuel Bandeira:Voltei. Mal tinha dado pra conhecer Paris. S 44 anos depois pude voltar Europa. Aqui no Rio eu ficava at tarde, deitado na praia, no Leme, diante das recriminaes de todos. Em 1917 publiquei meu primeiro livro, A Cinza das Horas, 200 exemplares me custaram 300 mil ris. Em Carnaval (publicado em 1919), depois, eu dizia: Quero beber! Cantar asneiras!. Pois um crtico observou: Conseguiu plenamente o que queria. Nestes dois volumes e em Ritmo Dissoluto esto poemas feitos em estado de lucidez. A partir de Libertinagem que me resignei condio de poeta. Tomei cedo conscincia de que era um poeta menor, conscincia de minhas limitaes. Devo dizer que aprendi muito com os maus poetas: o que devemos evitar.

Ningum passa na estrada.Nem um bbado.No entanto h seguramente por elauma procisso de sombras.Sombras de todos os que passaram.Os que ainda vivem e os que j morreram.Manuel Bandeira:Ao voltar da Sua eu era um invlido. Basta dizer que papai passou pra mim o montepio de 500 mil ris. Depois dos 50 que eu pude comear a trabalhar, a ganhar a vida. Fiscal de ensino. Depois fui lecionar Literatura no Pedro II, at 1942. San Tiago Dantas, posteriormente, me convidou para ensinar Literatura Hispano-Americana na Faculdade de Filosofia, onde permaneci at 1956. Traduzi muito, fiz muita crnica, crtica musical, crtica de arte. Mas, durante a minha doena, dependi de meu pai (at que morreu em 1921) e do montepio. Por falar em crtica musical, ocorre-me que sempre fui muito sensvel ao desenho e msica. Na verdade, fao versos porque no sei fazer msica. Quando morei na Rua do Curvelo conheci melhor Ribeiro Couto, que me aproximou da nova gerao literria do Rio e de So Paulo: Ronald, lvaro Moreyra, Di Cavalcanti, Mrio e Oswald de Andrade. Em 1921 Mrio veio ler aqui sua Pauliceia Desvairada. Foi a ltima influncia que recebi. O que veio depois me encontrou calcificado. Tambm no quis participar da Semana da Arte Moderna. Pouco me deve o movimento. O que devo a ele enorme. Mas eu falava de Ribeiro Couto, um dos responsveis pela minha entrada para a Academia. No tempo da Rua do Curvelo era ele quem me ajudava a ajustar-me ao mundo dos sos, porque a doena gerara em mim um sentimentalo.

Andorinha l fora est dizendo: Passei o dia toa, toa!Andorinha, andorinha,minha cantiga mais triste!Passei a vida toa, toaManuel Bandeira:No. Nunca fui um antiacadmico. O problema que eu gostava de tomar minhas licenas com a lngua. No aceito que no se possa dizer me d isso, me d aquilo se at o Laet [Carlos de Laet] dizia. Nada mais gostoso que: pra mim brincar. Todos os brasileiros deviam querer falar como os cariocas que no sabem gramtica. Ele j mo deu horrvel! Horrveis tambm so qui e alhures. A Rua do Curvelo me ensinou muitas coisas. Foi ali que, vendo os moleques de rua, reaprendi os caminhos da infncia. A mim sempre agradou o coloquial e at o baixo calo.

Meu corao est sedentoDe to ardido pelo pranto.Dai um brando acompanhamento cano do meu desencanto.Manuel Bandeira:Em 1921, papai morto, continuei vivendo com 500 mil ris. Outro dia, fui comprar um queijo: custava 550! Em 1940, houve vaga na Academia, Ribeiro Couto voltou carga. Eu, inspetor de ensino, tinha perdido o montepio: os 500 mil ris exatos com que a Academia me acenava. Juntei o meu desejo de segurana ao respeito pela Academia e venci o medo de conspurc-la com os meus pronomes. (Fora dali, onde s tenho amigos diletos, fao programas e crnicas para a Rdio Ministrio da Educao.)

que na tua voz selvagem,Voz de cortante, lgida mgoa,Aprendi na cidade a ouvirComo um eco que vem na aragemA estrugir, rugir e mugir,O lamento das quedas-dgua!Manuel Bandeira:Um dos mais chegados o Rodrigo Melo Franco de Andrade. Almoo todos os dias com uma cara amiga, de sadios 84 anos, Madame Blank. J ao Drummond eu quero um bem imenso, mas nunca sentei na mesa dele pra almoar. Nem ele na minha. Nos admiramos muito, mas no temos convivncia domstica.

Se queres sentir a felicidade de amar,esquece a tua alma.A alma que estraga o amor.S em Deus ela pode encontrar satisfao.No noutra alma.S em Deus ou fora do mundo.As almas so incomunicveis.Manuel Bandeira:A minha poesia tem tomado um aspecto, assim de preparao para a morte. Estou com 77, vou fazer 78 em abril. Nasci a 19 de abril de 1886. Me sinto cansado. Fao algumas outras coisas, mas s no cho da poesia piso com alguma segurana. Estou perdendo a curiosidade. Prefiro ficar em casa a viajar. Do que imaginei ver s Ronda Noturna, de Rembrandt, ultrapassou a expectativa. As obras de arte, Vnus de Milo e o resto, de to divulgadas, j no constituem mais surpresa. No tenho a menor curiosidade pelo Oriente. Me sinto cem por cento Ocidental.

Provinciano que nunca soubeEscolher bem uma gravata;Pernambucano a quem repugnaA faca do pernambucano;Poeta ruim que na arte da prosaEnvelheceu na infncia da arte,E at mesmo escrevendo crnicasFicou cronista de provncia.Manuel Bandeira:Posso dizer que pouco se me d, quando morrer, morrer completamente para sempre na minha carne e na minha poesia. Entretanto, j no ser possvel, para alguns de meus versos, aquela serena paz da morte absoluta, no por virtude prpria, mas por culpa de Villa-Lobos (o primeiro a musicar verso meu), Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez, Jaime Ovalle, Radams e tantos outros. Gosto de ser traduzido, de ser musicado, de ser fotografado. Criancice? Deus conserve minhas criancices.

Morrer.Morrer de corpo e de alma.Completamente.Morrer sem deixar o triste despojo da carne,A exangue mscara de cera,Cercada de flores,Que apodrecero felizes! num dia,Banhada de lgrimasNascidas menos da saudadedo que do espanto da morte.Manuel Bandeira:Espiritualmente minha filosofia a de Einstein. Minha religio disse ele consiste numa humilde admirao pelo esprito superior e sem limites que se revela nos menores detalhes que possamos perceber com nossos frgeis espritos. Essa profunda convico sentimental da presena de uma razo poderosa e superior revelando-se no incompreensvel universo eis a minha ideia de Deus. Quando li isto, disse comigo mesmo: exatamente o que eu sinto. No compreendo a negao absoluta de Deus. Como que veio essa coisa que no comea nem acaba? Tempo infinito Espao infinito Uma coisa absurda que, no entanto, existe!

O pardalzinho nasceuLivre. Quebraram-lhe a asa.Sacha lhe deu uma casa,gua, comida e carinhos.Foram cuidados em vo:A casa era uma priso,O pardalzinho morreu.O corpo Sacha enterrouNo jardim; a alma, essa voouPara o cu dos passarinhos!Manuel Bandeira:No sei por que, hoje em dia, tenho pudor de fazer poemas de amor. Muitas vezes, isto se reflete na minha poesia. No digo tudo, por discreto e a muitos parece hermtico. como se no quisesse que os outros entrassem na minha confidncia, no meu segredo. Amei, sim. Mas casar no pude. Primeiro era a sade. Depois Minhas finanas. Meus amores no podiam levar-me ao casamento com quinhentos mil ris de montepio.

Aquele pequenino anel que tu me deste, Ai de mim era vidro e logo se quebrouAssim tambm o eterno amor que prometeste, Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.

Entrevista concedida ao jornalista Pedro Bloch e publicada na revista Manchete, em maro de 1964, e republicada no livro Pedro Bloch Entrevista, Bloch Editores, em 1989.