a teoria social e a esfera pública_craig calhoun

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· ~. ~ I, I t- i í i"--- 1 i I l j J I r r 1 I t t I ; 15 A Teoria Social e a Esfera Pública CRAIG CALHOUN Nos últimos anos, o papel social da sociologia tem vindo a ser definido cada vez mais de acordo com os termos e parâmetros da ciência social aplicada. O apoio estatístico para a tomada de decisões de política pública, a previsão de tendências demográficas e a assistên- cia a projectos de engenharia social têm sido actividades apontadas como fundamentais quando se tenta perspectivar a missão da sociologia fora da cidadela do mundo universitá- rio. No entanto, por muito úteis que os contributos específicos da investigação social ernpí- rica e da sociologia aplicada possam ser, as ênfases dominantes têm sido unilaterais, por negligenciarem quer a natureza e potencial da vida pública, quer a importância de outras versões da sociologia, mais críticas e melhor preparadas do ponto de vista teórico. O papel público da sociologia (tanto ao nível teórico, como ernpírico) pode manifestar-se na estru- turação do discurso público democrático, não se restringindo em exclusivo às actividades técnicas dos peritos. Esse papel pode ainda alargar-se no sentido de sujeitar os conceitos, as categorias de entendimento adquiridas e as categorias culturais da vida quotidiana e do dis- curso público a uma reavaliação teórica crítica. Esta questão não diz respeito apenas a um exercício crítico puramente abstracto, a ser concretizado a expensas da investigação ernpí- rica. Pelo contrário, constitui-se como prioridade para qualquer teoria que se deseje imbri- car profundamente com o saber empírico e com novas formas de pesquisa, sem no entanto remeter o conhecimento social para a função de mera (re)afirmação das condições ou cate- gorias de entendimento existentes. Este conjunto de questões foi desenvolvido, em meados do século xx, por um grupo de teorizadores do social portador de uma perspectiva crítica. A este grupo, e ao seu traba- lho, viria a chamar-se Escola de Frankfurt. Os teóricos desta Escola, liderados por Max Hor- kheimer, Theodor Adorno e outros, e apoiados numa tradição intelectual extremamente rica (que incluía, em especial, Marx, Freud, os idealistas alemães e os seus críticos, como Nietzs- che), desenvolveram, entre outras coisas, uma forte concepção programática do papel poten- cial que uma teoria crítica do social poderia desempenhar no âmbito do discurso público auto-reflexivo característico de uma sociedade democrática. A teoria substantiva que eles mesmos propuseram não constitui, longe disso, a última palavra a este respeito. Mostrou-se que contém uma série de falhas; para além disso, teóricos que valorizam outros tópicos - como porventura de forma mais notável o caso dos teóricosfas) feministas, que sublinham a importância do género sexual enquanto categoria social constitutiva - desenvolveram tra- .:.' ". ~- :

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15A Teoria Social e a Esfera Pública

CRAIG CALHOUN

Nos últimos anos, o papel social da sociologia tem vindo a ser definido cada vez maisde acordo com os termos e parâmetros da ciência social aplicada. O apoio estatístico para atomada de decisões de política pública, a previsão de tendências demográficas e a assistên-cia a projectos de engenharia social têm sido actividades apontadas como fundamentaisquando se tenta perspectivar a missão da sociologia fora da cidadela do mundo universitá-rio. No entanto, por muito úteis que os contributos específicos da investigação social ernpí-rica e da sociologia aplicada possam ser, as ênfases dominantes têm sido unilaterais, pornegligenciarem quer a natureza e potencial da vida pública, quer a importância de outrasversões da sociologia, mais críticas e melhor preparadas do ponto de vista teórico. O papelpúblico da sociologia (tanto ao nível teórico, como ernpírico) pode manifestar-se na estru-turação do discurso público democrático, não se restringindo em exclusivo às actividadestécnicas dos peritos. Esse papel pode ainda alargar-se no sentido de sujeitar os conceitos, ascategorias de entendimento adquiridas e as categorias culturais da vida quotidiana e do dis-curso público a uma reavaliação teórica crítica. Esta questão não diz respeito apenas a umexercício crítico puramente abstracto, a ser concretizado a expensas da investigação ernpí-rica. Pelo contrário, constitui-se como prioridade para qualquer teoria que se deseje imbri-car profundamente com o saber empírico e com novas formas de pesquisa, sem no entantoremeter o conhecimento social para a função de mera (re)afirmação das condições ou cate-gorias de entendimento existentes.

Este conjunto de questões foi desenvolvido, em meados do século xx, por um grupode teorizadores do social portador de uma perspectiva crítica. A este grupo, e ao seu traba-lho, viria a chamar-se Escola de Frankfurt. Os teóricos desta Escola, liderados por Max Hor-kheimer, Theodor Adorno e outros, e apoiados numa tradição intelectual extremamente rica(que incluía, em especial, Marx, Freud, os idealistas alemães e os seus críticos, como Nietzs-che), desenvolveram, entre outras coisas, uma forte concepção programática do papel poten-cial que uma teoria crítica do social poderia desempenhar no âmbito do discurso públicoauto-reflexivo característico de uma sociedade democrática. A teoria substantiva que elesmesmos propuseram não constitui, longe disso, a última palavra a este respeito. Mostrou-seque contém uma série de falhas; para além disso, teóricos que valorizam outros tópicos -como porventura de forma mais notável o caso dos teóricosfas) feministas, que sublinhama importância do género sexual enquanto categoria social constitutiva - desenvolveram tra-

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dições alternativas de teoria crítica igualmente fecundas. Neste capítulo, não tentarei passarem revista todas as variedades disponíveis de teoria crítica. Em vez disso, concentrar-me-ei naEscola de Frankfurt. Julgo poder assim apreender melhor, não só o que a teoria crítica é, mastambém o modo como se poderá constituir em parte integrante de uma vida pública poten-cialmente transformadora e criativa.

Para além de revisitar as contribuições de Horkheimer, Adorno e de outras figuras-chaveda Escola, discutirei o contributo recente feito por Jürgcn Habermas para o desenvolvimentode uma teoria social do discurso público e para a conceptualização da própria esfera pública.Considerando que a Escola de Frankfurt não é «proprietária» da ideia de teoria crítica e quedeixei indicado um leque alargado de outras tradições teóricas, cuja importância na esferapública contemporânea podemos avaliar como sendo pelo menos tão grande quanto a da pró-pria Escola, tentarei, apesar de tudo, sugerir alguns objectivos genéricos para uma teoria socialque se deseje fixar enquanto discurso público.

A Insuficiência dos Factos

Um filisteu foi definido como «alguém que se compraz em viver num mundo total-mente inexplorado» (Davies, 1968, p. 153). O filisteu não é necessariamente passivo; ele (ouela) pode até estar activamente envolvidota) na fabricação de objectos ou na obtenção deuma determinada posição no mundo. O filisteu caracteriza-se por ser a-reflexivo e por serprimordialmente utilitário nas suas orientações. A associação bíblica do termo evoca um ini-migo superior em número, em cujas mãos receamos cair. Hannah Arendt (1954 [1977,p. 201]), por seu turno, diz-nos que o termo foi usado pela primeira vez no seu sentidomoderno para distinguir entre town e gown no calão estudantil das cidades universitárias ale-mãs.' Se, de início, este vitupério mais não era que uma forma de pedantismo intelectual(combinado, possivelmente, com um receio genuíno do ataque alheio), a noção de filisteuadquiriu cambiantes mais subtis à medida que os não intelectuais começaram a manifestarum interesse considerável pela «cultura», em particular enquanto material para a construçãode uma nova forma de status de elite.? O interesse não académico pela vida do espírito, emesmo pelas questões da cultura, tem sido intermitente e desequilibrado. Na verdade, reve-lou-se algo exagerado o receio de que os objectos culturais e os produtos intelectuais pudes-sem ser reduzidos ao seu estrito valor de uso ou mercantilizados através de um processo gros-seiro de apropriação por parte dos que estavam de fora do círculo universitário. Todavia, aomesmo tempo, tem crescido um certo filistinismo no interior das próprias universidades.Não é só o facto de a vida académica estar muito longe de constituir, em exclusivo, uma vidaconsagrada ao espírito, é sobretudo a utilização de objectos culturais (por exemplo, as publi-cações) com o objectivo de promoção profissional que exerce um efeito de distorção, talvezum efeito gerador de consequências revolucionárias. Para além de ser um erro crasso, estenovo filistinismo mina e corrói o pensamento crítico. Na medida em que a reapropriaçãoda produção cultural vá no sentido de a transformar no meio de acumulação de uma espé-cie de capital académico-profissional, os produtores culturais sentir-se-ao encorajados a acei-tar visões e entendimentos triviais da realidade social. Questionar em demasia os entendi-mentos convencionais do mundo poderia afastar aqueles de cuja «compra» de produtos

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culturais os intelectuais dependem para continuar a acumular capital.ê A questão não é tantoa de os intelectuais mentirem para servir mestres ilegítimos - algo que não farão mais hojedo que em qualquer outra época do passado -, o problema reside na possibilidade de osintelectuais, imbuídos de um espírito de profissionalismo exacerbado, traírem a vocaçãopara explorar o mundo com verdade e abertura.

Apesar de desilusões repetidas, queremos acreditar que um cientista social nunca poderáser um filisteu neste sentido. Com efeito, em certa medida todos os cientistas sociais, assimcomo todos os romancistas e muitos outros, estão envolvidos numa activa exploração domundo. No entanto, para a maioria de nós, e mais para os cientistas sociais do que para osromancistas, as explorações estão limitadas pelas fronteiras do mundo convencionado conhe-cido. Éverdade que descobrimos factos novos, mas estes, à partida, estão subjugados a esque-mas conceptuais que lhes preexistem e que aceitamos como evidências ao abrigo de qualquerquestionamento. Um dos desafios duradouros colocados à ciência social é o de ultrapassar asimples afirmação e reconstituição desse mundo familiar, tarefa que implica reconhecer a pos-sibilidade de existirem alternativas. Novas perspectivas, novas teorias e nova informação ernpí-rica, perrnitir-nos-ão ver como as coisas podem ser diferentes daquilo que à primeira vistaparecem ser, e mesmo como, um dia, poderão vir a ser diferentes daquilo que são. Aprovei-tar tais oportunidades significa, por outro lado, rejeitar o seguinte dilema: ou se aceita quasetudo tal como é, tal como se nos apresenta, ou então entregamo-nos a uma desorganizaçãoradical da realidade, para a qual não existem mapas, sinais ou quaisquer indicações válidas paranos guiar.4

A maior parte da ciência social consiste na descrição do mundo social que nos é fami-liar, embora o coloque em contextos e o descreva com pormenores ligeiramente diferentes -um pouco como aqueles romances que encenam intrigas bastante vulgares, mas em novoscontextos e com novas personagens. Acumulamos factos industriosamente, testamo-los paranos certificarmos da sua solidez, arrumamo-los em padrões identificáveis.> O grosso destaactividade de seriação limita-se à taxonomia, fazendo lembrar as ordenações pré-darwinistasdo universo biológico segundo características fenotípicas. Só ocasionalmente somos levadosa sistematizar de forma mais teórica, tentando captar a existência de uma ordem subjacenteque não possa ser encontrada em quaisquer das características superficiais dos seus objectos.Nada nos estimula mais a arriscar semelhante aventura teórica do que a experiência damudança histórica e da diversidade transcultural.

Nesta acepção, a teoria nunca reside nos factos em si mesmos, nem mesmo naquelesque demonstram a conexão estatística entre várias ocorrências. David Hume, na distinçãoque efectuou entre correlação simples e verdadeira causalidade, mostrou - quase contra sipróprio, ou por outra, mais a Kant do que a si próprio - o lugar fulcral ocupado pela teo-ria e os limites do empirismo como fonte de determinado tipo de conhecimento. Ao mesmotempo, alertou para a indeterminação da teoria, para a impossibilidade de algum dia sealcançarem provas definitivas baseadas em dados empíricos. Hume virou-se da teoria para ahistória em busca de um guia para o entendimento e acção humanos. A teoria não consti-tui, apesar de tudo, a única forma de disponibilizar orientações para a acção; a linguagem ea cultura quotidiana, ou de senso comum, habilitam-nos com possibilidades classificatóriasenormes. Todavia, à medida que nos deslocamos no sentido da perspectiva analítica, tor-

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namo-nos, pelo menos implicitamente, um pouco mais teóricos. Este percurso é normal-mente identificado como capacidade de raciocínio causal, mas a nossa ideia de teoria precisaabrir espaço para acomodar também o tipo de raciocínio envolvido nas narrativas.

Não existe qualquer motivo para que as narrativas se limitem a simples constatações deprogresso ou sequência; porque não poderão ser também descrições do modo como os acon-tecimentos, ou as acções passadas limitam, orientam e constrangem os acontecimentos e acçõessubsequentes? O analista pode teorizar mudanças na estrutura da «intriga» sem introduzirnoções de causalidade per se.6 A teoria é importante enquanto forma de construção e escrutí-nio sistemático do conhecimento (no caso da teoria social, do conhecimento sobre a vidasocial). No que diz respeito à forma, esta pode ser causal ou narrativa; cada uma destas moda-lidades indicia abordagens e respostas diferentes às questões da generalização e do particula-rismo. Embora o raciocínio causal possa ser aplicado a acontecimentos discretos, em ciênciasocial é mais comum utilizá-lo para referir classesde fenómenos, tratadas como internamenteequivalentes, que influenciam classes semelhantes de fenómenos equivalentes (de qualquerinstância de x é possível esperar um aumento em y, na ausência de factores intervenientes).De modo inverso, a narrativa é descrita com frequência como inerentemente particularizante,embora na narrativa (1) as particularidades possam ser globais (lembrem-se as narrativas dahistória mundial), e (2) as comparações entre narrativas facilitem uma forma de conheci-mento geral, trans-situacional.

O mundo que os cientistas sociais procuram compreender não é simplesmente empí-rico, constituído por factos e proposições; é também o mundo da experiência fenomenoló-gica, do juízo reflexivo e da razão prática. Reconhecê-lo torna mais difícil, mas porventuramais interessante, o desafio enfrentado pelos teóricos do social desde os tempos de Hume,qual seja o de desenvolver formas sistemáticas de compreender o mundo que lhe façam jus-tiça enquanto objecto de experiência e acção - mas também de observação - e que, sendorigorosas, reconheçam o seu próprio encastramento na história. -

Isto indica-nos que algumas das concepções vulgares de teoria são enganadoras. Em par-ticular, constitui um erro imaginar a existência de uma teoria totalmente abstracta enquantoo conhecimento empírico seria, de alguma forma, perfeitamente concreto. Esta ideia estáerrada, em ambas as asserçóes.

Em primeiro lugar, as teorias sociais científicas são sempre parcialmente indutivas; nomínimo, pressupõem a existência de alguma informação acerca do modo de funcionamentodo mundo. Para além disso, dependem igualmente da existência de uma orientação para omundo induzida a partir da cultura e da experiência de quem o teoriza (mas que em regranão é explicitada). Para além disso, muitas das melhores teorias são «empiricamente ricas»,isto é, são compilações, não só de proposições formais ou especulações abstractas, mas deexplicações e narrativas muito concretas. Funcionam muito através de analogias empíricas,asserções de similitude ou de contraste, e menos com base em afirmações universalizantesde tipo nomorético.? O grau de riqueza e densidade empírica das teorias mais sugestivaspode ser visto com facilidade se reflectirmos sobre as teorias que se mostraram mais dura-douramente influentes, como por exemplo as de Marx, Weber, Durkheim ou Freud.

Em segundo lugar, a ideia de uma sociologia empírica totalmente concreta e desprovidade teoria é igualmente ilusória. Mesmo quando os investigadores empíricos deixam as suas

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orientações teóricas por explicitar, e reivindicam, como Sherlock Holmes, trabalhar «comnada mais do que os factos», apoiam-se em conceitos, em ideias de causalidade e num enten-dimento tácito da localização das relações empíricas, que não podem ser derivados porinteiro dessa multiplicidade de factos, e que são necessários para construir tanto os própriosfactos, como as explicações. Uma das tarefas mais importantes da sociologia teórica consisteem explicitar, ordenar e tornar consistentes - e abertas ao escrutínio crítico - estas «orien-tações» usualmente dadas como adquiridas pelos investigadores empíricos.

Talvez seja útil clarificar os sentidos em que o termo «teoria» é usado pelos sociólogos- e, na verdade, pela generalidade dos cientistas sociais - para que se perceba melhorcomo as formas habituais de pensar a teoria obscurecem, por vezes, o entendimento ora doque se está a passar na ciência académica, ora da importância da teoria na esfera pública.Numa primeira acepção, o termo «teoria» é por vezes entendido de um modo fortementeempírico para fazer referência a um sistema ordenado de proposições testadas. Quandousada neste sentido, a expressão possui dois elementos principais: (1) proposições poten-cialmente generalizáveis e (2) asserções de âmbito, relativas aos pontos onde estas proposi-ções se ajustam ou não. A generalidade e a cumulatividade constituem os objectivos princi-pais da teoria assim concebida. Esta concepção é muitas vezes apelidada de positivismo, sejapelos seus críticos, seja pelos seus proponentes. Todavia, para nós, esta rotulagem está errada.

O rótulo «positivismo» advém-nos do cientismo dos primeiros teóricos sociais france-ses, tais como Comte, e da crítica de Hegel à «simples positividade», ou seja, a percepção daexistência superficial do mundo, mas não das suas tensões internas. Os teóricos de Frank-fim, em especial Horkheimer e Adorno, combinaram a apropriação da dialéctica hegeliana(que sublinhava o papel da «negação determinada») com a crítica ao empirismo científico eà filosofia do Círculo de Viena (que rotulava o seu trabalho de «positivismo lógico»)."

O positivismo lógico estava longe de constituir um somatório de proposições testadas.Esta corrente desencadeou uma procura, não só da generalização empírica, mas também deconsistência interna e de poder para a expressão lógica (normalmente bastante formal). Mui-tos positivistas lógicos estavam (e estão) interessados nas teorias da física e da matemática,que dificilmente se poderão caracterizar como generalizações empíricas. Se bem que, porexemplo, a teoria da relatividade forneça algumas proposições testáveis, o seu reconheci-mento enquanto teoria «bela» e poderosa ocorreu antes de muitas das suas proposições cen-trais terem podido ser verificadas. Como Karl Popper (1968) - autor que só ambigua-mente integra o cenáculo positivista - resumiu numa bela frase: os cientistas deveriaminteressar-se por «conjecturas e refutações» e não apenas por meras generalizações. Isto con-duz-nos ao segundo sentido de «teoria», o de uma explicação causallogicamente integrada.É somente para este segundo tipo de teoria que critérios de avaliação crítica, tais como parei-mónia de argumentação, poder explanatório ou grau de exaustividade, se tornam relevantes.

Por último, existe um terceiro sentido de teoria, que Robert Merton (1968) tentou dis-tinguir dos dois primeiros (sem, todavia, os diferenciar um do outro de forma adequada).Merton designou este terceiro tipo como «orientação» ou «perspectiva teórica», e não «teo-ria». A ideia que pretendia transmitir prendia-se, penso eu, com as várias maneiras de abor-dar a resolução de problemas e o desenvolvimento de explicações, e não tanto com as solu-ções e as explicações em si mesmas. Por exemplo, ao mesmo tempo que Talcott Parsons tentava

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consolidar o funcionalismo como teoria geral integrada, o uso particular que Merton fazia dofuncionalismo nas teorias de médio alcance constituía uma perspectiva orientadora; algo desemelhante tem sucedido com a generalidade dos usos feitos das tradições teóricas genéricasassociadas a Max Weber ou a Karl Marx. Ao longo dos últimos trinta anos ganhámos cons-ciência de que este terceiro sentido de teoria não poderá continuar na sombra dos outros dois,por duas razões principais. Em primeiro lugar, compreendemos que a linguagem disponibi-lizada pelas denominadas perspectivas teóricas para falar acerca de quaisquer assuntos está elaprópria dependente de teorias. Por outras palavras, se dissermos que o poder e o conflito cum-prem um papel mais importante do que a integração funcional no estabelecimento da ordemsocial, estamos a presumir a partilha de um conjunto de noções sobre a natureza e definiçãode ordem social que só pode ser obtido através de um qualquer nível de teorização, e quepoderá não ser partilhado por outras perspectivas ou formas de compreensão. Em segundolugar, e em parte por razões semelhantes, a generalidade do que assumimos serem os «factos»da ciência social, assim como os critérios de avaliação dos factos e das explicações são em si mes-mos parcialmente construídos através da teoria. A teoria não se limita a decorrer do mundo deobservações empíricas que nos é pré-fornecido de forma indutiva, ou a tentar explicá-lo; elahabilita-nos a realizar observações e a converter, através delas, as impressões sensoriais em com-preensões que podemos apropriar como factos. As teorias oferecem, pois, formas de pensar omundo empírico, modos de realizar observações e formular testes, e não apenas maneiras deexplicar os resultados dos testes e das correlações entre as observações empíricas.

Cada um destes três usos genéricos de teoria fornece indicações sobre o modo como ateoria sociológica informa quer a investigação científica, quer a vida pública, quer a acçãoprática exterior ao mundo académico. Os escritos teóricos disponibilizam repositórios e sín-teses de conhecimento empírico; oferecem explicações e métodos para pensar em novasexplicações. Mas isto faz com que tudo pareça demasiado simples, e encobre o potencialpapel de transformação da teoria na sociologia académica e na vida pública. Para colocar aquestão de outra forma: qualquer das três ideias convencionais sobre o modo de funciona-mento da teoria assume que toda a ciência é ciência normal no sentido kuhniano (1970),ou seja, que toda a ciência procura resolver problemas de explicação a partir de paradigmasestabelecidos, sem no entanto procurar modificá-los. Nenhuma delas deixa espaço para aciência revolucionária ou para pequenas alterações em paradigmas, que poderíamos nãoquerer como revolucionárias, apesar de acarretarem mudanças significativas na forma de vero mundo.

Considere-se, por exemplo, a noção empírica de ciência que apontei em primeiro lugar.Esta noção exprime com fidelidade a medida em que a teoria necessita de se enriquecer comconhecimento empírico, mas apresenta, de forma enganadora, o conhecimento empíricocomo se este pudesse resumir-se a uma simples adição ordenada de proposições verificadas.Em primeiro lugar, esta ideia implicaria supor que as proposições empíricas podem ser cons-truídas independentemente de assunções teóricas (ou metateóricas) ou de formas que nãoestejam encastradas em orientações teóricas específicas (sendo, por isso, de difícil tradução deum discurso teórico para outro). A um nível mais básico, este entendimento não deixa qual-quer espaço para as anomalias e lacunas que, a par das certezas comprovadas, estruturam onosso conhecimento e que, possivelmente, contribuirão muito mais para o seu avanço. Por

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último, embora não menos importante, essa noção não consegue captar a verdadeira medidaem que as melhores teorias não constituem simples arrolamentos de proposições, mas antesconstruções analógicas que comparam, contrastam e identificam similitudes entre casos dosmais variados géneros.

Mesmo quando, de forma mais sofisticada, falamos da teoria enquanto explicação ouenquanto método para construir explicações, estamos ainda longe de fazer justiça ao papel dateoria na constituição do próprio acesso ao mundo social, incluindo os factos acerca dos quaisteorizamos e as acções práticas através das quais testamos proposições e entendimentos. Asideias teóricas, como por exemplo as noções de democracia ou de classe, tornam-se parte domundo que estudamos, alterando-o de tal forma que nunca seremos capazes de alcançar aexaustividade desejada pelas noções convencionais e sebenteiras de acumulação teórica ou darelação entre teoria e pesquisa empírica. Em especial no que se refere à relação entre a teoriae a esfera pública, assim como em relação à ciência mais académica, há que reconhecer que,se bem que as inovações teóricas respondam às dificuldades para compreender o mundosocial ou para oferecer uma orientação normativa para a prática, ao fixarem um determinadoconjunto de problemas, estão, em simultâneo, a criar problemas novos; para além disso,novos problemas poderão despontar à medida que o mundo social se vai alterando. Não setrata, por hipótese, de passar de proposições falsas para proposições verdadeiras; na maioriados casos, transitamos de descrições menos adequadas para descrições mais adequadas, cien-tes de que o critério de adequação está a ser continuamente redefinido, em parte, pelos pro-blemas práticos que comandam a nossa atençâo.? É por isso que as teorias de Weber e Dur-kheim não podem ser comparadas usando em exclusivo, e de modo simplista, o critério daverdade, como se a partir de uma qualquer espécie de dados imaginários pudéssemos decidirque uma está certa e a outra errada. Pelo contrário, elas serão melhor cotejadas em termos dasua utilidade potencial para produzir diferentes tipos de compreensão ou para tornar com-preensíveis diferentes assuntos. 10

Neste sentido, um dos papéis mais importantes da teoria reside em permitir colocartipos de perguntas novos e inesperados. Por exemplo, da teoria de Marx resulta uma cons-telação de questões importantes que não surgiria das teorias de Weber ou de Durkheim.A teoria marxista incita-nos a estudar em que medida os interesses enraizados em relaçõesmateriais de produção moldam. as identidades e as acções pessoais, bem como saber se oreconhecimento desses interesses potencia uma consciência de classe internacional suficien-temente forte para triunfar sobre o nacionalismo. Em alguns casos, podemos aprender maiscom as perguntas colocadas por Marx do que com as suas respostas. Para além disso, as teo-rias permitem-nos colocar questões que não ocorreram ao teórico original- por exemplo,a teoria de Marx sobre a alienação suscitou um questionamento tão insistente das condiçõesdas sociedades comunistas que, alegadamente, os próprios governos marxistas teriam ten-tado suprimir o seu uso.

Mas o facto de as teorias permitirem colocar questões novas não é um mero sinal deque o conhecimento cresce e melhora de forma linear. É, pelo contrário, o resultado dosmuitos pontos de vista vantajosos que se poderão obter quando se fazem incidir diferentesperspectivas sobre um conjunto único de fenómenos sociais. As teorias permanecem múlti-plas, não porque estejamos confusos ou porque ainda não tenhamos atingido uma com-

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preensão cientificamente correcta dos problemas que enfrentamos, mas porque todos os pro-blemas - como todas as pessoas - podem ser vistos de diferentes ângulos. Ou, por outraspalavras, não é possível, em geral, colocar todas as questões interessantes acerca de qualquerfenómeno significativo a partir de uma só teoria, ou mesmo a partir de um conjunto cornen-surável e logicamente integrável de teorias. Registar este ponto foi um dos maiores avançosda física moderna, ligado à teoria da relatividade. Tal como observou Heisenberg, citado nainteressante discussão de Arendt (1954 [1973, p. 44]) acerca do conceito de história:

o resultado mais importante da Hsicanuclear foi o reconhecimento da possibilidade de aplicar, semcontradição, tipos bastante diferentes de leis naturais a um único evento físico. Isto fica a dever-se ao factode, no interior de um sistema de leis baseado em determinadas ideias fundamentais, apenas fazer sentidocolocar questões de certa e determinada forma; sendo assim, esse sistema particular fica apartado de outrosque autorizam a colocação de questões diferentes.

É por esta razão que não podemos esperar que a acumulação teórica resulte no desen-volvimento de uma única teoria totalmente adequada. O campo da teoria sociológica, porforça de uma necessidade feliz, continuará a ser um espaço dialógico de múltiplas teorias,cada uma delas iluminando aspectos da verdade e nenhuma delas a esgotando por completo.Isto significa também que é fundamental observar a teoria ao longo do processo de inter-pretação, de modo a constatar que o seu conteúdo empírico é muitas vezes aplicado deforma mais eficaz através de analogias, de contrastes e de comparações, e não tanto como sede verdades universais ou generalizações de tipo nomotético se tratasse.

A Ideia de Crítica

Em ordem a combater o confortável comprazimento do filisteu (ou dos seus primospositivisto-empiricistas) a teoria social crítica transforma o próprio carácter naturalizado domundo no seu objecto de exploração e análise. Este procedimento sugere uma outra razãopara que a teoria mantenha uma relação complexa com os factos. Não pode simplesmenteresumi-los, ou ser testada por eles, dado ser sempre essencial alguma forma de teoria para aconstituição desses factos. A teoria não se limita a oferecer um guia para a acção no sentidoem que os princípios da engenharia orientam a construção de pontes. Constitui-se comoapoio à reflexão no contexto de circunstâncias mutantes e de possibilidades novas. Ajuda osactores a lidar na prática com a mudança social, capacitando-os a ver, para além do imedia-tismo do que é num dado momento particular, aquilo que poderá vir a ser. Por tal não seentenda uma teorização utópica ou qualquer outro tipo de teorização normativa, apesar damesma capacidade facilitar esta última. Pelo contrário, trata-se de uma capacidade analíticacrucial que põe em evidência os limites do empirismo puro.

A mesma ideia é concebida de forma diferente, mas igualmente clara, pelos teóricos dia-lécticos na esteira de Hegel e pelos teóricos do movimento estruturalista que emana do tra-balho do linguista Ferdinand de Saussure. Para aqueles, a chave encontra-se nas tensões econtradições em que a realidade existente se alicerça, as quais apontam para a localizaçãodesse real no contexto de uma realidade histórica mais vasta e para as possibilidades de o

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transcender. Em relação a estes, a chave consiste em ser capaz de aperceber o padrão subja-cente de causas e constrangimentos, e não apenas o padrão superficial mais contingente doque ocorre na realidade observável. O que acontece na realidade observável reflecte sempreelementos de acaso e arbitrariedade, sendo por isso um indício imperfeito para a estruturade possibilidades que lhe subjaz. É por essa razão que o conhecimento empírico precisa deser complementado pela teoria; é por isso também que a teoria nunca poderá restringir-se auma adição de saber empírico. A lógica desta ideia não é totalmente diversa da lógica darepresentação estatística. Enquanto sociólogos, estamos familiarizados com a distinção entrecasos isolados e padrões estatísticos. Por vezes, somos defraudados por estudantes, colegas epolíticos que insistem em pensar em termos de casos particulares em vez de padrões geraise de probabilidades agregadas. Mas mesmo uma amostra estatística bem construída nãoalcança necessariamente a causalidade subjacente; ela simplesmente representa, com preci-são, o padrão empírico num dado momento do tempo. A causalidade depende sempre de -inferências que vão para além dos próprios «factos» ou números. No sentido mais profundo- teórico -, ela depende do reconhecimento de que os factos poderiam ter sido outrosque não os efectivos, presentes ou «actuais».

O velho contraste entre raciocínio ideográfico (particularista ou singular) e nomotético(geral ou tipificado) não capta com eficácia este ponto. Ele exprime, de forma rigorosa, amedida em que uma escrita típica da história fornece a imagem de uma cadeia de aconteci-mentos conducente a um resultado singular. A história, nesta versão, surge-nos como orelato daquilo que aconteceu. Para além disso, há que procurar um relato do que poderia teracontecido, e fazemo-lo porque essa informação é fundamental para a avaliação das decisõesque se tomam no presente. Mas o raciocínio nomotético tão-pouco exibe esta capacidade.Oferece, pelo menos na maioria das versões e nos termos do Methodenstreit, uma generali-zação dos muitos casos específicos do que aconteceu. I I Na passagem da história empíricapara a teoria está em jogo algo mais do que a simples generalização. Diz-se dos generais que,avisados pela experiência, estão sempre a preparar-se para travar a derradeira guerra. Um dospapéis da teoria é permitir-nos antever em que aspectos poderão as guerras futuras ser dife-rentes das passadas.

Nada existe na complexidade da relação entre factos e teoria que autorize a produção deuma teoria empiricamente menos rica. Atingir a causalidade subjacente não é uma questãode mera abstracção. Para além disso, se a teoria não se mantiver sempre aberta à revisão crí-tica à luz da pesquisa empírica então é provável que se torne frágil, que caia em desuso ou setransforme num repositório de ideologia. Não obstante, o mesmo se aplica à investigaçãoempírica tal como é organizada pela ciência social, assim como à experiência e à acção prá-tica, que constituem igualmente fontes de conteúdo indutivo, de sentido e de elasticidadepara a teoria social. A utilização da teoria para interpelar a naturalização do mundo social epara capacitar os investigadores a ver novos problemas e novos factos implica reconhecer queo conhecimento é um produto histórico e que é sempre, pelo menos em potência, um meiosignificativo de acção histórica.

Se a actividade de teorização permite abrir avenidas de compreensão, então nuncapoderá ser um acto totalmente neutro - é necessariamente perspectivista. Isto obriga aqueleque teoriza a levar a sério as fontes históricas da sua teoria e as orientações da teoria em rela-

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ção ao futuro. Arendt invocou uma parábola de Kafka para descrever a condição inevitávelda teoria - e, com efeito, de todo o pensamento - inscrita na tensão entre passado efuturo. Imaginemos um indivíduo ...12

Ele tem dois antagonistas: o primeiro pressiona-o por trás, desde a origem. O segundo bloqueia o cami-nho à sua frente. Ele confronta os dois. É claro que o primeiro o apoia na luta contra o segundo, porque querempurrá-lo para diante, tal como, da mesma forma, o segundo o apoia na batalha com o primeiro, empur-rando-o por trás. Mas é assim apenas em teoria. Pois não são só os dois antagonistas que estão presentes, elepróprio também está, e quem sabe quais serão as suas reais intenções? O seu sonho, todavia, é que, nummomento inesperado - e isto exigiráuma noite escura como nenhuma outra noite até aqui -, saltará parafora do recinto de combate e será promovido, com base na sua experiência guerreira, à posição de árbitro daluta entre os seus dois antagonistas. (Arendt, 1954; [1977, p. 7].)

o protagonista aufere a sua identidade específica da posição que ocupa no conflito.A ansiada promoção a juiz do combate é um sonho algo perigoso, a que muitos pensadoressucumbiram: o sonho de que a teoria se poderá apartar tanto da análise retrospectiva do pas-sado, que inclua o seu próprio passado, como de um envolvimento prospectivo com o futuro.Não surpreende que os teóricos tenham tido este sonho, esta aspiração de atingir um conheci-mento perfeito. Porém, é crucial que lhe resistam. Abandonar a posição no campo de combatepara ocupar a de árbitro é tentar adoptar o ponto de vista cartesiano que parte de nenhures. Emlugar do triunfo da razão, estaríamos face a um simples, posto que trágico, desconhecimento;em vez de um conhecimento liberto de origens enviesadas e independente de quaisquer objec-tivos práticos, assistiríamos ao triste espectáculo de um conhecimento que não é capaz de com-preender as suas origens ou de assumir a responsabilidade pelos seus efeitos.

Uma parte considerável da boa teoria social é produzida e apresentada como se tivessesido escrita na cadeira do árbitro. A incapacidade de levar tão a sério as próprias condiçõeshistóricas de produção como as suas implicações enquanto acção prática não só irrita aquelesque clamam por mais teoria crítica, como contribui para frequentes desilusões dos teóricosconvencionais, mainstream, ou positivistas que esperam da ciência social um certo tipo deacumulação linear de conhecimento. As autopercepções filosóficas baseadas no empirismo ounoutras metateorias do tipo genericamente designado como positivismo conduzem muitosteorizadores do social a alimentar alguma má-fé em relação às suas próprias realizações. Poralimentarem esperanças na «descoberta» de verdades irítemporais e objectivas, assistem impo-tentes - ou por vezes escouceando de forma defensiva e destrutiva - à apropriação pelosoutros das suas verdades. São incapazes de apreciar a importância do seu trabalho como con-tribuição mais limitada para um processo de diálogo - mais de razão prática e menos deconhecimento puro -, no qual a construção de novos entendimentos é contínua. É comose se identificassem em exclusivo com o Sócrates dos diálogos mais tardios (ou com o Platãodos escritos não dialógicos), que insiste em dominar a discussão e em afirmar toda a verdade;não encontram qualquer virtude na maior modéstia do Sócrates dos diálogos anteriores,quando a sua voz era apenas uma, ainda que brilhante, de entre várias, cada uma das quaisfalando aspectos da verdade e alterando as implicações do que os outros tinham para dizer(a imagem é retirada de Gadamer, 1975).

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Conforme sugere esta metáfora, a questão não é só a da mudança histórica mas tam-bém a da multiplicação das vozes, das diferenças entre uma gama indefinida de diferentesposições-sujeito e de identidades subjectivas. O próprio facto da natalidade, tal como Arendtdesignou o renovar incessante do mundo humano através da produção de seres mortais eúnicos, significa que cada criança vem ao mundo como fonte potencial de novidade radical.No mundo vulgar --- mas nunca totalmente comum - da história humana, isto constituitambém o princípio da diversidade cultural, ainda que esta só floresça com a transmissão deideias novas, o que permite a algumas delas tornarem-se tradições.

Face à nostalgia de alguma teoria por ocupar a posição do árbitro de cadeira, parece serútil dispor de um termo que denote uma teoria autoconsciente acerca da sua historicidade,do seu lugar no diálogo entre e no seio da multiplicidade de culturas, da sua irredutibilidadeaos factos e da sua implicação no mundo prático. Em deferência a Kant, e não só a Hor-kheimer ou Adorno, chamar-lhe-emos teoria crítica.

Kant contrastou com firmeza a sua filosofia com o cepticismo de Hume e com o racio-nalismo dogmático de Leibniz. Para Kant, era tão insustentável a rejeição do projecto quevisava assegurar uma compreensão do mundo e um conhecimento teórico cada vez maiores,como imaginá-lo prejudicado prematuramente. Em vez disso, Kant procurou de modo tãosistemático quanto lhe era possível explorar os limites e os fundamentos das diferentes formasde razão, de conhecimento e de entendimento, levando em consideração não só a razão puramas também a razão prática e o juízo estético. Kant não terá, porventura, alcançado umsucesso em toda a linha; de facto, subestimou a medida em que a sua teoria - como todasas outras - se encontrava encastoada na história e na cultura, não lhe podendo saltar porcima ou passar por baixo. Hegel procurou, de uma certa forma, historicizar e socializar Kant;Durkheim, tentou fazê-lo de uma outra forma. Nos nossos dias, não é por acaso que tantoPierre Bourdieu (em «The Categories of Professorial Judgement, or The Conflicting Facul-ties») como Michel Foucault (em «What Is Enlightenrnent?») se decidiram por evocar Kantnos seus títulos, assim como em certos pontos do seu pensamento. 13 Jürgen Habermas, emespecial no seu trabalho mais recente, surge cada vez mais como um ético neo-kantiano.

Kant é uma figura útil para nos lembrar também quão errado será desenhar fronteirasultradefinidas entre o Iluminismo e o movimento romântico (ou entre o moderno e o pós--moderno). Kant, que tanto ajudou a nomear como a tornar completo o Iluminismo, admi-rava, acima de qualquer outro, Rousseau, cujo busto dominava a sua secretária. E, no entanto,de todos os pensadores de Setecentos, Rousseau foi o que mais antecipou o Romantismo.Numa época em que os autoprocIamados pós-modernos flagelam o Iluminismo como fim-dação de uma consciência moderna repressiva, vale a pena lembrar que, no seu tempo, os phi-losophes eram tão inimigos da complacência filistina como os românticos o foram uma gera-ção ou duas mais tarde. E se a teoria crítica tem o seu foco na exploração do mundo socialpara além das dimensões que são dadas como adquiridas enquanto parte da consciência con-temporânea de uma qualquer época, então deverá ser uma casa suficientemente grande paraalbergar - ainda que não de modo acrítico - os descendentes dos românticos e dos ilumi-nistas. Ao mesmo tempo, deverá evitar cair no puro cepticismo (que sugere que não dispo-mos de qualquer fonte de segurança intelectual para além da tradição) ou no dogmatismo(que afirma a positividade do mundo intuído).

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A Escola de Frankfurt

Se bem que a ideia de crítica constitua, obviamente, uma ideia antiga em filosofia, nãodeixa de ser uma ideia difícil de especificar. Em muitos dos seus usos, figura ao lado de «aná-lise» por oposição a «substância», ou do lado da descoberta de limites em contraponto à afir-mação de possibilidades. Aproprio-me do termo não tanto com o objectivo de retomar dis-cursos antigos, mas para evocar, e ao mesmo tempo alargar, um uso mais recente. Teoria críticafoi o nome escolhido pelos fundadores da «Escola de Frankfurt», no período entre as duasguerras mundiais, para simbolizar a sua tentativa de alcançar uma unidade entre teoria e prá-tica, incluindo uma unidade da teoria com a investigação empírica e também com umaconsciência histórica dos problemas sociais, políticos e culturais de uma dada época. Essatentativa representou uma promessa atraente, que permanece importante, mas deparou-secom problemas que provaram ser inultrapassáveis, pelo menos para aqueles que a iniciaram.

Entre as figuras-chave da primeira geração da Escola de Frankfurt contavam-se MaxHorkheimer (o líder carismático e entrepreneuracadémico que, mais do que qualquer outro,manteve o grupo unido), Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Friedrich Pollock, Franz Neu-mann, Leo Lowenthal, Erich Fromm e, por vezes a alguma distância, Walter Benjamin.A proeminência relativa destas figuras dentro do grupo foi variando ao longo do tempo,tendo alguns deles chegado mesmo a cortar por completo os laços que os uniam. Outrosacadémicos importantes estavam também relacionados de várias maneiras com o núcleoduro do grupo de Frankfurt, fosse na Alemanha, fosse nos Estados Unidos durante os anosde exílio: Moses Finley, Alexander Mitcherlich, Paul Lazarsfeld, Karl Korsch. À parte a doa-ção através da qual Felix Weil e o seu pai criaram o Institute for Social Research, o grupofoi-se mantendo unido graças à lealdade a Horkheimer e ao interesse por um projecto quetinha como uma das suas bandeiras ligar a filosofia às ciências sociais emergentes.

O pensamento do grupo de Frankfurt combinava influências de vários quadrantes,entre elas o marxismo, a psicanálise, a filosofia e teologia idealistas alemãs, o Romantismo eos pensadores do «lado oculto» das Luzes, como Nietzsche. Tal como Horkheimer (1982)sugeriu, o grupo pretendia diferenciar a teoria crítica do tipo de «teoria tradicional» que acei-tava a auto definição do que era familiar e que se mostrava incapaz de olhar com maior saga-cidade e perspicácia a forma como as categorias da consciência eram moldadas e como estas,por sua vez, constituíam, em simultâneo, o mundo do observável e o mundo do possível.Neste sentido, importa recordar que a teologia constituía uma das influências importantesno pensamento da Escola. Ora, o pensamento teológico olhava igualmente o mundo exis-tente como «preto-história» de um mundo possivelmente melhor, ainda por chegar, nelevendo uma tela que espelhava, à superfície, as forças contraditórias que lhe subjaziam. Mas,acima de tudo, a ideia de teoria crítica enquanto projecto distinto, combinando de ummodo particular a filosofia abstracta e universal tradicional com o conhecimento empíricoe historicamente concreto do mundo social, radicava-se em Hegel e no diálogo que com elemantiveram os «Jovens Hegelianos», nos quais se incluíam Marx e Kierkegaard.

Foi Hegel quem, de forma mais específica, conceptualizou uma «dialéctica do Ilumi-nismo», na qual a razão que se havia rebelado contra o Iluminismo poderia ser utilizada pararedimir o potencial desse mesmo Iluminismo. O projecto filosófico hegeliano procurava

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reconciliar a vida moderna, como nos recorda Habermas (1987, p. 4): «Hegel foi o primeirofilósofo a desenvolver uma concepção clara de modemidade.el? Esta reconciliação em sen-tido lato incluía vários aspectos mais específicos: reconciliação entre os tipos de razão emcompetição, entre pedaços fragmentados do todo social e entre os momentos desconexos dasidentidades individuais. Nos termos de Hegel, a modernidade era constituída por diversas"fissuras" em algo que havia sido uno e total; não existia qualquer forma atraente de retor-nar à unidade anterior e, por isso, o sujeito tinha que avançar para a criação de um tipo novode totalidade social a partir das condições do presente histórico.

Assim, a capacidade de, por um lado, compreender e, por outro, tornar presente (pelomenos em potência) a transformação ou unificação da época moderna estava inscrita na pró-pria dialéctica do Iluminismo. Segundo Hegel, a subjectividade era central para a épocamoderna, uma subjectividade concebida simultaneamente no plano da liberdade individual eda subjectividade singular da totalidade social ideal. Igualmente importante era uma cons-ciência crítica baseada nas tensões e contradições introduzidas na vida social e na própria cons-ciência por estas fissuras básicas.Apesar da razão ter ajudado a produzir estas fissuras no decor-rer do Renascimento, da Reforma e do lluminismo (e também, implicitamente, mediante afacilitação das revoluções ligadas ao aumento da produtividade material), ela permaneceucomo a única e necessária porta de saída. Só a razão poderia transformar a nostalgia por umaunidade anterior no reconhecimento de todas as mudanças básicas que haviam afastado as pes-soas de si próprias; só a razão poderia ainda conduzir estas pessoas alienadas a compreenderemcomo a natureza de cada uma fora negada na existência fragmentada da outra. O jovem Hegelabordou este problema de um ângulo próximo do da teoria crítica mais tardia, procurandouma solução que, enraizada numa espécie de intersubjectividade e não tanto numa filosofia dosujeito enquanto tal,15fosse capaz de combinar a liberdade com a integração social. Mas, nasua maturidade, Hegel aceitou a necessidade de uma divisão social fimdamental- a diferen-ciação entre Estado e sociedade. A atribuição ao Estado de uma espécie de racionalidade sub-jectiva de nível superior implicou o abandono da capacidade para a crítica radical das condi-ções existentes.

Um conjunto de outros pensadores, partindo de esquemas de raciocínio influenciadospor Hegel, tentou recuperar de várias formas a capacidade crítica perdida. Karl Marx foi, semqualquer dúvida, o mais importante de entre eles.A crítica de Marx à economia política tinhacomo desígnio básico abordar o futuro através de uma história do presente que tivesse emconsideração a especificidade concreta das suas categorias - com efeito, fê-lo de forma maisconsistente que Hegel.16 Marx partilhou com o jovem Hegel a tentativa de conceptualizar acriatividade absoluta do ser humano através do exemplo da arte, mas, ao contrário de Hegel,alargou-a numa análise mais geral do trabalho. Este não é o local para escalpelizar a naturezaou as implicações da análise de Marx. A conexão crucial com a tradição da teoria crítica pro-vém da crítica radical de Marx (desenvolvida em especial no capítulo 1de Capital) ao modocomo as categorias historicamente específicas e humanamente criadas do capital- trabalho,mercadoria e valor - acabaram por aparecer como quase-naturais, e, com efeito, numa posi-ção de domínio sobre a natureza na aparência mais contingente da vida humana. As catego-rias reificadas do capital transformam a actividade humana qualitativamente diferenciada emuniformidades e identidades opressoras. Este é o ponto de partida básico para a extensão que

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Lukács produziu da crítica marxista, no início século xx. O trabalho de Lukács colocou aênfase na superação da reificação; para o efeito, apoiou-se de forma mais consistente em cri-térios estéticos para caracterizar a vida não reificada.'?

Os pioneiros da Escola de Frankfurt aprofundaram este filão da teoria crítica, mantendoo lugar central conferido à estética. A isso associaram a análise de Max Weber da burocraciaenquanto forma acabada da racionalidade instrumental. Esta associação despertou-lhes omedo de uma sociedade administrada de forma total, na qual as mesrníssimas desunião e alie-nação, que no pensamento de Hegel e Marx conduziam com toda a certeza à transcendênciada sociedade moderna, seriam tornadas estáveis e permanentes. «O que há de novo na fase dacultura de massas, em comparação com o período liberal tardio, é a exclusão do novo» (Hor-kheimer e Adorno, 1972, p. 134). Ao mesmo tempo, Horkheimer e Adorno associaram aideia de crítica dialéctica a uma avaliação mais positiva da não identidade, tomando-a não sóenquanto tensão na relação de qualquer sujeito consigo próprio, mas também como fonte decriatividade e autonomia existencial para o indivíduo humano. .

Tanto ao nível da teoria, como da motivação biográfica, os teóricos de Frankfurt esta-vam profundamente preocupados com a possibilidade da transcendência da sociedade alie-nada significar a fixação do indivíduo enquanto simples morriento de uma totalidade admi-nistrada. <tA similitude perfeita é a diferença absoluta. A identidade da categoria não autorizaa dos casos individuais ... Agora, qualquer indivíduo é traduzido apenas naqueles atributospelos quais pode substituir qualquer outro: ele é intertrocável, uma cópia. Como indivíduo,é completamente descartável e totalmente insignificante» (1972, pp. 145-6). Estes autorespuseram em causa a filosofia tradicional da consciência individual e a crença depositada napresumida identidade absoluta do indivíduo cognoscente, incorporada no famoso cogito car-tesiano (<<Penso,logo existo»). Influenciados por Freud, pelo Romantismo e por pensadoresdo «lado oculto» das Luzes como Nietzsche e Sade, suspeitavam que a pessoa individualtinha de ser mais complexa do que isso, em especial se quisesse ser sujeito de cultura cria-tiva. Viam igualmente o indivíduo como social numa acepção que o grosso da: teoria maiscomum não partilhava: constituído por relações intersubjectivas com outros, tanto maisimportantes quahto aprofundassem um sentimento de não identidade, da complexidade deenvolvimentos múltiplos, que lhe permitiam superar a estrita auto-identidade. Puseram emquestão a ideia de que as obras de arte ou a literatura deveriam ser interpretadas nos termosda sua aparente singularidade de propósito ou da adequação dócil em relação aos padrõesde uma dada época, procurando, ao invés, tensões e projectos para além do manifesto e doimediato. Desafiaram, ainda, aquilo que percepcionavam como a cada vez mais forçadaigualdade da sociedade moderna - fosse ela conformismo dos seus membros, fosse umadificuldade em desocultar as tensões subjacentes, e mesmo as contradições, trazendo-as parao crivo e acção públicos. Contestaram, por último, o recurso a ideias de natureza humanaque não fossem mediadas por entendimentos do que é específico a uma dada época -acima de tudo, a era capitalista moderna - e a passados e posições sociais diferentes.

Nada disto implicava abandonar a ideia de natureza humana; significava, pelo contrá-rio, concebê-la sempre em contexto histórico. A natureza humana englobava, por exemplo,a busca da felicidade, a necessidade de solidariedade dos outros e as simpatias naturais. Nestesentido, e de acordo com Horkheimer, da natureza humana emanava uma forma de razão

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implicitamente crítica da civilização. Marcuse, por seu turno, alargaria esta linha de pensa-mento, propondo-se, em particular, analisar a sociedade moderna do ponto de vista da repres-são do excesso que exigia aos seus membros. O capitalismo e o Estado, instrumento raciona-lizado, interpelavam Eros, ou a Natureza, de uma forma que excedia, em muito, aquilo queFreud havia teorizado.l"

A existência de tais tensões tornava possível uma teoria crítica que as procurasse expôr,denunciar. Mas a teoria crítica era, e é, algo mais do que esse esforço de exposição ou denún-cia. É também uma tentativa de mostrar que as referidas tensões não estão presentes apenasentre civilização e natureza (humana ou externa), mas também nas contradições internas à civi-lização e aos seus produtos culturais específicos (como, por exemplo, as filosofias). De facto,um dos argumentos fundamentais da teoria crítica é o de que um certo tipo de não identidade,enquanto tensão no interior da personalidade individual, está encastrado na organização sociale na cultura. Não se podem aperceber as fontes de acontecimentos e de dinâmica social semprimeiro captar este nível subjacente de antiriomia e diferença.

Não é difícil de prever que este género de perspectiva constituísse, como ainda hoje, umanátema para aqueles que exigem um empirismo directo ou o tipo de verificação teóricaperspectivado pelo positivismo lógico. Tal como Horkheimer escreveu em «Der neuesteAngriff auf die Metaphysik», em 1936:

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«A ideia de que o pensamento é uma forma de saber mais sobre o mundo do que aquilo que pode serobservado directamente [...] parece-nos totalmente misteriosa» é uma convicção expressa num trabalho doCírculo de Viena. Este princípio é particularmente significativo num mundo cujo magnificente exterior irra-dia ordem e unidade completas enquanto o pânico e a angústia dominam por debaixo. Os autocratas, oscruéis governadores coloniais e os guardas prisionais sádicos sempre desejaram visitantes com esta mentali-dade positivista. (Citado em Wiggershaus, 1994, p. 184.)

A teoria «tradicional», não crítica, é-nos familiar não só a partir do passado, mas igual-mente a partir da maior parte das versões contemporâneas «positivistas»e «empiristas» da acu-mulação de conhecimento. Essa familiaridade advém-nos também das versões hermenêuti-cas que estabelecem uma distinção nítida entre facto e valor, ao mesmo tempo que fazem féna noção de que os intelectuais podem ser apartados, ou mesmo planar, sobre os mecanismosordinários da sociedade. A categoria «teoria tradiconal» tinha para Horkheimer um sentidolato, que incluía muita da tradição kantiana, assim como a ciência social mais empirista.O que distinguia estas diversas abordagens tradicionais da teoria crítica era a concepção deque a teoria e a ciência em geral deveriam ser entendidas, de alguma forma, como algo à partedas restantes práticas sociais, a província de um grupo de intelectuais livres-pensadores -lembramos Mannheim -, ou, simplesmente, a província do cognoscente individual, naesteira da tradição cartesiana e kantiana.

<tA ideia tradicional de teoria», escreveu Horkheimer (1982, p. 197), «está baseada naactividade científica e na forma como esta é conduzida no interior de uma determinada fasede desenvolvimento da divisão do trabalho. Corresponde à actividade do académico e temlugar em simultâneo com todas as outras actividades da sociedade, embora não estabeleçacom elas qualquer relação aparente ou nítida. Nesta concepção de teoria, a verdadeira fun-

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ção social da ciência não é tornada manifesta; esta perspectiva não se refere àquilo que a teo-ria significa na vida humana, mas apenas ao que significa na esfera isolada através da qual,por razões históricas, chega à existência.» Esta visão da teoria está relacionada, não só comuma certa irresponsabilidade social, mas também com uma auto-imagem ilusória, ainda queapologética, dos teóricos. «Estes acreditam que estão a agir de acordo com decisões pessoais,quando, de facto, mesmo nos seus cálculos mais complicados, mais não fazem do que ilus-trar o funcionamento de um mecanismo social insondável» (p. 197). O resultado maisimportante deste tipo de autodesconhecimento, revelado r de uma falha tanto ao nível dareflexividade como da análise empírica rigorosa das condições de teorização, resulta na ten-dência para tratar as condições sociais existentes como se fossem as únicas que poderiamexisnr,

O teórico perde a capacidade para reconhecer a contingência e as contradições internasdo mundo empírico porque é incapaz de perspectivar a sua actividade como parte integrantedo mundo social e porque se limita a admitir à consciência teórica a divisão social do traba-lho que lhe é apresentada. «O todo do mundo perceptível tal como é presente a um membroda sociedade burguesa e tal como surge a partir de uma mundivisão tradicional que esteja emcontínua interacção com esse mundo dado, é visto por aquele que percepciona como umsomatório de factos; [o mundo dado] está ali e tem de ser aceite» (Horkheimer, 1982, p. 199).Nesta perspectiva, o teórico, como a maioria dos indivíduos em sociedade, falha em perceberas condições subjacentes à ordem (ou caos) social, exagerando a coerência ilusória oferecidapelo ponto de vista de uma prática individual orientada por objectivos. Para além disso, o teó-rico é conduzido, de forma errónea, a tratar como se fossem forças da natureza todas as con-dições sociais básicas que não puderem ser expeditamente compreendidas através de umaracionalidade orientada para objectivos, em especial os resultados da actividade humana quesão alienados do controlo de seres humanos conscientes. A teoria aceita os produtos da acçãohistórica do homem enquanto condições fixas e imutáveis da acção humana, não podendo,por isso, conceber a possibilidade de emancipação em relação a elas.19

Horkheimer defendeu mesmo a ideia de que a própria sociologia do conhecimento,derivada de uma tradição teórica mais crítica, poderia cair nos usos e costumes da teoria tra-dicional. Mannheim reconstruiu a sociologia do conhecimento enquanto campo disciplinarespecializado, dotando-o de objectos de estudo próprios, se bem que estreitos, limitados eapartados da análise da totalidade das relações sociais. Embora este tipo de sociologia possaproduzir descobertas mais ou menos interessantes - por exemplo, no que concerne à rela-ção entre posicionamentos intelectuais e posições sociais - perde a capacidade de localizarcriticamente tanto o próprio teorizador, como as condições de produção dos factos queestuda.

Nas mãos de Horkheimer, o projecto de uma teoria crítica transformou-se na recupe-ração para os seres humanos da totalidade das capacidades da humanidade; neste aspecto,funcionou como uma extensão directa do marxismo. A teoria crítica, apoiando-se no jovemMarx e no primeiro capítulo de Capital; e influenciada pela análise de Lukács da reificação,almejava mostrar como a história humana fora capaz de produzir uma alienação tal das capa-cidades humanas que as instituições e processos sociais, criaturas de um criador humana, sedavam à percepção da generalidade das pessoas como se estivessem para além da sua capa-

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cidade de intervenção. O modo da crítica era, pois, o da «desfetichização». Esta modalidadeda crítica inscrevia a recuperação das capacidades humanas (logo das possibilidades de trans-formação social) na restauração de relações verdadeiramente humanas, em prejuíw de rela-ções desumanas, nas quais os indivíduos constituíam simples mediações entre coisas, mer-cadorias. A natureza externa tivera que permanecer «Outro» para os seres humanos, mas esta«segunda natureza» não. Neste processo, a teoria desempenharia um papel central, pois asrelações reificadas de capital eram constituídas e mantidas através de uma forma de cons-ciência. Vê-las tal como eram ajudava já a dar um passo em frente na superação do seu domí-nio sobre a vida humana.

A reificação e alienação a ser combatidas foram surpreendidas por Horkheimer e pelosseus colegas na «oposição entre a intencionalidade, espontaneidade e racionalidade indivi-duais e as relações processuais de trabalho sobre as quais a sociedade está construída» (Hor-kheimer, 1982, p. 210). Esta ideia está relacionada com a crítica ao «positivismo» que ocu-pou Horkheimer e seus correligionários durante boa parte das suas carreiras.ê? A ciênciasocial positivista aceitava o mundo tal como ele existia; para além disso, ao reproduzir demodo acrítico a reificação através da qual o conteúdo humano - a actividade originalde criação humana - fora removido das instituições e processos do mundo social, impediao reconhecimento da existência de possibilidades de mudança fundamental. Esta reificaçãotornou possível tratar estes aspectos da humanidade como se fossem meros aspectos da natu-reza - tratar os factos sociais como coisas, segundo a expressão reveladora de Durkheim."

A exaltação do sujeito individual aparentemente isolado - o sujeito idealizado do conhe-cimento - estava relacionada com a reificação do mundo social. Além disso, este problemanão era meramente académico, pois constituía uma eliminação sistemática do tipo de cons-ciência que poderia reconhecer as tensões, os conflitos, a exploração e a opressão embutidosnas disposições sociaisprevalecentes. A teoria crítica seria diferente. «O pensamento crítico nãoé função nem do indivíduo isolado, nem do somatório dos indivíduos. O seu sujeito é, pelocontrário, o indivíduo que se define na relação real com outros indivíduos e grupos de indiví-duos, no conflito com uma determinada classe social e, por último, na resultante teia de rela-ções com a totalidade social e com a natureza» (Horkheimer, 1982, pp. 210-11). Tratar o indi-víduo como um ponto de partida associal, a-histórico e objectivo para o conhecimento - «estailusão sobre o sujeito pensante, sob a qual o idealismo tem vivido desde Descartes, é ideologiaem sentido estrito» (p, 211).

Horkheimer, escrevendo nos anos 1930, alimentava ainda um certo optimismo de queeste tipo de teoria crítica pudesse vir a estar ligado a um revolução vagamente marxista.Reduzir a distância entre a compreensão intelectual e a prática material concreta era funda-mental tendo em vista capacitar a humanidade para ordenar as suas relações sociais na novaordem prestes a emergir. A teoria crítica não constituía apenas uma extensão do pensamentoproletário; representava, além disso, um meio de pensar a totalidade social que coadjuvariaa deslocação de uma visão empírica e ainda necessariamente parcial da sociedade por partedo proletariado, decorrente da sua posição de classe, para a visão de uma sociedade sem clas-ses, não estruturada pela injustiça. Onde os fascistas expressavam os motivos subjacentes adeterminados segmentos da sociedade sob a forma de ideologia, os defensores de uma ciên-cia axiologicamente neutra pretendiam exprimir-se do ponto de vista de uma posição inte-

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lectual exterior a todo e qualquer conflito social. Mas, escreveu Horkheimer (1982, pp. 223-4),«a teoria crítica não é nem "profundamente enraizada" como a propaganda totalitária, nem"desprendida" como a intelligentsia liberal».

A teoria crítica não adoptou como ponto de partida o proletariado em si mesmo, ouqualquer outro grupo social específico, mas o tipo de pensamento - necessariamente feitopor indivíduos - que questionava a estrutura mais básica da totalidade da sociedade doponto de vista categorial, justamente aquela que a tornava total; conferiu-lhe o seu dina-mismo básico e apontou as possibilidades da sua transcendência. «A teoria crítica da socie-dade consiste, no seu conjunto, no desdobrar de um único juízo existencial. Para colocar aquestão em termos gerais, a teoria afirma que a forma básica da economia mercantil histo-ricamente dada na qual assenta a história moderna contém em si mesma as tensões internase externas da era moderna; diz-nos que essa forma histórica gera tensões de forma contínua ecada vez mais forte; diz-nos também que após um período de progresso, de desenvolvimentodos poderes humanos e de emancipação do indivíduo, depois de uma extensão enorme docontrolo humano sobre a natureza, essa mesma forma histórica impede, por fim, qualquerdesenvolvimento posterior, conduzindo a humanidade a uma nova barbárie» (p. 227).

Em resumo, fica claro que, nesta altura, a teoria crítica de Horkheimer era ainda umaespécie de marxismo. Mas as sementes da crise ulterior eram já aparentes. Em primeiro lugar,quando aplicada à situação empírica contemporânea, a teoria apontava mais directamentepara uma nova barbárie do que para a sua transcendência (o que, em 1937, talvez fosse algonão muito surpreendente). Em segundo lugar, Horkheimer evitou fornecer de forma deli-berada uma descrição clara dos presumíveis agentes da potencial revolução, tal como evitou,de forma igualmente deliberada, o envolvimento político activo ao lado do proletariado oude qualquer outro grupo. O seu marxismo permanecia abstracto. Em terceiro lugar, se Hor-kheimer foi capaz de produzir uma descrição claramente positiva da contribuição da teoriacrítica no domínio intelectual, quando se tratou de a inscrever socialmente, limitou-se a ofe-recer comentários negativos sobre aquilo que ela não era.

Após a Segunda Guerra Mundial, todos estes problemas haveriam de regressar e produ-zir uma crise na teoria crítica. O medo da barbárie permaneceu agudo, mesmo após a der-rota do nazismo. Os teóricos críticos procurariam em vão agentes sociais com capacidade parater êxito em projectos reais de transformação da sociedade. Os teóricos da Escola de Frank-furt, depois de terem considerado, não só o proletariado, mas os judeus, os estudantes e ospobres do Terceiro Mundo, continuaram convencidos de que, fosse qual fosse a justiça queassistia a cada um, nenhum deles teve a capacidade, ou sequer a inclinação, para tais trans-formações revolucionárias. Na verdade, esta constatação fazia parte do significado perturba-dor dos estudos iniciais da Escola de Frankfurt sobre a autoridade, em particular do trabalhocolectivo Studies in Authority and Fami/y.22* A investigação empírica sugeria-lhes que osmembros do proletariado alemão (e, já agora, os intelectuais supostamente libertos) erammais propensos a atitudes autoritárias do que à oposição crítica. Não menos importante, aversão particular da teoria crítica da qual Horkheimer e Adorno constituíram figuras-chave

* Edição portuguesa: M. Horkheimer et al., Autoridade e jàmíLia: parte geral Lisboa: Apaginastantas, 1983.(N do T)

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adquiriu uma orientação negativa à medida que as suas figuras proeminentes abandonaramo lastro utópico inicial em nome de urna árdua autodisciplina.

Parte do problema residia no facto de Horkheimer, e em especial Adorno, terem, emgrande medida, abandonado a tentativa de produzir uma descrição específicado ponto de vistahistórico e cultural das contradições da sociedade capitalista moderna. Em muito (ainda quenão em todo) do seu trabalho inicial, ambos haviam tentado desenvolver aquilo que Benjamindesignou de «preto-histórias» ou análises do presente nos termos da dinâmica histórica que oproduziu. Estas análises envolviam a localização de mudanças epocais fundamentais, quer aurna escala bastante lata (pensamos nos estudos sobre a emergência do capitalismo), quer a umIÚVelespecífico, e pensamos na tentativa de Adorno e Benjamin para compreender as origensdo modernismo no século XIX. Horkheimer, no seu trabalho inicial sobre a filosofia burguesa,corno o próprio termo sugere, tinha procurado inscrever as relações específicas entre escolasfilosóficas nas suas condições sociais de existência, logo nas várias épocas históricas, e, acima detodas, na era do capitalismo.P Mas Horkheimer e Adorno foram ambivalentes em relação aoterna da especificidade histórica em Dialectic o/ Enlightenment. Em Eclipse o/ Reason; de Hor-kheimer, os últimos vestígios desta perspectiva que valorizava a especificidade histórica deramlugar a urna crítica mais trans-histórica e menos periodizada das depredações da razão instru-rnental.õ Se, de certa forma, era possível afirmar que a razão instrumental, do ponto de vistaintelectual, remontava aos Gregos, sendo, na prática, presurnivelrnente universal, era diíícil dis-cernir a partir de que bases históricas o seu progressivo hiperdesenvolvimento e avassalor domí-nio poderiam ser criticamente questionados. Nas palavras de Horkheimer:

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Se se deseja falar de uma doença que afecta a razão, a doença não deve ser entendida como algo que ata-

cou a razão num momento histórico determinado, mas como algo inseparável da natureza da razão na civili-

zação tal como a conhecemos até agora. A doença da razão reside no facto de a razão ter nascido da necessi-

dade do homem dominar a natureza, e a «recuperação» da moléstia depende da capacidade de intuir a natureza

da doença original, e não de encontrar uma cura para os sintomas mais recentes.25 (Horkheimer, 1947, p. 176.)

No coração da teoria crítica encontrava-se a noção de «crítica irnanente», ou seja, urnexercício da crítica que partia de dentro das categorias do pensamento existente, radicali-zando-as e mostrando, a vários níveis, os seus problemas e as suas possibilidades não reco-nhecidas.w Horkheimer escreveu que «a filosofia confronta o que existe, no seu contexto his-tórico, com os pressupostos dos seus princípios conceptuais, em ordem a criticar a relaçãoentre os dois - ideias e realidade - e assim, por essa via, transcendê-los» (1947, p. 182).É por isso que Adorno se referia repetidas vezes à implosão do pensamento burguês e emesventrar o idealismo a partir das próprias entranhas. Nesta perspectiva, podemos compreen-der o elogio de Adorno à «razão sinfónica» de Mahler: «Mahler deixa tudo o que existe no seulugar próprio, mas fá-lo expulsando-o de si mesmo, a partir de dentro. As velhas barreiras for-mais simbolizam agora alegorias, não tanto para o que foi como para o que está para ser»(citado em Wiggershaus, 1994: 187; vejam-se também as pp. 188 e 531, entre muitas outras).

A imanência por si só não era suficiente, pois não se pode pura e simplesmente confiarà história a realização das possibilidades inscritas nas formas culturais ou nas relações sociaismateriais. O exercício da crítica é necessário corno dispositivo para detectar e sublinhar as

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tensões subjacentes entre o que existe e as suas possibilidades. Isto significava que, para a pri-meira geração de teóricos de Frankfurt, a teoria crítica dependia em especial da análise dia-léctica das contradições internas a todas as épocas, a todas as formações sociais, situações outextos. O exercício da crítica imanente seria particularmente eficaz enquanto exercício deuma crítica enraizada na história.

Esta é uma leitura possível da famosa exploração de Horkheimer e Adorno em Dialec-tie of Enlightenment. A razão floresceu no decurso das Luzes, mas o seu desenvolvimento foicontraditório. Por um lado, trouxe consigo o enorme progresso do pensamento crítico, noqual se pode incluir a filosofia moderna; por outro, trouxe a racionalização desumanizanteda sociedade (que Weber tomou familiar dos sociólogos através da imagem da «gaiola deferro») e o progresso da tecnologia, que escravizaram os seres humanos, coarctando a suacriatividade e afastando-os da natureza interna e da externa. «No sentido mais genérico dopensamento progressista, o Iluminismo apontou sempre para a libertação do medo e para oestabelecimento de uma soberania humana. E, no entanto, a Terra iluminada por completoirradia o triunfo do desastre» (Horkheimer e Adorno, 1972, p. 1). A estrita defesa do Ilu-minismo tomou-se sinónima da defesa da burocratização, do descontrolo da tecnologia e .mesmo dos horrores da ciência nazi. Uma implicação crítica com o Iluminismo teria de pas-sar pelo reconhecimento de que a razão poderia ser usada contra si mesma e contra os sujei-tos humanos da razão. No entanto, fazê-lo não equivalia ao abandono puro e simples darazão, por dois motivos principais: por um lado, o irracional continha tantos horrores comoo racional; por outro, só a razão poderia reabrir a porta de saída conducente a uma práticacoerente. De acordo com Horkheimer e Adorno, as forças sociais e culturais - a ciência, ocapital e os mecanismos do poder político - haviam-se autonomizado e ganho a capaci-dade de ditar o curso da estabilidade e mudança sociais. Os dois autores, alargando o argu-mento usado por Marx no primeiro capítulo do volume I de Capital, puseram em evidên-cia o modo como os sujeitos humanos tinham sido reduzidos a objectos pelas própriasformas de relação social que haviam engendrado.27

Esta forma de ler Dialectie ofEnlightenmentsugere que Horkheimer e Adorno, ao escrevê--lo, ainda pensavam que interpelar o capitalismo e outras condições sociais especificamentemodernas podia oferecer uma certa esperança de transformação, e mesmo de redenção.Neumann, Pollock e outros colegas da Escola de Frankfurt que escreveram directamentesobre economia política foram mais claros ao apontar causas históricas concretas para as cri-ses contemporâneas, causas como a diluição da distinção entre Estado e sociedade e a ero-são da autonomia do mercado face à força avassaladora do capitalismo de Estado. Se bemque Horkheimer e Adorno tenham criticado a «sociedade administrada» que emergiu apósa Segunda Guerra Mundial de um ponto de vista historicamente específico, o nível maisprofundo da teoria crítica que desenvolveram após a guerra percorria as tendências trans-his-tóricas da relação entre razão e natureza. Quando muito, Dialectie ofEnlightenmentfoi ambí-guo quanto a este ponto. O caminho para o desastre terá sido percorrido pelo Iluminismoem termos genéricos (leia-seprogresso da razão), ou terá sido o lluminismo, entendido agoracomo a institucionalização historicamente específica da razão burguesa, o responsável por todoeste alarido? Existem passagens em abono de qualquer das duas leituras, mas uma oferecemais esperança do que a outra.

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Dialectic of Enlightenment foi escrito no exílio, durante o final da Segunda Guerra Mun-dial, por dois judeus alemães que um dia haviam amado o Iluminismo e a cultura eruditaalemã. Talvez não nos deva surpreender que não tenham sido capazes de agarrar com con-vicção qualquer fonte de optimismo. «o Iluminismo», escreveram (1972, p. 6), «é totalitá-rio». Esta afirmação referia-se não só ao evidente totalitarismo político da Alemanha nazi, mastambém à redução da autonomia humana resultante da «indústria da cultura». Esta indústriaproduzia em massa o que pensadores mais tardios designariam «simulacros» de arte, músicae literatura, que reduziam seres humanos potencialmente criativos a consumidores passivosde entertainment. Quando Horkheimer e Adorno tentaram descobrir solo fértil para plantaruma semente de esperança, estabelecer as bases de um Ilurninismo «melhor» ou um conceitomais positivo de razão, deram por si cada vez mais perdidos, incapazes de imaginar um pro-gresso que não fosse guiado pela razão, mesmo quando lhes parecia que esta havia atraiçoadoo seu potencial positivo.

«Quando a ideia de razão foi concebida», escreveu Horkheimer, «pretendia-se alcançaralgo mais que a mera regulação da relação entre meios e fins; a razão foi conceptualizadacorno instrumento para compreender os fins, para os determinar» (1947, p. 10; itálicos nooriginal). Mas a razão parecia ter abdicado do domínio dos fins; por comum acordo, as deci-sões acerca de valores básicos - acerca do próprio conceito de valor - nunca poderiamresultar de um entendimento puramente racional.ê" A razão reduzira-se ao domínio dopuramente instrumental; a razão - e até as instituições específicas da ciência - poderiamser postas ao serviço da indústria de morte nazi com a mesma facilidade com que poderiamser usadas na tarefa de eliminar a pobreza e o sofrimento. A razão, quando institucionali-zada, reproduzida e posta em prática, não apenas pela Alemanha nazi, mas pela sociedademoderna em geral, parecia destinada a anular a autonomia do indivíduo, em vez de realizá--la. Tal como Horkheimer comentou (1947, p. 13), a expressão «ser razoável» adquirira osentido de adoptar uma atitude conciliatória e não de exercer a-capacidade individual parajulgar de modo racional.

O problema não se circunscrevia à política. No que respeitava à religião, por exemplo,surgira um espírito antiteológico que questionava o valor da razão corno fonte de intuiçõesfundamentais (urna visão que faz hoje o seu caminho entre muitos «fimdamenralistas»). Estefacto autorizou que a religião fosse compartimentada e vedada à força corrosiva da raciona-lidade e às ameaças da ciência, pois a pujança das suas verdades assentava noutros alicercesque não a razão. Mas esta impermeabilização teve corno preço a redução drástica da capaci-dade da religião se relacionar de forma crítica com a sociedade moderna, quanto maisapreendê-la na sua totalidade. Horkheimer percebeu que o processo que havia reduzido arazão a um mecanismo para a escolha subjectiva entre meios e não para a determinaçãoobjectiva dos fins não constituía qualquer acidente histórico fortuito; reflectia, antes, o cursomaterial da mudança social e, de forma correspondente, não poderia ser anulado através dosimples reconhecimento de que era um problema.

Horkheimer e Adorno temiam que o estado corrente da sociedade não permitisse qual-quer crítica verdadeiramente transformadora, que não fornecesse qualquer ponto de apoiopara a revolução ou qualquer outra acção prática que pusesse fim à reprodução da ordemsocial desumanizante, repressiva e perigosa. No máximo, pretendiam com o seu trabalho teó-

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rico preservar o pensamento crítico - não sob a forma altamente integrada de teoria crítica,mas como uma «mensagem numa garrafa» para a geração futura. Esta postura marcou o iní-cio do que viria a ser designado como a «viragem pessimista» dos teóricos de Frankfiirt.ê?Num momento em que, tanto na América, onde o anticomunismo macartista triunfanteajudava à sua tristeza, como, em particular, no ambiente repressivo da República Federal daAlemanha (onde ex-nazis podiam regressar ao poder e apresentar-se como nada mais do querealistas, enquanto os socialistas, e mesmo os liberais de esquerda, eram excluídos, até das uni-versidades, por serem «ideológicos»), parecia a Horkheimer e a Adorno que a melhor hipó-tese era manterem vivas, sob urna forma puramente intelectual, as sementes do pensamentocrítico, para que pudessem vicejar de novo quando as condições o propiciassem. E mesmoisso não seria fácil, pensavam eles. A subjectivização da razão, aliada ao crescimento do capi-talismo de «livreiniciativa», parecia outorgar poder aos indivíduos, mas tal era ilusório. «Todasas mónadas, ainda que apartadas por fossos de auto-interesse, tendiam a tornar-se cada vezmais iguais através da prossecução desse mesmo auto-interesse» (Horkheimer, 1947, p. 139).O conformismo enquanto ideologia seria, então, combinado com urna igualização crescenteentre as pessoas, na medida em que cada wna responda estritamente ao seu próprio interessepessoal enquanto conswnidor, num mundo de capitalismo corporativo e cultura de massas.De igual modo, a psicologia moderna, apoiada numa tradição que remonta aos tomistas,declarou a «ajustamento» como o mais importante objectivo individual. Aqueles que apresen-tam os mecanismos de adaptação e integração social como a receita única para a saúde indi-vidual identificam, de forma implícita, os valores da verdade e do bem com a realidade exis-tente. Esta identificação gerou wn embargo em relação a estes valores, impedindo-os de seremencarados como valores críticos que podem suscitar descontentamento e até mudança social.

Nenhwn grupo social - proletariado, intelectuais ou artistas - pareceu ficar total-mente imune a esta mortificação da capacidade para usar a razão para discernir os fins dosprocessos sociais. A princípio, Horkheimer e Adorno pensaram que wna crise poderia sersuficiente para tornar patentes os antagonismos da sociedade moderna (assim como os anta-gonismos entre essa sociedade e a natureza que tentava dominar). Horkheimer falava da «pos-sibilidade de uma autocrítica da razão», quando já não acreditava que essa crítica pudesseser protagonizada por qualquer grupo específico de agentes. Mas mesmo essa possibilidadese tornou cada vez mais remota à medida que a sociedade dos anos 1950 e inícios da décadade 1960, em vez de cambalear de crise em crise, marchou avante na sua combinação peculiarde prosperidade e repressão.

Uma Nova Geração

Quando a crise estalou na década de 1960, os já envelhecidos teóricos críticos não esta-vam, em geral, preparados para ela. No momento em que os protestos estudantis trouxerama política de volta para a ribalta, só Herbert Marcuse, de entre a primeira geração de teóri-cos de Frankfurt, conseguia pensar a acção radical como exequível. Os activistas estudantisficaram desapontados com Marcuse, pese embora o facto de este ter sido celebrizado pelosmeios de comunicação social como guru da Nova Esquerda e de com eles se ter envolvidode forma directa e concludente. Na verdade, Marcuse não descobria potencial para uma ver-

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dadeira revolução nas mãos de estudantes universitários europeus ou norte-americanos, nemtão-pouco estava de acordo que eles constituíssem, sequer, uma classe desprivilegiada.Segundo o autor, a perspectiva deste grupo, que decorria do seu posicionamento social, nãoera a mais indicada para apreender a crise da totalidade social- como poderiam eles ser osherdeiros do proletariado? Marcuse pensava, como Sartre, que se algum grupo social haviaque poderia reclamar esse ceptro, e possuir a força social para desencadear uma verdadeirarevolução, esse grupo seria o dos «miseráveis da Terra» de que falava Fanon, as massas opri-midas do Terceiro Mundo e os seus congéneres, os desempregados permanentes do PrimeiroMundo (veja-se Fanon, 1963, e a introdução de Sartre). Marcuse raciocinava ainda a partirdo paradigma de Frankfurt segundo o qual se esperava que a mudança social radical resul-tasse da opressão radical, que proviesse dos objectivamente mais desfavorecidos pelos meca-nismos sociais existentes, aqueles a cuja existência a ordem social estabelecida mais se opu-nha. Estes tinham sido, a certa altura - era defensável afirmá-lo -, o proletariado. Em1940, Horkheimer pensara que eram os judeus. Em 1968, mesmo que os estudantes apoias-sem os mais desfavorecidos, eles não integravam esse grupo.

Marcuse tinha compreendido as fontes do protesto estudantil tão bem como qualqueroutro teórico contemporâneo. Viu bem como certas formas de repressão - incluindo arepressão erótica - se poderiam tornar numa plataforma para a acção política, mesmo entreas classes médias. O processo de formação da sociedade de consumo capitalista, com a suaredução fetichista das relações humanas a uma única dimensão, violava a tal ponto o poten-cial humano natural que acabava por gerar resistência. De modo mais importante, Marcuseidentificou uma das instituições-chave dos protestos estudantis recorrendo a um argumentomais ou menos romântico segundo o qual «à negação da liberdade, e mesmo da possibili-dade de liberdade, corresponde a concessão de liberdades onde quer que estas reforcem arepressão» (1964, p. 244). Esta ideia antecipava um seu argumento mais radical sobre a repres-são inerente a qualquer tolerância que se recusasse comprometer com as necessidades e aspi-rações dos sujeitos individuais (Wolff, Moore e Marcuse, 1969).

Claro que as críticas dos estudantes à sociedade do pós-guerra eram muito variadas,combinando elementos de análise sistémica com pacifismo, preocupações psicológicas e cul-turais com política pessoal. Ao condenarem uma sociedade abstracta, impessoal e violenta,os estudantes seguiram na esteira da anterior teoria crítica da Escola de Frankfurt. Contudo,ao mesmo tempo, notava-se uma preocupação muito maior com a necessidade de favorecerrelações interpessoais directas e com experiências imediatas possuidoras de um significadoprofundo. Tal como resumiu Oscar Negt (um activista que tinha sido assistente de Haber-mas em Frankfurt e que mais tarde se tornou professor de sociologia) (1978, p. 65): «O ele-mento anti-institucional e antiautoritário no renascimento da teoria crítica fundiu-se com atentativa, por via da politização de necessidades e interesses, para alcançar três coisas: (1) esti-lhaçar as mediações compulsivas e omnipresentes das trocas capitalistas; (2) estilhaçar a vio-lência latente nos mecanismos da razão instrumental e estruturalmente inerentes à sublima-ção e repressão dos instintos básicos; (3) estabelecer um imediatismo significativo, em que,por sua vez, o corte entre comunicação e experiência fosse eliminado.sê'' Esta crítica, que fezuso de Wilhelm Reich e de outros herdeiros radicais da tradição psicanalítica, deslocou oponto de equilíbrio, orientando-o na direcção da esfera pessoal mais do que para o domínio

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do sistémico, e também no sentido de avaliar as virtudes do referido imediatismo. Parece claroque este percurso crítico não se afastava muito da descrição da sociedade de consumo capita-lista feita pela teoria crítica mais tradicional. Todavia, assinalou uma mudança de ênfase, ante-cipando os «novos movimentos sociais» que haveriam de fundar a política pessoal na expe-riência e nas relações interpessoais directas, com muito menos referências à cultura erudita.Sobre estes movimentos, Habermas diria tratar-se de uma prática de resistência, enraizada no«mundo da vida», contra uma racionalidade sistémica impessoal, «deslinguistiíicada» 31.

Se a disponibilidade de Marcuse para se envolver directamente na política apaixonada. da década de 1960 chocou e preocupou Adorno e Horkheimer, que preferiram, não apenasmanter-se à margem, mas retirar-se por completo da luta activa, há que dizer que as ideiasdos teóricos de Frankfurt tornaram possíveis as análises políticas e culturais dos estudantes,quer na Alemanha, quer nos Estados Unidos. A teoria de Frankfurt, uma vez mais, tornou--se sinónima de tudo menos de teoria crítica.

Contudo, o teórico que porventura mais importava não pertencia à primeira geração deFrankfurt, chamava-se Jürgen Habermas e, em tempos, havia sido aluno de Theodor Adorno.Profundamente influenciado pelo trabalho inicial de Horkheimer e Adorno, Habermasmudara-se para Frankfurt após concluir o doutoramento, começando a trabalhar no Insti-tute for Social Research. Inicialmente, pretendeu tirar a sua Habilitation (um doutoramentoaprofundado ou qualificação como professor universitário) sob a orientação de Adorno, masfoi impedido devido à oposição de Horkheimer (a que se juntou a reserva do primeiro). Asobjecções levantadas apontavam o esquerdismo do candidato, o ser pouco crítico do Ilumi-nismo, e a excessiva disponibilidade para levar a teoria crítica directamente para a arena dodebate político aberto.

O trabalho inicial de Habermas foi organizado por dois conjuntos básicos de priorida-des, pensados para repor a possibilidade de uma teoria crítica politicamente significativa. Poroutras palavras, cada um deles era orientado pelo problema da relação entre teoria e prática.O primeiro pretendia recuperar os recursos da teoria anterior e mostrar como a ciência socialconvencional não conseguia desenvolver o seu potencial crítico.V O segundo apontava paraa crítica imanente das próprias instituições históricas dentro das quais o discurso racional-crítico atingira significado político.

Inspirado, entre outras fontes, pelo trabalho de Hannah Arendt, The Human Condition(1958), e pelas transformações da tradição aristotélica, Habermas procurou localizar ou ins-crever a possibilidade de uma unidade entre teoria e prática na doutrina política clássica.A questão não consistia apenas em utilizar a teoria para servir a política - uma versão darazão instrumental- mas, pelo contrário, em desenvolver um sentido mais lato de práticapolítica, enquanto constituição de formas conjuntas de vida que permitissem a realização

. plena do potencial humano. Neste contexto, a teoria crítica respondia directamente a neces-sidades políticas, seria «uma teoria da sociedade concebida com um intuito prático» (Haber-mas, 1973, p. 1).

Na perspectiva de Habermas (1971), todo o conhecimento deveria ser interpretadotendo em atenção os interesses que levaram os actores a produzi-lo.v Este preceito signifi-cava que sempre que um teórico crítico analisasse uma teoria anterior a sua tarefa consistiaem localizar a relação entre os interesses formadores de conhecimento que conduziram à

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produção teórica, as condições históricas dentro das quais a teoria fora produzida e o con-teúdo epistémico da teoria. Este procedimento constituía uma elaboração, desenvolvida aolongo de uma série de estudos sobre as mais importantes filosofias modernas, não só doargumento usado por Habermas em estudos anteriores, mas do de Horkheimer em «Tradi-tional and Critical Theory» e «The State of Contemporary Social Philosophy and the Taskof an Institute for Social Research», Habermas, à imagem dos teóricos de Frankfurt que oantecederam, apoiou-se em Freud e em Marx para desenvolver uma concepção de críticateórica como forma de estabelecer de que modo o conhecimento «objectivo» - aquele queaborda o mundo enquanto série de resultados externos - se poderia relacionar com o sen-tido constituído intersubjectivamente e com a capacidade para a acção. Um paciente psica-nalítico não pode, a princípio, reconhecer o significado pleno da sua própria história de vida,assim como não pode adoptar acções plenamente responsáveis e efectivas em relação a ela,devido, precisamente, à repressão sistemática de aspectos-chave desse significado e dos inte-resses efectivos interpessoais que constituíram essas experiências de vida. A própria psicaná-lise oferece uma relação intersubjectiva, na qual médico e paciente destroem as barreiras àcomunicação e tornam acessíveis à compreensão e controlo conscientes as motivações ante-riormente reprimidas. De forma análoga, a teoria crítica - também ela um empreendi-mento intersubjectivo, comunicativo - deveria realizar esta função numa sociedade queestava, de forma comparável, cativa de uma incapacidade sistemática para reconhecer as ver-dadeiras fontes da sua própria história. Além disso, a repressão das capacidades humanas nãofora reconhecida. Essas capacidades poderiam ser libertadas através de um movimento emdirecção a uma compreensão mais plena, completa e livre (veja-se também Habermas,1970). O autor, inspirado nesta ideia da psicanálise como um processo comunicativo, pers-pectivava «urna organização das relações sociais de acordo com o seguinte princípio: a vali-dade de cada norma política passaria a depender de um consenso em seu torno alcançadoatravés de um processo de comunicação livre de formas de dominação» (1971, p. 284); atéporque «as teorias que, na sua estrutura, possam servir para a clarificação de questões práti-cas são pensadas para se envolverem em acções comunicativas» (1973, p. 3).

O segundo conjunto de prioridades de Habermas abordava este mesmo objectivo porintermédio de uma crítica histórica imanente das instituições da esfera pública burguesa. A esterespeito, o trabalho mais importante foi a própria Habílítationchriji, à qual Horkheimer colo-cara reticências, por considerar a orientação de Habermas, no geral, demasiado optimista. 34De facto, um dos traços organizadores do trabalho de Habermas consistia na determinaçãoem não cair no mesmo pessimismo incapacitador de Horkheimer e Adorno. Em The Struc-tural Transformation ofthe Publíc Sphere (1989), Habermas examinou as origens, desenvol-vimento e degeneração da instituição política distintiva que, a seu tempo, tornou a demo-cracia burguesa genuinamente radical.35 Habermas, negligenciando, com alguma surpresa,a ciência e a religião, defendeu o argumento de que a esfera pública da sociedade burguesaliberal se tinha erguido sobre os alicercesconstituídos por esferaspúblicas literárias anteriores.vQuer a cultura de salão, quer a imprensa escrita deram o seu contributo. O discurso na esferapública era, pelo menos em princípio, baseado em argumentação racional-crítica; o melhorargumento era decisivo, e não a identidade dos seus proponentes ou oponentes. Apenas aselites eram admitidas à esfera pública, embora possuíssem estatutos diversos. O mestre car-

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pinteiro poderia partilhar a casa de café com o pequeno aristocrata fundiário, e o nobre mis-turar-se com o povo no Parlamento e nos salões mundanos. Mais do que negar essas dife-renças, o discurso da esfera pública tê-las-a colocado «entre parêntesis» - Habermas usouespecificamente o termo fenomenológico -, tornando-as irrelevantes para os seus propósi-tos. A esfera pública, apesar de não fazer parte do Estado, mas da sociedade civil, poderia nãosó abordar como até influenciar os assuntos de Estado ou da sociedade no seu todo. Os cida-dãos entravam na esfera pública com base na autonomia que lhes era conferida, nos níveissociopsicológico e económico, pelas suas vidas privadas e relações cívicas não estatais.

A importância da esfera pública para Habermas residia no facto de oferecer um modelode comunicação pública que poderia, em potência, realizar o ideal de orientação racional dasociedade. Claro que o potencial desta comunicação não tinha sido plenamente realizado -o que não quer dizer que as categorias da democracia burguesa se tenham tornado, por essefacto, irrelevantes, como alguns marxistas e teóricos críticos mais pessimistas fazem crer. Pelocontrário, uma crítica interna poderia tornar, uma vez mais, os ideais do discurso racional-crítico - como os direitos - politicamente eficazes. Estes ideais haviam sido reduzidos aideologia através da sua incorporação num discurso destinado a reproduzir pela afirmação,ao invés de revolucionar pela interpelação, as instituições existentes. Mas a teoria críticapoderia tornar os cidadãos conscientes do seu potencial por realizar, permitindo-lhes usarestes ideais para lutar contra aqueles que, aderindo-lhes nominalmente, os não querem usar,de facto, na construção da sociedade.

A descrição da esfera pública proposta por Habermas, que identificava uma idade deouro no século XVIII seguida por declínio e degeneração, não era, por conseguinte, imedia-tamente bloqueadora. Penetrando um pouco mais na questão: Habermas procurou locali-zar as raízes sociais das transformações que haviam retirado à esfera pública a sua força ini-cial enquanto discurso de crítica racional. O procedimento da crítica interna poderia entãoser combinado com a identificação de sujeitos históricos capazes de levar à prática as possi-bilidades abertas pela teoria.

Todavia, a descrição habermasiana do século xx, fortemente influenciada pelas teorias dasociedade de massas dos anos 1950, minava o seu optimismo inicial}? Habermas revelouuma esfera pública que havia sido, não apenas des-radicalizada, mas diminuída em algunsaspectos básicos por dois processos principais. O primeiro foi a progressiva incorporação decontingentes cada vez maiores de cidadãos no público, na opinião pública. Este desenvolvi-mento seguiu-se à lógica genuinamente democrática da esfera pública inicial, que não conse-guiu manter a sua própria exclusividade contra repetidas instâncias para que os seus ideaisdemocráticos fossem levados mais a sério. Contudo, à medida que a esfera pública crescia emescala, degenerava na forma. Mesmo que os seus novos participantes estivessem tão bem pre-parados como os seus antecessores para o discurso da crítica racional - o que, segundoHabermas, não estavam - o seu discurso fora distorcido pela necessidade de confiar nosmeios de comunicação de massas e pelas oportunidades para manipular a comunicação apre-sentadas pela publicidade, pelas relações públicas e por instituições semelhantes. Em segundolugar, a esfera pública perdeu algumas das bases que possuíra numa sociedade civil claramentedistinta do Estado. No século xx, e de forma notória após a Segunda Guerra Mundial, asfronteiras entre Estado e sociedade entraram em crescente colapso, à medida que a interven-

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ção governamental na economia aumentou, à medida que se formaram Estados-providência,que gigantescas multinacionais assumiram funções políticas e que os cidadãos se organizaramem (ou foram representados por) grupos de interesse. As decisões sociais foram sendo cadavez mais afastadas do discurso da crítica racional dos cidadãos na esfera pública; foram con-finadas ao domínio da negociação (e não do discurso propriamente dito) entre burocratas,peritos credenciados e elites representando grupos de interesse.

Habermas seguiu na esteira directa dos seus predecessores de Frankfurt quando elegeu aescala do fenómeno de comunicação mediática na sociedade de massas, a par do colapso dadiferenciação entre Estado e sociedade gerado pela «sociedade administrada», corno as maisimportantes transformações ocorridas nas estruturas da esfera pública. Da mesma forma queos seus predecessores, tais pontos de partida empurraram-no para conclusões cada vez maispessimistas - e nota-se que o tom da última parte do livro é marcadamente diferente do daprimeira. Apesar da crítica interna ter sido capaz de localizar nas formas da democracia bur-guesa um potencial racional emancipatório por realizar, foi, em última análise, incapaz dedivisar as bases sociais materiais para que a acção realizasse tal potencial no interior da esferapública novecentista tardia.38

Do mesmo modo, Habermas abandonou o projecto de erguer a teoria crítica sobre umafundação histórica imanente. Em lugar de procurar adquirir uma dimensão crítica na compa-ração de formações sociais histórica e culturalmente específicas, fê-lo através da elaboração decondições universais da vida humana, fundamentando a crítica, não nos próprios desenvolvi-mentos históricos, mas numa ideia lata de progresso evolutivo na comunicação. Durante osanos do movimento estudantil, Habermas teorizou acerca dos potenciais de transformaçãoconcreta, baseados em especial na ideia de que os Estados contemporâneos atravessavam umacrise de legitimação porque se apoiavam em alicerces culturais que haviam sido apagados àmedida que cada vez maiores porções da vida social caíam sob o jugo do planeamento admi-nistrativo (Habermas, 1975). Habermas manteve o interesse em ver a esfera pública repovoadapor um discurso genuinamente político e foi nesta base que acolheu o movimento estudantil(mesmo quando vituperou as suas tendências mais extremistas como «fascismo de esquerda»).Mas, a um nível mais profundo, não fundamentou a sua teoria crítica nas instituições sociaisdo discurso, mas sim no potencial para uma comunicação desobstruída, sugerido pela racio-nalidade implícita no próprio discurso, e não tanto por instituições ou histórias de facto exis-tentes. A sua «pragmática universal-emanou de uma fractura primordial entre razão comuni-cativa e instrumental, e, mesmo no seio da comunicação, de uma fractura entre discursoorientado para a compreensão de si mesmo e discurso orientado para resultados práticos. Nãoobstante a crescente «autonornização» da razão instrumental, que se via como auto-suficientee ajustada a um leque alargado de projectos práticos, ser vista corno fonte de caos social e dealienação, existiam tendências dialécticas de contraposição inerentes às características transcen-dentais do próprio discurso. Assim, toda a comunicação estava baseava na presunção de deter-minados padrões de validação - por exemplo, o requisito de que os oradores, para alémde falar verdade, fossem verdadeiros, no sentido de serem sinceros, sem quaisquer intuitos demanipulação. Estes pressupostos de validade permaneciam abertos a uma potencial redençãodiscursiva, mesmo quando não eram explicitamente articulados. Os processos de transforma-ção social e cultural poderiam (e, se adoptássemos o figurino evolucionista, deveriam) deslo-

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car-se no sentido de a comunicação se processar, cada vez mais, em conformidade com estespotenciais.ê?

O trabalho posterior de Habermas sobre acção comunicativa reteve do trabalho inicialum tema fundamental. O autor procurou sempre compreender o potencial inacabado doprojecto iluminista de modernidade (veja-se Bernstein, 1985, inclusive o capítulo de Haber-mas). Na pragmática universal encontrou uma base para apoiar uma orientação optimistapara a teoria crítica mais fiável do que a que tinha encontrado na interpretação histórico--específica da esfera pública. Na verdade, este trajecto havia sido antecipado por Horkhei-mer, embora o não tenha feito em qualquer trabalho publicado. «Falar com alguém signi-fica basicamente reconhecê-lo como possível membro da futura associação de seres humanoslivres. O discurso estabelece uma relação partilhada no sentido da verdade e é, por conse-guinte, a afirmação mais Íntima de outra existência; na verdade, de todas as formas de exis-tência, de acordo com as suas capacidades. Quando o discurso nega todas as possibilidades,entra necessariamente em autocontradiçâo.e=? Apesar de Adorno ter concordado com Hor-kheimer, em face das manifestas contradições da Segunda Guerra Mundial e do nazismo,foram ambos incapazes de a usar como base positiva para o seu trabalho, optando por con-centrar-se nas modalidades através das quais a comunicação fora amputada do seu signifi-cado próprio.

Habermas, como Horkheimer e Adorno, começou por se interessar pela crítica histó-rica imanente. Com o tempo, virou a atenção cada vez mais na direcção de uma teoria trans--histórica, Mas, ao contrário dos seus predecessores, foi capaz de preservar uma orientaçãopositiva para a acção. De facto, paradoxalmente, Habermas afastou-se da história comoforma de recuperar uma âncora para o optimismo, enquanto Horkheimer e Adorno o fize-ram numa espécie de radicalização do seu desespero.

Nem a primeira geração da Escola de Frankfurt, nem Habermas foram completamenteinsensíveis à questão da diferença. Com efeito, observámos já a importância conferida aostemas «dialécticos», como o da não identidade, o da resistência a uma sociedade conformistaou reconciliada e o da contestação a uma ciência social reduzida à reafirmação das condiçõesexistentes, sem reconhecer as suas contradições. Adorno, em particular, foi inspirado pelo afo-rismo de Hõlderlin, «o que é diferente, é bom». Grande parte do seu trabalho procurou con-trariar o solipsismo absolutista do «pensamento identitário», aquele género de subjectivismoimplícito e de resistência à diferença característico do pensamento não dialéctico (1973, emparticular p. 183). No entanto, esta descrição universalizada da não identidade e da diferençafica muito aquém da capacidade de compreender particularidades concretas. Tal comoHabermas escreveu, «os indivíduos socializados apenas se mantêm através de uma identidadede grupo» (inAdorno et al., 1976, p. 222). Apesar desta posição, a identidade de grupo nãose tem revelado o seu interesse mais importante. Habermas tem procurado, acima de tudo,uma teoria da acção comunicativa fundada nos pressupostos universais da linguagem e nopotencial dos indivíduos. Ao descrever as condições universais da vida humana, Habermas eos seus antecessores não foram capazes de produzir um entendimento correcto da importân-cia básica e constitutiva da diferença individual e colectiva para os seres humanos. Algumastradições teóricas mais recentes, sobretudo o feminismo, têm desempenhado um forte papelna demonstração das implicações esquecidas da diferença humana.

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Mudanças no Público e no Privado

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A distinção entre público e privado adquiriu um significado novo no início da era modernacom a noção de que no exterior do aparelho estatal de governo existiam dois domínios: o dodiscurso e acção públicos, que poderia questionar ou agir sobre o Estado; e o dos assuntos pri-vados dos cidadãos, legitimamente protegido de regulamentações ou intervenções estatais ilí-citas. As pessoas existiam em dimensões duais, dimensões que se foram impermeabilizando àmedida que os assuntos privados do detentor de cargos públicos se foram distinguindo cadavez mais do seu papel público." De modo correspondente, a noção de um domínio públicoé quase sempre ambivalente, referindo-se tanto às preocupações colectivas da comunidadepolítica como às actividades do Estado que são essenciais para definir essa mesma comuni-dade. Esta dimensão dual do público inscreve-se na noção paralela de privado. O privado ésimultaneamente aquilo que não está sujeito à esfera de competências do Estado e aquilo quediz respeito à prossecução de fins pessoais distintos do bem público, ares publica ou assuntosde preocupação pública legítima.

A noção de «público» é"muito importante para as teorias da democracia. Nessas teorias,tanto aparece como sujeito crucial da democracia - indivíduos organizados enquanto públicoprodutor de discurso e de decisões -, como se apresenta em forma de objecto, o bempúblico. Nos últimos tempos, esta questão tornou-se num foco de atenção da teoria crítica,em especial no mundo anglo-saxónico, em parte devido ao facto da tradução inglesa do tra-balho mais importante de Jürgen Habermas sobre o tema (1989; veja-se também Calhoun,1992) ter coincidido com a queda do comunismo e subsequente preocupação com as tran-sições para a democracia. Ao desenvolver a problemática teórica da esfera pública, Habermascoloca a questão fundamental da possibilidade de alcançar formas de auto-organização socialpor intermédio da participação generalizada e mais ou menos igualitária no discurso de crí-tica racional.

E no entanto, tal como ficou demonstrado de forma nítida pelas análises da exclusão damulher da vida pública, a conceptualização do público processou-se também de maneirasantidemocráticas. Em primeiro lugar, as mulheres foram simplesmente excluídas das agoraidealizadas esferas públicas do início da era burguesa. Foram excluídas do Parlamento inglêse da Assembleia Nacional francesa de uma forma sem precedentes na cultura aristocrática desalão e no discurso político popular (Landes, 1988; Eley, 1992). A questão da «participaçãodemocrática» não é apenas uma questão quantitativa da escala da esfera pública ou da pro-porção dos membros de uma comunidade política que, no seu interior, podem fazer ouvir asua voz de forma legítima, reconhecida. Sendo claramente uma questão de estratificação e defronteiras sociais (por exemplo, abertura aos não proprietários, aos não escolarizados, àsmulheres ou aos imigrantes), é também uma questão do modo como a esfera pública incor-pora e reconhece a diversidade de identidades que os indivíduos, a partir de envolvimentosmúltiplos na sociedade civil, mobilizam para nela intervir. Para que as mulheres participem naesfera pública, por exemplo, há que determinar se o devem fazer, ou não, da forma anterior-mente característica dos homens ou se devem evitar abordar determinados temas, definidoscomo mais apropriados ao domínio do privado (a esfera supostamente mais feminina). Marxcriticou o discurso da cidadania burguesa por transmitir a ideia de que se aplicava a todos,i

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quando, na verdade, presumia tacitamente um entendimento do cidadão como proprietário.O mesmo tipo de falso universalismo vem apresentando a cidadania em termos sexualmenteneutros ou simétricos, sem reconhecer as concepções altamente sexuadas que lhe subjazem.

Todas as tentativas de investir com autoridade uln único discurso público tendem a pri-vilegiar determinados tópicos, determinadas formas de discurso e determinados oradores. Istoresulta, em parte, da colocação da ênfase discursiva na totalidade singular e unitária - o dis-curso de todos os cidadãos e não de grupos de cidadãos - e, por outro, da demarcação espe-cífica entre o público e o privado. Se o assédio sexual, por exemplo, for visto como uma fontede preocupação para as mulheres, mas não para os homens, ganhará contornos de questãosectorial e não de uma questão para o público em geral; se for visto como uma questão pri-vada, então, por definição, não constituirá uma preocupação pública. O mesmo se passa comoutros tópicos de discussão a que são vedadas as hipóteses de reconhecimento pleno numaesfera pública, concebida como discurso único sobre matérias que foram consensualmenteconsideradas de interesse ou significado público.

A alternativa é pensar a esfera pública não como o domínio de um só público, mascomo uma esfera ou constelação de públicos, o que não significa que o florescimento de inú-meros públicos potenciais constitua por si só a solução para este problema basilar da demo-cracia. Pelo contrário, a democracia requer que o discurso atravesse linhas essenciais de dife-renciação. É importante que os membros de qualquer grupo específico sejam capazes deentrar também em outros grupos. A eficácia política de Estados altamente centralizadosexige que, numa escala bastante significativa, se proceda de alguma maneira à organizaçãodo discurso e da acção. Mas até os Estados mais centralizados não são unitários, pelo que assuas diversas burocracias administrativas podem ser abordadas de modo independente. Mui-tas das vezes, os diversos departamentos estatais serão abordados de modo mais eficaz porpúblicos organizados a uma escala menor do que o todo da comunidade política. Assim, umdiscurso público centrado em temas ambientais revela melhor a actividade ambiental dasagências governamentais de regulação do que o faria um discurso público totalmente gené-rico. Dito isto, não se elimina a necessidade de um discurso mais lato, que atente, entre outrascoisas, no equilíbrio das diferentes solicitações feitas ao Estado e que respeite os diferentesinteresses. Mas este discurso pode ser concebido - e alimentado - em resultado de inter-secções múltiplas entre públicos heterogéneos, e não apenas como o privilégio de um públicoúnico e todo englobante.

A partir do momento que iniciemos uma reflexão baseada em entendimentos alterna-tivos de público, deparar-nos-ernos com formas de resistência decorrentes do modo comoas noções de esfera pública se enraizaram no discurso do nacionalismo. Em regra geral, asconcepções de público retiram da retórica nacionalista a capacidade para presumir frontei-ras e a ênfase no discurso da totalidade. Entre outros tropos, a retórica nacionalista valoriza,na forma como concebe a comunidade política, uma imagem do indivíduo(ual) segundo aqual este se relaciona com a nação de forma directa e imediata, de tal modo que a identidadenacional seja experimentada e reconhecida como algo constitutivo da personalidade indivi-dual, e não como o resultado contingente da pertença a grupos intermédios. Porque a naçãoé compreendida como unitária e íntegra, o pensamento nacionalista desencoraja a noção depúblicos múltiplos e heterogéneos; aliás, é típico do pensamento nacionalista rejeitar os dese-

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jos de quase-autonomia dos discursos ou movimentos subnacionais, apelidando-os de divi-sionistas. Na medida em que o entendimento de senso comum e as ideias políticas sobre avida pública que partilhamos dependam de pressupostos nacionalistas, é de esperar que nelesdesponte um desvio em direcção a um universalismo homogeneizador. Sempre que o nacio-nalismo ou qualquer outra formação cultural reprimam a diferença, a capacidade da esferapública levar avante o discurso pró-democrático de crítica racional será minada no seu âmago.

Trata-se aqui de uma apreciação incorrecta do grau em que a diferença, ou aquilo queHannah Arendt designava por «pluralidade», constitui algo de básico, não só para a vidahumana em geral, mas especificamente para o projecto da vida pública e, em consequência,para a democracia.t- Na perspectiva de Arendt, o pluralismo não é uma condição da vida pri-vada ou o produto de gostos pessoais quotidianos, mas, pelo contrário, um potencial que flo-resce em realizações públicas criativas. Arendt só aceitou as restrições à participação Pfblicaexistentes na Grécia Antiga precisamente por considerar que poucos indivíduos poderiamescapar à implícita conformidade imposta por uma vida consagrada à produção material.Apenas a fuga a essas grilhetas permitiria alcançar uma distinção real no domínio da praxis.Mas não é necessário que concordemos com esta premissa de exclusão para intuir que a razãopara um discurso público reside na forte possibilidade de membros diferentes trazerem à cola-ção ideias diferentes.

A importância de ligar a distinção entre público e privado à distinção entre praxis e tra-balho em sentido estrito reside na possibilidade de apresentar a esfera pública como algomais do que uma arena para a prossecução ou negociação de interesses materiais em com-petição. Esta é a imagem proposta na versão de Habermas, que se caracteriza pela ênfase napossibilidade de um discurso de crítica racional desinteressado e pela sugestão de que a esferapública degenera à medida que é penetrada por grupos de interesse organizados. Ao presu-mir tão-só que estes interesses se traduzirão em diferentes políticas para alcançar fins objec-tivamente identificáveis estaremos a reduzir a esfera pública a um fórum de peritos políticosbenthamistas, em vez de apresentá-la como um veículo de autogoverno democrático. Isto éalgo que Habermas claramente não pretende elogiar, embora não esteja assim tão longe dasua versão da esfera pública como poderia parecer à primeira vista. Uma razão para que talsuceda é o facto de Habermas não colocar a mesma ênfase na criatividade que Arendt.O autor alemão trata a actividade pública maioritariamente em termos de discurso racional--crítico e não tanto em termos de formação ou expressão de identidade, e, de alguma forma,estreita o significado e a importância do pluralismo, introduzindo a possibilidade de as rei-vindicações dos peritos serem mais apropriadas à racionalidade técnica que a acção cornu-nicativa.v' Parte do enquadramento deste problema reside na própria forma como o públicofoi separado do privado na esfera pública liberal do final do século XVIII e início do século XIX,que serve de base à construção dos tipos-ideais de Habermas.

O modelo liberal da esfera pública procura a igualdade discursiva através da desqualifi-cação de qualquer discurso que se apoie nas diferenças entre actores. Estas diferenças são tra-tadas como questões de interesse privado, e não público. Segundo a descrição de Habermas,a melhor versão da esfera pública baseava-se numa «espécie de relação social que, longe depressupor a igualdade de estatuto, optava por não valorizar de todo essa questão» (1989,p. 36). Funcionava através de «uma disponibilidade mútua para aceitar os papéis sociais

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dados, ao mesmo tempo que suspendia a sua realidade» (p. 131). Este «pôr entre parêntesis»da diferença enquanto algo meramente privado e irrelevante para a esfera pública é adoptado,argumenta Habermas, como forma de defender a genuína noção de crítica racional segundoa qual a troca de argumentos deve ser decidida em função do seu mérito e não das identida-des de quem argumenta. Isto foi tão importante quantó o medo dos censores face à proemi-nência de autores anónimos ou pseudónimos na esfera pública setecentista. Não obstante,teve como efeito a exclusão de algumas das mais importantes preocupações de muitos mem-bros de qualquer comunidade política - quer aqueles cujas identidades existentes são supri-midas ou desvalorizadas, quer aqueles cuja exploração de possíveis identidades é mutilada.Ademais, este «pôr entre parêntesis» as diferenças corrói também a capacidade auto-reflexivado discurso público. Se não for possível comunicar seriamente acerca de diferenças básicasentre membros de uma esfera pública, então será decerto impossível solucionar as dificulda-des de comunicação que atravessam essas linhas básicas de diferenciação.

Habermas diz-nos que a esfera pública é criada dentro e fora da sociedade civil.44A esferapública não é, pois, absorvida pelo Estado; ela interpela-o, assim como ao tipo de questõespúblicas sobre as quais as políticas estatais poderão incidir. A esfera pública baseia-se (1) numanoção de bem público como algo distinto do interesse privado; (2) em instituições sociais(como a propriedade privada) que possibilitam aos indivíduos participar de forma indepen-dente na esfera pública, visto as suas subsistências e o acesso a elas não estarem dependentes

.do poder político ou de um patrono; (3) em formas da vida privada (nomeadamente as famí-lias) que preparam os indivíduos para agir na esfera pública como sujeitos críticos e racionaisautónomos. Do facto de a esfera pública depender da organização de uma vida privada, pré--política, que habilite e encoraje os cidadãos a ultrapassar as identidades e preocupações pri-vadas, surge um paradoxo e uma fraqueza, não só da teoria de Habermas, mas da própria con-cepção liberal que esta analisa e em parte incorpora. Expliquemo-nos: esse facto explica porque a teoria aspira mais a transcender as diferenças do que a proporcionar ocasiões para oreconhecimento, expressão e inter-relacionamento.

A resolução desta questão depende de dois factores principais. Em primeiro lugar, énecessário questionar a ideia de uma esfera pública única e singularmente investida de auto-ridade, tal como é necessário considerar-se a geometria das relações entre públicos múltiplos,intersectantes e heterogéneos. Em segundo lugar, é indispensável abordar o processo de for-mação identitária enquanto parte integrante do processo da vida pública, e não como algoque pode ser resolvido de antemão numa esfera privada.

Reconhecer o carácter múltiplo dos públicos, impedindo que qualquer deles possa recla-mar um estatuto de superioridade em relação aos outros será já um primeiro passo nessa direc-ção (Eley, 1992; Fraser, 1992). Esse passo depende, porém, da ruptura com premissas funda-mentais que unem o pensamento político liberal ao nacionalismo. Uma das ilusões dodiscurso liberal consiste na crença de que. numa sociedade democrática existe ou poderá exis-tir, acerca das questões públicas, um discurso único e singularmente investido de autoridade.Esta suposição exprime a tentativa de resolver a Prio ri uma questão que faz inextricavelmenteparte do próprio processo democrático. Reflecte a suposição nacionalista de que a pertença auma sociedade comum é anterior às deliberações democráticas, assim como a crença implícitade que a política gira em torno de um Estado único e unitário. Não obstante, é normal, nada

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aberrante, que os indivíduos se exprimam em arenas públicas diferentes e que estas questio-nem diversos centros de poder (estejam eles institucionalmente diferenciados no interior deum só Estado, combinando Estados ou agências políticas diversas, seja reconhecendo que agên-ciaspresumivelmente não políticas, como as organizações comerciais, constituem foros de poderabordáveis pelo discurso público). O número e o grau de independência destas esferas públi-cas constitui matéria para investigação empírica, Mas cada esfera tende, em cada momento, atornar determinados temas mais fáceisde abordar e a reprimir outros, pelo que cada uma delasconferirá autoridade a diferentes vozes, segundo hierarquias dispares. O facto de as mulherese das minorias étnicas proferirem discursos públicos próprios não reflecte apenas a exclusão decertos grupos de indivíduos da esfera pública «dominante», reflecte também um acta positivopor parte desses grupos. Para os referidos grupos, significa igualmente que dar continuidade àinclusão equitativa na esfera pública dominante nunca constituirá nem um reconhecimentoadequado dos seus discursos parcialmente separados, nem uma resolução para o problema queestá subjacente. É importante organizar o discurso público de forma a que este autorize cone-xões discursivas entre arenas múltiplas.

Podemos concluir que o reconhecimento da existência de esferas públicas múltiplas nãooferece uma alternativa a muitas das questões colocadas por Habermas sobre a esfera pública,ou seja, sobre o discurso de maior raio social possível e sobre a sua capacidade para influen-ciar a esfera política. Esse reconhecimento indica simplesmente que estas interrogações neces-sitam de respostas num mundo de públicos múltiplos e diferenciados. Investir de autoridadeou reconhecer um deles como propriamente «público», ou apenas alguns deles como legiti-mamente mais «públicos» que outros (por sua vez apresentados como «privados»), constituium exercício político de poder. Por outras palavras, determinar de entre a multiplicidade pos-sível de públicos aqueles cujo discurso é mais propriamente «público» é em si mesmo objectode contestação política. Em geral, discursos públicos diferentes fazem uso de critérios de dis-tinção diferentes para delimitar o que consideram ser propriamente «privado» e que, por issomesmo, se torna ilegítimo usar no discurso ou na resolução de debates na praça pública. Porentre os vários feixes discursivos, não existe qualquer critério objectivo para distinguir opúblico do privado. Não é possível afirmar de forma indiscutível que, por exemplo, as con-tas bancárias ou as orientações sexuais são essencialmente questões da esfera privada. As dis-tinções e diferenciações variáveis entre público e privado são resultados potenciais (e reversí-veis) de cada esfera de discurso.

Grande parte do discurso que tem lugar em público, e que é tornado acessívelao públicomais vasto, aborda matérias que não são indiscutivelmente públicas. Ao afirmá-lo, penso nãosó nas pessoas que aproveitam ocasiões notoriamente públicas, como a presença em progra-mas de televisão, para falar acerca daquilo que é comummente considerado privado (como assuas vidas sexuais), mas também no facto de muitos tópicos que suscitam atenção generali-zada por parte da comunidade política (como a maternidade e a educação infantil, o casa-mento e o divórcio, ou a violência de vários tipos) serem trazidos à colação em discussões que,sendo públicas na sua constituição, não se representam a si mesmas como públicas da mesmaforma que o fazem os editoriais dos jornais, e tão-pouco são encaradas de forma igualmenteséria pela maioria dos participantes na esfera pública investida de maior autoridade. Estasquestões são discutidas nas igrejas e em grupos de auto-ajuda, por cinéfilos e em programas

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de rádio, por pais à espera dos filhos após as festas escolares, e por aqueles que aguardam oinício do período de visita nas prisões. É muito difícil determinar se o discurso destes peque-nos grupos de pessoas, ou de quaisquer outros, se organiza segundo as linhas de crítica racio-nal típicas da esfera pública clássica iluminista de Habermas. Mas seria um erro presumir apriori que só é possível o exercício de uma crítica racional a propósito de matérias de Estadoou da economia e que estas esgotam necessariamente o domínio da esfera pública. Inversa-mente, a sistemática relegação de tópicos de discussão para o domínio do privado poderá ser,segundo vários cambiantes, ora uma protecção em relação à intervenção ou observação públi-cas, ora uma exclusão desautorizadora em relação ao discurso público.

As diferenças entre esferas públicas são importantes. Tratar todos estes discursos públi-cos mais ou menos diferenciados simplesmente como esferas públicas no sentido haberrna-siano seria passar ao lado do próprio projecto teórico de Habermas. Fazê-lo seria tratar deforma inteiramente arbitrária a ênfase do autor alemão no discurso de crítica racional; seriaconstituir como critério da capacidade de persuasão as diferenças entre pessoas enquantoestão a produzir argumentos em vez das suas identidades de arguentes. Comprometeria, aum nível fundamental, a contribuição da perspectiva das esferas públicas para a teoria demo-crática. Mas, em parte, é o próprio Habermas que suscita este problema, por utilizar umadistinção problemática entre público e privado, algo tornado aparente pelo reenvio da ques-tão da formação identitária (logo, da formação de interesses) para o domínio do privado.

Habermas presume que as identidades se formam em privado (ou noutros contextospúblicos) num momento prévio à entrada do indivíduo na esfera pública política. Segundoele, a esfera do discurso crítico e racional só funcionará se as pessoas forem adequadamentepreparadas para nela intervirem por intermédio de outros aspectos das suas experiências cul-turais e pessoais. Habermas discute brevemente o modo como a emergência de uma esferapública literária apoiada pelo crescimento dos públicos leitores de romance e frequentado-res de teatro contribuiu para o desenvolvimento da esfera pública política, mas não exploraesta ideia até às últimas consequências. O autor abandona a discussão da esfera pública lite-rária na sua encarnação oitocentista, isto é, a partir do momento em que cumpriu o seupapel de abrir caminho para a emergência da esfera pública política iluminista. Não tem emconta as mudanças subsequentes no discurso literário, nem a forma como estas poderão terestado relacionadas com mudanças ao nível das identidades mobilizadas pelos indivíduosque participam na esfera pública política.

Em termos mais genéricos, Habermas não tematiza de forma satisfatória o papel da acti-vidade pública formadora de identidades e de culturas. Habermas trabalha principalmente como contraste entre o domínio da vida privada (tendo a esfera íntima como seu derradeiro san-tuário) e a esfera pública, dentro do qual assume que a identidade emana da combinação entrea vida privada e as posições económicas ocupadas na sociedade civil.Todavia, se abandonarmosa noção segundo a qual a identidade fica formada de antemão à participação na esfera pública,reconheceremos que todos os discursos públicos podem constituir, em graus variados, ocasiõespara a formação de identidade. Esta é a ideia central da contribuição feita por Negt e K1uge(1993), que parte da apropriação da noção fenornenológica de «horizontes de experiência»,usando-a como meio de alargar a abordagem habermasiana da esferapública. A experiência nãoé algo prévio, nem algo que seja abordado em exclusivo pelo discurso de crítica racional da

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esfera pública; em parte, ela é constinúda através do discurso público ao mesmo tempo queorienta as pessoas na vida pública de forma diferenciada e contínua." É possível distinguir esfe-ras públicas nas quais a formação identitária tem mais importância e outras em que essa impor-tância é conferida ao discurso de crítica racional, mas não é correcto assumir a existência dequalquer esfera pública política on'Qça formação (e re-formação) da identidade não seja signi-ficativa.46 A formação de identidades e o debate público são difíceis de separar por completo.

Excluir o projecto de formação identitária da esfera pública não faz mais sentido queexcluir os projectos de construção de identidades que são «diferentes num sentido proble-mático». Hoje em dia, poucas vozes argumentariam contra a inclusão social das mulheres,das minorias raciais e étnicas, e de todos os outros grupos claramente sujeitos ao mesmoEstado e membros da mesma sociedade civil- pelo menos nas esferas públicas liberais alar-gadas do Ocidente. E, no entanto, muitos argumentam contra a atribuição de cidadaniaàqueles que recusem os mais variados projectos de assimilação. Não são só os alemães comas suas ideias sobre cidadania nacional que têm um problema com os imigrantes. A lingua-gem da esfera pública liberal é usada para requerer que apenas o inglês seja falado na Flo-rida, por exemplo, ou que os árabes e os africanos, caso desejem permanecer em França, seconformem com determinadas ideias do que é ser francês. E já agora, muitos outros argu-mentos - como por exemplo, o de que só os heterossexuais poderão servir no exército -têm forma e estatuto bastante semelhantes. Exigem conformidade como condição para umacidadania plena. No entanto, as migrações a uma escala planetária continuam intensas, tor-nando cada vez mais difícil suprimir a diferença. Se a esfera pública tiver capacidade paraalterar a sociedade civil e moldar o Estado, então a sua própria prática democrática deveráser capaz de confrontar as questões da pertença e da identidade da comunidade política querepresenta. Estas questões não podem ser resolvidas «com objectividade»; podem apenas serdebatidas entre discursos públicos que possuam uma dimensão política, e, pelo menos empotência, teórica. O modo como estes públicos, grandes ou pequenos, conseguirem incluirdiferentes vozes será muitíssimo relevante para a sua importância prática.

Repensar a Teoria Crítica

Em resumo: os teóricos de Frankfurt não inventaram a teoria crítica, nem detêm qual-quer tipo de direito de propriedade sobre ela. Contudo, protagonizaram um papel muitoimportante na confluência das tradições intelectuais-chave que integram a teoria e no desen-volvimento de uma visão séria do modo como a teoria crítica poderia questionar o discurso daesfera pública. Hoje em dia, a teoria crítica é praticada não só por Habermas e pelos seus cor-religionários, mas também por um vasto leque de autores que trabalham a partir de diferentesabordagens: teóricos feministas, pós-estruturalistas, teóricos da prática, etc.

A teoria crítica pode ser definida como o corpo de trabalho interpretativo que exige eproduz crítica nos seguintes quatro sentidos:

1. Uma relação crítica e de tensão com o mundo social contemporâneo, na qual se reco-nheça que a ordem social existente não esgota todas as possibilidades e na qual se pro-curem efeitos positivos para a acção social;

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472 - A NATUREZA DO SOCIAL

2. Uma descrição e explicação críticas das condições históricas e culturais (tanto sociais,como pessoais) das quais depende a própria actividade intelectual do teórico;

3. Um contínuo ré-exame crítico das categorias constitutivas e dos quadros conceptuais deentendimento utilizados pelo teórico, incluindo a construção histórica desses quadros;

4. Uma confrontação crítica com outros trabalhos de explicação social, que, para alémde estabelecer os seus pontos fortes e fracos, mostre as razões por trás dos seus silên-cios e incompreensões e que demonstre capacidade para integrar as suas contribui-ções num corpo de trabalho mais sólido.

Parece-me que qualquer destas quatro modalidades de crítica depende, em certamedida, de uma perspectiva histórica de análise. A primeira supõe a «desnaturalização» domundo humano, reconhecendo-o como produto da acção humana, logo, de forma implí-cita, como produto de algumas acções de entre um vasto espectro de possibilidades. Paraalém disso, numa perspectiva teórica crítica, uma relação séria com o mundo social de cadaum exige descrever esse mundo nos termos das suas características relevantes para a acçãoprática, assim como uma capacidade para o colocar em relação com outros padrões básicosde actividade (por exemplo, com outras épocas ou com contextos culturais e sociais dife-rentes).

A segunda requer uma descrição das realizações e das particularidades da história quetornam possível a visão do teórico contemporâneo. Não se trata apenas de saber de que pontode vista olhamos o mundo, mas de compreender a totalidade da formação social que con-cede a cada um a oportunidade e os instrumentos para a reflexão teórica.

A terceira convida à análise histórica das formas segundo as quais as ideias acabam poradquirir novos significados, ao se inscreverem em diferentes contextos e projectos intelectuais,e ao serem investidas com determinados tipos de referências ao mundo da experiência e daprática. Se pretendermos exercer uma crítica séria dos conceitos que incorporamos nas teo-rias - pensamos, por exemplo, nas «palavras-chave» , tais como «indivíduo» ou «nação», ana-lisadas por Raymond Williams -, precisamos de os surpreender no processo da sua criaçãohistórica, e admitir que nenhuma tentativa de especificação operacional poderá alguma vezescapar ao impacto dessa história.

Por fim, um confronto verdadeiramente crítico com outros esforços teóricos de explica-ção do social não dispensa uma tentativa séria de inseri-los no processo histórico. Nesta pers-pectiva, as teorias passadas não surgem apenas como modelos a seguir, como sucessos parciaisou fontes de insights descontextualizados, mas como trabalhos delimitados e baseados em his-tórias diferentes das nossas. De forma ainda mais básica, é urgente entender que as confronta-ções entre teorias raramente são resolvidas pela vitória do certo sobre o errado, do verdadeirosobre o falso. Os teóricos não trabalham num mundo de respostas certas ou erradas, masnaquilo que Charles Taylor designou como «ganho epistérnico», referindo-se à deslocação nointerior de um campo de alternativas disponíveis de uma posição problemática para uma posi-ção mais adequada ou ajustada (ao contrário do rnítico movimento epistemológico de deslo-cação entre falsidade e verdadel.i? Este movimento não poderá ser bem compreendido emtermos atemporais, abstractos. Não é como se os teóricos individuais se limitassem a mudar deideias enquanto eles próprios e o mundo permanecem imutáveis. Pelo contrário, os seus

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TEORlA SOCIAL E A ESFERA PÚBLICA - 473

ambientes e hábitos pessoais mudam, eles mudam, e as suas ideias (fazendo indissociavelmenteparte deles) mudam com eles.

Que a teoria crítica (nestes quat.!P sentidos) dependa de mecanismos de análise histó-rica não deixa de se relacionar com a sua situação na esfera pública. A teoria crítica feita deforma séria não poderá aceitar as pretensões de objectividade ou «o ponto de vista de nenhu-res» que encoraja alguns teóricos a acreditar que o seu trabalho pode alcançar a exaustivi-dade, que poderá estar suficientemente liberto da mudança histórica para merecer isentar--se do discurso público. Nenhuma teoria está acabada; nenhuma está ao abrigo de localiza-ção social; todas deverão, por conseguinte, permanecer abertas à revisão baseada no discursocrítico. Pela mesma ordem de ideias, todos os discursos públicos são necessariamente con-duzidos a partir de categorias que transportam preconceitos e parcialidades; também eles sedevem abrir à revisão baseada no discurso crítico. Proceder desta forma seria, no mínimo,fundamental para poder olhar a democracia como algo diferente da engenharia social.

Notas

1 Vejam-se também os comentários de Arendt (1954 [1977, p. 215]), que ligam a moderna acepção de filisteu, nãosó, ou mesmo maioritariamente, à raiz bíblica do termo, mas também à noção grega de «espírito banáusico», expri-mindo a orientação praxiológica comum àqueles que se limitam a fabricar.

2 «Nesta luta pela conquista de uma posição social», escreveu Arendt vinte anos antes de La Distinction de PierreBourdieu, «acultura começou a assumir um papel muito importante enquanto uma das armas mais eficazes,senãomesmo a mais eficaz, para as estratégias de ascensão social. Nesta perspectiva, a cultura permitia fugir, através domecanismo de escolarizaçâo, às regiões sociais escusas e deprimidas, habitadas supostamente pela realidade, emdirecção a regiões mais elevadas, regiões não reais, onde a beleza e o espírito estariam seguros e confortáveis [...] acultura, mais até do que as outras realidades, tornara-se em algo que só então se começava a designar por "valor",isto é, uma mercadoria social que se poderia fazer circular e trocar por quaisquer outros valores, sociais e indivi-duais» (1954 [1977, pp. 202 e 204]).

3 Ainda que colocando a ênfase em aspectos diferentes, esta é uma das conclusões da versão que Pierre Bour-dieu apresenta em Homo academicus (1988). Bourdieu apresenta esta faceta da cultura académica como umtraço universal quase inevitável, e não tanto como uma questão de grau, opção esta que me inclinaria mais aaceitar.

4 Rorty (1982) aproxima-se bastante deste tipo de dualismo ao postular uma analogia com a imagem kuhniana datensão entre ciência normal e ciência revolucionária. Tomada demasiado à letra (conforme o fazem muitos autorespós-modernos e, para efeitos de crítica, à imagem do que sucede na leitura algo tendenciosa de Habermas (1987,p. 206» isto equivaleria a um estorvo e não a uma ajuda na obtenção de um grau adequado de abertura ao mundo.

5 Esta não é, de forma alguma, uma tarefa inútil. O mundo muda de inúmeras pequenas formas e para a reproduçãode uma grande quantidade de actividades rotineiras necessitamos de renovado conhecimento descritivo das variaçõesnos padrões sociais,como por exemplo: deslocaçõesnas distribuições populacionais, retorno variáveldos investimen-tos educacionais ou novas relaçõesentre condições de mercado e estrutura organizacional.Ao mesmo tempo, cadaum de nós chega ignorante a este mundo e tem de aprender de novo - por vezes,mais do que uma vez - conhe-cimentos básicos que tornam essemundo tão familiar mais compreensÍvel- ainda que o não contestem. Portanto,não pretendo sugerir que só deva ser valorizada a produção de conhecimento susceptívelde transformar as rnundivi-sões, nem tão-pouco que apenas o conhecimento radicalmente novo possa ser transformador da vida humana.

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474 -A NATUREZA DO SOCIAL

6 A atenção às narrativas é igualmente importante. Esta importância decorre do facto de narrativas de vários géneros

exercerem um domínio a um nível fundamental sobre as imaginações e decisões de toda a espécie de actores pelo

mundo fora. Ver Ricoeur (1984-6) e a discussão sociológica da narrativa em Somers (1992), em Somers e Gibson

(1994), e em Abbott (1990; 1992).

7 Isto é algo que Arthur Stinchcombe (1978) demonstrou categoricamente, ainda que tenha limitado o termo «teo-

ria» às formulações universais e proposicionais e tenha tratado as analogias como algo que não é teoria, o que eu

penso ser errado.

8 Veja-se Adorno et alo (1976). A confusão entre empirismo e positivismo foi facilitada, talvez, pelo facto de o inves-

tigador empírico mais importante contemporâneo da primeira geração da Escola de Frankfurt ter sido Paul Lazars-

feld, que havia sido influenciado pela Escola de Viena antes de emigrar para os Estados Unidos.

9 Esta linha de argumentação foi desenvolvida. essencialmente por Hans-Georg Gadamer (esp, 1975) e Charles Tay-

lor (1989; 1995).

10 É geralmente assumido que Michel Foucault desferiu um ataque radical à verdade por ter argumentado que «efei-

tos de verdade são produzidos {ar discursos que em si mesmos não são'nem verdadeiros, nem falsos» (1980, p. 118).

Independentemente de se considerar que Foucault lançou ou não um desafio assim tão radical, podemos também

ler no seu comentário um reconhecimento de que as reivindicações específicas de verdade só podem ser disponibi-

lizadas a partir de discursos mais latos que não podem ser reduzidos a estruturas reivindicativas de verdade. Assim,

quer Weber, quer Durkheim oferecem discursos teóricos alargados - e servem a sociologia ao ajudarem a funda-

mentar discursos teóricos genéricos, no seio dos quais podem ser produzidos «efeitos de verdade» e nos quais tam-

bém é possível apoiar reivindicações de verdades proposicionais mais específicas. Mas não tem muito significado

argumentar que, em termos gerais, as sociologias weberiana e durkheimiana, como um todo, são verdadeiras ou

falsas. De forma semelhante, o discurso do nacionalismo ajuda a tornar possíveis uma variedade de verdades ou de

efeitos de verdade, assim como modos de colocar proposições e argumentos possivelmente verdadeiros, sem, em si

mesmo, poder ser considerado verdadeiro ou falso.

11 A disputa em torno dos métodos, tornada famosa pelo Methodenstreitalemão do final do século XIX, continua hoje

em dia, como é óbvio. Todavia, essa disputa já não é travada com as categorias tornadas proeminentes por uma his-

tória que mantinha ainda a pretensão realista de se apresentar como uma disciplina abrangente, fornecedora de

identidade e desfrutando de uma importância pública predominante.

12 Ver também a discussão de Berstein (1992, pp. 15-30) do trabalho de Arendt, incluindo o uso que esta autora faz

desta metáfora.

13 Allan Megill (1985) lembra-nos também que Kant foi o ponto de partida para a tradição que se estende de Nietzsche

a Heidegger, Foucault e Derrida, Em particular, .a tensão introduzida pela nítida distinção de Kant entre os domínios

do entendimento (razão pura), da acção moral (razão prática) e da estética (juízo) foi muito perrurbante, em especial

na medida em que a disjunção kantiana entre as duas primeiras críticas não parecia ser adequadamente mediada pela

terceira. Esta foi, decerto, a principal preocupação de Hegel em relação a Kant. Para a maneira como esta ideia de Kant

enquanto o filósofo moderno paradigmático que moldou o trabalho inicial de Hegel, ver Hegel (1977) e (1978).

14 Este livro talvez constitua o melhor guia para situar Hegel na tradição da teoria critica, assim como para o tópico

mais genérico que o intitula. Nos próximos parágrafos, estou-lhe em dívida, bem como à leitura de Hegel feita por

Taylor (1975).

15 Esta é uma das razões para a atracção sentida por Georg Lukács (ver 1976) pelo jovem Hegel, ele próprio, por seu

turno, uma influência crucial na Escola de Frankfurt.

16 O argumento mais consistente para a especificidade histórica das categorias de Marx surge, porvenrura, em Moishe

Postone (1993).

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II

TEORlA SOCIAL E A ESFERA PÚBLICA - 475

17 Apesar destes temas circularem por todo o trabalho de Lukács, o texto crucial é «Reification and me Consciousness of

me Proletariar», o capítulo central de History and Class Consciousness (1922). Marx tinha-se inspirado em ideias seme-

lhantes de unidade estética e, em particular, da unidade do pensamento do trabalhador manual, trabalho e produtivi-

dade, mas fê-lo de forma mais consistente no seu trabalho inicial. Nas obras de maturidade, o seu crescente reconheci-

mento do carácter sistemático do capitalismo tomou-o (aparentemente) mais céptico da prevalência da validade da sua

crítica que se baseava na estrutura da produção pré-capitalisra ou do capitalismo inicial. Não obstante a crítica da alie-

nação não desaparecer por completo, deixa de ser o princípio organizador do trabalho mais tardio de Marx. Isto abre

caminho para os teóricos críticos e outros saudarem a publicação atrasada dos textos iniciais de Marx (recuperados para

o debate académico nos anos 1930, ainda que não imediatamente conhecidos de forma generalizada) como ocasião

para uma reorientação extraordinária do pensamento marxista e como oportunidade para uma crítica marxista ao socia-

lismo de facto existente, isto é, ao comunismo estalinista - e, mais tarde, após 1976, também ao comunismo rnaoísta).

18 Marcuse (1955) constitui, num certo sentido, uma reformulação de Freud (1962) enquanto crítica histórica da

modernidade capitalista.

19 Uma instância particularmente evid~ é a análise da violência nacionalista (tal como a verificada na Bósnia, no

início da década de 1990) simplesmente como o resultado inevitável, embora lamentável, da etnicidade primordiall

e de antigos conflitos, em lugar de (1) ver as identidades e tensões étnicas como produtos; e (2) ver as etnicidades

preexistentes como estando sujeitas a manipulações muito recentes. A visão «tradicional», quando articulada por

líderes políticos proeminentes (como o secretário de Estado norte-americano Warren Christopher) transforma-se

numa racionalização da inacção, numa afirmação do mundo tal como ele é - por muito lamentável que seja -

em vez de se constituir como uma base prospectiva, que permita ver como poderia ele ser de outra forma.

20 Tal como vimos anteriormente, Horkheimer, Adorno e, mais tarde, Habermas viriam a persistir no uso do «posi-

tivismo» como um conveniente termo-chapéu para todas as perspectivas da ciência social que afirmavam a mera

positividade factual do mundo social e que obscureciam o facto desse mundo social ser uma criação dos seres huma-

nos e de ser, correlativamente, pejado de contradições internas. Eles não queriam nomear, de forma mais limitada,

o Círculo de Viena ou os positivistas lógicos, e ainda menos dissidentes como Karl Popper, a quem reconheciam

como possuidor de um posicionamento mais crítico - pelo menos no que dizia respeito à narureza da teoria e àsua distinção categorial em relação às generalizações empíricas.

21 Ainda assim, a versão durkheimiana deste positivismo não era o objecto imediato da crítica de Horkheimer. É rele-

vante que a ênfase weberiana na compreensão inrerpretativa, Verstehen, que é usualmente contraposta nos cursos de

sociologia à perspectiva de Durkheim, não ofereça qualquer garantia de desafiar a reificação. Pelo contrário, como

Horkheimer tornou claro na sua crítica de Mannheim, uma perspectiva interpretativa poderia permanecer focada

no nível de subjectividade individual de tal forma que o mundo social permaneceria opaco a ela. Desse modo, se

bem que o significado para os indivíduos de instituições criadas historicamente fosse captado, a aparente autono-

mia do indivíduo e a reificação do domínio social continuava impune.

22 Este foi o trabalho inicial mais importante; nele, os teóricos de Frankfurt - os associados no Instirute for Social

Research - tentaram levar à prática a sua visão da unidade interdisciplinar da teoria e da pesquisa empírica. Para

além de Horkheimer, estavam também envolvidos Erich Fromm, Herbert Marcuse e Karl Wittfogel. O trabalho

The Autboritarian Personality (Adorno et al., 1950), no qual Adorno desempenhou o papel central, constirui, em

muitos aspectos, uma extensão deste projecto inicial, reorganizando-o a partir de um foco no anti-semitismo.

23 Os leitores de língua inglesa podem agora observá-lo claramente através da publicação de Horkheimer (1993).

24 De facto, Horkheimer e Adorno há muito que mantinham uma certa ambiguidade em relação à questão da especifici-

dade histórica. Por exemplo, estes autores trataram, em geral, a concepção de trabalho de Marx enquanto categoria trans-

-histórica, e não como categoria especificamente constirutiva do capitalismo moderno. Ver Postone (1993).

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476 - A NATUREZA DO SOCw...

25 São aparentes as semelhanças com boa parte da «ecologia profunda» de hoje; neste último caso, um relato trans--histórico não permite isolar aspectos históricos concretos no âmbito das depradações da natureza,

26 Sobre as diferentes ideias de crítica e suas relações com a teoria crítica da Escola de Frankfurt, ver Seyla Benhabib(1986).

27 Este é um tema que surge com frequência no trabalho da Escola de Frankfurt; para além de Dialectic ofEnlighten-ment; ver em especial Adorno (1973), que procura elucidar um conceito positivo de iluminismo - iluminismoreflexivo- em contraponto à concepção mais negativa desenvolvida em Dialectic of Enlightenment.

28 Vejam-se as análises quase-contemporâneas de Hannah Arendt (1951; 1954) destes mesmo assuntos.29 Para além dos trabalhos de Jay e Wiggershaus já citados, ver Postone e Brick (1982). Deverá ser notado que esta

orientação pessimista afectou Horkheimer e Adorno mais profundamente do que outros membros da geração maisantiga da Escola de Frankfurt (apesar de, num certo sentido, uma versão deste pessimismo ter já ceifado a vida doseu colega Walter Banjamin, que resistira tanto à necessidade imperiosa de deixar a Europa que esperou até serdemasiado tarde, tendo-se suicidado por pensar que tinha falhado na tentativa para escapar à França ocupada). Deforma mais notável, Herbert Marcuse nunca se lhe rendeu e continuou a procurar as possibilidades para uma trans-formação social radical e a apoiar movimentos sociais de uma forma que 'Horkheimer e Adorno receavam fazer,porperspectivarem o provável desenlace desses movimentos em formas de repressão ou em novos terrores.

30 A colaboração de Negr com Alexander K1uge (1993) constituiu uma tentativa importante para compreender estedesenvolvimento multifacetado da teoria crítica no contexto do movimento estudantil.

31 A crítica de Derrida às filosofiase práticas artísticas que procuram a presença e às formas de pensamento que pre-sumem que o discurso fornece u:nia base de imediaticidade da qual estamos distanciados pela escrita é alimentada,em parte, por esta questão, embora a aborde de forma radicalmente distinta. Derrida, ao tratar a escrita - carac-terizada pela não imediaticidade e diferença - como primária, responde directamente àquilo que pensa serem asilusões e perigos da busca da imediaticidade.

32 Neste conjunto de prioridades inicial, Habermas, para além de trabalhar directamente sobre a relação entre a teo-ria e a prática, assume também o debate sobre a metodologia das ciências sociais, tentando estabelecer a importân-cia de ir mais além do que uma mera hermenêutica permite realizar, assim como a falácia das crenças positivistasnuma separação nítida entre conhecimento objectivo e acção humana interessada. Ver Habermas (1988) e (1969).

33 Como resumiu Habermas (1973, p. 9): «Os interesses prático e técnico do conhecimento não são reguladores dacognição que devam ser eliminados para bem da objectividade do conhecimento; pelo contrário, eles própriosdeterminam o aspecto sob o qual a realidade é objectivada, tornando-a assim acessívelà experiência.»

34 Habermas realizoua sua habilitation em Magdeburgo sob a orientação de WolfgangAbendroth, talvezo único profes-sor socialistapublicamente activona Alemanha da altura.

35 Para além do próprio The Structural Transformation ofthe Public Sphere, vejam-se os ensaios em Calhoun (1992),

incluindo, na introdução, a exposição e conrextualização do livro de Habermas.36 Sobre a negligência da ciência e religião, ver Zaret, em Calhoun (1992). Sobre a forma como o discurso científico

tem permanecido associado com a esfera pública política, ver Yaron Ezrahi (1990).

37 A própria teoria da sociedade de massas cresceu, em parte, a partir do trabalho anterior desenvolvido pela Escolade Frankfurt, apesar da sua concepção ser mais lata e das suas raízes serem mais antigas.

38 Resumi a argumentação de Habermas, e a sua condição teórica, de forma mais pormenorizada na introdução deCalhoun (1992).

39 Aqui, a obra central é Habermas (1987); uma série de trabalhos posteriores têm refinado a teoria básica que aí éexposta. O campo da ética tem constituído um foco particularmente importante de atenção; ver Benhabib e Dall-mayr (1990) .

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TEORIA SOCIAL E A ESFERA PúBLICA - 477

40 Carta de Horkheimer a Adorno, 1941, citada em Wiggershaus (1994, P: 505). Habermas faz remontar este tema

a uma busca de redenção comunicativa de sujeitos livres, um caminho encetado, mas logo abandonado, pelo jovem

Hegel.

41 Tal como a separação entre as finanças familiares e as finanças comerciais, este é um processo que faz parte da his-

tória weberiana de modernização e racionalização.

42 A exploração_de Arendt (1958) da ideia de esfera pública influenciou Habermas e figura, por direito próprio, como

uma contribuição relevante e diferente para esta linha teórica. Veja-se a comparação em Benhabib (1992).43 A última frase usa claramente termos do trabalho mais tardio de Habermas que não são usados em The Structural

Transformation o/ the Public Sphere.44 Apesar de Habermas ser influenciado por Arendt, ele assume, como se depreende, uma posição muito diferente da

descrição feita por Arendt do domínio público. Essa diferença é aparente quando Habermas situa a esfera pública na

sociedade civil. Arendt tinha compreendido a vida pública em nítida oposição à vida privada (que, em geral, desva-

lorizava enquanto domínio da mera reprodução das necessidades quotidianas) e, idealizando a polis grega, não tinha

tido muito em consideração a relação do domínio público com as estruturas estatais modernas; ver Arendt (1958).45 Esta formulação deverá ser lida como equidistante de Habermas e da abordagem da experiência comum a muitos dos

<<fiOVOS movimentos sociais», nos quais a experiência é tornada na única e genuína fundação do conhecimento, como

a base de um posicionamento essencializado de consciência crítica. Veja-se a crítica complacente em Scort (1990).46 A clara exclusão de Habermas do processo de formação de identidade da esfera pública é uma das razões para que

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fique sem quaisquer instrumentos analíticos, à excepção dos processos de «degeneração» e «refeudalização», quando

vira a sua atenção para a esfera pública de uma sociedade de massas da era do pós-guerra.

47 Taylor (1989) discutiu de forma bastante útil esta ideia (que tem como proveniência Gadamer, entre outras fon-

tes) no seu «Excursus on Historical Explanarion».

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