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1�
A verdade é que, se o velho major Dover não tivesse tido morte
súbita nas corridas de Taunton, Jim nunca teria sequer vindo para
Thursgood. Chegou a meio do semestre, sem entrevista – estava-
-se nos finais de Maio, coisa que, contudo, ninguém diria, face ao
tempo –, recrutado através de uma das mais manhosas agências
especializadas em fornecer professores aos colégios, a fim de aguen-
tar a disciplina do velho Dover até se encontrar alguém adequado.
– Um linguista – anunciou Thursgood à sala de reuniões –, uma
medida temporária –, e afastou a madeixa de cabelo que lhe caía
para a testa, num gesto de autodefesa. – Priddo. – Soletrou o nome:
– P -r -i -d… – o Francês não era a disciplina de Thursgood, de forma
que consultou o papelinho – e -a -u -x, nome próprio James. Penso que
ele nos servirá muito bem até Julho.
Os professores não tiveram dificuldade em interpretar os sinais.
Jim Prideaux era um branco pobre da comunidade docente. Per-
tencia ao mesmo triste grupo que a antiga Mrs. Loveday, a qual
tinha um casaco de caracul e fizera as vezes de divindade menor até
passar cheques sem cobertura, ou que o falecido Mr. Maltby, o pia-
nista que fora chamado do ensaio do coro para ajudar a polícia nas
suas investigações e, tanto quanto se sabia, continuava ainda hoje a
ajudá -la, visto que a arca de Maltby permanecia na cave, aguardando
instruções. Vários elementos do corpo docente, mas especialmente
Marjoribanks, eram de opinião que se abrisse a arca. Diziam que
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continha notáveis tesouros desaparecidos: o retrato encaixilhado
numa moldura de prata da mãe libanesa de Aprahamian, por exem-
plo; o canivete do exército suíço de Ingram e o relógio de pulso da
governanta. Thursgood, porém, opôs resolutamente uma inexpres-
siva cara de carrasco às suas súplicas. Tinham passado apenas cinco
anos desde que herdara o colégio do pai, mas já lhe haviam ensinado
que há coisas que é melhor guardar a sete chaves.
Jim Prideaux chegou numa sexta -feira de chuva torrencial. A chuva
escorria como o fumo de uma arma pelas pardas cristas dos Quan-
tocks, para depois se precipitar pelos desertos campos de críquete
até ao arenito das fachadas que se desfaziam. Chegou logo a seguir ao
almoço, ao volante de um velho Alvis vermelho, a rebocar uma cara-
vana em segunda mão que em tempos fora azul. Os inícios de tarde
em Thursgood são tranquilos, uma breve trégua na contínua luta de
cada dia de escola. Os rapazes vão repousar nos seus dormitórios e o
corpo docente instala -se na sala de reuniões, com um café à frente,
a ler os jornais ou a corrigir os trabalhos dos rapazes. Thursgood
lê um romance à mãe. De todo o colégio, por conseguinte, só o
pequeno Bill Roach assistiu realmente à chegada de Jim, viu o vapor
a regurgitar do capô do Alvis ao descer, arquejante, o esburacado
caminho de acesso, com os limpa -vidros a trabalhar a toda a veloci-
dade e a caravana atrás, a sacolejar pelas poças.
Naquele tempo Roach era um caloiro, tido por bronco, quando
não mesmo deficiente. Thursgood era o seu segundo colégio em dois
períodos. Era uma criança gorducha que sofria de asma e passava
grande parte dos seus períodos de repouso ajoelhado aos pés da
cama, olhando fixamente através da janela. A mãe vivia opulenta-
mente em Bath; o pai era unanimemente considerado o mais rico do
colégio, uma distinção que custava caro ao filho. Oriundo de um lar
desfeito, Roach era também um observador nato. Segundo a obser-
vação de Roach, Jim não parou nos edifícios escolares, continuando,
ao invés, pela rampa fora até ao pátio das cavalariças. Já conhecia a
disposição do local. Roach concluiu posteriormente que ele devia
ter feito um reconhecimento ou consultara mapas. Mesmo ao chegar
ao pátio, não parou: continuou pela relva molhada sem afrouxar,
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a fim de manter a velocidade adquirida. Depois galgou o cabeço e
mergulhou de frente na Cova, desaparecendo de vista. Roach estava
mesmo a ver que a caravana tombaria ao chegar à borda, mas em
lugar disso limitou -se a levantar a traseira e a desaparecer como um
coelho gigantesco na sua toca.
A Cova faz parte do folclore de Thursgood. Fica numa parcela
de terreno inculto entre o pomar, a casa da fruta e as cavalariças.
À vista, não passa de uma depressão no solo, revestida de relva, com
pequenos cabeços do lado norte, todos eles mais ou menos da altura
de um rapaz e cobertos de tufos de moitas que no Verão se tornam
esponjosos. São estes cabeços que conferem à Cova a sua especial
virtude como recreio e também a sua reputação, que varia com a
fantasia de cada geração de rapazes. São os vestígios de uma mina de
prata a céu aberto, diz um ano – e cava entusiasticamente à procura
da fortuna. São uma fortaleza britânica do tempo dos romanos, diz
outro – e encena batalhas com paus e mísseis de argila. Para outros
a Cova é uma cratera de bomba do tempo da guerra e os cabeços são
corpos sentados que ficaram soterrados na explosão. A verdade é
mais prosaica. Há seis anos, e pouco antes da sua abrupta fuga com
uma recepcionista do Castle Hotel, o pai de Thursgood lançara um
apelo para se fazer uma piscina e persuadira os rapazes a cavarem
um grande buraco com uma extremidade mais funda e outra menos.
Todavia, o dinheiro obtido nunca fora suficiente para financiar a
ambição, pelo que se dissipara noutros esquemas, tais como um
projector novo para a aula de Educação Visual e um projecto para
criar cogumelos nas caves do colégio. E até, diziam os mais cruéis,
para guarnecer um ninho destinado a certos amantes ilícitos quando
acabaram por fugir para a Alemanha, a terra natal da donzela.
Jim desconhecia estas associações. O certo é que, por mera sorte,
escolhera o único recanto do colégio de Thursgood que, na opinião
de Roach, era dotado de propriedades sobrenaturais.
Roach aguardou à janela, mas nada mais viu. Tanto o Alvis como
a caravana estavam ocultos e, se não fossem os sulcos vermelhos
molhados na relva, bem poderia perguntar a si mesmo se não teria
sonhado tudo aquilo. Os sulcos, porém, eram reais, de maneira que,
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quando a campainha tocou para o fim do repouso, calçou as galochas
e calcorreou o terreno até ao cimo da Cova, espreitando para baixo,
e lá estava Jim, envergando uma gabardina militar e um chapéu
verdadeiramente extraordinário, de aba larga como um capacete de
explorador, mas felpudo, tendo um dos lados jovialmente espetado
para cima, à maneira de um pirata, pelo qual a água escorria como
se fosse uma caleira.
O Alvis estava no pátio das cavalariças; Roach nunca soube por que
artes Jim o tinha tirado da Cova, mas a caravana estava lá em baixo, no
sítio que devia ser o extremo mais fundo, assente em plataformas de
tijolo desbotado, e Jim encontrava -se sentado no estribo a beber por
uma caneca de plástico verde e a esfregar o ombro direito como se
tivesse batido com ele em algum lado, enquanto a chuva escorria pelo
chapéu. Depois o chapéu ergueu -se e Roach deu por si a olhar para
um rosto vermelho extremamente feroz, tornado ainda mais feroz
pela sombra da aba e por um bigode castanho a que a chuva dava o
aspecto de presas. O resto da cara estava sulcado de gretas irregu-
lares, tão fundas e tortuosas que Roach concluiu, noutro dos seus
rasgos de génio imaginativo, que Jim passara em tempos muita fome
num sítio tropical e se enchera a partir de então. O braço esquerdo
continuava cruzado sobre o peito e o ombro direito permanecia
bem levantado de encontro ao pescoço. No entanto, a desordenada
figura no seu conjunto mantinha -se imóvel, lembrando um animal
paralisado contra o seu pano de fundo: um veado, pensou Roach,
num impulso esperançoso; qualquer coisa nobre.
– Quem diabo és tu? – perguntou uma voz muito militar.
– Roach, senhor. Sou dos novos.
Durante um momento mais, sob a sombra do chapéu, o rosto de
tijolo perscrutou Roach. Depois, para seu intenso alívio, as feições
suavizaram -se num sorriso lupino, e a mão esquerda, ainda agar-
rada ao ombro direito, retomou a sua lenta massagem, enquanto ao
mesmo tempo o homem conseguia beber um longo trago da caneca
de plástico.
– Um dos novos, hem? – repetiu Jim para a caneca, continuando
a sorrir. – Ora aí está o que se chama um golpe de sorte.
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A Toupeira
Levantando -se então e voltando as costas arqueadas a Roach,
Jim entregou -se à tarefa daquilo que parecia ser um aturado exame
dos quatro apoios da caravana, um exame muito crítico que envolvia
muito baloiçar da suspensão e muita inclinação da cabeça estranha-
mente coberta, bem como a colocação de diversos tijolos em dife-
rentes ângulos e sítios. Entretanto, a chuva primaveril matraqueava
sobre tudo: o casaco, o chapéu e o tejadilho da velha caravana. Roach
reparou que durante todas estas manobras o ombro direito de Jim
não se movera nem um pouco, mantendo -se, ao invés, espetado,
numa posição elevada de encontro ao pescoço, como uma rocha
debaixo da gabardina. Por conseguinte, perguntou a si mesmo se
Jim seria uma espécie de corcunda gigante e se as costas de todos os
corcundas doeriam tanto como as de Jim. Reparou também, como
observação de âmbito geral, como uma coisa a guardar, que as pes-
soas que sofriam das costas davam passadas largas; era uma coisa que
tinha que ver com o equilíbrio.
– Um dos novos, hem? Pois bem, eu não sou dos novos – prosse-
guiu Jim, com uma entoação bem mais amistosa, ao mesmo tempo
que puxava por um apoio da caravana. – Eu sou um dos velhos. Tão
velho como Rip van Winkle1, se queres que te diga. Mais velho. Tens
amigos?
– Não, senhor – respondeu simplesmente Roach, no tom apático
que os estudantes empregam sempre para dizer «não», deixando
qualquer resposta afirmativa para os seus interrogadores. Jim, porém,
não teve qualquer reacção, de forma que Roach sentiu repentina-
mente uma estranha mistura de afinidade e de esperança.
– O meu outro nome é Bill – disse. – Baptizaram -me Bill, mas
Mr. Thursgood trata -me por William.
– Bill, hem? Bill dos bilas. Nunca te chamaram isso?
– Não, senhor.
– É um bom nome, seja como for.
– Sim, senhor.
1 Personagem que dá o título a um conto de Washington Irving publicado em 1819. Encon-trando uns anões que lhe dão uma poção a beber, adormece profundamente, para acordar apenas vinte anos mais tarde. (N. do T.)
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– Conheço uma porção de Bills. Todos bons.
Com isto, por assim dizer, estavam feitas as apresentações. Jim
não disse a Roach para se ir embora, de modo que Roach se manteve
na borda da Cova, a perscrutar o que se passava lá em baixo através
dos óculos cobertos de chuva. Os tijolos, notou com temor res-
peitoso, tinham sido furtados da vedação dos pepinos. Alguns já
estavam soltos e Jim devia ter soltado mais alguns. Parecia a Roach
uma coisa maravilhosa que alguém acabado de chegar a Thursgood
fosse tão confiante que furtasse partes da estrutura do colégio para
seu uso pessoal, e duplamente maravilhoso que Jim tivesse ligado
uma mangueira à boca -de -incêndio para se abastecer de água, pois
aquela boca -de -incêndio era objecto de uma regra especial do colé-
gio: o simples facto de se lhe tocar era uma infracção punida com
castigos corporais.
– Ouve lá, Bill. Por acaso não terás um berlinde?
– Um quê, senhor? – perguntou Roach, apalpando os bolsos, com
ar aturdido.
– Um berlinde, meu velho. Um berlinde redondo de vidro, uma
bolinha. Será que os rapazes já não jogam ao berlinde? Quando eu
andava na escola, jogávamos.
Roach não tinha nenhum berlinde, mas Aprahamian recebera
uma colecção inteira enviada por via aérea de Beirute. Roach levou
cerca de cinquenta segundos a correr de volta ao colégio, a asse-
nho rear -se de um a troco das mais desvairadas garantias e regressar,
ofegante, à Cova. Ali chegado, hesitou, porque, no seu entender, a
Cova pertencia já a Jim e Roach precisava de autorização para ali
descer. Jim, porém, desaparecera no interior da acanhada caravana,
de forma que, depois de aguardar um momento, Roach empreendeu
cautelosamente a descida do talude e estendeu o berlinde através da
porta. Jim não o avistou de imediato. Estava a beberricar pela caneca
e a olhar pela janela para as nuvens negras que corriam para um
lado e para outro por cima dos Quantocks. Conforme Roach notou,
aquele movimento para beber era na realidade bastante difícil, pois
Jim não podia engolir com facilidade estando de pé; tinha de incli-
nar todo o tronco deformado para trás, a fim de conseguir o ângulo
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certo. Entretanto a chuva voltava a cair com força, tamborilando na
caravana como se fosse cascalho.
– Senhor – disse Roach, mas Jim não fez qualquer movimento.
– O problema dos Alvis é não terem molas, cos diabos – disse
finalmente Jim, mais para a janela do que para o seu visitante. – A pes-
soa conduz com o traseiro em cima da linha branca, hem? Deixa
qualquer um aleijado. – E, inclinando novamente o tronco, bebeu.
– Sim, senhor – disse Roach, muito surpreendido pelo facto de
Jim pressupor que ele sabia conduzir.
Jim tirara o chapéu. Usava o cabelo ruivo muito curto; havia
zonas em que alguém o tinha cortado muito rente com a tesoura.
Essas zonas eram sobretudo de um dos lados, de forma que Roach
depreen deu que fora Jim que cortara o cabelo a si próprio, com o
braço são, o que o tornava ainda mais assimétrico.
– Trouxe -lhe um berlinde – disse Roach.
– Foste muito simpático. Obrigado, meu velho. – Pegando no
berlinde, rolou -o lentamente sobre a palma da mão áspera e coberta
de pó, e Roach percebeu de imediato que ele tinha muito jeito para
tudo; que era o tipo de homem que convivia bem com os utensílios e
ferramentas em geral. – Não está nivelada, Bill – confidenciou, ainda
concentrado no berlinde. – Está torta. Como eu. Observa – e virou -se
premeditadamente para a janela maior. Havia uma tira de alumínio
a orlar a parte inferior, ali posta para reter a condensação. Poisando o
berlinde nela, Jim ficou a vê -lo rolar até à extremidade e cair no chão.
– Torta – repetiu. – Inclinada para ré. Não pode ser, pois não?
Eh, eh, onde é que foste parar, ó parvo?
A caravana não era um lugar acolhedor, notou Roach, incli nando-
-se para recuperar o berlinde. Podia pertencer a quem quer que fosse,
embora estivesse escrupulosamente limpa. Um beliche, uma cadeira
de cozinha, um fogão de bordo, uma botija de gás. Nem sequer uma
fotografia da mulher, pensou Roach, que nunca conhecera nenhum
homem solteiro, à excepção de Mr. Thursgood. As únicas coisas
pessoais que conseguiu localizar foram uma mochila pendurada
na porta, um estojo de costura arrumado ao lado do beliche e um
chuveiro improvisado feito com uma lata de bolachas perfurada e
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esmeradamente soldada ao tecto. E na mesa uma garrafa de uma
bebida incolor, gim ou vodca, porque era isso que o pai bebia quando
Roach ia ao apartamento dele nos fins -de -semana das férias.
– No sentido leste -oeste parece bem, mas no norte -sul está indu-
bitavelmente torta – declarou Jim, verificando o peitoril da outra
janela. – Em que é que tu és bom, Bill?
– Não sei, senhor – disse Roach, desajeitadamente.
– Tens de ser bom nalguma coisa, com certeza; toda a gente é.
Que tal no futebol? És bom no futebol, Bill?
– Não, senhor – respondeu Roach.
– És um marrão, então? – perguntou descuidadamente Jim, ao
mesmo tempo que se abatia com um breve grunhido na cama e bebia
uma golada da caneca. – Não pareces um marrão, devo dizer – acres-
centou cortesmente. – Embora sejas um solitário.
– Não sei – repetiu Roach, e deu meio passo em direcção à porta
aberta.
– Qual é a coisa em que és melhor, então? – Bebeu outra longa
golada. – Hás -de ser bom em qualquer coisa, Bill; toda a gente é.
Aquilo em que eu era melhor era a esbanjar dinheiro. Saúde.
Ora, esta era uma pergunta desastrada para fazer a Roach preci-
samente naquela altura, uma vez que ocupava a maior parte das suas
horas de vigília. Havia pouco tempo, aliás, ele começara a duvidar
se teria algum objectivo na vida. Fosse no trabalho, fosse nos diver-
timentos, considerava -se seriamente inepto; até a rotina diária do
colégio, tal como fazer a cama e arrumar a roupa, parecia estar para
além das suas capacidades. Além disso, faltava -lhe religiosidade; fora
a velha Mrs. Thursgood quem lho dissera: fazia demasiadas caretas na
capela. Penitenciava -se muito por estes defeitos, mas penitenciava -se
acima de tudo pelo fim do casamento dos pais, do qual se devia ter
apercebido previamente, tomando medidas para o evitar. Perguntava
até a si mesmo se não seria mais directamente responsável; se, por
exemplo, não seria anormalmente perverso, preguiçoso ou fomen-
tador de desunião e se não fora o seu mau carácter que dera azo à
desavença. No último colégio tentara explicá -lo gritando e simu-
lando ataques de paralisia cerebral, doença que afectava a sua tia.
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Os pais conferenciaram, como faziam frequentemente à sua maneira
sensata, e mudaram -no de colégio. Por conseguinte, aquela pergunta
fortuita, que lhe fora dirigida na caravana por uma criatura que estava
pelo menos a meio caminho da divindade – um parceiro na solidão,
para mais – deixou -o repentinamente muito perto da catástrofe.
Sentiu o calor invadir -lhe o rosto; viu os óculos embaciarem -se e
a caravana começar a dissolver -se num mar de sofrimento. Se Jim
reparou nisso, Roach nunca o soube, porque de súbito ele lhe virara
as costas amarrecadas, afastara -se para a mesa e estava a servir -se da
caneca de plástico, ao mesmo tempo que proferia frases redentoras.
– És bom observador, seja como for, sempre te digo isso de graça,
meu velho. Nós, os solitários, somo -lo sempre: não temos ninguém
com quem contar, hem? Ninguém mais me viu. Pregaste -me um
bom susto ali em cima, estacionado no horizonte. Pensei que eras
um bruxo. É o melhor observador de toda a unidade, o Bill Roach,
aposto. Desde que tenha os óculos postos. Hem?
– Sim – concordou gratamente Roach. – Pois sou.
– Bem, nesse caso podes ficar a observar – ordenou Jim, enfiando
novamente o chapéu de explorador na cabeça – e eu vou até lá fora
nivelar os apoios. Fazes isso?
– Sim, senhor.
– Onde está o raio do berlinde?
– Aqui, senhor.
– Grita quando ele se mexer, entendido? Para norte, para sul, para
onde quer que role. Percebeste?
– Sim, senhor.
– Sabes para que lado é o Norte?
– É para ali – disse prontamente Roach, espetando o braço numa
direcção ao acaso.
– Pronto. Bem, grita quando ele se mover – repetiu Jim, desapa-
recendo na chuva. Um momento mais tarde, Roach sentiu o chão
a oscilar debaixo dos pés e ouviu outro rugido de dor ou de raiva,
enquanto Jim lutava com um apoio recalcitrante.
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No decurso daquele período de Verão, os rapazes prestaram a
Jim o tributo de lhe pôr uma alcunha. Ensaiaram várias antes de se
darem por satisfeitos. Experimentaram «Pára», que traduzia algo de
militar que havia nele, o seu ocasional praguejar, perfeitamente ino-
fensivo, e as suas solitárias deambulações pelos Quantocks. Mesmo
assim, «Pára» não pegou, de forma que ensaiaram «Pirata» e por uns
tempos «Gulache», este último devido ao seu gosto pela comida
picante, ao cheiro a caril, a cebola e a paprica que os recebia em
baforadas quentes quando passavam em fila pela Cova a caminho das
vésperas. «Gulache» pelo seu francês perfeito, que era considerado
como tendo o seu quê de lamechas. Spikely, do 5.o B, conseguia
imitá -lo na perfeição: «Tu ouviste a pergunta, Berger. Para onde está
Emile a olhar?» – com um safanão convulsivo da mão direita – «Não
fiques a olhar para mim embasbacado, meu velho, que eu não sou
nenhum bruxo. Qu’est -ce qu’il regarde, Emile dans le tableau que tu as sous
le nez? Mon cher Berger, se não deitas rapidamente cá para fora uma
frase desenxovalhada em francês, je te mettrai tout de suite à la porte, tu
comprends, grande monstro?»
Estas terríveis ameaças nunca eram, porém, concretizadas, nem
em inglês nem em francês. De uma maneira peculiar, contribuíam na
realidade para a aura de brandura que rapidamente passou a cercá-
-lo, uma brandura só possível em grandes homens vistos através dos
olhos de rapazes.
Contudo, «Gulache» tão -pouco os satisfez. Faltava -lhe a sugestão
de força contida. Não levava em conta o apaixonado inglesismo de
Jim, que era o único assunto com o qual era certo e sabido que ele
perdia tempo. Bastava o Monstro Spikely arriscar uma observação
depreciativa sobre a monarquia, enaltecer os encantos de um qual-
quer país estrangeiro, de preferência dos quentes, para que Jim
corasse violentamente e lhe pespegasse um responso de uns bons
três minutos sobre o privilégio de nascer inglês. Sabia que eram
provocações, mas não conseguia deixar de ripostar. Muitas vezes ter-
minava a sua homilia com um esgar pesaroso e murmurava referên-
cias a manobras de diversão que nada tinham de divertido, quando
certas pessoas tivessem de vir fazer trabalho extra e perdessem o
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seu futebol. Mas a Inglaterra era o seu amor; quando tocava a isso,
ninguém sofria por ela.
– É o melhor lugar no raio do mundo inteiro! – vociferou certa
vez. – Sabes porquê? Sabes porquê, monstro?
Spikely não sabia, de modo que Jim agarrou num lápis de cera
e desenhou um globo. Para oeste, a América, disse, cheia de tolos
gananciosos que desonram sua herança. Para leste, a China -Rússia;
não estabelecia distinção: fatos -macaco, campos de prisioneiros e o
raio de uma longa marcha para sítio nenhum. No meio…
Acertaram finalmente em «Rino».
Por um lado era um jogo de palavras com «Prideaux»; por outro
aludia ao seu gosto por viver do que a terra dava e ao seu apetite
pelo exercício físico, que constantemente nele observavam. Tiri-
tando na fila para o chuveiro logo ao princípio da manhã, viam
o Rino a descer pesadamente Combe Lane com uma mochila às
costas arqueadas, regressando da sua marcha matinal. Quando
se iam deitar, podiam vislumbrar através do tecto de plástico do
recreio dos do 5.o a sombra solitária de Rino a investir incansavel-
mente contra a parede de cimento. E por vezes, nas tardes amenas,
observavam -no secretamente das janelas do dormitório, entregue
ao golfe, que jogava com um ferro extremamente velho, zigueza-
gueando pelos campos de jogos fora, frequentemente depois de
lhes ter feito uma leitura de um livro de aventuras extremamente
inglês – Biggles, Percy Westerman ou Jeffrey Farnol –, tirado à sorte
da sórdida biblioteca. A cada tacada ficavam à espera do grunhido
que acompanhava o início do movimento de rotação do corpo para
trás, e raramente ficavam desapontados. Anotavam meticulosa-
mente as pancadas. No desafio de críquete do corpo docente fazia
25 antes de se despedir com uma bola lançada deliberadamente alta
a Spikely na posição de square leg. «Apanha, monstro, apanha -a…
Anda. Boa, Spikely, lindo menino: é para isso que aí estás.»
Reconheciam também que, apesar do seu pendor para a tole-
rância, entendia muito bem o que ia na mente dos prevaricadores.
Houve vários exemplos disso, mas o mais revelador ocorreu uns dias
antes do final do período, quando Spikely descobriu no cesto dos
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John le Carré
papéis de Jim um rascunho do enunciado do exame do dia seguinte
e o alugou aos candidatos a cinco dinheiros novos por um certo
espaço de tempo. Houve diversos rapazes que pagaram o seu xelim
e passaram uma noite atormentada a decorar as respostas à luz da
lanterna, nos respectivos dormitórios. Quando o exame saiu, porém,
Jim apresentou um enunciado bem diferente.
– Podem olhar para este de graça – berrou, ao sentar -se. E, depois
de abrir bem alto o Daily Telegraph, entregou -se calmamente aos mais
recentes conselhos dos bruxos, que eles interpretavam como signifi-
cando quase toda a gente com pretensões intelectuais, mesmo que
escrevesse a favor da rainha.
Houve finalmente o incidente da coruja, que ocupou um lugar
à parte na opinião que tinham dele, uma vez que envolveu a morte,
um fenómeno ao qual as crianças reagem diversamente. Como o
tempo permanecia frio, Jim comprou um balde de carvão para a sala
de aula e numa quarta -feira acendeu -o na lareira, sentando -se de
costas para o calor, a ler um dictée. Começou por cair alguma fuligem,
que ele ignorou; a seguir despenhou -se uma coruja -das -torres em
tamanho natural, que sem dúvida fizera o ninho lá em cima, durante
muitos Invernos e Verões sem limpeza de chaminés sob a direcção
de Dover, e agora, afugentada pelo fumo, ficara atordoada e negra, de
embater até à exaustão no cano da chaminé. Caiu em cima das brasas
e abateu -se, reduzida a um montinho, no soalho de madeira, a agitar-
-se e a estrebuchar, para depois se quedar como uma emissária do
Diabo, encolhida mas a respirar, de asas abertas, a olhar directa-
mente para os rapazes através da fuligem que lhe empastava os
olhos. Não houve ninguém que não se assustasse; até Spikely, um
herói, se assustou. Ninguém a não ser Jim, que daí a um segundo
enrolava o animal e saía com ele pela porta fora sem uma palavra.
Não ouviram nada, embora se tivessem posto à escuta como passa-
geiros clandestinos, até ao som de água a correr vindo do fundo do
corredor, indicando que Jim estava evidentemente a lavar as mãos.
«Foi fazer uma mija», comentou Spikely, o que mereceu um riso
nervoso. Ao saírem em fila da sala de aula, contudo, descobriram a
coruja ainda enrolada, claramente morta e à espera do enterro, no
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cimo do monte de húmus ao lado da Cova. Tinha o pescoço torcido,
como os mais valentes verificaram. Só um couteiro, declarou Sideley,
que tinha um, saberia matar tão bem uma coruja.
No seio da restante comunidade de Thursgood, a opinião acerca
de Jim era menos unânime. O fantasma de Mr. Maltby, o pianista,
custava a morrer. A governanta, tomando o partido de Bill Roach,
proclamava -o heróico e precisado de cuidados: era um milagre que
ele se governasse com aquela corcunda. Marjoribanks dizia que ele
tinha sido atropelado por um autocarro durante uma bebedeira.
Foi também Marjoribanks, no desafio do corpo docente em que Jim
tanto se distinguiu, que chamou a atenção para a camisola. Marjori-
banks não era jogador de críquete, mas tinha ido até lá para assistir,
na companhia de Thursgood.
– Achas que aquela camisola é legítima – perguntou numa voz
aguda e trocista – ou achas que ele a fanou?
– Isso é muito injusto, Leonard – admoestou -o Thursgood, dando
palmadas no flanco do seu labrador. – Morde -o, Ginny, morde no
homem mau.
Quando Thursgood chegou ao seu gabinete, porém, o riso desa-
parecera e começou a sentir -se extremamente nervoso. Com falsos
diplomados de Oxford conseguia ele lidar, da mesma maneira que no
seu tempo conhecera professores de Clássicas que não sabiam grego
e sacerdotes que não tinham estudado Teologia. Homens desses,
quando confrontados com provas do seu embuste, iam -se abaixo,
punham -se a chorar e iam -se embora, ou ficavam com o salário redu-
zido para metade. Mas homens que omitiam proezas genuínas, esses
eram uma raça com que ele nunca se deparara, mas da qual já sabia
que não gostava. Depois de consultar o anuário das universidades,
telefonou para a agência: um tal Mr. Stroll, da casa Stroll & Meddley.
– O que é que pretende precisamente saber? – perguntou
Mr. Stroll com um tremendo suspiro.
– Bem, precisamente, nada. – A mãe de Thursgood estava a bordar
num modelo e parecia não ouvir. – O que se passa é só que quando
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pedimos um curriculum vitae escrito gostamos que esteja completo.
Não gostamos de lacunas. Isto quando pagamos o serviço.
Nesta altura Thursgood deu por si a albergar uma dúvida tola: se
não teria acordado Mr. Stroll de um sono profundo ao qual agora
tivesse voltado.
– Um sujeito muito patriota – observou por fim Mr. Stroll.
– Eu não o contratei pelo seu patriotismo.
– Esteve no estaleiro – continuou a sussurrar Mr. Stroll, como atra-
vés de pavorosas inalações de fumo de cigarro. – De cama. Coluna.
– Pois. Mas presumo que não tenha passado os últimos vinte e
cinco anos inteiros no hospital. Touché – murmurou para a mãe,
cobrindo o bocal com a mão, e mais uma vez lhe perpassou pelo
espírito que Mr. Stroll voltara a pegar no sono.
– Só o tem aí até ao final do período – pronunciou suavemente
Mr. Stroll. – Se não simpatiza com ele, ponha -o com dono. O senhor
pediu temporário, e temporário tem. Disse barato, e barato tem.
– Mesmo assim – retorquiu resolutamente Thursgood. – Eu
paguei -lhe vinte guinéus de honorários; o meu pai foi seu cliente
durante muitos anos e eu tenho o direito a certas garantias. O senhor
escreveu aqui… posso ler -lho?… escreveu aqui: «Antes da lesão, vários
cargos no estrangeiro de natureza comercial e de prospecção.» Ora
bem, não se pode dizer que isto seja uma descrição elucidativa do
emprego de uma vida inteira, pois não?
Entregue ao seu bordado, a mãe fez um aceno de concordância.
– Não é mesmo – secundou -o em voz alta.
– Essa é a minha primeira questão. Permita -me que continue.
– Não exageres, querido – alertou -o a mãe.
– Acontece que eu sei que ele esteve em Oxford em 1938. Porque
não acabou o curso? O que é que correu mal?
– Parece -me recordar que houve um interregno mais ou menos
por essa altura – disse Mr. Stroll, decorrida mais uma eternidade.
– Mas quer -me parecer que o senhor é demasiado jovem para se
lembrar disso.
– Não pode ter estado todo o tempo na prisão – disse a mãe após
um longo silêncio, sempre sem levantar a vista do seu bordado.
33
A Toupeira
– Em algum lado terá estado – disse Thursgood taciturnamente,
olhando para lá dos campos fustigados pelo vento, na direcção
da Cova.
Durante todas as férias de Verão, enquanto passava incomo-
damente de lar para lar, afeiçoando -se a um e rejeitando o outro,
Bill Roach preocupou -se com Jim: se lhe doeriam as costas; como
arranjaria ele dinheiro, agora que não tinha ninguém para ensinar e
apenas metade do salário de um período para se governar; pior do
que tudo, se lá estaria quando se iniciasse o novo período, porque
Bill tinha um pressentimento, que não era capaz de descrever, de que
Jim vivia tão precariamente na superfície do mundo que podia a qual-
quer momento cair dele no vazio; receava que Jim fosse como ele,
sem gravidade natural que o segurasse. Recordava as circunstâncias
do seu primeiro encontro, e em particular a pergunta de Jim acerca
da amizade, e sentia um terror salutar de que, tal como defraudara
os pais em amor, também tivesse defraudado Jim, em grande parte
devido à desproporção de idades. E que, por conseguinte, Jim tivesse
passado adiante e andasse já à procura de um companheiro noutro
sítio, perscrutando outros colégios com os seus olhos claros. Ima-
ginava também que, tal como ele, Jim tivera um grande afecto que
o defraudara e que ansiava por substituir. Mas aqui a especulação
de Roach esbarrava num beco sem saída: não fazia ideia de como os
adultos se amavam entre si.
Havia muito pouco que ele pudesse fazer em termos práticos.
Consultou um livro de Medicina e interrogou a mãe acerca de cor-
cundas, e apetecia -lhe imenso, mas a tal não se atreveu, roubar uma
garrafa da vodca do pai e levá -la para Thursgood como isco. Quando,
por fim, o motorista da mãe o deixou na detestada escadaria, não
parou para dizer adeus, desatando a correr a sete pés até o cimo
da Cova, e lá estava, para sua incomensurável alegria, a caravana de
Jim no mesmo local ao fundo, um tudo -nada mais suja do que antes
e com uma leira recente de terra ao lado, que ele imaginava estar
destinada a verduras de Inverno. E Jim sentado no estribo, a erguer
34
John le Carré
o rosto num sorriso rasgado como se tivesse ouvido Bill chegar e
houvesse aprontado o seu sorriso de boas -vindas antes de ele apa-
recer na borda.
Nesse mesmo período, Jim inventou uma alcunha para Roach.
Deixou o «Bill» e passou a chamar -lhe «Jumbo». Não deu razões para
tal, e Roach, como é vulgar no caso dos baptismos, não estava em
posição de objectar. Em contrapartida, Roach autonomeou -se guar-
dião de Jim; um guardião -regente, era como ele encarava o cargo; um
substituto para ocupar o lugar do amigo de Jim desaparecido, quem
quer que esse amigo fosse.