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A teoria da produção do espaço de Henri Lefebvre: Etnografia dos espaços urbanos de Salvador João P. N. Ritter Resumo A partir de reflexões sobre a teoria do espaço no filósofo marxista Henri Lefebvre, um dos pensadores mais influentes da antropologia urbana, iremos dialogar suas categorias com o trabalho de campo realizado na Avenida Sete de Setembro, centro urbano de Salvador. O espaço abstrato, segundo Lefebvre, tem sido produzido pela sociedade a partir de forças política econômicas que organizam e reproduz relações abstratas no intuito de homogeneizar e normatizar o espaço. O Estado domina o espaço, sufoca violentamente qualquer diferença que rompa com a lógica ou conteste sua autoridade e poder hegemônicos, “sob alegações ideológicas de ordem, racionalidade, higiene, beleza, segurança, etc.” (Uriarte: 2014). Neste sentido, este espaço concebido pelos planejadores urbanos, imprime um espaço que se impõe sobre o vivido e racionaliza a vida cotidiana das pessoas que habitam e usam o espaço urbano. Porém a diferença resiste, rebela e fratura o espaço abstrato expondo suas contradições. Os atores sociais que contradizem a lógica do Estado-capital permanecem no espaço vigiado como ilegais, negociam informalmente, estabelecem relações, trabalham com lazer e habitam com alegria sua própria ordem urbana. Para tanto, apresentaremos personagens que emergem no/do espaço diferencial da Avenida Sete no centro de Salvador, são “pessoas ordinárias” que reabilitam a agência do corpo na produção da cidade, produtores de espaços para as diferenças e pelas diferenças. Mediante astúcias e bricolagens, (re)estruturam o espaço social à sua maneira, através da arte da vida cotidiana e suas práticas espaciais, existem e resistem pelo direito à cidade. Introdução Pretendemos neste trabalho, resgatar a teoria do espaço do filósofo marxista Henri Lefebvre, a fim de compreender e interpretar as contradições do capitalismo a partir do olhar de perto da vida cotidiana de pessoas comuns na cidade. O autor foi responsável por grande parte das traduções das obras de Marx, e por sua consequente popularização na França. Mas foi no contexto sócio-político vivido no país, em meados de 1968, com os movimentos estudantis, que Lefebvre se vislumbrou com uma aproximação humana com a cidade, tomada pelas pessoas em protestos, festas, reuniões, e em especial para ele, como uma crítica ao urbanismo enquanto instrumento ideológico de dominação, homogeneização e racionalização do espaço.

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Page 1: A teoria da produção do espaço de Henri Lefebvre ... Pedro Noronha...dialeticamente usos no espaço, para Lefebvre “a luta de classes, hoje, mais do que nunca, se lê no espaço”

A teoria da produção do espaço de Henri Lefebvre:

Etnografia dos espaços urbanos de Salvador

João P. N. Ritter

Resumo

A partir de reflexões sobre a teoria do espaço no filósofo marxista Henri Lefebvre, um dos pensadores

mais influentes da antropologia urbana, iremos dialogar suas categorias com o trabalho de campo

realizado na Avenida Sete de Setembro, centro urbano de Salvador. O espaço abstrato, segundo

Lefebvre, tem sido produzido pela sociedade a partir de forças política econômicas que organizam e

reproduz relações abstratas no intuito de homogeneizar e normatizar o espaço. O Estado domina o espaço,

sufoca violentamente qualquer diferença que rompa com a lógica ou conteste sua autoridade e poder

hegemônicos, “sob alegações ideológicas de ordem, racionalidade, higiene, beleza, segurança, etc.”

(Uriarte: 2014). Neste sentido, este espaço concebido pelos planejadores urbanos, imprime um espaço que

se impõe sobre o vivido e racionaliza a vida cotidiana das pessoas que habitam e usam o espaço urbano.

Porém a diferença resiste, rebela e fratura o espaço abstrato expondo suas contradições. Os atores sociais

que contradizem a lógica do Estado-capital permanecem no espaço vigiado como ilegais, negociam

informalmente, estabelecem relações, trabalham com lazer e habitam com alegria sua própria ordem

urbana. Para tanto, apresentaremos personagens que emergem no/do espaço diferencial da Avenida Sete

no centro de Salvador, são “pessoas ordinárias” que reabilitam a agência do corpo na produção da

cidade, produtores de espaços para as diferenças e pelas diferenças. Mediante astúcias e bricolagens,

(re)estruturam o espaço social à sua maneira, através da arte da vida cotidiana e suas práticas espaciais,

existem e resistem pelo direito à cidade.

Introdução

Pretendemos neste trabalho, resgatar a teoria do espaço do filósofo marxista Henri Lefebvre, a fim

de compreender e interpretar as contradições do capitalismo a partir do olhar de perto da vida cotidiana de

pessoas comuns na cidade. O autor foi responsável por grande parte das traduções das obras de Marx, e

por sua consequente popularização na França. Mas foi no contexto sócio-político vivido no país, em

meados de 1968, com os movimentos estudantis, que Lefebvre se vislumbrou com uma aproximação

humana com a cidade, tomada pelas pessoas em protestos, festas, reuniões, e em especial para ele, como

uma crítica ao urbanismo enquanto instrumento ideológico de dominação, homogeneização e

racionalização do espaço.

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O ponto de partida é pensar o espaço social em sua dimensão política, pois se inscreve e se disputa

dialeticamente usos no espaço, para Lefebvre “a luta de classes, hoje, mais do que nunca, se lê no

espaço”. Tido como objeto de poder que configura e ordena a vida em sociedade. Portanto, a produção do

espaço se dá por uma disputa dialética entre diversos atores sociais engajados pela velha luta de classes.

Para nós,

“o espaço está sempre sendo feito, porque ele é um conjunto de relações sociais – sempre dinâmicas – que se estabelecem numa materialidade (ou natureza primeira). Isto quer

dizer que o espaço não é uma coisa, mas um conjunto de relações entre coisas”

(URIARTE, 2014)

Indo na contramão de uma esquerda que pense o urbano e a cidade, não apenas como uma agenda

secundária, ou como meio para equipamentos urbanos – mobilidade, saneamento, moradia. Mas sim

como um bem comum de satisfação e desejo, visto que esses meios podem ser cooptados por paliativos

do modelo político-econômico neoliberal na qual estamos inscritos. E assim vemos uma situação de

igualdade social e revolução urbana – para o autor, a única possível – acenarem de longe.

Junto a esta constatação, Henri Lefebvre tem a tarefa audaciosa de dar um sopro de alivio e utopia

– como diria Marshall Sahlins – no "pessimismo sentimental" da esquerda tradicional que anuncia a total

dominação do capitalismo e exploração da vida urbana até a última gota. Veremos a partir de uma

“etnografia dos espaços urbanos” na Avenida Sete, personagens urbanos que subvertem a ordem

dominante pela diferença, e parodiam a condição alienante da vida cotidiana nas cidades. Dito isto, vemos

surgir uma práxis utópica. Para Lefebvre:

“A crítica de esquerda.(...) É aquela que tenta abrir a via do possível, explorar e balizar um terreno que não seja simplesmente aquele do ‘real’, do realizado, ocupando pelas

forças econômicas, sociais e políticas existentes. É portanto, uma crítica utópica, pois

toma distância em relação ao ‘real’, sem, por isso, perde-lo de vista.”. (LEFEBVRE,

1999, 20)

Até o momento, apenas citamos algumas categorias centrais da teoria lefebvriana, mais adiante

aprofundá-las-emos atrelando-as à nossa etnografia. Em especial, decorre de uma “etnografia dos espaços

urbanos”, explicaremos esta sub-área da antropologia a seguir.

Em recente artigo chamado, “Produção dos espaços urbanos por homens ordinários” (2014), Urpi

Uriarte discorre sobre o conceito de “antropologia dos espaços urbanos”. Inscrita mais precisamente na

área da Antropologia Urbana Marxista, esta busca entender a forma como habitantes e usuários, ou seja,

pessoas comuns que vivem nos espaços urbanos usam e fazem a cidade, em contraste e embate aos

espaços totalizantes e imperativos produzidos pelo capitalismo. Nas palavras da autora:

“Como chamar, então, a área em que se encontraria um estudo sobre produção de espaços

na cidade feitos por pessoas comuns e não por forças abstratas como o mercado ou o capital imobiliário? Proponho chamá-la de antropologia dos espaços urbanos”.

(URIARTE, 2014)

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Analisaremos nesta ótica, o caso de dois “homens ordinários” inscritos neste processo. Para tanto,

é preciso entender o que originalmente Michel de Certeau chama de “homens ordinários”1. São pessoas

sem recursos nem aparelhos de dominação ou exploração, elas vivem dentro das regras impostas pelos

aparelhos ideológicos e programados do modo de produção e técnica racionalizada da sociedade

capitalista. Porém, não aceitam passivamente essa condição, na qual o antropólogo chama de “estatuto de

dominado”. Elas usam, e parodiam, mediante bricolagens e “astúcias”, os equipamentos e produtos da

ordem econômica imposta. Essas pessoas dão um sentido diferente, alheio à dominação total do capital.

Ou seja, mudam com suas próprias forças individuais, contornando e modificando, a configuração de

espaços tecnocraticamente construídos e funcionalizados, a fim de seus próprios gostos e necessidades

para reprodução social. Se apropriam dos espaços “debaixo do nariz” dos agentes panópticos nas dobras

das contradições e falhas do espaço próprio do capitalismo, o espaço abstrato.

Recorremos então, às artes de fazer2 dessas pessoas, em um espaço abstrato da cidade de

Salvador. Aqui, entramos em um dos eixos centrais da teoria lefebvriana. Segundo Lefebvre, os espaços

abstratos são espaços planificados e normatizados. Onde se opera uma lógica única, restrita e

intransigente. É a estratégia ideológica de dominação e ordenação do espaço pensada pelos urbanistas,

tem como objetivos: escoar com o máximo de velocidade o excedente de produção e a mobilidade dos

citadinos – devemos lembrar que o tempo é essencial para a mais-valia –, e principalmente, disciplinar os

habitantes e usuários. Para que assim seja praticada a maximização e generalização da mais-valia, há

muito tempo, expandida para além dos portões das fábricas e enraizada por toda cidade. O poder

ideológico, alienante e reificador – fenômenos estruturantes e próprios do capitalismo –, típicos deste

espaço, constrói um “tipo ideal” de persona urbana3 das cidades contemporâneas e tem como substância

essencial a ética neoliberal do individualismo, isolamento e anonimato4.

Porém, mediante todos diagnósticos de dominação e exploração, as pessoas ordinárias resistem, e

se rebelam cotidianamente e silenciosamente, contra o “estatuto de dominado” e suas consequências

ideológicas da vida urbana. Usando o próprio espaço abstrato, essas pessoas transformam-no por suas

próprias regras, para satisfazer suas necessidades elas se apropriam deste espaço, contestando a lógica

mercantilista de produção. Pessoas que abrem fraturas nestes espaços, “reapropiado para un uso diferente

1 Usaremos a partir daqui, o termo “pessoas ordinárias”. 2 “Neste conjunto, eu gostaria de detectar práticas estranhas ao espaço ‘geométrico’ ou ‘geográfico’ das construções visuais,

panópticas ou teóricas. Essas práticas do espaço remetem a uma forma específica de ‘operações’ (‘maneiras de fazer’), a ‘uma

outra espacialidade’ (uma experiência antropológica, poética e mítica do espaço) e a uma mobilidade opaca e cega da cidade

habitada.” (Certeau, 1999: 172) 3 Cabe o questionamento de David Harvey sobre a alienação e ideologia capitalista no contexto urbano: “Essa dramática

urbanização terá contribuído para o bem-estar humano? Transformou-nos em pessoas melhores ou deixou-nos a esmo em um

mundo de anomia e alienação, raiva e frustração? Tornamo-nos meras mônadas lançadas ao sabor das ondas de um oceano

urbano?” (2014, p.29) 4 Este fenômeno é trabalhado na sociologia urbana desde Simmel (1967)

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al original”5 (LEFEBVRE, 2013, 215), com seus próprios usos trans e multifuncionais, evidenciando uma

diversa e múltipla gama de usos possíveis para superar condições sociopolíticas historicamente

demarcadas, criando manualmente uma estrutura paralela à ordem dominante. Surgem dessas fraturas,

espaços diferenciais.

Ou seja, são táticas de apropriação diferencial e divergente à ordem abstrata do espaço6, ou como

diz Certeau, a arte do fraco de “dar golpes no forte”. Este conflito dialético opera em evidente contraste à

homogeneização pretendida, mas nunca alcançada pelos urbanistas. Em resumo, nota-se que,

“Embora sejam relativas às possibilidades oferecidas pelas circunstâncias, essas táticas

desviacionistas não obedecem à lei do lugar. Não se definem por este. Sob esse ponto de vista, são

tão localizáveis como as estratégias tecnocráticas que visam criar lugares segundo modelos

abstratos. O que distingue estas daquelas são os tipos de operações nesses espaços que as

estratégias são capazes de produzir, mapear e impor, ao passo que as táticas só podem utilizá-los,

manipular e alterar”. (CERTEAU, 1999, p.92)

Temos assim, diante das contradições urbanas do capitalismo atual, um conflito que produz

espaços, entre espaços abstratos e espaços diferenciais. Foi assim, acompanhando o cotidiano dessas

pessoas na Avenida Sete de Setembro, que apresentamos esta etnografia dos espaços urbanos.

Notas sobre o campo

Com a construção concluída em 1916, no mandato do governador da época, José Joaquim Seabra,

a Avenida Sete de Setembro foi à sua época, o marco do austero progresso civilizatório na Bahia. Com a

finalidade de trazer traços modernizantes à capital, o projeto urbano é inspirado no modelo de reforma

urbana de Paris, criado pelo urbanismo do Barão de Haussmann. Este modelo urbano prioriza largas

avenidas para atender às exigências de circulação de trabalhadores e mercadorias, característica esta, fruto

do imperativo de adequar as cidades às profundas transformações induzidas pela nova etapa do

crescimento capitalista, que busca, cada vez mais, mensurar as relações de acordo com dinâmicas

pautadas em valores de troca, além de resolver problemas de excedente de capital.

A obra monumental conectava os bairros da Barra, passando pelo corredor da Vitória, Campo

Grande, Piedade, Dois de Julho, Castro Alves, Rua Chile e Praça da Sé, onde se encontra a prefeitura,

ligando o percurso por 4,6 km de asfalto. Na época, era apenas uma via “de mão dupla”, conectando

“bairros nobres”. Frequentada pela “alta” sociedade soteropolitana e com grande predominância de

5 “Reapropriado para um uso diferente ao original” (tradução nossa) 6 “Produtores desconhecidos, poetas de seus negócios, inventores de trilhas nas selvas da racionalidade funcionalista, os

consumidores produzem uma coisa que se assemelha às ‘linhas de erre’ de que fala Deligny. Traçam ‘trajetórias

indeterminadas’, aparentemente desprovidas de sentido porque não são coerentes com o espaço construído, escrito e pré-

fabricado onde se movimentam. (...) essas ‘trilhas’ continuam heterogêneas aos sistemas onde se infiltram e onde esboçam as

astúcias de interesses e de desejos diferentes. Elas circulam, vão e vêm, saem da linha e derivam num relevo imposto,

ondulações espumantes de um mar que se insinua entre os rochedos e os dédalos de uma ordem estabelecida.” (CERTEAU,

1999, p.97)

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moradores brancos. Hoje o percurso de volta é feito na Avenida Carlos Gomes, paralela em relação a Sete

de Setembro. Essa “cirurgia urbana” passou por cima de quarteirões, derrubando casas, Igrejas e parte do

então Senado, dando lugar ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. A obra ganhou substancia

ideológica no discurso das autoridades, uma vez que alegavam motivos higienistas e, de bem estar para a

população, apesar de se tratar de um bairro predominantemente burguês em termos de usuários e

habitantes. Evidentemente, a obra tornou o bairro mais atrativo, e consequentemente, mais valorizado. A

pergunta de David Harvey mostra que a urbanização capitalista mantém uma coerência em todo e

qualquer tempo-espaço, podendo ser facilmente direcionada para o contexto da construção da Avenida

Sete, ele questiona: “Com que frequência os projetos de desenvolvimento são subsidiados pelo Estado em

nome do interesse comum quando, na verdade, os verdadeiros beneficiários são alguns proprietários de

terras, financistas e empreiteiras?” (2014, p.154).

Curiosamente, o único lugar conhecido popularmente por “Avenida Sete” é o espaço que

corresponde do forte São Pedro no limite do Campo Grande, até a Praça Castro Alves (ver Figura 1).

A Avenida Sete de Setembro, atualmente, é composta por diversos pontos de comércio e serviços.

Chamamos especial atenção para o que salienta a Associação de Camelôs, referindo-se à Avenida: “esse é

um lugar que abriga mais de 6 mil informais, a maior aglomeração de informais da cidade de Salvador,

grande parte deles usando irregularmente o espaço” (CARVALHO FILHO; URIARTE, 2014, p. 34). Lá,

conseguimos ver o contraste de grandes companhias de venda de eletrodomésticos até pequenos negócios

de bijuteria, conserto de máquinas de costura e vendas de tecidos. Avenida Sete é uma confluência de

Figura 1 – Extensão da área mais conhecida como Avenida Sete de Setembro

Fonte: Milton Júlio de Carvalho Filho (2014)

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multiplicidades: temos presente os trabalhadores assalariados das lojas, os trabalhadores informais,

panfleteiras, vendedores de frutas, carregadores, vendedoras de mingau, vendedores ambulantes de café.

Sem esquecer-se da presença incessante de fiscais da prefeitura e da polícia.

Em consonância à mistura de trabalhadores e trabalhadoras mais diversos, vê-se intenso fluxo de

transeuntes, passantes, “clientes” ou “fregueses”, pessoas que transitam pela Avenida para consumo de

equipamentos ou produtos, ao dia. Como esperado numa capital socioeconomicamente desigual ao

extremo, a passagem e a presença de pessoas em situação de rua nas calçadas ou nos bancos da Praça da

Piedade é frequente. Não seria surpresa dizer, que passam quase todos despercebidos como paisagem

integrante e natural do centro de Salvador7. Outros tantos usuários “locais”, que vão, com certa frequência

semanal, a pontos localizados com o intuito de entretenimento, sejam bares e restaurantes ou a própria

praça, vistas por esse não enquanto parte de um trajeto, mas como ponto de sociabilidade.

Concentrar-nos-emos em duas pessoas e seus usos cotidianos em espaços ou trajetos na Avenida.

Suas relações sociais, modos peculiares de usos, apropriações e formas de habitar o espaço, são os

aspectos que dão o tom deste trabalho etnográfico.

O primeiro que conhecemos, chama-se Seu Chico. Atualmente não trabalha mais como camelô na

Rua do Cabeça (ponto vermelho na Figura 1), um beco adjacente à Avenida, em frente à Praça Barão de

Rio Branco e relógio São Pedro. Por razões econômicas, suspendeu suas atividades profissionais diárias

depois do carnaval de 2015.

O outro personagem trata-se de Jayme Fygura. Um famoso artista plástico e roqueiro

“reconhecido pela mídia soteropolitana”, como o próprio gosta de mencionar. Costumava realizar suas

performances artísticas no Pelourinho, onde mora, mas atualmente prefere percorrer mesmo é na Avenida

Sete onde se sente mais a vontade. Sua arte corporificada causa um mix de sensações e sentimentos nos

transeuntes da Avenida. Não raro, freqüenta para encontros com amigos em bares, ou simplesmente para

comprar peças para uma nova obra que pretende criar.

Seu Chico

Um pequeno e simpático senhor aposentado, sentado em um banco no meio fio, em frente à

movimentada sinaleira, esconde sua “guia” entre uma coluna de um prédio e uma barraca de venda da

prefeitura. Seu Chico, 70, trabalhava como camelô no centro antigo de Salvador desde 1965. Fazia bicos

7 É inevitável não se lembrar de Georg Simmel, quando nos explica sobre a atitude blasé nas grandes metrópoles modernas, ao

dizer que as relações sociais face a face, se dão recheadas de indiferença, transformam-se em relações racionais, de

negociadores. Em suas palavras: “Todas as relações emocionais íntimas entre pessoas são fundadas em sua individualidade, ao

passo que, nas relações racionais, trabalha-se com o homem como com um número, como um elemento que é em si mesmo

indiferente. (...) Esse estado de ânimo é o fiel reflexo subjetivo da economia do dinheiro completamente interiorizada”. (1967

p.15-18)

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na Rua do Cabeça, onde vendia pilhas, fones de ouvido, cadeados, colas, e principalmente tesouras. Este

é, talvez, o lugar de mais movimentado e intenso trânsito de pessoas de toda Avenida Sete.

Todos os dias úteis da semana ele ia à Rua do Cabeça. No movimentado beco, reveza seu trabalho

entre ajudar Dona Geralda, amiga e vendedora credenciada da prefeitura, na qual aluga barraca ao lado, e

entre armar seu próprio pequeno “tabuleiro”. Os camelôs começam a preparar suas vendas muito cedo,

por volta das 6:00h todos os dias o movimento no beco já é intenso, diferente de todos os outros da

Avenida Sete.

Justamente por ser um camelô informal, e não ser um trabalhador credenciado, seus dias de

trabalho não são regrados, comparece dia sim, dia não, às vezes sai para resolver alguma coisa e volta

muito tempo depois, e quase sempre encerra o expediente mais cedo que os outros camelôs da Rua do

Cabeça. Como ele próprio adverte, “trabalho no dia que quiser”.

Porém nem sempre teve tranquilidade em trabalhar, por diversas vezes, sofreu sanções dos fiscais

da prefeitura e da polícia por se tratar de um trabalhador não autorizado. Enquanto sua colega paga

R$88,90 para a prefeitura a cada semestre para ser credenciada, sem contar outros encargos como

transporte e armazenamento de mercadoria. Este credenciamento se deu após o reordenamento no

comércio ambulante do centro de Salvador8.

O pequeno e apertado cantinho no qual encontra-se Seu Chico, é uma evidencia gritante do seu

conflito com o aparato repressivo e normativo dos espaços abstratos promovido pelo Estado-capital. Seu

micro-espaço ilustra uma contradições da vida cotidiana no espaço urbano no capitalismo: trata-se de uma

apropriação (neste sentido, não se trata de uma posse jurídica), “tal apropriação mostra que o uso e o

valor de uso podem dominar a troca e o valor de troca” (LEFEBVRE, 2001, p. 30). É apropriação porque

trata-se de uma ação sociopolítica de classe, de “tomar” um espaço para si, engajando-se em colocar,

sobre ele, uma lógica própria de utilização que visa suprir, em um primeiro plano, as necessidades do ser

humano, o valor de uso. Neste caso, as necessidades de Seu Chico.

Ele só pode ter seu negócio por permissão não-oficial dessas autoridades, e mesmo assim, com

sanções. Seu espaço foi ficando cada vez mais reduzido, tem que negociar constantemente sua presença

no espaço devido à vigilância dos agentes do Estado. E assim, consequentemente, suas vendas decaíram:

“Troquei a guia de lugar por causa dos “homi” (fiscais e polícia), perdeu visibilidade, não tô vendendo

nada”.

8 Segundo documento emitido pela Secretaria Municipal de Urbanismo: “O Ministério Público estadual está contribuindo com

os órgãos públicos municipais para o reordenamento do comércio ambulante em Salvador, respeitando os direitos humanos dos

ambulantes e dos consumidores. (...) Entendemos que os ambulantes devem ser previamente cadastrados na prefeitura para

atuarem em locais determinados no centro, melhorando o trânsito das pessoas no local. Além disso, devemos intensificar a

fiscalização para evitar a comercialização de produtos piratas e impróprios para o consumo, destacou o coordenador do

Ceacon.” (BAHIA, 2013).

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O pequeno espaço alternativo produzido por este senhor materializa outro movimento

contraditório: este espaço produzido por Seu Chico difere e nega totalmente a norma imposta, imbricado

no espaço próprio do capitalismo, no espaço abstrato. Como diz Uriarte, “as diferenças reprimidas pelo

espaço abstrato criado pelo capitalismo e pelo Estado se mantêm, existem, resistem, emergem em outro

tipo espaço” (2014, p. 126).

Os fiscais da prefeitura e a polícia supervisam constantemente as calçadas da Avenida Sete,

percorrem, para lá e para cá, a procura de infratores9. Imposições, restrições e normatizações

protagonizadas pelo poder que o Estado-capital exerce sobre a vida no espaço, na intenção de adequá-lo a

um projeto funcional pouco receptivo às diferentes formas de utilização do mesmo e pouco sensível a

necessidades de pessoas como Seu Chico.

Michel de Certeau nos mostra o antagonismo entre estratégia e tática, o primeiro trata-se de um

movimento planejado e previamente calculado pelos urbanistas, para definir as funções, quais relações

sociais (vendedores e compradores, empregados e patrões) e usos do espaço, para assim ser garantida sua

hegemonia, utiliza-se de operadores de vigilância e disciplina. A estratégia capitalista domina e

normatiza o espaço, projeta o “estatuto de dominado” para as pessoas que habitam o espaço,

transformando a totalidade de usuários em uma massa homogênea e controlável.

Já a tática, “é movimento ‘dentro do campo de visão do inimigo’ (...) e no espaço por ele

controlado (...), é a arte do fraco” (CERTEAU, 1999, p. 100-101). As pessoas ordinárias não entram em

embate contra as forças dominantes, é um conflito de forças desigual. Então, o que fazem? Usam da

9 Na própria Rua do Cabeça, é notável a quantidade de mulheres e homens que trazem suas “guias” portáveis, e que

rapidamente as recolhem e fogem do local ao notar a presença destes agentes de Estado. Logo depois, lá estão de volta.

Figura 2 – Seu Chico, transeunte e Dona Geralda.

Autores: João Pedro Ritter; Rodrigo Anjos de Andrade e Silva

(2014)

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tática. Pessoas como Seu Chico usam a tática para contornar a força dominante, ele negocia, usa da

amizade e da conversa com os fiscais para manobrar as possíveis opressões que sofreria10

. Em meio ao

espaço abstrato ele se apropria de um espaço próprio, e resiste criando seus próprios meios de

sobrevivência, alterando e negando completamente a ordem social capitalista e gestão funcionalista do

espaço. Além de trabalhar no dia em que deseja, não há antagonismo entre lazer e trabalho próprio do

trabalho alienado, visto que seu “ponto” gera encontros na calçada da Avenida, onde Seu Chico atrapalha

o trânsito de pessoas com longas conversas, paqueras e risadas no meio do expediente.

Lefebvre afirma que o espaço abstrato consiste em proibições, prevendo o que a atual crítica

sociológica mais radical desenvolve: que as táticas de sobrevivência dos pobres são criminalizadas pelas

leis e códigos do Estado-capital, visto que se tratam de ações de insubordinação às estruturas que

engendram a desigualdade social11

. É, portanto, na prática política de tomar o espaço para si, que Seu

Chico confronta a dominação do espaço abstrato e persiste em criar seu próprio espaço diferencial. Para

Lefebvre, é neste espaço vivido que se pratica a emancipação do sujeito sobre a alienação.

Jayme Fygura

A figura de Jayme é um tanto quanto controversa no espaço público, sua presença suscita olhares e

reações diversas por onde passa, ou fica. Quando andamos atrás dele, procurando um bar para sentar e

conversar, é notável as mãos fazendo sinais de cruz, os cochichos, as pausas nas caminhadas, as risadas,

as caretas, enfim, as múltiplas reações diante de sua presença. Já no bar, nossas conversas com o artista

performático eram sucessivamente interrompidas por crianças curiosas com o “homem de ferro”, e

pessoas que o cumprimentava, alguns eram amigos, já outros: “nunca vi na vida”, segundo o próprio

Jayme. Mais curioso que o fato de usar uma armadura, é apenas despir-se na privacidade de sua casa. Até

mesmo em ocasiões como em exame clínico-médico, Jayme usa arte.

Para ele, o centro de Salvador, em especial, a Avenida Sete, é um lugar central para sua vida

social. É onde ele consome materiais para suas obras de arte, utiliza de serviços diversos, encontra

amigos, freqüenta bares, se reúne com membros de sua banda (The Farpa), no total, boa parte de seus dias

se resume à Avenida. Até mesmo em um teatro situado na Avenida, o Teatro Gamboa, situado no Largo

dos Aflitos, Jayme foi homenageado com uma galeria em seu nome: Galeria Jayme Fygura.

10 “Tem constantemente que jogar com os acontecimentos para os transformar em ‘ocasiões’. Sem cessar, o fraco deve tirar

partido de forças que lhe são estranhas. (...) Muitas práticas cotidianas são do tipo tática. E também, de modo mais geral, uma

grande parte das ‘maneiras de fazer’: vitórias do ‘fraco’ sobre o mais ‘forte’, pequenos sucessos, artes de dar golpes, astúcias

de ‘caçadores’.” (CERTEAU, 1999, p.47) 11 Seguindo esta afirmação de Vera Malaguti Batista, ela completa que “o ‘criminal’ é um fetiche que encobre a compreensão

da conflitividade social”. (2012)

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Segundo ele, desde pequeno, já demonstrara ter aptidões criativas e artísticas por conseguir,

diferentemente de outras crianças, criar seus próprios brinquedos (bonecos, carrinhos e outros) com

materiais simples como latas, pedaços de madeira, garrafas plásticas e entulhos. Hoje, cria obras por

encomendas, peças para suas roupas de metal e couro, e principalmente suas misteriosas máscaras – ao

todo são oito. É importante destacar que todas as máscaras foram confeccionadas com materiais de

alumínio comprado, e não, ao contrário do que muitos pensam, objetos encontrados em entulho e lixo:

“tudo isso aqui foi comprado! Nada de lixo, eu não mexo em lixo!”.

A sua armadura é um mecanismo de poder, para se defender “desse sistema maldido” que, segundo

Jayme, o ataca e violenta, dia após dia. Até começar a utilizar a roupa que vemos hoje, Jayme sofreu

muitas agressões nas ruas, a couraça da sua roupa foi endurecendo à medida que sofria hostilidades no

espaço público. Tudo o que desejava era andar em paz e com liberdade.

Segundo o próprio Jayme Fygura, o fato de ser diferente incomoda as pessoas, porém, ele jamais se

subordinou à repressão violenta que sofreu no espaço público. Ele busca imprimir insistentemente sua

arte nos lugares por onde percorre andando. Seu próprio corpo constrange o espaço abstrato¸ este que é

Figura 3 – Jayme Fygura posa no coração da Avenida.

Autores: João Pedro Ritter; Rodrigo Anjos de Andrade e

Silva (2014)

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ideologicamente violento para as diferenças, consiste em pré-definição impositiva de uma estética

exclusiva e excludente, já que:

O Estado domina o espaço o que significa que ele deve suprimir violentamente qualquer

diferença sob alegações ideológicas de ordem, racionalidade, higiene, beleza, segurança nacional, proteção à natureza, etc. As diferenças são suprimidas mediante leis, códigos,

normas, mandamentos, preceitos, regras escritas em papéis que determinam previamente

os usos do espaço. Os atores, usuários, “homens ordinários”, têm de se adaptar às normas previamente fixadas. (URIARTE, 2014, p.126)

Visto que a ideologia é um fenômeno de classe que se expressa subjetivamente, podemos entender,

assim, as reações negativas diante da figura de Jayme ao percorrer a Avenida. Longe de ser reconhecido

pela maioria dos transeuntes como um artista, Jayme é, por vezes, aquilo o que Bauman (2009) nomeia

como “mixofobia”12

(medo de misturar-se) ou “indesejáveis estranhos” (2009: 37), expressão do medo no

espaço público que categoriza certos “tipos” de pessoas por seu estereótipo transgressor ou estranho à

ordem ideológica dominante. Dado que o corpo no meio urbano tem a mediação social como função

primordial, vemos que o corpo de Jayme transita no olho do furacão na relação dialética entre

subordinação/subversão (CARLOS, 2014, p.474) a ponto de ser alvo de diversas hostilidades.

Em A revolução urbana (1999), Lefebvre nos mostra que as cidades pós-industriais na Inglaterra

haviam consolidado a subordinação do valor de uso pelo valor de troca, alcançando um nível de alienação

totalizador, no qual denomina de “alienação urbana”, que “envolve e perpetua todas as alienações” (1999,

p.89). A gênese da alienação nasce no espaço da indústria, porém, uma vez que a urbanização neoliberal

carrega em si a organização social e disciplinar do mercado – trabalho hiperprodutivo e mínimo lazer –

expande-se para muito além das fábricas. A “alienação urbana” se expressa na produção de uma cidade

monolítica e monótona das relações, massacradas pela racionalidade tecnocrática. Ou seja, uma forma

mais cruel que o “não-lugar”, a “alienação urbana” é a “desorientación, segregación, cosificación y

funcionalización de la existencia13

” (MARTÍNEZ, 2014, p.5), metaformoseada em engrenagem do modo

de produção capitalista.

Jayme Fygura usa a Avenida Sete, anda, conversa com alguém ali, toma uma aqui, pede uma

informação, faz compras, enfim, usa a Avenida Sete no seu cotidiano. Mesmo que seu corpo incite

tensões, seja alvo de estigmas, constrangimentos e até mesmo de violência, ele definitivamente usa a

Avenida Sete. Mantém dia-a-dia relações de todos os tipos, efêmeras ou constantes. Seu trajeto errante é

sempre um protesto, pois busca se encaixar nas fendas do possível que lhe é negado, e o mais

12 “Essa mixofobia não passa da difusa e muito previsível reação à impressionante e exasperadora variedade de tipos humanos

e estilos de vida que se podem encontrar nas ruas das cidades contemporâneas (...). A mixofobia se manifesta como impulso

em direção a ilhas de identidade e de semelhança espalhadas no grande mar da variedade e da diferença”. (BAUMAN, 2009,

p.43-44) 13 “Desorientação, segregação, coisificação e funcionalização da existência”. (tradução nossa)

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surpreendente, sem perder a oportunidade de manifestar sua singularidade, levando à Avenida uma

subversão artística marcada pela diferença.

No conflito dialético para transformar a cidade em um território para a acumulação e fluxo do

capital – valor de troca –, vemos surgir novos atores sociais antes ignorados, pessoas ordinárias que

souberam extrair do inimigo, suas condições de existência. O próprio artista é quem transforma a ordem

urbana:

“a arte restituí o sentido da obra, ela oferece múltiplas figuras de tempos e de espaços

apropriados, não impostos, não aceitos por uma resignação passiva, mas metamorfoseados em obra.” (LEFEBVRE, 2001: 115) (grifo nosso)

No estágio avançado do neoliberalismo, o capital imobiliário e o domínio urbano transformam a

cotidianidade atual da metrópole em um produto da racionalidade programada da força hegemônica do

capitalismo. Pessoas como Jayme, embaralham a ordem imposta e produz nela um espaço não planejado

para a diferença, insistentemente, ele reivindica à força por seu direito ao uso e o valor de uso da cidade.

A arte de Jayme abre as vias do “possível” 14

, do uso possível, porém negado do espaço diferencial. Para

Lefebvre:

“Trata-se de uma superação pela e na prática: trata-se de uma mudança de prática social.

O valor de uso, subordinado ao valor de troca durante séculos, pode retomar o primeiro

plano. (...) Que a realidade urbana esteja destinada aos ‘usuários’ e não aos especuladores, aos promotores capitalistas, aos planos dos técnicos, é uma versão justa,

porém enfraquecida desta verdade”. (LEFEBVBRE, 1991, p.128)

Seria contraditório falar em processo dialético e determinar rigidamente o esgotamento fatal e total

do mundo contemporâneo, sem levar em conta seu negativo, os focos de resistência, os movimentos

contrários. Assim como Marshall Sahlins (1997), em sua critica ao discurso hegemônico no qual toma as

“culturas” como objeto em vias de extinção pelas forças da expansão voraz e monolítica da ordem

capitalista15

. Segundo o antropólogo, este discurso toma o Outro como um ser passivo e adestrado em

favor da classe dominante, sem levar em conta que se trata de um agente, um ator social capaz de ação.

Diferente do que Sahlins demonstra, neste caso, o que apresentamos, é uma ordem muito maior e

menos fronteiriça que objetos impostos pelo imperialismo: trata-se da própria cidade. Mas os movimentos

de resistências são os mesmos, aqui e lá, as pessoas ordinárias lutam por autonomia e muitas vezes

frustram o diagnóstico de homogeneidade total da dominação funcionalista do espaço e ideológica da

persona urbana.

O urbano para Lefebvre é o lugar da simultaneidade, do encontro, da reunião, confrontos das

diferenças, da troca pelo valor de uso. As relações e usos que Jayme estabelece com os espaços da

Avenida, suscitam o urbano, antagônico à imagem de não-lugar, da indiferença nas cidades, o urbano

14 “As instancias do possível só podem ser realizadas no decorrer de uma metamorfose radical”. (LEFEBVBRE, 1991, p.114)

15 Seu argumento, neste sentido, se assemelha ao de Certeau ao tratar das “astúcias” dos homens ordinários.

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“já implica uma substituição do contrato pelo costume. O direito contratual fixa os

limites da troca e da reciprocidade na troca (...). Ora, o uso, no urbano, compreende

costumes e confere ao costume a precedência em relação ao contrato”. (LEFEBVRE, 1999, p. 162-163)

Jayme Fygura se apropria de um espaço urbano dominado pela indiferença, pelo anonimato, pelo

não-lugar, mas apenas sua presença no espaço é o suficiente para gerar estranhamento, perturbar a ordem

social, retirando-lhe a máscara de harmonia (que execra a pluralidade), criando fraturas na coercitiva e

falsa homogeneidade da cidade. Ele atrai feito um ímã rápidas conversas e cumprimentos de pessoas

desconhecidas. Carrega o símbolo da heterogeneidade, e mais, da diferença, que enriquece a experiência

urbana de espaços vividos. Uma prática teimosa, cotidiana, astuciosa, pelas apropriações, criando modos

multifuncionais de usos possíveis na cidade, neste caso, o uso da arte, que não é passividade (CERTEAU,

1999, p.50).

Notas conclusivas

Lefebvre é preciso ao dizer que o espaço é político, pois ele é palco de disputa da luta de classes.

À primeira vista, onde há a mais aparente harmonia, onde impera a paz e não o confronto direto opera

uma violência silenciosa, quase invisível, mas sufocante, há neste espaço, um conflito de projetos

antagônicos entre o concebido pelo capitalismo e a apropriação, o espaço vivido das pessoas ordinárias.

A urbanista Paola Jacques (2009) aponta que as relações entre corpo humano e o espaço público têm sido

negligenciadas nos estudos urbanos e, ainda, que o estudo das resistências corporais no contexto da

cidade sofre com o mesmo processo. Porém, a teoria do espaço de Henri Lefebvre, junto à antropologia e

ao método etnográfico, podem nos auxiliar na construção desse caminho investigativo. Neste sentido, a

ascensão de resistências, como nos mostra Urpi Uriarte (2012), em novos lugares e novos atores, são

embriões de uma nova realidade urbana, que pode, a partir de um esforço teórico-metodológico próprio

da dinâmica de estudo da “antropologia dos espaços urbanos”, trazer frutos à perspectiva que dá lugar ao

conflito entre o corpo e o espaço.

Este impulso proporcionado pela “etnografia dos espaços urbanos” (URIARTE, 2014) trouxe à

tona determinadas relações entre o corpo humano e o espaço público, reabilitando o valor de uso da vida

cotidiana na cidade. Para nós, Lefebvre recoloca virtuosamente na antropologia marxista a perspectiva do

corpo, “cuya resistência impulsa el proyecto de um espacio diferente16

” (2013, p. 382), como condição

vital na construção dos espaços diferenciais, ou seja, embriões de emancipação e superação das condições

sociais da ordem imposta.

16 “Cuja resistência impulsiona o projeto de um espaço diferente” (tradução nossa).

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Em contraste à atual vida urbana alienada, coisificada e reificada das cidades capitalistas,

lembramo-nos de Walter Benjamin, ao ilustrar o cotidiano urbano na cidade de Paris pós-Haussmann,

quando afirma que “as pessoas se conheciam umas às outras como devedores e credores, como

vendedores e fregueses, como patrões e empregados – sobretudo como concorrentes” (BENJAMIN, 1994,

p. 36-37), numa nítida alegoria aos espaços abstratos apontados por Lefebvre. Trata-se de um retrato

exemplar do projeto da ideologia urbana no capitalismo contemporâneo, onde as pessoas tratam-se apenas

de um meio, de preferência homogêneo, para adequar-se às leis do mercado e assim, encaixar-se nas

engrenagens funcionais do capital. A mesma reificação ao qual o trabalhador está submetido na fábrica

devido à organização capitalista do trabalho, se prolifera por toda vida sociourbana, graças ao urbanismo

capitalista. Não se trata, no fim das contas, de relações sociais entre sujeitos, mas entre pessoas

coisificadas, massificadas pela racionalização como um meio para produção, para a produção de mais-

valia.

Porém, esta dinâmica, se trata apenas de uma via do processo dialético. Onde se encontra o seu

negativo? Onde se faz surgir novos espaços de emancipação humana, transformação social, enfim, onde

se produz espaço diferencial?

David Harvey, em Cidades Rebeldes (2014) se pergunta o mesmo: diante de todo este panorama

de exploração do capital financeiro, imobiliário, e expansão neoliberal dos espaços abstratos, onde se

encontra o nosso maio de 68? Onde se encontra a nossa versão da Comuna? Os sinais de rebelião, diria

Lefebvre, podem estar por toda parte e são vistas na vida cotidiana de pessoas comuns, quase invisíveis

porém rebeldes. Não apenas com movimentos organizados e sindicatos, mas em micro-espaços de

trabalhadores tidos como “informais”, passando pelas performances de artistas que buscam e injetam

diferença no espaço público. Até grupos maiores, estes que ocupam e se encontram em uma praça, uma

rua, com ou sem articulação hierárquica, mas com interesse no bem comum, no urbano partilhado da

cidade.

Henri Lefebvre é essencial para ser retomada a atualidade das formas e ações contestatórias da

ordem dominante nas cidades, ao contrário do marxismo ortodoxo, Lefebvre reabilita a luta de classes por

fora de partidos, sindicatos e organizações. Para o autor, é essencial encontrar e reconhecer essas ações

nas práticas cotidianas de pessoas ordinárias, como seu Chico e Jayme Fygura. São personagens que

subvertem não apenas os valores, mas brincam com eles, zombam do controle social que tenta “corrigi-

los” ou adequá-los à estrutura homogênea e normatizada do trabalho e vida urbana. Eles rompem na

prática com o poder de controle dos fiscais da prefeitura, ou resistem contra a força ideológica dominante

de beleza e arte. Ao rejeitar a ordem posta, eles constroem novos espaços, no qual é possível trabalhar à

sua maneira, habitar ao seu gosto, portanto, produzem um espaço diferencial, onde a priori não são bem

vindos.

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Em vias de finalizar o presente trabalho, resgatamos a urgência do “direito à cidade” há muito

anunciado por Lefebvre (1968), que emerge o papel da cidade enquanto instrumento de emancipação

humana. A cidade é o lugar de reprodução das relações sociais de classe, portanto, deve ser disputada na

luta de classes. Não enquanto projeto político secundário, tampouco um direito privado. É muito mais um

direito coletivo que individual. Ao invés de ser dominado pelas relações sociais na cidade, o “direito à

cidade” pressupõe o domínio sobre elas. Pressupõe principalmente, a tomada radical da agenda urbana,

que em toda história do mundo capitalista produz o espaço para o fluxo de mercadoria e lucro, a

transformação desta agenda, produz uma cidade para as reais necessidades e desejos da classe

trabalhadora. Significa, então, subsumir a lógica mercadológica do valor de troca pelo valor de uso e pelo

bem comum, um verdadeiro processo de “revolução urbana”. Não à toa resgatamos Lefebvre, pois para

nós

é necessário não confundir o direito à cidade com o direito a alguma ou algumas coisas,

como a rua asfaltada, um teto, eletricidade ou água encanada. O que este direito coloca em questão não são coisas, mas algo mais vago, porém, essencial: a vida cotidiana na

cidade, uma cidade feita de satisfação e prazer, de encontros, ludicidade e

imprevisibilidade; o direito a habitá-la, a praticá-la, a moldá-la em função dos valores de

uso, o direito à obra. (URIARTE, 2012)

David Harvey lembra que “há no urbano uma multiplicidade de práticas prestes a transbordar de

possibilidades alternativas” (2014, p.12). Este “possível” ao qual Harvey se refere são as possibilidades

alternativas de apropriação e uso do “mais fraco” no espaço concebido pelo capitalismo, para superar

suas condições sociais de exclusão e desigualdade. Este é o dever lançado pela “etnografia dos espaços

urbanos”: buscar as exigências práticas de um “direito à cidade” que está em jogo na práxis anticapitalista

destas pessoas. Este trajeto é trilhado na contramão daqueles que subestimam o poder de agência do lado

“mais fraco” da luta de classes, e acaba tomando-o como apático ao contexto sócio-urbano ou passivo

diante das intensas opressões. Assim como Seu Chico não quer ser credenciado, não se incorporando no

bojo da gestão funcionalista do Estado, ou como Jayme, que rejeita despir-se para se adequar ao padrão

“normal” de comportamento, eles negam na práxis a integração desumanizadora do capitalismo, e lutam

para superar a dominação desta ordem estabelecida.

Mesmo que a ideologia cientificista no mundo moderno proclame o fim das utopias, o poder

restituído ao oprimido revela uma crítica articulada à utopia. Neste sentido, como negar, então, as

práticas contestatórias desses atores? É, portanto, no espaço vivido por estas pessoas, que se produz uma

rebelião, silenciosa, virtuosa e individual, quase invisível, porém, crítica à estrutura da sociedade de

classes. Ao ser produzido um espaço diferencial, renova-se a utopia marxista de Lefebvre, e as

possibilidades históricas da práxis transformadora, moldando espaços de esperança que transcendem a

realidade na forma em que se apresenta: um futuro ainda por ser construído.

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