a sustentabilidade da vida humana: um assunto de mulheres? - cristina carrasco

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  • 7/24/2019 A sustentabilidade da vida humana: um assunto de mulheres? - Cristina Carrasco

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    A SUSTENTABILIDADE DA VIDA HUMANA: UM ASSUNTO DE MULHERES?

    Critina Carrasco

    Nos ltimos anos, o tempo de trabalho foi se configurando como tema de debate emdiversos crculos acadmicos, de trabalho, sociais e polticos. Dois fatos colaboraram de formadefinitiva para esse interesse: a crescente participao das mulheres no trabalho de mercado, o

    ue visibili!ou a tenso entre os tempos de cuidados e as e"igncias do trabalho mercantil, e osprocessos de fle"ibili!ao do tempo de trabalho imposto basicamente pelas empresas, ue e"igecada ve! maior mobilidade e disponibilidade hor#ria das trabalhadoras e trabalhadores.

    $or%m os problemas ue foram surgindo com relao aos tempos de trabalho no somais ue a e"presso visvel de outro conflito mais profundo presente nos fundamentos do sistemasocial e econ&mico: a .tenso e"istente entre dois ob'etivos contradit(rios: a obteno de lucros e ocuidado da vida humana. )ssa tenso se acentua pela dependncia da produo capitalista emrelao aos processos de reproduo e de sustentabilidade da vida humana, ue se reali!am forado *mbito de suas rela+es e de seu controle direto.

    $or essa ra!o, creio ue o estudo dos conflitos e da organi!ao dos tempos de trabalhoe de vida nos leva a uma uesto anterior: como as sociedades resolvem as necessidades desubsistncia das pessoas )m outros termos, como elas se organi!am em torno dessa funoprim#ria e fundamental da ual depende a pr(pria vida humana

    - an#lise das necessidades de reproduo das pessoas % um tema comple"o, ue podeser abordado a partir de diferentes perspectivas, #reas tem#ticas ou disciplinas. as, em ualuercaso, % um tema central. No entanto, em uma perspectiva socioecon&mica, pelo menos para aeconomia oficial, a sustentabilidade da vida no tem sido nunca uma preocupao analtica central/ao contr#rio, usualmente % considerada uma 0e"ternalidade0 do sistema econ&mico1.

    -s diversas escolas de pensamento tm utili!ado diferentes categorias para a an#lisesocioecon&mica das sociedades: sistemas econ&micos, modos de produo, graus dedesenvolvimento do capitalismo ou da industriali!ao etc. as a reproduo humana comoprocesso social nunca foi utili!ada como categoria analtica central nesses estudos.

    2ocali!ar e"plicitamente a forma em ue cada sociedade resolve seus problemas desustentabilidade da vida humana oferece, sem dvida, uma nova perspectiva sobre a organi!aosocial e permite visibili!ar toda auela parte ue tende a estar implcita e usualmente no %nomeada. )ssa nova perspectiva permite tamb%m p&r de manifesto interesses priorit#rios de umasociedade, recuperar todos os processos de trabalho, dar os nomes de uem assume aresponsabilidade do cuidado da vida, estudar as rela+es de gnero e de poder e, emconse3ncia, analisar como se estruturam os temposde trabalho e de vida dos diferentes setores da populao.

    Naturalmente cada sociedade tem tentado com maior ou menor "ito diferentesmecanismos para cobrir as necessidades das pessoas, mas podemos propor a hip(tese de ue osprocessos de reproduo e vida tm sido resolvidos sempre fundamentalmente a partir dos lares.4em nenhuma dvida, foi essa a norma pelo menos at% ue a casa medieval 5centro de produo,consumo e vida 5dei"ou de ser auto5suficiente e comeou a produo para os mercados. Noentanto, posteriormente 5ainda ue os processos de reproduo da vida humana se fi!essem cada

    -presentao reali!ada no 4emin#rio do 24 62(rum 4ocial undial7, $orto -legre, 8998, baseada no artigopublicado na revista ientras anto 6n. ;8, out.5inv. 8991, e(n, agdalena 6comp.7. u'eres? traba'o: cambios impostergables. $orto -legre, @))AAClacsoA

    -lai, 899B. raduo de ustavo Codas.)conomista, professora da niversidade de a Dona.1- teoria neocl#ssica tem tradicionalmente considerado a famlia como elemento 0e"(geno0 ao sistemaecon&mico, como algo ue evolui de forma independente da economia. esmo

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    ve! mais invisveis com a industriali!ao e o desenvolvimento do sistema capitalista 5, no sealterou a funo b#sica dos lares como centros de gesto, organi!ao e cuidado da vida.

    $articularmente em nossas sociedades ocidentais industriali!adas, a subsistncia eualidade de vida alimenta5se de trs fontes b#sicas: as produ+es e atividades de cuidadosdiretos reali!adas a partir do lar, o mercado e a oferta de servios pblicos. No entanto, apesar daimport*ncia ue o mercado capitalista vem aduirindo na oferta de bens e servios, as estrat%giasde vida das pessoas continuam se organi!ando a partir do lar, de acordo com o nvel de renda ecom a participao pblica nas tarefas de cuidado.

    =sso posto, a centralidade da produo mercantil como ob'etivo econ&mico b#sico, adependncia do sal#rio de uma parte importante da populao e a cultura masculina do trabalhotm contribudo para obscurecer a relev*ncia dos processos de sustentabilidade social e humana,tornando difcil a compreenso das cone"+es e interdependncias ue mantm com a produocapitalista.

    I ob'etivo deste te"to % recuperar os processos de reproduo e vida, visibili!ando osconflitos ocultos com relao a tempos e trabalhos e as deslealdades ue se derivam entremulheres e homens. Na primeira parte, o tema % tratado da perspectiva do trabalho das mulheres/na segunda, abordamos um ponto de vista mais concreto, tradu!indo a linguagem dos tempos dasatividades reali!adas pelas pessoas ligadas J sustentabilidade da vida humana. 2inalmente,propomos alguns cen#rios futuros possveis.

    A LENTA RECUPERAO DOS PROCESSOS DEVIDA E REPRODUO

    No somente de po

    4em pretender entrar no debate sobre as 0necessidades b#sicas08, acredito serconveniente comear essa refle"o lembrando uma coisa ue, mesmo sendo de bom senso,usualmente se esuece: as necessidades humanas so de bens e servios, mas tamb%m de afetose rela+es. Necessitamos nos alimentar e vestir, proteger do frio e das doenas, estudar e educar,mas tamb%m necessitamos de carinhos e cuidados, aprender a estabelecer rela+es e viver emcomunidade. ) isso reuer algo mais do ue somente bens e servios. Com , isso uero di!er ueas necessidades humanas tm o ue poderamos chamar uma dimenso mais ob'etiva 5ueresponderia mais Js necessidades biol(gicas 5e outra mais sub'etiva5 ue incluiria os afetos, ocuidados, a segurana psicol(gica, a criao de rela+es e laos humanos etc., aspectos to

    essenciais para a vida como o alimento mais b#sico.)m um leue amplo de bens e servios 5em geral, os ue podem ser trocados 5, % possvelreali!ar a separao das duas dimens+es assinaladas, a ob'etiva e a sub'etiva. eralmente, osbens mercantis ou pblicos tendem a satisfa!er o componente mais ob'etivo das necessidades.$or e"emplo, uando produ! um aparelho de televiso, uma trabalhadora ou um trabalhadorindustrial no sabe nem se preocupa com uem vai comprar. - atividade de produ!ir o bem ouservio % independente de uem vai se beneficiar dele. )mbora, em servios pblicos ou demercado, como, por e"emplo, os de ateno de um hospital ou de uma escola, possa e"istir algumcomponente sub'etivo de afeto e relao humana, isso no % o determinante da atividade: o ue adefine % a necessidade ob'etiva ue ela satisfa!. $or%m, nos bens e servios produ!idos no lar %mais complicado separar os aspectos afetivo5relacionais da atividade em si, e"atamente porueenvolvem elementos pessoais. -ssim, % possvel ue uma mesma atividade possa ter, paraalgumas pessoas, substituto de mercado 6se a renda permitir7 e, ao contr#rio, para outras, ser

    totalmente insubstituvel. $or e"emplo, para as mes ou pais, pode ser muito importante a relaocom seus filhos ou filhas, mas cada um pode estabelecer e concreti!ar a relao em atividadesdiferentes: levando as crianas J escola, brincando com elas no parue ou dando a 'anta. $aracada pessoa, auela atividade por meio da ual tem estabelecido a relao % a ue no temsubstituto de mercado. Da ue se'a praticamente impossvel classificar as tarefas do lar emmercantili!#veis ou no5mercantili!#veis, precisamente pelo componente sub'etivo ue podemincorporar.

    2I debate especfico sobre as 0necessidades b#sicas0 seria muito mais amplo do ue se pretende nesseartigo. Como referncia obrigat(ria sobre o tema, pode5se ler Do?al e ough, 1FFH.

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    )m suma, uero di!er ue o trabalho destinado ao cuidado das pessoas do lar temconte"to social e emocional diferente do trabalho remunerado e, al%m disso, necessidadespessoais e sociais ue no permitem uma simples substituio por produo de mercado. =mplicarela+es afetivo5sociais dificilmente separ#veis da pr(pria atividade e cria um tecido comple"o derela+es humanas, sobre o ual, de alguma forma, se sustenta o resto da sociedade 64chafer,1FFK/ GimmelLeit, 1FFK/ Carrasco, 1FF;7.

    A pode!os" #mo $n%$s&%e'# d" %$d" (ot$d$"n"

    Is estudos econ&micos e sociais costumam esuecer esse componente sub'etivo dasnecessidades humanas, coberto usualmente desde o lar. )suecimento ue pouco inocente, '# ueoculta um conflito de interesses: os diferentes espaos, trabalhos e atividades ue fa!em parte dosprocessos de vida e reproduo no desfrutam do mesmo reconhecimento social, mas e"iste entreeles um componente hier#ruico de valores, resultado de uma longa tradio patriarcal liberal.

    - partir de tal tradio tem se pretendido estabelecer a viso de uma sociedade divididaem duas esferas separadas com pouca inter5relao e baseadas em princpios antag&nicos. $orum lado, a esfera pblica 6masculina7, ue estaria focada no ue se considera social, poltico eecon&mico5mercantil e regida pelos crit%rios de "ito, poder, direitos de liberdade e propriedadeuniversais etc., e relacionada fundamentalmente com a satisfao do componente mais ob'etivo 6onico reconhecido7 das necessidades humanas. $or outro, a esfera privada ou dom%stica

    6feminina7, ue estaria focada no lar, baseada em laos afetivos e sentimentos, desprovida deualuer id%ia de participao social, poltica ou produtiva e relacionada diretamente com asnecessidades sub'etivas 6sempre esuecidas7 das pessoas. Nessa rgida dualidade, somente omundo pblico desfruta de reconhecimento social. - atividade ou participao na denominadaesfera privada, destinada socialmente Js mulheres, fica relegada ao limbo do invisvel, o ue lhenega toda possibilidade de valori!ao social.

    as essas atividades no5valori!adas 5ue incorporam uma forte carga sub'etiva 5soprecisamente as ue esto diretamente comprometidas com a sustentabilidade da vida humana.Constituem um con'unto de tarefas ue tendem a dar apoio no s( Js pessoas dependentes pormotivos de idade ou sade, mas tamb%m J grande maioria dos homens adultos. 4o tarefas ueincluem servios pessoais conectados usualmente com necessidades diversas e absolutamenteindispens#veis para a estabilidade fsica e emocional dos membros do lar. )las incluem aalimentao, o afeto e, por ve!es, aspectos pouco agrad#veis, repetitivos e esgotadores, mas

    absolutamente necess#rios para o bem5estar das pessoas. =mplicam atividades comple"as degesto e organi!ao, necess#rias para o funcionamento di#rio do lar e de seus moradores,reali!adas dia ap(s dia nos BMK do ano, no lar e fora dele, no bairro e desde o posto de trabalhoassalariado, ue cria redes familiares e sociais, oferece apoio e segurana pessoal e permite asociali!ao e o desenvolvimento das pessoas. - magnitude e a responsabilidade dessa atividadefa! pensar 5como '# assinalei em outra ocasio 5na e"istncia de uma 0mo invisvel0 muito maispoderosa ue a de -dam 4mith, ue regula a vida cotidiana e permite a continuidade dofuncionamento do mundoB.

    As !")*es o(+'t"s d" $n%$s$,$'$d"de

    4e aceitamos ue essa atividade % absolutamente necess#ria para a sustentabilidade ecuidado da vida humana, como % possvel ue tenha sido mantida invisvel $or ue no tem tido o

    reconhecimento social e poltico ue lhe corresponderia Decerto a resposta % comple"a. )m todocaso, atrevo5me a assinalar duas grandes ra!+es: uma, mais antiga, de car#ter ideol(gicopatriarcal, e outra, possivelmente mais recente, de car#ter econ&mico.

    - primeira est# relacionada com as ra!+es do patriarcado. 4abe5se ue, em ualuersociedade, o grupo dominante 6definido por raa, se"o, etnia etc. 7 define e imp+e seus valores esua concepo de mundo: constr(i estruturas sociais, estabelece as rela+es sociais e de poder,

    3inha dvida em relao a esse tema %: por ue as disciplinas, como a economia, para as uais essaatividade continua sendo invisvel, no se perguntam de onde surge a fora de trabalho ue utili!am em seusmodelos

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    elabora o conhecimento e desenha os smbolos e a utili!ao da linguagem. as, al%m disso, taisvalores tendem a assumir a categoria de universais, com o ue se invisibili!a o resto da sociedade.

    -s sociedades patriarcais no tm sido e"ceo J norma geral.-ssim, vivemos em um mundo onde a cincia e a cultura tm sido construdas pelo poder

    masculino e, em conse3ncia, tem valori!ado somente auilo ue tem relao com a atividadedos homens. No caso concreto ue analisamos, todas as atividades relacionadas com asustentabilidade da vida humana tradicionalmente reali!adas pelas mulheres e caracteri!adas, emgrande medida, pelo fato de seu resultado desaparecer no desenvolvimento da atividade 5, no tmsido valori!adas. -o contr#rio, as ue se reali!am no mundo pblico, cu'os resultados transcendemo *mbito dom%stico e ue tradicionalmente tm sido assumidas pelos homens, desfrutam de valorsocial.

    )ssa diferenciao tem relao com a ue -rendt 6 1FF;7 analisou entre labor e trabalho.$ara ela, o labor guardaria relao com a satisfao de necessidades b#sicas da vida ecorresponderia Juelas atividades ue no dei"am rastros, cu'o produto se esgota em suareali!ao e, por isso, geralmente tm sido despre!adas. I trabalho, ao contr#rio, teria um car#termais duradouro e ob'etivo, no sentido da relativa independncia dos bens daueles ue osprodu!em/ no estaria ligado aos ciclos repetitivos das necessidades humanas e seria umaatividade mais valori!adas e reconhecidaH. not(ria a semelhana desses dois conceitos 5tanto nocontedo como na valori!ao social 5com os atuais, de trabalho familiar dom%stico e trabalho demercado, respectivamente.

    - segunda ra!o di! respeito ao funcionamento dos sistemas econ&micos. Gistoricamente,os sistemas socioecon&micos tm dependido da esfera dom%stica/ tm mantido uma determinadaestrutura familiar ue lhes permita garantir a necess#ria oferta de fora de trabalho por meio dotrabalho das mulheres. )m particular naueles grupos da populao de bai"os recursosecon&micos, a dependncia do sistema econ&mico tem significado uma verdadeira e"plorao daunidade dom%stica 6eillassou", 1FOK7. )m todo caso, em ualuer sociedade, sem a contribuiodo trabalho das mulheres a subsistncia do grupo familiar no teria nunca estado garantida6Cha?anov/ 1F8K/ Priedte et al. 1FOO7. No entanto, os sistemas econ&micos se apresentamtradicionalmente como aut&nomos, ocultando assim a atividade dom%stica, base essencial daproduo da vida e da fora de trabalho.

    )m particular, os sistemas capitalistas so um caso paradigm#tico dessa forma defuncionamento. Com relao J invisibilidade da atividade desenvolvida no lar, -ntonella $icchio61FFH, 1FFFa7 evidenciou ue o ue permanece nesses sistemas oculto no % tanto o trabalho

    dom%stico em si, mas a relao ue ele mant%m com a produo capitalista. )ssa atividade 5aocuidar da vida humana 5constitui o ne"o entre o *mbito dom%stico e a produo de mercado. Daser importante ue esse ne"o permanea oculto, porue facilita o repasse de custos da produocapitalista para a esfera dom%stica. )sses custos esto relacionados, em primeiro lugar, com areproduo da fora de trabalho. Q# no 0Debate sobre o rabalho Dom%stico0 K,nos anos O9, foidenunciada a e"plorao do lar por parte da produo capitalista, no sentido de ue os sal#riostm sido tradicionalmente insuficientes para a reproduo da fora de trabalho e, emconse3ncia, o trabalho reali!ado no lar seria uma condio de e"istncia do sistema econ&mico.

    Devo salientar ue, nesse sentido, a uantidade de trabalho familiar dom%stico substituvelM

    % determinada em grande medida pelo sal#rio. )ste se apresenta, ento, como o ne"o econ&micofundamental entre a esfera de reproduo humana e a esfera mercantil. as sabemos ue a ta"asalarial, assim como a ta"a de lucros, % uma vari#vel distributiva no5independente, determinada,em parte importante, pelas rela+es sociais de poder, de tal forma ue o nvel de sal#rio fica

    estreitamente relacionado com o nvel de lucro e a acumulao capitalista. -ssim, ainda ue nopossam tomar ualuer valor, '# ue os reuisitos reprodutivos assinalam seu possvel campo de

    4Is conceitos de labor e trabalho de -rendt so discutidos mais amplamente em

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    variao 6com fronteiras difusas7, os sal#rios esto de fato determinando uma relao entre otempo dedicado ao trabalho familiar dom%stico e o nvel de lucro capitalista O.

    amb%m foram evidenciados outros aspectos 5econ&micos e relacionais 5do trabalhofamiliar dom%stico absolutamente necess#rios para ue o mercado e a produo capitalistapossam funcionar: o cuidado da vida em sua vertente mais sub'etiva de afetos e rela+es, o papelda segurana social do lar 6sociali!ao, cuidados sanit#rios7, a gesto e a relao com asinstitui+es etc. odas essas atividades so destinadas a criar e manter pessoas saud#veis, comestabilidade emocional, segurana afetiva, capacidade de relao e comunicao etc.,caractersticas humanas sem as uais seria impossvel no somente o funcionamento da esferamercantil capitalista, mas tamb%m a auisio do chamado 0capital humano0;. $or%m a economiasegue ocultando a relao capitalista ue o *mbito familiar dom%stico mant%m com o sistemasocial e econ&mico, ue permite 0e"ternali!ar os custos sociais originados nas atividades demercado e utili!ar as mulheres como amortecedor final do 0dumping social0 6$icchio, 1FFFa: 8BB7.

    )m suma, a produo capitalista tem se desligado do cuidado da vida humana,apresentando5se como um processo paralelo e auto5suficiente. as no % s( isso. -l%m de manterinvisvel o ne"o com as atividades de cuidados, utili!a as pessoas como um meio para seus fins: aobteno de lucro. Da ue, em termos empresariais e da economia oficial, se'a usual falar5se em0recursos humanos0 ou 0fatores de produo0 para se referir Js 0pessoas trabalhadoras0.

    2inalmente a an#lise do funcionamento do sistema capitalista no deve esuecer o papeldo )stadoF. Rale lembrar ue o )stado regula o funcionamento do mercado de trabalho e

    desenvolve programas de proteo social supostamente para cobrir necessidades no5satisfeitaspelo mercado. Dessa forma, participa diretamente da determinao da situao social ue ocupamas pessoas e da estruturao das desigualdades sociais, includas as de se"o. $or isso a supostaneutralidade do )stado com relao J configurao dos diferentes grupos sociais % apenas umamiragem.

    As m+'-e!es (omo p!ot".on$st"s de s+" p!/p!$" -$st/!$"-o lado da an#lise da import*ncia do trabalho de cuidados e das tentativas de desvendar

    as ra!+es de sua invisibilidade, as mulheres vo e"perimentando profundas mudanas em sua vidacotidiana, ue as levaro finalmente a uestionar todo o modelo social. @econstruir o itiner#riopercorrido pelas mulheres nas ltimas d%cadas nos leva necessariamente a uma olhada r#pida nahist(ria recente de nossas sociedades.

    )m primeiro lugar, uero lembrar ue, durante parte importante do s%culo SS19, e"istiu um

    pacto social ue funcionou com diversos elementos constitutivos. Dentre eles escolhi ressaltardois.I primeiro % a id%ia de um emprego est#vel, seguro, ue garante direitos, com acesso a

    determinada segurana social, concebido como um direito individual, ue outorgava identidade ereconhecimento social 6-lonso, 1FFF7. )sse 0trabalho5emprego0 era reconhecido como umaatividade propriamente masculina11.

    7 )ssa id%ias tm sido incorporadas em esuemas de tipo reprodutivo, estabelecendo de forma maissistemati!ada as necessidades de trabalho dom%stico para a reproduo humana, social e econ&mica6Carrasco 1FF1/ Carrasco et al. 1FF1/ $icchio, 1FF8 e 1FFFb7.8 - pedagogia adverte ue % praticamente impossvel ue uma criana aduira 0capital humano0 se,previamente, no recebeu cuidados, segurana psicol(gica, no teve estruturados os processos deaprendi!ado etc., aspectos desenvolvidos fundamentalmente no lar9Ibviamente no % nossa inteno aui reali!ar uma an#lise do papel do )stado nas sociedades capitalistas.as vale assinalar ue o estudo de )sping5-ndersen 6 1FF97, ue considera a relao )stado5mercado comoei"o analtico para avaliar as possibilidades de subsistncia e a ualidade de vida das pessoas, originou umae"tensa crtica de parte do feminismo, ue, por sua ve!, proporcionou, como marco de an#lise mais realista emais f%rtil, o ei"o )stado5mercado5familia 6mulheres7. ma ampla bibliografia a esse respeito pode serconhecida em Carrasco et al. , 1FFO. ma boa an#lise do conceito de 0autonomia0 utili!ando esse marcote(rico % a de ardiner 689997. I pr(prio )sping5-ndersen 61FFF7 reconheceu posteriormente o potencialanaltico da proposta feminista.19)stou me referindo basicamente J )uropa Icidental depois da 4egunda uerra undial.11)mbora parte das mulheres, particularmente as de lares de bai"a renda, tenha mantido presena contnuano mercado de trabalho, ainda ue em condi+es trabalhistas e salariais muito inferiores Js de seus

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    I segundo foi o modelo familiar ue 5embora mais antigo 5acompanhou o modelo fordistade emprego: a forma como se organi!am a sociedade e a produo mercantil sup+em a e"istnciade um modelo familiar 0homem provedor de renda 6mate breadLinner75mulher dona5de5casa0,carateri!ado por uma ideologia familiar ue se concreti!a no matrim&nio tradicional com uma estritaseparao de trabalhos e pap%is entre ambos c&n'uges. I homem % o chefe da famlia e tem aobrigao de prover J famlia por meio de um emprego em tempo integral. - mulher reali!a astarefas de afeto e cuidados, sendo tratada como esposa e me, e no se aceita socialmente ue acasada tenha emprego.

    )ssa estrutura familiar se encai"a perfeitamente no 0pleno emprego0 masculino definidopor

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    nasce, no ser# necess#rio se preocupar com sua educao formal, porue ela simplesmente noatingir# a idade escolar.

    D" $n%$s$,$'$d"de 0 d+p'" #p!esen1"2"+s3n($"# d"s m+'-e!es

    -ssim, J medida ue as mulheres se integram ao mercado de trabalho, vai desaparecendoo modelo familiar 0homem provedor de renda5mulher dona5de5casa0 e vai se abrindo um novomodelo ue tende a se consolidar. I homem mant%m seu papel uase intacto 1K, mas afigura dadona5de5casa tradicional tende a desaparecer. =sso no significa ue ela abandone suas tarefas decuidadora e gestora do lar, mas ue de fato assume um duplo papel: o familiar e o do trabalho forado lar.

    )m conse3ncia, uase solitariamente colocadas diante do problema de 0conciliar0tempos e trabalhos 6familiar e no trabalho fora do lar7, as mulheres sofrem como 0vari#vel dea'uste0 entre os rigores de ambos os trabalhos: as necessidades humanas 6biol(gicas erelacionais7 e as necessidades produtivas e organi!ativas da empresa, com custos importantes5particularmente para elas 5de ualidade de Rida. )sse processo de 0conciliao0 tem e"igido Jsmulheres desenvolver diversas formas de resistncia individual 1M, adapta+es e escolhas diversas,ue tm a ver com redu+es do trabalho familiar, com a organi!ao do trabalho de cuidados ecom formas especficas de se integrar no mercado de trabalho1O.

    as o processo de insero das mulheres no mercado de trabalho significa sua insero

    em um mundo definido e construdo por e para os homens. m mundo 5o mercantil5 ue s( podefuncionar como o fa! porue se ap(ia e depende do trabalho familiar, ue reuer liberdade detempos e espaos, isto %, e"ige a presena de algu%m na casa ue faa as atividades b#sicas paraa vida. Nesse sentido, o modelo masculino de participao no mercado de trabalho no pode sergenerali!ado. 4e as mulheres o imitassem, uem cuidaria da vida humana com toda a dedicaoue isso implica1;

    - dupla participao das mulheres 5no mercado de trabalho e na responsabilidade do lar5ue originalmente se definiu como duplo trabalho e posteriormente como dupla presena,atualmente % denominada 0dupla presenaAausncia01F, para simboli!ar o estar e no5estar emnenhum dos dois lugares e as limita+es ue a situao implica sob a atual organi!ao social.4ituao essa ue obriga as mulheres J pr#tica constante de passar de um trabalho ao outro, dascaractersticas especficas da atividade familiar aos hor#rios e valores do trabalho assalariado, dacultura do cuidado J cultura do lucro, ue lhes e"ige interiori!ar tens+es, tomar decis+es e fa!er

    1K- participao dos homens no lar 5mesmo tendo aumentado tenuemente uanto a tarefas muito especficas5se mant%m como simples 0a'uda0, e no como o reconhecimento de uma responsabilidade compartilhada.1M)sse processo tamb%m se viu afetado por mudanas ue no so resultado de transforma+es nas pautasde conduta das mulheres, mas efeitos de varia+es estruturais.1O-s redu+es do trabalho familiar vieram por diversas vias. 4em dvida a mais significativa foi a ueda dafecundidade: de 8,B8 f=lhos em 1F;9 para 1,9O ho'e, mnimo hist(rico muito abai"o da ta"a de reposio. )ssanova situao redu!iu muito o cuidado das crianas, mas o not#vel aumento da esperana de vida desloca oscuidados e aten+es Js pessoas idosas. Iutra via % a reduo real de certos aspectos do trabalho, devidobasicamente ao desenvolvimento tecnol(gico e J auisio de maior nmero de bens e servios no mercado,aspectos ue afetam mais as mulheres de maior poder auisitivo. as as de bai"a renda tm intensificadoseu tempo de trabalho com diversas atividades simult*neas. -l%m disso, em geral, nos lares, basicamentenaueles onde as mulheres trabalham fora, os trabalhos dom%sticos mais tradicionais, como limpar e passarroupa, se redu!em ao mnimo necess#rio, sendo bem5menores ue os de nossas av(s.)m relao Js atividades de cuidados, estas no se definem tanto dentro das rela+es de casal, mas nocon'unto das mulheres enuanto grupo social. - transferncia de tarefas se reali!a basicamente entremulheres 6famlia, amigas, vi!inhas7: tanto os cuidados das crianas como os destinados aos idosos sodesincumbidos principalmente por meio de uma rede feminina 5ainda ue hist(rica 5construda atualmentepara mediar a satisfao de necessidades humanas e as e"igncias da produo capitalista, em vista da faltade servios pblicos adeuados e de uma organi!ao social a servio da ualidade de vida.1;$or e"emplo, na cidade de

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    escolhas Js uais os homens no esto obrigados. Nesse sentido, a e"perincia cotidiana dasmulheres % uma negociao contnua em diferentes *mbitos sociais 5como cuidadorasrespons#veis dos outros e como trabalhadoras assalariadas, com todas as restri+es e obriga+esue isso significa 5, ue se tradu! na impossibilidade de se sentir J vontade em um mundoconstrudo segundo o modelo masculino 6$icchio, 1FFFb7.

    A eme!.3n($" do %e!d"de$!o (on4'$to)nuanto e"istia o tipo tradicional de famlia 'unto com o modelo fordista de produo, e os

    trabalhos de mulheres e homens apareciam como paralelos e independentes, o ne"o entre ocuidado da vida e a produo capitalista permanecia oculto e toda a atividade ue as mulheresreali!avam em casa 5 cuidado fsico e psicol(gico da vida humana Vficava invisvel. as, uandoas mulheres passaram a reali!ar os dois trabalhos e a viver em seu pr(prio corpo a enorme tensoue significam a superposio dos tempos e o contnuo deslocamento de um espao a outro, foiento ue o conflito de interesses entre os diferentes trabalhos comeou a se fa!er visvel.

    Dessa forma, a tenso vivida pelas mulheres no % mais ue refle"o da contradio muitomais profunda ue assinal#vamos anteriormente: a ue e"iste entre a produo capitalista e obem5estar humano, entre o ob'etivo do lucro e o ob'etivo do cuidado da vida. )ntre asustentabilidade da vida humana e o beneficio econ&mico, nossas sociedades patriarcais tmoptado pelo segundo.

    =sso significa ue as pessoas no so o ob'etivo social priorit#rio, no so um fim em si

    mesmas, e esto a servio da produo. Is interesses poltico5sociais no esto orientados Jobteno de uma melhor ualidade de vida, mas ao crescimento da produo e J obteno delucros. m refle"o claro disso so todas as polticas de desregulamentao e fle"ibili!ao domercado de trabalho nos ltimos anos, cu'o ob'etivo no tem sido outro seno redu!ir custossalariais e adaptar os tempos de trabalho Js e"igncias da maior eficincia e produtividade daempresa, ainda ue isso tenha claros efeitos negativos na ualidade de vida das pessoas.

    - uesto % clara: o centro de interesse social est# na produo, no mundo pblico, nosgrandes agregados macroecon&micos, como aspectos fundamentais a serem mantidos emelhorados. I cuidado da vida humana % deslocado ao *mbito dom%stico, entendido como umaresponsabilidade feminina.

    Da ue as pessoas devam resolver sua subsistncia e ualidade de vida no.*mbitoprivado, mas sempre sob as condi+es de trabalho e"igidas pela organi!ao da empresacapitalista. $or isso a visibilidade do trabalho dom%stico no % um problema t%cnico, mas

    fundamentalmente social e poltico.

    )$I D) C=D-DI, )$I D) )@C-DI: CINC=>=-WXI I $@=I@=Y-WXII ob'etivo desta segunda parte % tradu!ir para a linguagem dos tempos a atividade das

    pessoas ue se encarregam da sustentabilidade da vida humana, com os conflitos e contradi+esanteriormente mencionadas. - id%ia % refletir, em um terreno mais concreto, algumas uest+esdesenvolvidas na primeira parte, para comear a discutir propostas ue possibilitem avanar parauma sociedade ue aposte na solidariedade, na diversidade t na e3idade.

    entarei, na medida do possvel, seguir um itiner#rio an#logo ao anterior, de forma ue osaspectos conflitivos ue foram surgindo na primeira parte se evidenciem agora na organi!ao evalori!ao dos tempos. )m geral, estarei me referindo a nossas sociedades industriali!adasocidentais.

    Os tempos e s+"s ("!"(te!&st$("sDesde seus incios 5h# apro"imadamente trs d%cadas 5 os estudos de 0oramentos de

    tempo0 tm oferecido uma uantidade enorme de informao sobre a forma como as pessoasusam o tempo. )sses estudos tm facilitado, em especial, a an#lise do tempo de trabalho, pondode manifesto as importantes desigualdades entre mulheres e homens89.

    29 )ssas contribui+es so amplssimas e vm basicamente do campo da sociologia. -s refernciasinternacionais obrigat(rias so os trabalhos de 4!alai 61FO87, ershun? 61FF1 7, oldschmidt5Clermont et al.6no =nforme sobre o Desenvolvimento Gumano, de 1FFK7 e as diferentes s%ries de dados europeus atuais.ma bibliografia mais ampla, includas as referncias para o caso espanhol, est# em Carrasco et al. 689997.

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    4e comearmos a an#lise da satisfao das necessidades humanas e sociais dessaperspectiva 5a do uso do tempo 5, poderemos constatar ue nem todos os tempos sohomogneos: uns esto destinados a satisfa!er as pr(prias necessidades 6o mais evidente % otempo de dormir7 e outros a satisfa!er necessidades dos demais 6normalmente parte do tempo uededicamos a trabalhar satisfa! necessidades pr(prias e, em parte, alheias7/ tamb%m h# temposmais rgidos e outros mais fle"veis e, al%m disso, h# os ue podem ser utili!ados solitariamente eoutros 6os de relao7 ue devem necessariamente ser compartilhados.

    )m nossas sociedades atuais, % costume estabelecer cinco grandes categorias para o usodo tempo para as pessoas em idade ativa 81: tempo de necessidades pessoais, tempo de trabalhodom%stico, tempo de trabalho de mercado, tempo de participao cidad e tempo de (cio. Cadaum desses tempos apresenta algumas caractersticas pr(prias, ue lhes outorga diferentes grausde fle"ibilidade, necessidade ou possibilidade de substituio.

    )m primeiro lugar, podemos di!er ue o tempo das necessidades pessoais % indispens#vele bastante rgido, no sentido de ue e"iste um tempo necess#rio, difcil de diminuir, para o sono, ascomidas e a higiene pessoal. as o tempo do (cio tem um forte grau de fle"ibilidade, sendo de fatoutili!ado fre3entemente como 0vari#vel de a'uste0 do tempo de trabalho familiar dom%stico: umaumento deste ltimo redu! rapidamente o tempo de (cio.

    I tempo ue denominamos de participao cidad tamb%m % bastante fle"vel, ainda uecom um forte componente de gnero88. -ui inclumos tempo dedicado a todo tipo de trabalhovolunt#rio: em associa+es, partidos polticos, trabalho volunt#rio direto etc., atividades diversas e

    muitas ve!es necess#rias para o desenvolvimento pessoal, e sem dvida para a construo deredes de integrao e coeso social.

    2inalmente, os tempos relevantes para nosso ob'eto de estudo so o de trabalho familiardom%stico e o de trabalho remunerado8B. $odemos considerar o tempo de trabalho dom%sticofamiliar dividido em dois componentes diferenciados. m primeiro compreende auelas atividadesue, como se assinalou anteriormente, so insepar#veis da relao afetiva implcita e ue, emconse3ncia, no tm substituto de mercado 6no podem ser avaliadas a preo de mercado7 nempblico ou podem, em algum caso, ter maus substitutos. )sse tempo de trabalho no pode serredu!ido abai"o de um mnimo estritamente necess#rio sem afetar o desenvolvimento integral daspessoas como tais. I segundo componente do tempo dom%stico familiar % auele ue produ! bense servios ue podem ser substitudos pelo mercado ou pelo setor pblico. I grau de substituiodepender#, por um lado, do nvel de renda 6ue compreende basicamente sal#rios7 e, por outro, daoferta de servios pblicos de cuidados8H.

    I tempo de trabalho mercantil depende naturalmente do desenvolvimento tecnol(gico,mas tamb%m, e possivelmente em maior medida, de outros aspectos de ordem mais social einstitucional: da organi!ao do trabalho, das rela+es de poder entre trabalhadores6as7 eempres#rios6as7, do papel do setor pblico, dos padr+es sociais de consumo, da situaosociopoltica geral e da cultura masculina do trabalho de mercado. Normalmente a 'ornadanegociada ou imposta pelas rela+es trabalhistas % bastante rgida, no sentido de ue a pessoaindividual no pode escolher um nmero de horas de trabalho J sua vontade nem a distribuio

    21)mbora muitas pessoas idosas, basicamente mulheres, reali!em atividades relacionadas com o cuidado 6ououtras7, analisaremos o tempo das pessoas em idade ativa,'# ue % nesta ue se apresentam maioresconflitos com a organi!ao do tempo. =sso pressup+e ue as pessoas dependentes por ra!+es de idade6crianas ou pessoas idosas7 demandam mais tempo do ue podem oferecer.28Is estudos sobre o uso do tempo mostram ue as mulheres participam menos nesse tipo de atividade, ue

    % geralmente o primeiro ue redu!em uando assumem responsabilidades de cuidados.2BIs demais tempos tamb%m so importantes e necess#rios. as nosso interesse est# em como sesatisfa!em as necessidades de reproduo, donde serem mais relevantes os tempos de trabalho ue cobremas necessidades b#sicas. $or isso talve! devssemos considerar tamb%m o tempo de participao cidad. 4eno o fa!emos % por acreditarmos ue tem caractersticas diferentes e seria tema de outro estudo. madiscusso geral sobre o uso e caractersticas dos diferentes tempos pode5se ver em @ecio 8991.2H )ssa separao do trabalho familiar dom%stico em dois componentes % naturalmente uma abstraote(rica, difcil de se reali!ar na pr#tica. $or um lado, no % possvel estimar o tempo ue cada um implica,'#ue pode ser diferente para cada pessoa. as, por outro, ainda ue em nvel individual, cada pessoa sabe asatividades ue no tm para ela substituto de mercado, pois estas tm fronteiras difusas e, em:conse3ncia,tamb%m no podem ser uantificadas em um nmero e"ato de horas.

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    das horas ao longo da semana, ms ou ano. 4e e"istiu um certo grau de fle"ibilidade, foi em geralimposto pela empresa.

    O tempo es("sso5 o tempo d$n-e$!o

    as nem todos os tempos so iguais nem, em conse3ncia, intercambi#veis. 4e noslocali!armos em perodos anteriores J industriali!ao, observamos ue os tempos de trabalhotinham estreita relao com os ciclos da nature!a e da vida humana. Com o surgimento econsolidao das sociedades industriais, o tempo ficou muito mais ligado Js necessidades daproduo capitalista: o trabalho remunerado passou a ser determinado no pelas esta+es do ano6tempo de semear, de colheita etc.7 ou pela lu! solar 6no importava mais se era noite ou dia7, maspelo rel(gio 5como tempo cronometrado 5, ue se estabeleceu como instrumento de regulao econtrole do tempo industrial8K. ) este veio acondicionar em parte os demais tempos de vida etrabalho: a vida familiar teve de se adaptar J 'ornada de trabalho remunerado.

    Com o desenvolvimento do capitalismo, o tempo de trabalho como fonte relevante deobteno de beneficio % considerado um 0recurso escasso0 e mercantili!ado, isto %, assume aforma de dinheiro8M. Da ue caractersticas como a produtividade ou a eficincia tenham setransformado em aspectos importantes nos processos produtivos, '# ue significam poupana detempo e, em conse3ncia, de dinheiro8O.

    Nesse processo, a teoria neocl#ssica tem tido um papel determinante. )m sua an#lise do

    capital humano, ela considera o tempo humano um recurso escasso, por estar pr%5fi"ado napessoa, e um fator fundamental na auisio do capital humano: 0o limite econ&mico ltimo dariue!a no est# na escasse! de bens materiais, mas na escasse! de tempo humano0 64chult!1F;9: M,H87.

    I desenvolvimento econ&mico depende fundamentalmente do capital humano ue, porsua ve!, depende do tempo humano. Dessa forma, o valor do capital humano aparece vinculadoao valor 6preo7 do tempo humano, ue, em ra!o de sua escasse!, se tradu! em um aspectocrtico nas an#lises do comportamento humano.

    obvio ue esses novos conceitos introdu!idos pela teoria do capital humano no tm pornico campo de aplicao o mercado de trabalho. -o tratar ao conceito de 0tempo humano0, elesdeslocam seu campo de ao Js atividades do lar. -l%m disso, segundo alguns autores, 0o maiorvnculo entre famlia e economia % o valor do tempo humano0. -o tomar como ponto de partida ofato de uma pessoa poder distribuir seu tempo em diversas atividades 5de mercado, dom%sticas e

    de (cio, de acordo com suas preferncias para ma"imi!ar sua utilidade 5e de esse tempo ter umpreo, o custo de oportunidade do tempo estar# entre os fatores ue afetariam suas decis+es deconsumo. - economia dominante considera ue o tempo % homogneo, tem preo de mercado deacordo com o 0capital humano0 da pessoa e % atribudo em nvel individual Js diversas atividades.)m conse3ncia, os tempos no5mercantis tornam5se invisveis e s( podem ser reconhecidos namedida em ue se'a possvel medi5los em termos mercantis, caso no ual ficam tamb%mconceituados como dinheiro.

    Dessa forma, o tempo considerado 0dinheiro0 tem conseguido influenciar notavelmentenossa cultura e nossa vida social industrial. I conhecido ditado 0tempo % dinheiro0 reflete essapercepo. No entanto, apesar disso, h# tempos no5suscetveis de mercantili!ao e ue., emconse3ncia, no podem ser transformados em dinheiro. Casos claros so os tempos de algunsgrupos da populao no5ativa: o de brincadeira de uma criana/ o dos idosos e doentes/ at% o daspessoas ue poderiam ser ativas mas ue, por alguma ra!o socioecon&mica, foram e"cludas

    socialmente eA ou do mercado de trabalho: mendigos, presos ou pessoas aposentadas. $odemos

    2K- mercantili!ao e controle do tempo % um fen&meno especfico das sociedades industriali!adas e emindustriali!ao 6-dams, 1FFF: 197.2MDiferentes aspectos da mercantili!ao do tempo e sua forma de dinheiro esto muito bem abordados em

    -dams 61FFF7.2O)ssa concepo de tempo impulsionou os esforos por fa!er mais 0produtivo0 o trabalho da dona de casa6considerada improdutiva7, ue surgiram com o ovimento para as Cincias Dom%sticas, tentando mostrarue os m%todos ta?loristas podiam ser aplicados ao trabalho dom%stico.

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    afirmar, em geral, algo assim como o tempo dauelas pessoas 0cu'os ativos no tm valor demercado08;.

    Tempo me!("nt$'$)"do5 tempo %"'o!$)"do

    -profundemos agora o ue % nosso principal foco: o tempo das pessoas ativas. Nessesetor da populao, h# tempos de todo tipo: os mercantili!ados e os no5mercantili!ados e, dentrodesses, os suscetveis e os no5suscetveis de mercantili!ao, Is primeiros 6os mercantili!ados7so os tempos dedicados ao trabalho remunerado e os outros correspondem Js uatro categoriasrestantes defnidas anteriormente: tempo de necessidades pessoais, de (cio, de trabalho volunt#rioe de trabalho familiar dom%stico. Dos trs ltimos, pelo menos uma parte % mercantili!#vel, se'avolunt#ria ou involuntariamente. $or e"emplo, pode acontecer ue setores da populao precisemmercantili!ar seu tempo de (cio para poder subsistir ou tamb%m ue certos setores semnecessidades econ&micas urgentes este'am dispostos a prolongar sua 'ornada de trabalho pormotivos diversos: promoo, poder, maior capacidade de consumo etc., todos eles relacionadoscom o dinheiro5poder.

    )m ualuer caso, uma parte importante do con'unto do tempo no % mercantili!#vel, nopode se transformar em dinheiro/ no so todas as rela+es humanas ue esto e"clusivamentegovernadas pelo tempo5dinheiro, '# ue precisamos dormir, comer e estabelecer rela+es sociais eafetivas.

    No tema ue nos ocupa 6o tempo dedicado ao trabalho7 uma parte do trabalho dom%sticono pode ser mercantili!ado, '# ue no desenvolvimento dessa atividade % necess#ria a implicaopessoal pelo componente sub'etivo ue comentamos anteriormente8F. )ssa atividade tem porob'etivo o cuidado da vida, e no a obteno de lucro, como a produo capitalista. Da ue, no lar,os conceitos de eficincia e produtividade 5ue permitem poupar tempo Vpercam totalmente seusentido mercantil.

    No lar, mais ue reali!ar uma atividade em menos tempo, normalmente interessa ue oresultado uanto a rela+es e afetos se'a de maior ualidade. Tue sentido teria, por e"emplo,pretender maior produtividade ao ler hist(rias para uma filha 4er mais r#pido para conseguir leruatro contos em ve! de um no mesmo tempo )m todo caso, embora a rapide! possa serinteressante em determinadas atividades e ocasi+es, normalmente ela responde a umaintensificao do tempo por ra!+es mercantis. o caso, por e"emplo, das mulheres ue fa!emdupla 'ornada, cu'o ritmo de trabalho % muito determinado por seus hor#rios de trabalho.

    -gora, em uma sociedade capitalista regida pelo ob'etivo da ma"imi!ao do lucro,somente o tempo mercantili!ado 5auele ue pode ser transformado em dinheiro 5% reconhecidosocialmente. )sse tempo % dedicado a trabalho de mercado. Is tempos restantes 5em particular,os chamados 0tempos geradores da reproduo0, ue incluem os tempos de cuidados, afetos,gesto e administrao dom%stica, rela+es e (cio, ue no so pagos, mas vividos, doados egeradosB9 50se constituem na sombra da economia do tempo dominante, baseada no dinheiro06-dams 1FFF: == 7, no tm nenhum reconhecimento e, em conse3ncia, tendem a se tornarinvisveis.

    - economia como disciplina acadmica tem legitimado essa situao: dedica./se uasee"clusivamente Js atividades chamadas econ&micas, ue se reali!am com tempo mercantili!#vel,enviando ao limbo do no5econ&mico todas as demais. )m todo caso, o mais preocupante % oestudo das 0atividades econ&micas0 se reali!ar de forma independente, como se fosse possvelentend5las e analis#5las J margem das de no5mercado, como se no dependessem desse tempo

    0socialmente desvalori!ado0 para sua reali!ao.-l%m disso, ao identificar5se com o dinheiro, o tempo mercantili!ado est# associado aopoder, ao poder do dinheiro. -ssim, as rela+es de poder no lar guardam estreita relao com acontribuio em dinheiro para a economia familiar: filhos e filhas 'ovens sem renda pr(pria e

    2;$or e"emplo, pessoas ue podem ter Zativos[ como a Zproduo de generosidade ou afeto0, cu'os tempos,ao no estarem valori!ado no mercado, no so mercantili!#veis.2FComo se discutiu anteriormente, % a parte do trabalho dom%stico ue no tem substituto de mercado.39)ssas id%ias, desenvolvidas pelo pensamento feminista, se encontram recolhidas em diversos artigos, emlivros como os de

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    mulheres ue no participam do mercado de trabalho reconhecem, sem nenhuma dvida, aautoridade do provedor de ingressos monet#riosB1. Como resultado, o dinheiro outorga maiorautonomia e maior capacidade de deciso J pessoa ue o ue ganha no mercadoB8.

    Do tempo $n%$s&%e' "o tempo $ntens$4$("do

    I modelo familiar male breadLinner tradu!ido em termos de tempo poderia serconsiderado uma situao 0(tima0, dos pontos de vista tanto da ideologia patriarcal como doob'etivo capitalista: as mulheres desenvolvem ma'oritariamente suas atividades em um tempo6invisvel e no5reconhecido7 ue 5embora organi!ado, em parte, da perspectiva da produomercantil5 no % governado por crit%rios de mercado, enuanto os homens, livres de obriga+esrelacionadas com o cuidado da vida, podem colocar seu tempo 6visvel e valori!ado7 J disposiodas necessidades da empresa.

    -gora, com a crescente participao feminina no mercado de trabalho e a resposta social emasculina nula a essa mudana de cultura e comportamento das mulheres, elas assumiro a dupla

    'ornada e o duplo trabalho, deslocando5se continuamente de um espao a outro, superpondo eintensificando seus tempos de trabalho. empos ue vm determinados, por um lado, pelase"igncias da produo mercantil e, por outro, pelas e"igncias naturais da vida humana. -smulheres 5uma ve! tentadas todas as possibilidades de redu!ir o trabalho familiar dom%stico5adaptaro, de uma ou outra maneira, seu tempo de participao no mercado de trabalho Js

    necessidades de cuidado da vida. )m particular auelas ue tm pessoas dependentes a seucargo desenvolvero diversas estrat%gias para reali!ar o trabalho de mercado, assumindo asnecessidades de sustentao da vida humana.

    - habitual rigide! determinada pelos tempos dedicados a trabalho de mercado somada Jsnecessidades de tempos de cuidado resultam em ue, em geral, as mulheres intensifiuemnotavelmente seu tempo de trabalho totalBBe redu!am seu tempo de (cioBH, utili!ado como vari#velde a'uste e, em casos e"tremos, redu!am tamb%m o tempo dedicado a satisfa!er suasnecessidades pessoais, situao ue se converte em limite para as de famlias monoparentais,particularmente para as de bai"a renda.

    )m todo caso, as mulheres como grupo humano subordinaro o trabalho de mercado Jsnecessidades 5biol(gicas, relacionais e afetivas 5postas pelas pessoas do lar ou da famlia. Ishomens, ao contr#rio, seguiro com sua dedicao priorit#ria 5e muitas ve!es e"clusiva 5aomercado. -o contr#rio das mulheres, seu referente principal segue sendo o trabalho remunerado

    ao ual oferecem uma total disponibilidade de tempo. -ssim, os reuisitos de cuidados diretos nolar se convertem, para eles, em uma vari#vel residual e a'ust#vel de seu ob'etivo principal: aatividade mercantil pblicaBK.

    - situao descrita para homens e mulheres fica perfeitamente refletida nos modelos departicipao de cada um deles ou delas no mercado de trabalho. )m primeiro lugar, a participaomasculina responde ao modelo de invertido: os homens se incorporam no mercado de trabalhona idade ativa e nele permanecem at% a idade da aposentadoria.

    314em dvida, essa situao est# refletindo a presena de rela+es patriarcais.38-s novas perspectivas sobre o tempo e o trabalho desenvolvidas da perspectiva feminista tm e"plicitado asrela+es de poder e a desigualdade de gnero ue se escondem por tr#s da forma mercantil de valori!ar otempo.3B)sses processos de intensificao do uso do tempo tm estreita relao com o bem5estar e a ualidade de

    vida das pessoas. Nos ltimos anos, tem sido dada bastante ateno a essa situao, ue tem lugarparticularmente entre as mulheres empregadas e de bai"a renda.3H4ituao ue se observa nos estudos do uso do tempo.3K)m estudo reali!ado em

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    )sse modelo % caracterstico do modelo familiar mate bread5Linner , ue tem permanecidointacto ainda depois da massiva entrada de mulheres no mercado de trabalho. -ssim, os homenscontinuaram a dedicar seu tempo de trabalho somente ao mercado e tm mantido sua forma departicipar.

    I modelo feminino, por sua ve!, no tem forma de invertido, mas assumiu formasdiferentes de acordo com a situao s(cio5hist(rica e cultural de cada pas. radicionalmente essemodelo podia ter dois picos 5ou, o ue d# na mesma, forma de 5, o ue representava aincorporao das mulheres ao mercado de trabalho, sua retirada ao nascimento do primeiro filho,sua reincorporao uando oAa filhoAa menor alcana a idade escolar e, finalmente, sua retirada naidade da aposentadoria/ ou um pico, ue representava a volta das mulheres ao mercado detrabalho depois do nascimento doAa primeiroAa filhoAa. )sses modelos tm tido suas formasmodificadas, mostrando uma lenta tendncia no sentido de ganhar a forma de invertido. Noentanto, em nenhum caso chegou a ter esse desenho nem mesmo nos pases do norte de )uropa,com tradio mais antiga de participao feminina.

    No creio ue essa situao se'a uma uesto de 0atraso tempor#rio0/ mais ainda, creioue, se em algum momento o modelo feminino chegar J forma de invertido, no estar#representando o mesmo ue o masculino, mas escondendo uma forma de participao muitodiferente da dos homens: 'ornadas de tempo parcial, maior temporalidade etc.

    Is diferentes modelos e formas de participao feminina esto refletindo ue a prioridadedas mulheres est# posta em outro lugar, no no trabalho de mercado com as e"igncias atuais.

    =sso no significa ue elas no dese'em participar do trabalho remunerado, mas ue a'ustam suaparticipao Js necessidades de cuidados. 4e estas estivessem resolvidas de outra maneira 5comoutra organi!ao social e participao masculina 5, elas poderiam assumir ambos os trabalhos emcondi+es an#logas Js dos homens.

    AS MULHERES ACOMPANHAM A VIDA

    4e observarmos agora o reverso da medalha, a outra parte do processo, veremos ue aparticipao feminina no trabalho familiar dom%stico, sim, tem forma de invertido, an#loga J doshomens no mercado, mas com incorporao mais precoce e sem cessar no trabalho, at% ue ascondi+es de sade o permitam.

    -gora, uma caracterstica importante do trabalho de cuidados % ue sua reali!ao no %linear, mas segue o ciclo da vida: intensifica5se claramente uando se trata de cuidar de pessoas

    dependentes: crianas, pessoas idosas ou doentes. Da ue a intensidade da participao dasmulheres no trabalho familiar dom%stico depende, em parte importante, de sua situao no ciclovital: o usual % ue aumente uando se passa a viver em dois, continue aumentando uando setm filhos, diminua 5embora se mantenha elevada Vuando estes crescem e volte a aumentaruando se tem responsabilidade por uma pessoa adulta. ), em ualuer momento, essaparticipao pode aumentar por alguma situao especfica: doena, acidente de alguma pessoado entorno afetivo etc. Nesse sentido, podemos di!er ue as mulheres, por meio de seu tempo etrabalho, acompanham a vida humana.

    No entanto, a participao dom%stica dos homens, al%m de ser absolutamente minorit#ria,% bastante linear, no sentido de ue sua intensidade praticamente no % afetada pelo ciclo vital BM.)sse comportamento responde perfeitamente J figura do Gomo economicus, personagemrepresentativo da teoria econ&mica ue dedica todo seu tempo J atividade de mercado e no sepreocupa com as atividades de cuidadosBO. as o mais elementar sentido comum nos indica ue o

    3M4egundo o mencionado estudo reali!ado em

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    Gomo economicus somente pode e"istir porue e"istem as 0fmeas cuidadoras0 , ue seresponsabili!am por ele, pelos filhos e f=lhas, pela me e pelo pai.

    Conv%m lembrar ue os tempos de cuidados diretos apresentam outra caracterstica: somais rgidos no sentido de ue no podem ser agrupados e muitos deles e"igem hor#rios e

    'ornadas bastante fi"os e, em conse3ncia, apresentam maiores dificuldades de combinao comoutras atividades. as se essa no % uma situao e"traordin#ria ou ue interesse valori!ar como0boa0 ou 0m#0, simplesmente % uma caracterstica humana: todas e todos necessitamos sercuidados em perodos determinados de nossa vida.

    )m conse3ncia, tomemos em considerao duas coisas. De um lado, esto osprocessos de fle"ibili!ao da produo 5definidos como uma nova racionali!ao do tempo 5, uesupostamente beneficiariam trabalhadoras e trabalhadores, ao permitir5lhes um maior poder dedeciso sobre sua organi!ao do trabalho e familiar/ de outro, esto as mudanase"perimentadas pelo modelo familiar e as rigores e"igidos pelas tarefas de cuidados.Considerando esses dois aspectos, podemos afirmar ue a fle"ibili!ao imposta desde a empresaest# implicando uma difcil 0conciliao0 entre o tempo de trabalho e os tempos das atividadespblicas e de rela+es, particularmente para a populao feminina, ue e"perimenta no somentedificuldades consider#veis para estruturar suas vidas, mas tamb%m uma contnua tenso econtradio, ao superpor tempos de dimens+es to diferenciadas. rata5se de uma contradioue repercute na pr(pria categoria do ser das mulheres.

    -o manter como ob'etivo social priorit#rio a obteno de lucro, a empresa pode impor o

    ue para ela % uma racionali!ao do tempo e um incremento da eficincia, situao ue, para aspessoas trabalhadoras, se tradu! em um s%rio conflito, '# ue elas

    0no operam e"clusivamente no tempo mercantili!ado, racionali!ado e mecani!ado doemprego industrial, mas em uma comple"idade de tempos ue de fato necessitam sersincroni!ados com os tempos =mportantes de outras pessoas e com a sociedade em ueas pessoas vivem e trabalham0 6-dams, 1FFF: 1F7.

    as essa situao no repercute da mesma forma em todas as pessoas. G# diferenasimportantes segundo o gnero e as caractersticas do ciclo vital de cada uma. $essoas 'ovens esolteiras encontram menos dificuldades para organi!ar seus tempos, ainda ue as e"igncias dedeterminados hor#rios 6noites, finais de semana7 possam afetar suas rela+es. Gomens adultosseguramente no tm conflitos em combinar hor#rios de trabalho, ainda ue a fle"ibili!ao possa

    afetar sua vida familiar. 2inalmente as mais pre'udicadas sero as mulheres ue tmresponsabilidade com pessoas dependentes e necessitam coordenar e sincroni!ar seus hor#rioscom praticamente todos os membros do lar.

    $I44\R)=4 C)N]@=I4 2@I4

    Ibservada a essncia do conflito 5a contradio b#sica entre a l(gica do cuidado e a l(gicado lucro 5, ue possveis alternativas podem ser vislumbradas 4eguramente v#rias. Depender# dafora, poder e vontade poltica de implementar polticas ue tendam a favorecer umas ou outras.)m minha opinio, as diferentes alternativas podem se resumir em trs, ue em ordem crescentede otimismo seriam as seguintes: - primeira, a mais pessimista, % a consolidao do modelo atual: o ob'etivo central permanece

    na produo capitalista e na obteno de lucros, com os homens tamb%m tendo como

    atividade fundamental sua participao no mercado e as mulheres reali!ando ambos ostrabalhos. Nesse modelo, as mulheres de rendas m%dia e alta podem buscar solu+esprivadas e aliviar sua carga de trabalho aduirindo mais bens e servios no mercado, o uedificilmente seria possvel para de renda mais bai"a. -l%m disso, % possvel ue cada ve! maismulheres de rendas mais elevadas passem parte de seu trabalho familiar dom%stico amulheres 6e homens7 imigrantes de pases mais pobres, com o ue o problema no estariasendo resolvido, mas simplesmente aduirindo dimens+es mais amplas/ de alguma forma,esse problema estaria sendo 0globali!ado0.

    - segunda alternativa trata, no fundamental, do modelo anterior, mas com polticas uecolaborem em determinadas tarefas dom%stico5familiares, o ue atenuaria o trabalho das

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    mulheres. $or e"emplo, maior nmero de creches, servios mais amplos de ateno Jspessoas adultas ou doentes etc. , e polticas de emprego especficas para a populaofeminina. -pontam nessa direo as chamadas polticas de conciliao.

    - situao social, de trabalho e familiar das mulheres dependeria dos recursos destinados aesses tipos de polticas.

    2inalmente a alternativa mais otimista coloca uma mudana de paradigma ue signifiue olhar,

    entender e interpretar o mundo da perspectiva da reproduo e da sustentabilidade da vida.-ceitar ue o interesse deve se situar no cuidado das pessoas significa tamb%m deslocar ocentro de ateno do pblico e do mercantil J vida humana, reconhecendo nesse processo aatividade de cuidados reali!ada fundamentalmente pelas mulheres.

    udar o centro de nossos ob'etivos sociais muda nossa viso do mundo: a l(gica da cultura dolucro ficaria sob a l(gica da cultura do cuidado. Duas l(gicas to contradit(rias no podem ser0conciliadas0/ no se pode estabelecer um consenso ou uma complementaridade entre elas.Necessariamente devem ser estabelecidas prioridadesB;: a sociedade se organi!a ou tendo comoreferncia as e"igncias dos tempos de cuidados ou sob as e"igncias dos tempos da produocapitalista.

    Dessa perspectiva, por e"emplo, as polticas atuais de 0conciliao0 da vida familiar e detrabalho perdem sentido, '# ue no abordam o problema de fundo, mas colocam mnimos a'ustes,mantendo no entanto como ob'etivo central a obteno de lucro, isto %, os tempos de cuidadosdevem seguir a'ustando5se aos tempos de produo capitalista.

    -l%m disso, tais polticas 5embora no o e"plicitem Vesto dirigidas basicamente Js mulheres,uando so ma'oritariamente os homens ue ainda 0no conciliam0 seus tempos e suas atividades.De fato, n(s, mulheres, temos estado sempre em uma pr#tica contnua de 0conciliao0, semnecessidade de leis ou polticas particulares. possvel ue uma lei de 0conciliao de trabalhofamiliar e mercantil0, dirigida especificamente aos homens, constitua uma forma e"itosa de darvisibilidade e reconhecimento ao trabalho familiar dom%sticoBF.

    4e optamos pela vida humana, como % nossa proposta, ento seria necess#rio organi!ar asociedade seguindo modelo feminino de trabalho de cuidados: uma forma descontnua departicipar no trabalho familiar ue depender# do ciclo vital de cada pessoa, mulher ou homem/ oshor#rios e 'ornadas de trabalho teriam de ir se adaptando Js 'ornadas dom%sticas necess#rias, eno ao contr#rio, como se fa! atualmente/ os tempos mercantis teriam de ser fle"ibili!ados, maspara se adaptarem Js necessidades humanas. I resultado seria uma crescente valori!ao dotempo no5mercantili!ado, ue colaboraria para ue o setor masculino da populao diminusse

    suas horas dedicadas ao mercado e fosse assumindo sua parte de responsabilidade nas tarefas decuidados diretos. Dessa forma seria possvel conuistar a 0igualdade0 entre mulheres e homens,porue estes estariam imitando as primeiras ao participar de forma similar no ue so as atividadesb#sicas da vida.

    $aralelamente a participao de uns e outras no trabalho iria sendo homogenei!ada.2inalmente o papel das polticas pblicas seria de criar as condi+es para ue todo esse processopudesse efetivamente se desenvolver.

    4ituao diferente % a ue se coloca atualmente a partir das 0polticas de igualdade0, em uese sup+e ue as mulheres devem se igualar aos homens no modelo masculino de emprego e nouso do tempo. No % necess#rio frisar ue esse 0igualamento0 s( poderia ser assumido por umaminoria de mulheres de elevada ualificao e nvel de renda.

    No se trata, em conse3nci.a, somente de uma mudana em tempos de trabalho nem departilha do emprego, pois a proposta vai muito al%m de um assunto de 0horas0. Da ser

    fundamental, em primeiro lugar, reconhecer ue e"istem tempos 5de reproduo e de regenerao5ue tm sido invisibili!ados pelo tempo5dinheiro, ue se desenvolvem em conte"to diferente dotempo mercantil e, em conse3ncia, no podem ser avaliados por crit%rios de mercado, baseados

    3;. 4em dvida, isso depender# do poder de negociao dos diferentes atores sociais.3F Iutro e"emplo de atividades ou polticas ue, dessa perspectiva, no seriam aceit#veis % a insistncia dodiscurso oficial em um futuro com suposta escasse! de mo5de5obra para o trabalho assalariado, sem ue sefaa meno J 0escasse! de mo5de5obra para os trabalhos de cuidado0, ue, em princpio, seria umproblema mais grave em uma populao envelhecida.

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  • 7/24/2019 A sustentabilidade da vida humana: um assunto de mulheres? - Cristina Carrasco

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    na id%ia de um 0recurso escasso0. )m segundo lugar, % preciso reconhecer ue tais tempos sofundamentais para o desenvolvimento humano e ue o desafio da sociedade % articular os demaistempos sociais em torno deles. )nuanto esses tempos ue caem fora da hegemonia do tempomercantili!ado forem ignorados, sero impossveis o estudo das inter5rela+es entre os diferentestempos e a considerao do con'unto da vida das pessoas.

    )m conse3ncia, a proposta implica considerar a comple"idade da vida di#ria, osdiferentes tempos ue a configuram, as rela+es entre uns e outros, as tens+es geradas, paratentar geri5la em sua globalidade, tendo como ob'etivo fundamental a vida humana. -inda ue secoloue a longo pra!o, o ob'etivo permite ir pensando em medidas a pra!o mais curto ue apontamna direo assinalada. - e"perincia de trabalho das mulheres nos ensina ue a situao de cadapessoa tem estreita relao com seu ciclo vital, de modo ue no tem muito sentido pensar empolticas gerais ue afetem toda a populao por igual. necess#rio ir e"perimentando diversasalternativas de organi!ao e diversificao dos hor#rios, as 'ornadas, os tempos livres etc., emcada situao especfica, e sempre sob a id%ia do ob'etivo final assinalado. rata5se, em definitivo,de acabar com a organi!ao social e os pap%is de mulheres e homens herdados da @evoluo=ndustrial.

    4omos conscientes de estar propondo uma verdadeira 0revoluo0, uma mudana absolutade nossa concepo de mundo. $or%m parece5me ue ho'e a nica utopia possvel %: apostar afundo na sustentabilidade da vida humana.

    a condici(n humana. abor0, 2eminist)conomics,vol.l6=7, 1FFK.

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    -@D=N)@, Q. 0@ethinEing self5sufficienc?: emplo?ment, families and Lelfare0, Cambridge Qournalof )conomics, 8H,8999.I>D4CG=D5C>)@IN, >. ? $-NI44=N5->==4-P=4, ). 0easures of nrecorded)conomic -ctivities =n 2ourteen Countries0, Guman Development @eport 1FFK, NeL orE, 1FFM._)=, 4. 0he Discover? of npaid orE: he 4ocial Conseuences of the )"pansion oforE0, 2eminist )conomics, = 687, 1FFK.G$G@=)4, Q. ? @a autonoma relativa de la reproducci(n social: su relaci(ncon el sistema de producci(n. =n: )-N, C. >as mu'eres ?el traba'o/ rupturas conceptuales. as mu'eres ? el traba'o/ rupturas conceptuales. avoro, 1FFFb.@)C=I, -. 0>a 'ornada laboral: una cuesti(n multiforme0, 8991. _no prelo`4CG-2)@, D. 61FFK7: 0>a producci(n dom%stica en -lemania0, $oltica ? 4ociedad, 1F.4CG>Y, : 0Nobel >ecture: he )conomics of -=, -. 6ed.7. he use of time: dail? activities in urban and suburban populations in tLelvecountries. he Gague, outon, 1FO8.

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