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NEIL J. SMELSER (Universidade da Califórnia, Berkeley) A SOCIOLOGIA DA VDA ECONÔMICA Tradução de Miriam L. Moreira L ette LIVRARIA PIONEIRA EDITÔRA São P aulo

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NEIL J . SMELSER(Universidade da Califórnia, Berkeley)

A SOCIOLOGIA

DA V D A ECONÔMICA

Tradução deM iriam L . Moreira L ette

LIVRARIA PIONEIRA EDITÔRASão Paulo

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C A P I T U L O III

A Economia e outros Subsistemas Sociais

Para avaliar as pesquisas pertinentes à sociologia econômica, iniciaremos por um plano mais amplo, passaremos a um mais reduzido, para voltar, novamente, ao plano mais amplo. Neste capítulo, trataremos do assunto no nível societário. Dividiremos provisoriamente a sociedade numa série de subsistemas — um dos quais é a economia — e apresentaremos a atuação das variáveis econômicas e não-econômicas, na interação entre êsses subsistemas. No capítulo IV continuaremos a focalizar as va­riáveis gerais da sociologia econômica, mas em suas manifesta­ções nos processos econômicos constitutivos — especificamente, produção, troca e consumo. Finalmente, no capítulo V, volta­remos ao nível societário, e observaremos a interação das variá­veis econômicas e não-econômicas, nos processos de mudanças estrutural associada ao desenvolvimento econômico e social.

0 Conceitode Sistema e Subsistema

No último capítulo definimos o conceito de estrutura como a interação periódica e regular entre duas ou mais pessoas. Essa interação é regulada por valores, normas e sanções. As estruturas sociais são classificadas em função de algum con­junto de tendências fundamentais de direção dos sistemas sociais em geral. Identificamos, provisòriamente, várias dessas ten­

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dências — a criação, a preservação e a transmissão de valores culturais; a realização da atividade econômica; o comportamento na atividade política e a preservação da integração social.

Introduzimos, agora, um conceito de nível mais elevado de abstração que a estrutura social — o conceito de sistema social. Êste refere-se à configuração das unidades estruturais de tal forma que as mudanças em uma ou várias unidades estabelecem pressão para o ajustamento (ou outros tipos de mudança) em outras unidades. A interpretação marxista da sociedade constitui um tipo de sistema, pois as mudanças na estrutura econômica (a introdução da forma capitalista de produção, por exemplo) provocam ajustamentos da estrutura política, de maneira que as agências políticas apoiem as relações de classe que surgem dessas organizações econômicas. Outras interpretações dos sis­temas sociais admitem um grau maior de influências mútuas entre as estruturas componentes. De qualquer maneira, a noção de sistema é um conceito analítico que nos permite falar de relações entre unidades estruturais na sociologia e desenvolver proposições a respeito dessas relações.

Como é que classificamos os sistemas? No nível societário, consideramos as mesmas tendências diretivas — culturais, eco­nômicas, políticas, integradoras — como os princípios organiza­dores dos subsistemas. Em torno dessas exigências sistemáticas cristaliza-se a interação entre as estruturas. Para determinadas finalidades é possível tratar um ou vários subsistemas sociais como “fechados”; podemos, por exemplo, pesquisar isoladamen­te as relações entre as unidades econômicas, sem mencionar o subsistema político da sociedade. Todavia, como veremos, existe uma interação contínua entre os subsistemas, em seus limites analíticos. Às vêzes, não podemos ignorar essa intera­ção; por exemplo, sem pesquisar a orientação política não po­demos compreender as relações internas entre unidades eco­nômicas.

A economia pode ser tratada como um subsistema social, pois se compõe das inter-relações mútuas das unidades abrangidas por produção, distribuição e consumo de bens e serviços escassos. O suprimento de fatôres da produção apresenta um importante com-

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plexo de unidades. Numa fronteira da economia, algumas estru­turas — por exemplo, a educação superior e a ciência, — se espe­cializam em proporcionar conhecimento e tecnologia, que estão entre os fatores de terra. No outro limite, as unidades domésticas e as instituições educacionais fornecem indivíduos motivados e especializados, ou trabalho. Num terceiro limite, os bancos, os governos e os agiotas se especializam no fornecimento do capital. E finalmente, os empresários individuais, as agências governamentais e outras estruturas apresentam os princípios de organização à economia. Êsses fatores de produção mantêm a firma num ritmo determinado pelas condições de oferta e de procura, e se combinam a fim de produzir bens e serviços. De acordo com isso, a firma interage com os consumidores — tam­bém através dos mecanismos da oferta e da procura — e distri­bui os produtos em troca do pagamento do preço.

Um sistema econômico pode ser representado de maneiras diferentes. No último parágrafo falamos de relações entre as unidades estruturais. Poderíamos desejar extrair — para análise — alguns subprodutos quantificáveis, produzidos na interação entre essas estruturas. Por exemplo, Keynes escolheu como unidades eficientes de comportamento as variáveis do consumo, investi­mento e poupança. Sua seleção de variáveis não entra em choque com a representação da economia como um conjunto sistemáticc de relações entre unidades estruturais; é apenas uma represen­tação dos processos, num nível diferente de abstração.

O sistema político é um segundo exemplo de um subsistema social. A estrutura-chave no sistema político é uma coletividade responsável pelas decisões políticas de compromisso. Esta estru­tura está incluída nas relações de interação com dois outros complexos estruturais. Primeiro, a unidade de decisão interage com os que apresentam os fatores da eficiência política — uni­dades econômicas que fornecem (principalmente através da tri­butação) recursos para execução das decisões, através da admi­nistração; com o eleitorado, grupos de participação, as antecâ­maras e equivalentes que dão apoio à unidade política; com o público em geral que dá legitimidade ao sistema político. Se­gundo, a unidade política de decisão interage com aquêles que estabelecem exigências de um programa e auxiliam tal programa.

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Portanto, no governo e na economia é possível representar as diversas unidades estruturais — unidades públicas e de decisão — como se estivessem em inter-relações sistemáticas.

O conceito de sistema pode ser aplicado em muitos outros níveis, além do societário, do qual tiramos os dois exemplos pre­cedentes. De fato, é possível considerar a economia como o sistema de origem, e analisar seus agrupamentos constitutivos de atividades — produção, investimento, inovação e assim por diante — como subsistemas. A seguir, é possível considerar na economia uma estrutura mais concreta —■ um mercado ou uma firma — e analisá-la em função de algumas das exigências fun­cionais básicas dos sistemas sociais. As unidades concretas da estrutura se distinguem em cada nível de sistema, mas os prin­cípios de análise do sistema são idênticos.

Em nossa análise subseqüente, o conceito de sanções passará a ocupar um lugar extremamente importante. No capítulo II definimos as sanções como a aplicação dos recursos sociais, no sentido tanto de recompensas, como de privações, a fim de con­trolar o comportamento das pessoas nas estruturas sociais. As classificações das sanções correspondem às classificações de es­truturas sociais e de sistemas sociais. Por isso, para o contrôle social são válidos os seguintes tipos de sanções:

1. Recompensas e privações econômicas. Referem-se ao sistema de ordenados, salários e lucros que podem ser emprega­dos na determinação da distribuição de papéis numa sociedade, na arregimentação de indivíduos para êsses papéis e no grau de esforço nêles provocado.

2. Medidas políticas. Estas incluem a coerção física, a ameaça de coerção, a influência, a negociação e a promessa dc poder político, e assim por diante.

3. Medidas integradoras. Um centro de pressão integra­dora é o exclusivismo, ou a participação num grupo de atribui­ção. Por exemplo, a participação de um grupo de parentes pode, não apenas estabelecer expectativas quanto aos papéis que um dado participante deve assumir, mas também determinar as condições de admissão e manutenção de um papel. A participa-

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ção no grupo também pode ser importante para o contrôle da pessoa, depois de ter assumido um papel. O traço-chave das sanções exclusivistas deste tipo é o apêlo que a autoridade faz aos laços integradores (a participação) do protagonista. Outros focos de exclusivismo, além do parentesco, são: a participação nas castas, a filiação tribal, a participação em grupos étnicos, e assim por diante.

4. Compromissos de vedor. Neste caso, o compromisso com princípios fundamentais é a alavanca empregada para levar os indivíduos a desempenhar papéis e a se comportar de determi­nada maneira, quando os desempenham. Os domínios específi­cos em que os valores fundamentais atuam como sanções são: a doutrina religiosa, o nacionalismo, o anticolonialismo, o so­cialismo e o comunismo, ou qualquer combinação dêles.

Essas são as sanções que correspondem aos principais tipos de subsistemas sociais. Sob um aspecto, as sanções são produtos característicos de um tipo específico de subsistema social. O sis­tema econômico, por exemplo, produz a riqueza, que pode ser aplicada como sanção em muitos contextos sociais; o sistema político dá origem ao poder, outra sanção generalizada; o com­plexo religioso de parentesco produz compromissos de valor. Sob outro aspecto, as sanções criadas num subsistema consti­tuem recursos para outros subsistemas sociais. A riqueza, por exemplo, é um dos recursos fundamentais, obtido e aplicado pelas estruturas políticas e religiosas, para demonstrar sua efi­ciência. Os diversos subsistemas sociais de uma sociedade estão reunidos, dessa forma, por uma série de intercâmbios complexos de recursos ou sanções.

Neste capítulo, analisaremos as relações que identificamos entre a economia e os outros três subsistemas da sociedade: (1) O subsistema cultural. Especificamente, qual é o sentido econômico dos valores e das ideologias? (2) O subsistema po­lítico. Como se faz a ligação política entre a economia e muitas partes de seu ambiente — trabalhadores, acionistas, governo e assim por diante? (3) O subsistema integrador. Especlfica- mente, qual é a significação econômica de dois tipos de agru­pamentos de solidariedade — o parentesco e o grupo étnico?

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Além disso, analisaremos ràpidamente algumas relações en­tre a economia e a estratificação. Êste fenômeno social se coloca num nível analítico diferente dos subsistemas sociais já esque­matizados. Por estratificação indicamos apenas que, em qual­quer estrutura social, alguns papéis são mais recompensados que outros. Dessa forma é possível descrever a distribuição de tôdas as sanções aplicáveis no sistema social. Os resultados dessa descrição são afirmações a respeito da distribuição de ri­quezas, da distribuição de poder, da distribuição de re­compensas religiosas (por exemplo, a graça) e assim por diante. Às vêzes é possível falar da estratificação de indivíduos (isto é, pelo cálculo de suas diferentes recompensas), de orga­nizações ou de classes globais (camponeses, proletários). Em todo caso, qualquer que seja a nossa base de descrição da dife­rente distribuição de sanções na sociedade, a estratificação está Intimamente ligada à vida econômica da sociedade — à motivação das ações econômicas, às maneiras de os indivíduos gastarem sua renda, e assim por diante. Trataremos, portanto, da estra­tificação como um importante aspecto do universo não-eco- nômico.

A Estruturação Concreta das Atividades Econômicas

As sanções não são específicas quanto ao tipo de comporta­mento que controlam. É possível, por exemplo, levar pessoas a realizar ações econômicas pela aplicação de sanções não-eco- nômicas. Considere-se o seguinte: (1) Suponhamos que estou para me mudar de casa. Uma das tarefas econômicas que tenho de enfrentar é o transporte dos móveis pesados e dos utensílios de cozinha. Em vez de contratar uma empresa de mudanças, resolvo pedir a meu irmão para me ajudar. Neste caso, estou me servindo dos laços comuns de participação como uma san­ção, a fim de persuadir outra pessoa a desempenhar uma ta­refa econômica. (2) Suponhamos que devo passar pela alfândega e sou apanhado com uma quantidade excessiva de garrafas de vinho. O fiscal alfandegário ameaça confiscar a quantidade ile­gal. Suborno o funcionário e passo. Dessa maneira, estou me

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servindo de sanções econômicas para persuadir outra pessoa a realizar (ou, neste caso, não realizar) uma ação política.

Acrescente-se a êstes exemplos simples, um, mais complexo, tirado de nossa economia. Em conjunto, no estabelecimento de relações interativas entre patrões e operários atuam as se­guintes sanções: (1) os valôres fundamentais, como, por exem­plo, a livre emprêsa e o êxito, incutidos nos ocupantes poten­ciais dos papéis profissionais durante os períodos iniciais de socialização e educação; (2) a compensação monetária, que con­vence os indivíduos a terem, no mercado, empregos específicos; (3) lutas políticas entre grupos de interêsse especificamente entre os trabalhadores e os administradores que regulam os níveis gerais de salário; (4) a aplicação de um mecanismo po­lítico e legal mais centralizado, para a regulamentação da vida profissional, geralmente quando o segundo e o terceiro prin­cípios parecem ter um funcionamento inadequado. Geralmente, em nossa sociedade essas sanções não são etremamente centrali­zadas; não se espera que uma dnica fôrça tenha o contrôle di­reto da educação das crianças, do funcionamento do mercado de trabalho, da conciliação dos conflitos industriais.

Um problema-chave, na consideração da estrutura da vida econômica, é saber até que ponto algumas sanções especifica- mente econômicas, como o preço, comparadas a outras sanções (políticas, critérios de participação) atuam como controles dire­tos da atividade econômica. Nos Estados Unidos, as sanções econômicas são importantes e visivelmente institucionalizadas numa estrutura extensiva de mercado. Na União Soviética, as sanções econômicas têm um lugar significativo, mas em quase todas as esferas o emprêgo de dinheiro e o estabelecimento de preços estão subordinados a um contrôle político centralizado. Em muitas sociedades primitivas, as sanções econômicas, como o dinheiro, são insuficientemente desenvolvidas, e grande parte da vida econômica é dirigida como um aspecto das obrigações de parentesco e do ritual religioso.

Um segundo problema-chave, referente à estrutura das ati­vidades econômicas, inclui a localização do contrôle das sanções. Isso coincide com o problema das sanções políticas em si mes-

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mas, mas apóia-se num nível mais elevado de generalidade. Considerem-se, por exemplo, vários tipos diferentes da atividade econômica. Num tipo ideal de contexto industrial paternalista, o administrador industrial dispõe das sanções econômicas, das políticas (e talvez até das morais) para o recrutamento e o controle dos empregados. Num tipo ideal de sistema de livre empresa, o administrador industrial tem apenas sanções eco­nômicas para o recrutamento de empregados, mas, depois de recrutados, tem, sôbre êles, uma limitada autoridade política. Num tipo ideal de sistema totalitário, o administrador indus­trial pode aplicar sanções econômicas e políticas, mas mantém-se responsável por ambas, diante de uma fonte política centralizada.

Nesta introdução desenvolvemos uma série de conceitos — sistema, estrutura, sanções e assim por diante —■ que dão um instrumento que nos permite tratar da relativa variação da es­truturação da atividade econômica e das relações entre subsis­temas econômicos e não-econômicos.

A Economia e os Fatores Culturais

Na apreciação dos elementos culturais que influem na ati­vidade econômica e são por esta influenciados, dependeremos da distinção corrente entre o aspecto valorativo e o aspecto exis­tencial da cultura. Denominamos valorativo o que é conside­rado como desejável, num sistema de valores culturais; o que deve ser procurado pelos membros de uma sociedade. Denomi­namos existenciais as afirmações referentes ao homem, à socie­dade e à natureza. Dessa forma, num sistema de crenças ra­cistas, o aspecto valorativo é a afirmação de que uma raça deve usufruir o maior quinhão das boas coisas da vida; o aspecto existencial (ou, poderíamos dizer, ideológico) é a afirmação de que a raça deserdada merece o seu destino por ser biologica­mente inferior.

Portanto, quanto às crenças culturais a respeito das ativi­dades econômicas, podemos propor dois tipos de perguntas: (1) Valorativa. No sistema de valores culturais, as atividades eco­nômicas ocupam lugar importante? Importantes ou insignifi­cantes, são valorizadas positiva ou negativamente? São valoriza­

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das como um fim em si mesmas ou vistas como subordinadas ao trabalho pelo poder nacional, à obtenção de um estado de bênção religiosa ou à consolidação de uma família? (2) Exis­tencial. Qual é a natureza do homem? É definido como um ser econômicamente motivado, ou em sua existência esses papéis são insuficientemente desempenhados? Qual a natureza da so­ciedade? Ela dá oportunidades para a atividade econômica, ou esta é definida como impossível na boa sociedade? Depois de responder a estas perguntas, para qualquer conjunto de cren­ça culturais — com as devidas ressalvas para as variações regio­nais e de classe — somos mais capazes de analisar as relações entre os valores e as ideologias, de um lado, e as atividades eco- nômicas, de outro.

Qual é o caráter dessas relações? Infelizmente, é impossível formular princípios definidos; precisamos nos satisfazer com a especificação de algumas relações que foram isoladas pela pes­quisa empírica cuidadosa. Por isso, foram acentuadas as quatro seguintes associações significantes entre a vida econômica e a cultural:

Vaiôres como Variáveis Independentes que Facilitam ou Inibem a Atividade Econômica

Max Weber, o notável analista da significação independente da religião para a estimulação da atividade econômica racional, argumentava que os temas do ascetismo dêste mundo se desen­volveram de tal maneira no protestantismo, e principalmente no calvinismo, que levaram o homem a valorizar muito o domí­nio racional e metódico do ambiente social e cultural e, espe­cificamente, do econômico. Ao contrário, as grandes religiões orientais — principalmente as religiões clássicas da China e da índia — não ofereciam um quadro cultural tão estimulante para a busca racional do lucro econômico.1 Embora, evidente­

(1) As obras a êsse respeito incluem A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1967; The Religion of China (Glencoe, 111.: The Free Press, 1951); The Religion of India (Glencoe, 111.: The Free Press, 1958).

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mente, Weber não defendesse uma interpretação causal unilate­ral das relações entre a religião e a atividade econômica, sua análise se opõe à de Karl Marx, que considerava as crenças re­ligiosas como elementos da superestrutura e, dessa forma, como geralmente dependentes das forças atuantes na estrutura eco­nômica da sociedade.

A “tese weberiana” estimulou um grande número de análises das implicações econômicas de outros sistemas religiosos, além dos estudados por Weber.2 3 Outros analistas sustentaram que as crenças seculares, principalmente o nacionalismo, exercem uma influência ainda mais direta no desenvolvimento econômico. Segundo Kingsley Davis,

(. . .) o nacionalismo é uma condição sine qua rum da industrialização, porque dá às pessoas uma motivação secular dominante e fàcilmente adquirida, para a realização de mu­danças penosas. A lôrça ou o prestígio da nação tomam-se os objetivos supremos e a industrialização é o seu principal meio. Em função dessa ambição transcendente e coletiva, é possível justificar os custos, as inconveniências, os sacrifí­cios e a perda de valores tradicionais. A nova entidade co­letiva, a nação-estado, que patrocina essa aspiração e cres­ce com ela, está à altura das exigências da complexidade industrial; obtém diretamente a fidelidade de cada cidadão, através da organização da população numa comunidade; con­trola a passagem de pessoas, bens e notícias por suas fron­teiras; regulamenta, minuciosamente, a vida econômica e social. Na medida em que são fortes os obstáculos à in­dustrialização, o nacionalismo precisa ser intenso, a fim de superá-los.«

De fato, em muitos casos o nacionalismo parece constituir o instrumento incumbido de esmagar os sistemas religiosos tradi-

(2) Um notável exemplo pode ser encontrado em Robert N. Bellah, Tokuga-wa Religion (Glencoe,, 111.: The Free Press, 1957); um estudo recente e limitado de Robert E. Kennedy, Jr., “The Protestant Ethic and the Parsis”, American Journal of Sociology (1962), 68: 11-20.

(3) “Social and Demographic Aspects of Economic Develop­ment in India" in Simon Kuznets, Wilbert E. Moore e Joseph J. Spengler (eds.), Economic Growth: Brazil, India, Japan (Durham: Duke University Press, 1955), p. 294.

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cionais que Weber considerava menos favoráveis à atividade econômica do que o protestantismo.

De outro lado, o nacionalismo, como muitos sistemas reli­giosos tradicionalistas, pode impedir o progresso econômico ao “reafirmar maneiras tradicionalmente honradas de agir e de pensar”, ao estimular atitudes anticoloniais quando estas já não são pertinentes e, mais indiretamente, ao estimular expectativas passivas de uma “prosperidade já pronta”. 4 Em resumo, alguns tipos de valôres estimulam o desenvolvimento econômico; ou­tros, desencorajam-no; ainda outros parecem ter sentidos dife­rentes em níveis diferentes de desenvolvimento. Ainda não sabemos quais são os tipos de situação em que aparece cada resultado. Contudo, no capítulo V, voltaremos ao problema, ao tratar da secularização.

Ideologia como Justificação Moral da Situação Existente

Um dos traços característicos do ser humano é a utilização de símbolos, aplicados à atribuição de sentido às relações sociais de que participa. A palavra “ideologia” designa, freqüente- mente, as afirmações a respeito da natureza das pessoas, numa situação social, e as relações entre as pessoas. São muitas as fun­ções das ideologias. Conferem às atividades um sentido mais amplo que, caso contrário, poderia não ser imediatamente inte­ligível; ou, de maneira mais intensa, podem ser usadas para covencer as pessoas de um sistema de relações sociais de que devem fazer coisas que, em outras circunstâncias, poderiam não desejar fazer.

Talvez o estudo mais completo dos aspectos de “contrôle” de ideologia seja o estudo comparativo, realizado por Reinhard

(4) Bert F. Hoselitz, “Non-economic Barriers to Economic De­velopment”, Economic Development and Cultural Change (1952-1953'), 1:9; Hoselitz, “Nationalism, Economic Development and Demo­cracy” Annals of the Academy of Political and Social Science (Maio, 1956), 305:1-11.

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Bendix, a respeito das ideologias empresariais, em seu desenvol­vimento em quatro países industrializados — Grã-Bretanha, Estados Unidos, Rússia e Alemanha Oriental.5 O principal interêsse de Bendix refere-se às justificações criadas pelas clas­ses de administradores, no processo de persuasão dos trabalhado­res, para que estes se submetam à sua autoridade. Além disso, procura explicar essas ideologias através das exigências normais do esquema industrial; dessa maneira, liga o desenvolvimento da ideologia das “relações humanas” à dupla função de procla­mar os legítimos direitos da administração e auxiliar os adminis­tradores a conseguir a coordenação no interior da emprêsa. Para Bendix, a função dominante da ideologia é, nitidamente, a legitimação e a defesa das instituições existentes ou em desen­volvimento.

Ideologia como Ataque Moral à Situação Existente

Nos conflitos industriais, a administração geralmente de­fende sua posição com afirmações ideológicas que dizem respeito aos princípios da livre emprêsa — na relação de acôrdo coletivo de trabalho, e com afirmações paralelas sôbre o interêsse da admi­nistração pelo bem-estar do trabalhador. Da parte do sindicato desenvolve-se uma contra-ideologia, que também “representa autojustificação de objetivos do sindicato” :

A [auto-justificação] de maior amplitude é a alegação de que os sindicatos comerciais são instrumentos de justiça social. A segunda justificação moral, subjacente ao sindica­lismo norte-americano, é que êle constitui uma proteção para cada trabalhador — em seu ambiente imediato de trabalho — contra a exploração e a degradação.6

(5) Work and Authority in Industry (New York: Wiley, 1956); uma rápida apresentação resumida encontra-se em Bendix “In­dustrialization, Ideologies and Social Structure”, American Socio­logical Review (1959), 24: 613-632.

(6) Arthur Kornhauser, Robert Dubin e Arthur M. “Problems and Viewpoints”, in Industrial Conflict (New McGraw-Hill, 1954), pp. 18-19.

Ross,York:

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Nas situações de conflito ou de mudança social, observamos freqüentemente o desenvolvimento de duas ideologias opostas, uma para defender e outra para atacar e mudar a situação exis­tente. Curiosamente, até no campo da sociologia industrial desen­volveram-se duas ideologias antagônicas. A mais antiga, deno­minada por Robert Stone “Conflito de Interesses” é mais salien­tada pelos economistas, cientistas políticos e historiadores. Os adeptos dessa perspectiva das relações industriais acentuam que o conflito resultante de motivos econômicos é uma situação normal no sistema econômico; além disso, supõem que esse con­flito conduza a mudanças na ordem institucional. A segunda ideologia, denominada “Relações Humanas”, foi desenvolvida principalmente por sociológos, nas últimas três décadas. Os adeptos desta ideologia acentuam a cooperação no nível da fábrica com a situação normal, salientam a boa comunicação e aceitam, geralmente, as instituições existentes.7 Embora o contraste seja talvez excessivamente simples, a verdade é que essas duas escolas mal definidas vivem há muito tempo em amarga oposição.

Ideologia como um Recurso de Atenuação de Situações de Tensão

Muitos comentadores mostraram que as ideologias tendem a desenvolver-se nas situações em que existe uma discrepância entre um conjunto de padrões ideais e a situação real.8 Várias pes­quisas sôbre a ideologia do comércio norte-americano comprovam, até certo ponto, ésta idéia. Francis X. Sutton e colaboradores numa pesquisa sôbre os princípios do comércio norte-americano, atribuíram a tenacidade do mito da livre emprêsa, entre os comerciantes, as diversas tensões em seus papéis; por exemplo, mesmo sua ambivalência diante do fenômeno das “grandes com­panhias” na economia americana se reduz diante da reafirmação

(7) Robert C. Stone, “Conflicting Approaches to the Study of Worker-manager Relations”, Social Forces (1952-1953), 31: 117-124.

(8) Talcott Parsons, The Social System (Glencoe, 111.: The Free Press, 1951) pp. 289-297.

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desafiadora dos valores da livre empresa tradicional. 9 Sigmond Diamond, numa pesquisa a respeito do tratamento dado pela imprensa, nos últimos 150 anos, aos empresários norte-america­nos, alega que a tendência difusa para endeusar os negociantes era, em parte, um esfôrço de oposição à ambivalência pública diante dos líderes do comércio.10 Ely Chinoy, numa pesquisa sôbre os operários da indústria automobilística, afirma que “os operários da indústria ( . . . ) são apanhados entre as promessas de uma tradição muito difundida [o mito de Horatio Alger] # e as realidades da ordem econômica e social contemporânea [isto é, o bloqueamento da mobilidade social]". Segundo Chi­noy, uma reação comum dos operários a essa situação de tensão é “reconciliar suas limitadas aspirações com o imperativo cultu­ral do desejo de subir, e perseverar, pela redefinição da “prospe­ridade” através da centralização de suas ambições em seus filhos, e pela conservação verbal da ilusão de ambições de pequenos negócios”. 11

Essas são algumas das funções da ideologia na vida econô­mica — justificar a situação econômica existente, atacá-la e diminuir suas tensões. As pesquisas futuras precisam focalizar as condições sociais em que são mais pronunciadas essas funções. Talvez o caminho mais promissor de pesquisa seja o estudo das diferentes funções da ideologia durante as diversas fases da mudança social. Inicialmente, o desenvolvimento de qualquer ideologia — a do bnssez-faire, por exemplo — tem como prin­cipal função, provavelmente, a de atacar a situação econômica tradicional. Depois, à medida que a ideologia se torna relativa­mente estabelecida, suas funções dominantes se voltam para

(9) The American Business Creed (Cambridge: Harvard Uni­versity Press, 1956), pp. 58-64.

(10) The Reputation of the American Businessman (Cam­bridge: Harvard University Press, 1955), pp. 178-179.

(*) Horatio Alger é um autor de romances para meninos, do século passado. (N. do T.)

(11) Ely Chinoy, Automobile Workers and the American Dream (Garden City, N. Y.: Doubleday, 1955), p. 4; e “The Tradition of Opportunity and the Aspirations of Automobile Workers", American Jottmal of Sociology (1951-1952), 57:453.

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u defesa da situação existente e para a redução das tensões que »urgem nos papéis institucionalizados em nome da própria ideo­logia.

A Economia e as Variáveis Políticas

Neste livro examinaremos as implicações políticas das uni­dades econômicas, através de uma série de círculos que se desdo­bram: (1) as relações políticas na unidade produtiva, onde se incluem a institucionalização de autoridade e o aparecimento do conflito. Trataremos disso no capítulo IV. (2) As relações políticas entre as unidades produtivas, que propõem o problema da competição imperfeita e da concentração de riqueza. (3) As relações políticas entre as unidades produtivas, como um agre­gado, e o ambiente econômico imediato. Mencionaremos as relações da firma com os consumidores e os acionistas, c dedi­caremos grande atenção às relações entre o trabalho e a admi­nistração, — um dos temas prediletos de sociologia econômica. (4) As relações políticas entre as unidades produtivas, como um agregado e o govêrno.

Relações Políticas entre Firmas

Quase todos os trabalhos escritos a respeito da concentração do poder econômico centralizam-se em três temas. O primeiro é a análise econômica formal dos padrões de competição imper­feita, e as implicações dêsses padrões no preço, na produção, nos recursos desperdiçados, e assim por diante. O segundo refere-se a discussões de orientação política, sobre a competição injusta, a redução de preços, a liderança de preços e os métodos de regulamentação dêsses fenômenos. O terceiro refere-se a discussões sôbre o grau de concentração da riqueza e do poder em economia, e das implicações sociais e políticas dessa con­centração. No caso da economia norte-americana, por exemplo, Cari Kaysen resumiu a situação da seguinte maneira:

[Os índices de emprêgo, distribuição dos contratos de defesa, ativos das firmas etc.] demonstram claramente que algumas grandes companhias têm uma importância propor­

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cionaLmente esmagadora em nossa economia e, especifica­ra ente, em determinados setôres-chaves. Qualquer que seja o aspecto medido de sua atividade econômica ( . . . ) obser­vamos a mesma situação. Além disso, há um certo tempo, essa situação já é estável. A melhor prova ( . . . ) é que o grau de concentração pouco variou nas três ou quatro décadas anteriores a 1947 ( . . . ) ia

Algumas das conseqüências bem conhecidas do tamanho cada vez maior das firmas e da crescente concentração de riqueza e poder são as tendências para expulsar do mercado as empresas menores e menos eficientes (a pequena mercearia a varejo, que tanto sofreu nas mãos do supermercado, é talvez a vítima mais recente); a capacidade relativamente maior da grande firma acu­mula grandes reservas de capital, para o financiamento de investi­mentos “maciços” e a pesquisa em larga escala; a tendência para que a competição, entre as grandes firmas, se manifeste no domí­nio da publicidade e não no dos preços.

Sabe-se menos sôbre os determinantes ativos do investimento, produção e determinação de preços pela firma, à medida que aumenta de tamanho e no contrôle de mercado. Contudo, podería­mos sugerir que os determinantes ativos no comportamento de pequenas firmas, com pouco ou nenhum contrôle do mercado, são: as condições de procura de seus produtos e a sua disponibili­dade de capital para investimento. Quando a firma cresce, seu problema imediato de capital passa para um segundo plano; se a firma controla uma parte do mercado, até a procura deixa de ser ativa como determinante de seu comportamento. Neste ponto, seu programa de produção e de preço passa a ser mais orientado para o comportamento das outras firmas na indústria. O comportamento econômico torna-se, cada vez mais, um reflexo das relações políticas entre as firmas. Quando a firma se torna uma grande firma (como no caso da General Motors ou da Ge- 12

(12) "The Corporation: How Much Power? What Scope? * In Edward S. Mason (ed,), The Corporation in Modem Society (Cambridge: Harvard University Press, 1959), p. 88. Uma análise da semelhança do padrão de concentração entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha encontra-se em P. Sargent Florence, The Logic of British and American Industry (London: Routledge and Kegan Paul, 1953), pp. 22-38.

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neral Electric), o determinante mais ativo em seu ambiente não são as condições do mercado nem o comportamento de outras fir­mas, mas a atitude do govêrno, que pode estar interessado no controle dos trustes, na regulamentação do comportamento, em novas leis tributárias e assim por diante.

Relações Políticas com o Ambiente Económico Imediato: Consumidores. As relações políticas entre a empresa comercial e os consumidores se manifestam principalmente nas relações de mercado. Em condições de perfeita competição, nem a firma nem o consumidor têm poder para controlar o preço e a produção no mercado. Contudo, com o aparecimento da concentração do poder econômico no setor produtivo, essa si­tuação é substituída por uma assimetria que favorece a unidade produtora. Na complexa economia moderna, tôda resistência organizada que os consumidores conseguiram opor a essa si­tuação assimétrica apresentou-se em duas formas seguintes:

1. Agitação política dos consumidores pela regulamen­tação de preços, bem como por padrões e contrôle da com­petição injusta. Não se trata de uma ação direta por parte dos consumidores, mas de ação através da estrutura formal do govêrno.

2. O estabelecimento de cooperativas de consumo, a fim de distribuir bens e serviços. Embora o movimento das coope­rativas de consumo se tenha manifestado em quase tôdas as nações, raramente constiuiu uma fôrça econômica significativa.

Acionistas. Atualmente, os administradores fortaleceram o poder político, no nível da firma, através das relações entre a firma produtora e seus acionistas. Em 1932, A. A. Berle, Jr. e Gardiner Means (A Companhia Moderna e a Propriedade Privada') estabeleceram as principais linhas dêsse fortalecimento. Sua tese principal era a existência de uma separação cada vez maior entre o direito de propriedade dos bens da companhia e o contrôle das decisões econômicas da firma. Antes de mea­dos do século XIX, o contrôle político da empresa comercial estava nas mãos do indivíduo ou do pequeno grupo que pos­suíam tôda a propriedade aplicada como capital na empresa.

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Contudo, com o desenvolvimento das companhias, a propriedade se dispersou entre os acionistas* ligados apenas de maneira re­mota à administração diária da empresa. Nas companhias, o contrôle das decisões passou progressivamente às mãos de admi­nistradores especializados, com direitos reais mínimos de pro­priedade. Aparentemente, desde a época da análise de Berle e Means, o poder dos administradores tornou-se ainda mais mar­cante. Eugene V. Rostow resumiu, há pouco tempo, a situação atual:

Cada vez mais, o protótipo atual é o de uma companhia com ações disseminadas entre indivíduos, companhjlas de investimento ou instituições de aplicação de capital, que votam fielmente a favor da administração, e se recusam firmemente a participar de suas preocupações. Nessas com­panhias, os acionistas obedecem à administração; não é a administração que obedece aos acionistas. Quase todos os acionistas dêste tipo se interessam por suas ações ünicamente como investimentos. A predominância dessa opinião quase elimina a esperança de que o processo eleitoral possa deixar de ser mais do que um ritual vazio, “

Mão-de-obra. Passamos agora a um exame mais extenso das implicações políticas das empresas produtivas, que foram mais estudadas pela sociologia econômica — as relações com a mão-de-obra. Êsse grande interêsse pode ser atribuído, parte ao contínuo conflito nas relações da mão-de-obra e da administra­ção, e, parte, à simpatia de muitos cientistas sociais (geralmente liberais) pelas aspirações do operariado organizado.

Vamos começar pelo esbôço de uma série de variações es­truturais nas relações entre a mão-de-obra e a administração. A maneira mais conveniente de esmiuçar essas variações é per­guntar: quais são as outras estruturas em que se encaixam as relações econômicas entre os empregados e seus patrões?

Uma das formas típicas de organização dõ trabalho, antes da revolução industrial na Inglaterra (aproximadamente em meados do século XVIII), era a “sociedade de amigos.” Êsses 13

(13) Eugene V. Rostow, "To Whom and for What Ends is Corporate Management Responsible?” in Mason (ed.), op. ett,, pp, 53-54.

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clubes de trabalhadores desejavam exercer uma influência polí­tica em seus mestres, quanto a aprendizado, ordenados e qua­lidade dos bens produzidos; todavia, atendiam também a várias outras funções sociais. Guardavam as economias dos trabalha­dores; eram sociedades seguradoras nos casos de morte, doença e coisas semelhantes; eram clubes, onde os trabalhadores se encontravam para beber. E, acima de tudo, freqüentemente apresentavam uma tendência para unir-se aos mestres, no que dizia respeito à assistência da industria como um todo. A “so­ciedade de amigos” era, portanto, uma espécie de organização multifuncional, que matinha relações de relativa solidariedade com seus mestres.

Durante o período da Revolução Industrial, com a separação cada vez maior entre o trabalhador, o capital e seu produto, começou também a mudança no caráter do sindicalismo. Na Grã-Bretanha, durante a primeira metade do século XIX, come­çaram a surgir os sindicatos mais especializados — interessados especificamente nos ordenados e decididamente contrários à classe patronal. No século XIX, êstes passaram a constituir a forma típica de sindicato, tanto na Grã-Bretanha quanto nos Estados Unidos.

Em várias formas as relações entre a administração e a mão- -de-obra se fundem em estruturas políticas; mais amplas da so­ciedade. Nos países totalitários encontra-se o caso extremo de fusão — como na Alemanha nazista e na União Soviética — em que é proibida a livre e aberta negociação coletiva quanto a ordenados, e até o encaminhamento de reclamações se realiza de acordo com as regras políticas centralizadas. Em alguns casos, os sindicatos atuam, em parte, como um setor dos inte­resses do governo e da administração; podem auxiliar na edu­cação e na disciplina dos trabalhadores.14 Um padrão menos

(14) A apresentação de uma amostra de relações entre a mão- -de-obra e a administração nesses países, encontra-se em MatthewA. Kelley, “Industrial Relations in National Socialist Germany”, e Walter Galenson, "Soviet Russia”, in Kornhauser, Dubin e Ross (eds.) op. clt„ pp. 467-477 e 478-486; Emily Clark Brown, “Labor Relations in Soviet Factories”, Industrial and Labor Relations Re­nte«? (1957-1958), 11: 188-202.

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extremo (mas às vezes semelhante) é o encontrado em muitos países subdesenvolvidos. Embora os governos desses países con­cordem com a organização da mão-de-obra e, em princípio, procurem seu apoio político, na prática exercem, frequente e severamente, um forte controle governamental sobre as organi­zações de trabalhadores. "A arbitragem obrigatória é muito difundida, às vezes as greves são dominadas pela fôrça, e as exigências do sindicato são denunciadas pelos líderes do govêr- no.**18 Outra variante da fusão com estruturas políticas encon­tra-se nos países com uma parte de suas principais indústrias nacionalizadas (como na Grã-Bretanha atual). Embora os sin­dicatos nesses países conservem a sua autonomia, os administra­dores com que tratam são funcionários do governo. Tôda a situação nas indústrias nacionalizadas é complexa, principalmente pelo fato de que o impulso para a nacionalização veio frequen­temente de partidos políticos que representavam o operariado organizado, ou tinham todo o seu apoio.15 16 17

As relações entre os operários e a administração são, às ve­zes, profundamente influenciadas por uma fusão com agrupa­mentos étnicos específicos. O amargo antagonismo e o extra­ordinário grau de violência nos tumultos dos mineiros da Pensil- vânía — conhecidos como as perturbações de Molly Maguirs — na década de 1870, podem, em parte, ser atribuídos à origem irlan­desa dos mineiros.11 O caráter específico das relações entre ope­rários e a administração, no sistema de contrato de trabalho, na agricultura da Califórnia, também pode, em parte, ser atri­buído à predominância em diferentes momentos, de operários chineses, japonêses e mexicanos, cada um com tradições e ati­

(15) Felicia J. Deyrup, "Organized Labor and Government in Underdeveloped Countries: Sources of Conflict", Industrial and Labor Relations Review (1956-1919), 12:104.

(16) Uma apresentação do mecanismo de acôrdo coletivo na indústria de carvão da Grã-Bretanha, depois da nacionalização, encontra-se em George B. Baldwin, Beyond Nationalization: The Labor Problems of British Coal (Cambridge: Harvard University Press, 1905), pp. 63-69.

(17) J. Walter Coleman, The Molly Maguire Riots (Richmond, Va.: Garrett e Massie, 1936), pp. 19-39.

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tudes características de organização social e de atitudes com relação à autoridade,18

Finalmente, as organizações de operários frequentemente se fundem com movimentos coletivos, tais como o anarquismo, o sindicalismo, o socialismo, o federalismo, o anticolonialismo e o nacionalismo. Esta fusão sempre foi mais característica da Europa continental do que dos países anglo-saxÕes, e, atual­mente, muitos dos movimentos nacionalistas das áreas subdesen­volvidas estão inteiramente enredados em movimentos traba­lhistas nesses países.19

As diferentes formas de que pode se revestir o conflito entre o trabalho e a administração estão estreitamente ligadas às diferentes estruturações das relações entre os operários e a admi­nistração. Numa classificação quase exaustiva, Kornhauser, Ross e Dubín enumeram os seguintes tipos:

I. Manifestações de conflito de grupo organizado (conflito sindicato-administração).

A. Na indústria.

1. Interrupções da produção — greves, fechamento e transferência das fábricas.

2. Restrições organizadas da produção — limitações do trabalho, redução do ritmo de trabalho, sabota* gem e mudanças unilaterais dos padrões de trabalbo, preços por peça etc.

3. Conflitos nas negociações de contrato, casos de recla­mações, acordos entre o contramestre e o intenden­te etc., sem interrupção do trabalho.

B. Na sociedade mais ampla.

1. Oposição política — local e nacional.

(18) Lloyd H. Fisher, The Harvest Labor Market in California (Cambridge: Harvard University Press, 1953), principalmente as pp. 24-37.

(19) George T. Daniel, “Labor and Nationalism in the British Caribbean”, Annals of the American Academy of Political and Social Science (Marco, 1957), 310: 162-171; J. Henry Richardson, “Indonesian Labor Relations in their Political Setting”, Industrial and Labor Relations Review (1958-1959), 12: 56-78.

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2. Outras oposições comunitárias e sociais — pressões opostas sôbre jornais e sôbre o rádio, rivalidades quanto a vários serviços para os operários — por exemplo, serviços recreativos, educacionais, e assim por diante.

n . Manifestações do conflito individual e não-organizado,A. Na indústria — comportamento do empregado.

1. Redução não-organizada do esfôrço, desperdício in­tencional, ineficiência etc,

2. Mudanças de trabalho e faltas.3. Reclamações, atritos, infrações das normas e provas

semelhantes de baixo moral e de descontentamento.

B. Na indústria — comportamento da administração.1. Supervisão autocrática, disciplina e penalidades ex­

cessivamente severas.2. Dispensas, suspensões e rebaixamentos desnecessá­

rios e discriminatórios.3. Acelerações não-autorxzadas etc.

C. Na sociedade mais ampla.

1. As expressões de oposição do empregado nas con­versas diárias, no comportamento eleitoral, nas es­colhas como consumidor etc.

2. As expressões de oposição do proprietário e da administração na utilização da influência política contra os sindicatos, no apoio aos programas unila­terais de educação e propaganda etc, so

Um problema central, no estudo das relações entre os ope­rários e a administração, é o seguinte: quando é que, na indús­tria, aparece uma forma de conflito, e não outra? Embora existam poucas pesquisas sôbre êste assunto, é evidente que a estrutura das relações entre os operários e a administração é decisiva para a determinação do tipo de conflito industrial. Considerem-se os seguintes exemplos desse princípio: 20

(20) “Problems and Viewpoints”, in Komhauser, Dubin, and Ross (eds.), op. eit., pp. 14-15.

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1. Nas situações em que o controle político central limita rigidamente a amplitude do conflito e quando as autoridades políticas são arbitrárias, freqüentemente se desenvolvem canais informais de transmissão de reivindicações. Numa pesquisa so­bre os processos soviéticos de reinvidicações, Janusz Zawodny descreveu essa situação;

Parece evidente que os operários hesitavam em apresen­tar as reivindicações permissíveis. Isso ocorria porque as agências formais na fábrica ou os seus membros tinham repe­tidamente combatido uma reivindicação, sempre que isso era politicamente conveniente e tinham dado um rótulo po­lítico injusto à reivindicação do operário, à maneira esco­lhida para resolvê-la e ao resultado. Os membros das agên­cias formais podiam burlar a lei a fim de garantir uma solução satisfatória para os operários, principalmente quando tal solução podia ser usada como incentivo. Inversamente, o mesmo tipo de reivindicação poderia receber o tratamento oposto, quando uma manifestação de "vigilância socialista” era considerada necessária para "fins educacionais.” 21

Essa atmosfera de insegurança desencoraja uma apresentação explícita e literal de reivindicações. As soluções encontradas não se apoiam imediatamente no mecanismo formal, mas em leal­dades particularistas (amigos, conhecidos); “os operários usavam as agências formais como um abrigo oficial de assistência mútua e de aplicação de influência sob a égide de implícita anistia mútua ” 21 22

2. Na medida em que o movimento operário é um com­plemento de um partido político, estimula o aparecimento de conflitos “na sociedade mais ampla”, principalmente o conflito eleitoral, bem como tentativas de decretar uma legislação favo­rável a um dos partidos em conflito, e assim por diante.

3. Na medida em que o movimento operário é um com­plemento de um movimento político revolucionário, a greve

(21) "Grievance Procedures in Soviet Factories”, Industrial and Labor Relations Review (1950-1957), 10: 553.

(22) Ibid. Para o desenvolvimento de uma rêde de contactos informais também nos círculos soviéticos de produção, ver adiante, pp. 149-156.

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será utilizada, não tanto por conveniências econômicas (como c o caso no sindicalismo comercial) mas como ofensiva política contra as autoridades constituídas. Na ideologia do comunismo e do sindicalismo, por exemplo, a greve é reconhecidamente uma arma política.

4. Um numero limitado de provas mostra que, em alguns casos, o aparecimento de uma forma de conflito leva a um declínio das outras formas. Segundo pesquisas de K . G. J. C. Knowles nas minas de carvão da Grã-Bretanha, “sem levar em consideração as diferenças entre os anos e as diferenças entre os distritos, se as perdas por greve são elevadas, as faltas ten­dem a ser pouco numerosas e vice-versa”. Provavelmente dois fatores explicam esse resultado: em primeiro lugar, na medida em que as greves custam, para os operários, tanto seus ordena­dos como suas economias, êles não podem estar ausentes do trabalho durante os períodos de dissídio coletivo; em segundo lugar, na medida em que a participação em greves geralmente aumenta a solidariedade operária, os operários podem ir com maior freqüência ao local de trabalho, a fim de estar com cole­gas. Contudo, a relação negativa entre as diferentes formas de conflito limita-se provavelmente a alguns tipos de situações; Knowles sugere que se é muito aguda a inquietação operária, o número de greves e de faltas pode ser muito grande. 29

5. As formas de conflito operário apresentaram mudanças essenciais na história do sindicalismo anglo-americano, e essas mudanças estão associadas a mudanças estruturais no próprio sindicalismo. É possível identificar três fases essenciais. Na pri­meira — nos estágios iniciais do desenvolvimento da fôrça de trabalho — o conflito tende a apresentar-se em duas formas: o protesto individual, na forma de grande mobilidade, faltas, sa­botagem, irregularidade, e assim por diante; e os protestos cole­tivos espontâneos, tais como a violência da multidão, a des­truição das máquinas em assaltos de surpresa, e greves caóticas, rapidamente organizadas. Em parte, o conflito resulta das for­tes tensões que a"industrialização impõe aos trabalhadores; to- 23

(23) Strikes (Oxford: Basil Blackwell, 1952), p. 225.

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duvía, sua forma específica de manifestação se deve ao fato de que, na ausência de organização dos trabalhadores, o conflito não está institucionalizado e, portanto, aparece na forma de expressão individual ou de explosões espontâneas de grupo.24 25

Na segunda — no “período médio” de desenvolvimento do tra­balho — o conflito alternava entre a utilização de greves por van­tagens econômicas e formas mais dispersas de conflito. Além disso, essa alternância acompanhava o ciclo dos negócios. Du­rante o século XIX, por exemplo, a agitação operária nos Es­tados Unidos obedeceu a um grosseiro padrão cíclico: “( . . . ) centralizava-se na prosperidade econômica ou na prosperidade dos sindicatos, e, com a depressão, passava bruscamente para ‘panaceia’ e princípios políticos.” 26 Nos períodos de prospe­ridade, com a escassez de mão-de-obra, os operários podiam utilizar eficientemente as exigências de aumento do salário e das greves; além disso, podiam financiar mais fàcilmente as organizações sindicais e os períodos de inatividade. Nos perío­dos de depressão^ êsses métodos se tornavam menos eficazes e os operários passavam a exigir do govêrno uma legislação pro­tetora ou a ter projetos grandiosos, tais como a cooperação para a construção de uma nova estrutura econômica.

A terceira fase, mais recente, é a do aparecimento dos sindicatos. Êstes tendem a racionalizar o comportamento gre­vista, reduzir a violência, disciplinar os trabalhadores, localizar as greves, reduzir ao mínimo as greves secundárias, reduzir os prejuízos desnecessários à indústria, proteger os sindicatos diante da opinião pública. As greves perdem muito de seu calor e emoção, e quaisquer que tenham sido os seus coloridos revo-

(24) Clark Kerr, John T. Dunlop, Frederick H. Harbison e Charles A. Myers, Industrialism and Industrial Man (Cambridge: Harvard University Press, 1960), pp. 209-210.

(25) Selig Perlman, A History of Trade Unionism in the United States (New York: Macmillan, 1937), pp. 141-142. Talvez os dois movimentos utópicos mais notáveis tenham sido o Grand National e o Knights of Labor. Com a organização mais permanente da A.F.Ii, [Federação Americana do Trabalho] iniciada nas décadas de 1880 e 1890, a atividade da mão-de-obra organizada ganhou maior continuidade.

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lurionários, estes diminuíram nitidamente em meados do século XX. A forma padrão do conflito passou a ser a pacífica nego­ciação coletiva. A espontaneidade e a violência parecem estar limitadas a “greves não autorizadas” ou “ilegítimas”, nas quais os grupos de operários não só têm queixas contra a administra­ção, como se sentem isolados ou tentam “escapar” dos grandes sindicatos ou do governo.29

Como a estrutura das relações entre a administração e o trabalho determina, em parte, a forma de conflito industrial, é difícil comparar os coeficientes de formas semelhantes de conflito (por exemplo, de greves) em diferentes contextos estruturais. Apesar disso, existem algumas pesquisas reve­ladoras sobre a diferente incidência de greves, em diferen­tes épocas e em várias industrias. Um dos resultados mais claros é que, qualquer que seja o critério — número de greves, número de trabalhadores implicados ou número de dias per­didos de trabalho — as greves se multiplicam no período de prosperidade e se reduzem no período de depressão.26 27 Já inda­gamos as razões estruturais desse fenômeno. As greves tam­bém parecem apresentar variações sazonais no decorrer do ano. Em sua pesquisa sobre as greves na Grã-Bretanha, entre 1911 e 1947, Knowles verificou que o maior número das greves ocorria em maio e agosto (os meses de maior atividade econô­mica, principalmente no setor de construção, quando existem condições de “prosperidade”). Observava-se um ligeiro declínio antes das festas, o que presumivelmente refletia a maior neces­sidade dos operários de contar com dinheiro para essas oca­siões. 28

(26) Arthur M. Ross, "The Natural History of the Strike”, in Kornhauser, Dubin e Ross (eds.) op. cit., pp. 30-36; Alvin W. Gouldner, Wildcat Strike (London: Routledge & Kegan Paul, 1955), p. 95; uma apresentação do desenvolvimento de greves não ofi­ciais, depois da nacionalização, na indústria carbonífera inglêsa, encontra-se em Baldwin, op. cit., pp. 72-91.

(27) Albert Rees, "Industrial Conflict and Business Fluctua­tions", Journal of Political Economy (1952), 60: 371:382, Knowles, op. oift, pp. 145-150.

(28) Knowles, op. cit., pp. 157-160.

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Clark Kerr e Abraham Siegel realizaram um estudo com­parativo de greves em onze nações, a fim de saber se determi­nadas indústrias apresentam maior tendência para a greve. Ve­rificaram uma grande propensão para a greve na mineração e nas estivas marítimas; propensão média-para-grande nas indús­trias madeireiras e têxteis; média, nas indústrias químicas, de impressão, de couros, de construção geral e de alimentos; mé- dia-para-baixa, nas indústrias de roupas, utensílios e serviços; e pouca propensão nas1 ferrovias, na agricultura e no comércio. Sua primeira explicação para essa distribuição desigual refere-se à integração dos operários industriais entre si e com a sociedade mais ampla. Segundo os autores:

(a) As indústrias apresentam uma grande tendência para a greve quando os operários (i) formam um grupo relativa­mente homogêneo que está (ü) extraordinariamente isolado da comunidade geral e que (iii) é suscetível de coesão; e (b) as indústrias estarão comparativamente livres de greves quando seus operários (i) estão integrados individualmente na sociedade mais ampla, (ii) são membros de grupos pro­fissionais que são coagidos pelo govêrno ou pelo mercado a evitar greves ou (iii) estão individualmente isolados, de ma­neira que a ação da greve se torna impossível» 29

Sua segunda explicação, que reforça a primeira, é que as in­dústrias isoladas tendem a atrair operários violentos e comba­tivos, por causa do caráter desagradável, não-qualificado e sa­zonal dessas indústrias.

O agrupamento dos conflitos industriais, seja em certas épo­cas, seja entre indústrias, conduz ao problema das causas das greves. Todavia, precisamos antes distinguir entre as questões pelas quais se desencadeiam as greves e as condições subjacentes que as provocam. Nem sempre são idênticas. Atualmente, en­tre as razões manifestas apresentadas para a ação e as reivin­dicações grevistas, Charles Myers verificou as quatro seguintes: (1) níveis injustos ou inadequados de ordenados; (2) emprêgo instável e irregular; (3) ação administrativa arbitrária e incons- 29

(29) “The Interindustry Propensity to Strike — an International Comparison”, in Kornhauser, Dubin e Ross (eds.), op. cit., p. 195.

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tante — por exemplo, na dispensa de operários, no descaso aos regulamentos do sindicato; (4) status e reconhecimento inade­quados do empregado. 80 A razão pela qual uma greve é domi­nada por uma questão e não por outra é tema de interesse, mas a questão nem sempre revela a causa. Segundo Stanislas Wellisz, “algumas greves aparentemente causadas por conflitos a respeito do ordenado são, na realidade, causadas por outros fatôres e as exigências salariais são utilizadas apenas como uma ordem de reu­nir”. B1 Entre êsses “outros fatôres”, quais os mais salientes?

As causas fundamentais de conflitos com os operários po­dem ser divididas em duas espécies: (1) condições permissivas, ou a ausência de obstáculos à possibilidade de fazer greve e (2) fontes de ativa inquietação entre os trabalhadores. Entre as primeiras, a presença da organização dos operários é um forte estímulo à utilização da greve como arma; caso contrário, o conflito tende a aparecer sob formas individuais ou de grupos espontâneos. Além disso, uma organização numa situação isola­da tem maior poder de greve do que outra, submetida a pres­sões contraditórias numa comunidade pluralista. Acrescente-se que a fôrça financeira das organizações operárias é um fator permissivo importante; nos períodos de prosperidade, as greves ocorrem com muito maior freqüência. Finalmente, são mais frequentes as greves quando o govêrno permite êsse tipo de expressão, e menos freqüentes quando as reprime, como nos estados totalitários ou nos períodos de crise nacional.

Quanto às fontes de inquietação ativa entre os trabalhadores, deparamos com uma série de perspectivas, que são a origem de muitas controvérsias e confusões. Entre as principais explica­ções concorrentes encontram-se as seguintes:

1. A escola da “vantagem, econômica” sustenta que os sindicatos estão "no negócio” e tentam aumentar ao máximo os ordenados de seus membros.82 30 31 32

(30) "Basic Employment Relations", in ibid., p. 328.(31) “Strikes in Coal-Mining”, British Journal of Sociology

(1953), 4:355.(32) Esta posição foi defendida por John T. Dunlop em Wage

Determination under Trade Unions (New York: Augustus M. Kelley, 1950).

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2. A escola da “segurança no emprego” é uma variante tia escola da vantagem econômica. Concentra-se nos desejos tjue os trabalhadores têm de proteger as condições mais dura­douras de seu trabalho, e não seus maiores salários a curto prazo.38

3. A escola da “luta de classes” (marxista) atribui a inquietação do trabalhador ao fato de as classes trabalhadoras sofrerem sistemática exploração nas mãos dos capitalistas. Esta posição foi afirmada de diferentes maneiras por diversos historia­dores socialistas do movimento operário.33 34

4. A escola “política” salienta o conflito político entre sindicatos e administração quanto ao reconhecimento do sin­dicalismo e dos acordos coletivos, conflitos de jurisdição entre os sindicatos, rivalidades internas de liderança e influência do comunismo nos sindicatos.35 36

5. A escola de “relações humanas” está associada à socio­logia industrial de Elton Mayo e seus colaboradores. De modo geral, essa escola atribui as insatisfações básicas dos operários ao rompimento de seus grupos primários e à falta de comunicação e compreensão entre administração e trabalhadores.30

(33) Esta escola está associada ao nome de Selig Perlman, que sustentou sua posição em A Theory of the Labor Movement (New York: Macmillan, 1928).

(34) Uma crítica da possibilidade de explicação através dessa tese quanto ao comportamento dos trabalhadores inglêses na Re­volução Industrial, encontra-se em Neil J. Smelser, Social Change in the Industrial Revolution (Chicago: University of Chicago Press, 1959), pp. 389-399.

(35) Arthur M. Ross e Donald Irwin, “Strike Experience in Five Countries, 1927-1947: An Interpretation”, Industrial and Labor Relations Review (1950-1951), 4:323-342. Ross defende seu ponto de vista, com maior minúcia, em Trade Union Wage Policy (Ber­keley: University of California Press, 1948).

(36) John T. Dunlop e William Foote Whyte, “Framework for the Analysis of Industrial Relations: Two Views", Industrial and Labor Relations Review (1949-1950), 3:383-401; Louis Schneider e Sverre Lysgaard, " 'Deficiency’ and ‘Conflict’ in Industrial Socio­logy”, American Journal of Economics and Sociology (1952-1953): 12: 49-61.

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Na sociologia econômica, existe uma controvérsia aberta quanto ao mérito relativo das causas fundamentais das greves. As provas mais ponderáveis para qualquer das escolas referem-se à interpretação plausível de um ou diversos casos de conflito industrial. Hoje, a estratégia adequada é certamente abando­nar as posições quase ideológicas que cristalizaram cm tôrno dessas escolas, e pesquisar as condições específicas em que cada tipo de causa tem maior probabilidade de ser a causa ativa na origem das greves.

Quais são algumas das maneiras para impedir que as dispu­tas industriais passem a conflito aberto? Nas relações entre operários e administradores, as tentativas da administração para sufocar as greves, na fase inicial da industrialização (por vio­lência contra os sindicatos, utilização de espiões, utilização de agitadores pagos) deram lugar, — principalmente depois do fim da década de trinta, — a táticas mais moderadas — tais como a confiança era negociações coletivas e a utilização de “melhores programas de relações humanas, persuasão e concessões cuida­dosamente escolhidas”. 37 De fato, atualmente a negociação cole­tiva tornou-se o principal meio de resolver os conflitos indus­triais. Nas questões que surgem durante o período que decorre entre as grandes negociações coletivas, difundiu-se muito o mecanismo de reivindicações; para questões de importância rela­tivamente reduzida, desenvolveram-se programas de “cooperação entre o sindicato e a administração”. 38

Diversos métodos para impedir ou reduzir as conseqüências do conflito industrial incluem a intervenção de terceiros. O mais extremado é o decreto ou a legislação direta do governo, que francamente anula alguns tipos de conflitos; é o caso das leis contra as greves no exército e nos períodos de situação grave

(37) Ross Stagner, Psychology of Industrial Conflict (New York: Wiley, 1956), p. 335.

(38) John T. Dunlop e James J. Healy, Collective Bargaining, ed. rev. (Homewood, 111.: Irwin, 1955), pp. 53-64; Van D. Kennedy, “Grievance Negotiations”, in Kornhauser, Dubin e Ross (eds.l, op. cit., pp. 280-291; Robert Dubin, “Union Management Co-operation and Productivity”, Industrial and Labor Relations Review (1948- -1949), 2: 195-209.

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iln país. Todavia, não e praticável a utilização indiscriminada desses poderes extremos numa economia livre. A nacionalização, ou a intervenção com a atribuição de propriedade da indústria lnlroduzem um novo princípio de participação nos lucros e lulvez reduzam algumas das razões econômicas para conflitos; mus as que surgem das condições do trabalho, do desemprego c das relações de autoridade continuam a ocorrer.30 A mediação c o arbitramento são formas mais modestas de intervenção de lerceiros, muito aplicadas nos Estados Unidos, mas nenhuma delas está isenta de problemas imprevisíveis na solução das controvérsias.39 40

Finalmente, quais foram as conseqüências dos recentes con­flitos industriais? Podemos dividir essa pergunta em conse­qüências e custos especificamente econômicos e consequências so­ciais mais gerais.

Desde meados da década de 1920-1930, maior porcentagem de operários participou de greves (em grande parte por causa do tamanho cada vez maior dos sindicatos); no entanto, a redu­ção do período das greves diminuiu a perda de tempo de traba­lho por trabalhador. Proporcionalmente, os Estados Unidos per­deram mais tempo de trabalho em greves do que a Suécia, o Canadá, a Austrália ou a Grã-Bretanha. Mesmo assim, o total de dias-homem de ociosidade, através das greves nos Estados Unidos, entre 1927 e 1955 (excluídas as interrupções dc traba­lho nas industrias não diretamente envolvidas) foi considerà- velmente menor que os dias-homem perdidos com o desem­prego, unicamente em 1933. 41 De outro lado, uma análise cui­dadosa de Neil Chamberlain e Jane Schilling mostrou que o impacto de uma greve nos consumidores e fornecedores, entre

(39) T. E. Chester, "Industrial Conflicts in British Nationalized Industries”, in Kornhauser, Dubin e Ross (eds.), op. cit., pp. 454-466.

(40) Edgar L. Warren, “Mediation and Fact Finding”, e Irving Bernstein, “Arbitration”, in Komhauser, Dubin e Rosis (eds.), op. cit., pp. 292-312.

(41) Ross e Irwin, "Strike Experience in Five Countries”, op. cit., pp. 330-336; Kornhauser, Ross e Dubin, "Problems and View- ponts", op cif,, pp. 7-8.

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outros, às vêzes ‘‘constituí o resultado mais importante de uma greve”, sem dúvida mais importante que o número perdido de dias-homem.42 43 Naturalmente, calcular se uma greve custa mais para o público do que o preço de renúncia à greve propõe real­mente imensos problemas empíricos e éticos.

O impacto da atividade sindical sobre os ordenados pode ser discutido sob dois títulos — resultados inflacionários gerais e a participação relativa do operariado na renda. Aparentemente, os sindicatos aumentam as tendências inflacionárias. A impor­tância que atribuem ao emprêgo total como questão política tem uma influência inflacionária indireta. Além disso, se os ordenados aumentam desproporcionalmente ao aumento da produtividade dos trabalhadores — e se o comércio compensa tal despropor­ção pela elevação dos preços — provoca-se a inflação. Finalmen­te, na medida em que os sindicatos conseguem resistir à redu­ção dos ordenados, aumentam a tendência para níveis elevados de salários e preços.43

Como é que a atividade sindical influi na participação do operário na renda nacional? Nos casos em que salários maiores podem ser transferidos para altos preços, é desprezível a vanta­gem do trabalhador. Nos casos em que os programas de em­prêgo total provocam uma elevação do custo de vida, os tra­balhadores perdem, pois precisam “perseguir” a elevação dos preços. Quanto à diferença de ordenados entre trabalhadores sindicalizados e não-sindicalizados, é provável que, durante al­gum tempo, a atividade sindical possa elevar o nível relativo de salário dos operários sindicalizados, mas depois os níveis de salários dos outros sobem no mesmo ritmo (e, em alguns casos, mais rapidamente, se houver grande procura de empregados não-sindicalizados). Em algumas indústrias os operários con­seguem restringir a oferta de trabalho e manter, dessa forma, os salários elevados. Finalmente, os operários podem movimen­

(42) The Impact of Strikes (New York: Harper. 1954), pp. 241-253.

(43) Lloyd G. Reynolds, Labor Economics and Labor Relations* 3» ed. (Englewood Cliffs, N. J.: Prentice-Hall, 1960), pp. 314-316.

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tar a opinião pública a fim de conseguir, do governo, impostos e medidas de assistência, que provoquem uma redistribuição geral da renda, em favor dos grupos de menor renda; nas últi­mas décadas, na Inglaterra, essa atividade política provocou quase todas as medidas redistributivas.44 45 A partir dêsses efeitos contrários da atividade dos trabalhadores, concluímos que esta conseguiu, nos últimos tempos, pequenos resultados líquidos quanto à sua participação na renda.

Quanto às conseqüências sociais mais amplas do conflito industrial, a conclusão prima jacte é que, quanto menor a quan­tidade de conflitos, menores as consequências negativas para a sociedade. Todavia, alguns observadores acentuam que o con­flito industrial, através de canais controlados, tem funções esta­bilizadoras. Segundo Clark Kerr;

[O conflito industrial] auxilia na solução das controvérsias, pode reduzir as tensões intergrupais e pode favorecer o tra­balhador pelo estabelecimento do equilíbrio entre o poder da administração e o poder do sindicato. A mediação “tática” pode reduzir o conflito industrial agressivo, através da dimi­nuição da irracionalidade, da eliminação dos elementos não- -racionais, do auxílio na busca de soluções, da possibilidade de concessões aceitáveis, da elevação do custo do conflito, mas sua contribuição geral não pode ser grande; de outro lado, a mediação "estratégica”, ou a estruturação do ambiente pode realizar importantes modificações. Inclui a melhor integração dos trabalhadores e dos empregados na sociedade, maior esta­bilidade, o desenvolvimento de uma compatibilidade ideoló­gica, a formação e relações seguras e responsáveis entre líderes e participantes, a dispersão das queixas e o estabeleci­mento das regras eficientes de jôgo.

(44) Para um resumo das pesquisas e discussão dêsse com­plexo problema, ver Clark Kerr, “Trade-Unionism and Distributive Shares”, American Economic Review (1954), 44:279-292; Sumner H. Schlicter, “Do the Wage-Fixing Arrangements in the American Labor Market Have an Inflationary Bias?” American Economic Review (1954), 44:322-346.

(45) “Industrial Conflict and its Mediation”, American Journal of Sociology (1954-1955), 60:230-254.

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Relações Polkicasentre as Unidades Econômicas e o Govêrno

As relações entre as unidades econômicas e o govêrno estão entre as principais influências na atuação da economia. Todavia, ainda não se criou uma linguagem para comparar instituições diferentes quanto a tais relações. Sob muitos aspectos, são insa­tisfatórios os antigos rótulos de “capitalista”, “socialista”, “co­munista”. Êstes deixam de lado muitos casos intermediários (A Grã-Bretanha é capitalista ou socialista?); não conseguem incluir, sem seu esquema, as economias coloniais e as muito tradiciona­listas (a não ser por referências elásticas, como “comunismo primitivo” ou “fase imperaüsta do capitalismo”); pior ainda, es­sas expressões têm uma conotação ideológica.

Todavia, da tentativa de Bert Hoselitz para comparar e con­trastar as dimensões políticas do desenvolvimento econômico, surgiu uma tipologia promissora. Na descrição das relações en­tre a atividade do govêrno e a atividade econômica, Hoselitz especifica três polarizações:

1. O govêrno está empenhado numa atividade expansio- nista — isto é, de incorporação de novos territórios e recursos econômicos — ou se apoia nos recursos produtivos intrínsecos da unidade política existente? Os Estados Unidos de 1830 a 1890 eram nitidamente expansionistas; a Dinamarca é nitida­mente intrínseca.

2. A unidade política é dominante em seu território ou é satélite de alguma unidade política exterior? No século XIX, a França e a Alemanha eram dominantes; muitas áreas colonizadas e países do oriente europeu atualmente são satélites.

3. A unidade política permite que a atividade econômica tenha um desenvolvimento autônomo, ou tenta induzir a ativida­de econômica? A Grã-Bretanha, no fim do século XVIII, era um caso de autonomia; a União Soviética, do fim da década de 1920 até hoje, é um exemplo de economia induzida.46

(46) Sociological .Aspects of Ecorwmic Growth (Glencoe, 111.: The Free Press, I960), pp. 85‘114.

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Os conceitos de Hoselitz são menos valorativos que “capita­lismo”, “socialismo” e assim por diante, e incluem maior número de tipos. Apesar disso, seu esquema precisa maior depuração. Por exemplo, a indução pode apresentar muitas formas; pode incluir a propriedade direta do governo e o contrôle diário (como em muitos países comunistas); pode incluir a proprie­dade do govêrno e apenas um contrôle político geral (como no caso do nacionalismo britânico); ou pode depender de in­fluências indiretas, tais como a política monetária e fiscal. Tam­bém as relações de satélite podem incluir apenas o domínio econômico (como no caso da influência dos Estados Unidos em muitos países latino-americanos), ou podem abranger tam­bém o domínio territorial (como no colonialismo inglês, francês e holandês, no fim do século XIX e no começo do século -XX). Em resumo, a análise comparativa das relações entre o govêrno e a economia precisa de depuração c elaboração das dimensões utilizadas nessa análise.

Grande parte das recentes discussões sobre as relações polí­tico-econômicas centralizou-se na atual expansão dos Estados Unidos. Como se sabe, a sociedade norte-americana tem uma forte tradição de individualismo econômico e de não-intervenção governamental; por isso, existe a tendência para ver com ambi­valência a regulamentação governamental da vida econômica, Embora muitos aspectos da situação contemporânea sejam cla­ros e bem compreendidos, grande parte da discussão está envol­vida em confusão e controvérsias.

Terminou o período clássico de Imssez-jatre, do século XIX. O govêrno, principalmente o govêrno federal, aproveitou as possibilidades de intervenção constitucional. Suas atividades in­cluem auxílio, promoção, administração, regulamentação, tra­balho e planejamento da atividade ecoômica. Essas atividades atingem muitos setores — agricultura, velhice, relações entre operários e patrões, compensação aos operários, ao comércio e aos negócios, recursos naturais, defesa e assim por diante, Além disso, são muito claras as razões para esse desenvolvimento do poder governamental na economia; foi estimulado pela cres­cente necessidade de coordenação, à medida que a economia e

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a estrutura social se tornaram mais complexas, e pelo problema cada vez mas delicado de garantia de justiça e igualdade diante das grandes companhias. Acrescente-se qué os últimos 50 anos foram anos de crises quase ininterruptas — a Primeira Grande Guerra, a grande depressão, a Segunda Grande Guerra e a guerra fria — e tôdas exigiram um alto nível de mobilização coletiva de recursos.

Todavia, dois aspectos dessas grandes tendências são empi­ricamente turvados e toldados por sentimentos muito fortes. O primeiro aspecto refere-se às implicações da crescente regulamen­tação governamental para os valôres americanos tradicionais de individualismo, igualdade de oportunidades, e assim por diante. Perdemos, então, o espírito de pioneiros? A política de assis­tência do governo estimula a passividade e a falta de ambição? Os altos níveis de tributação destroem os incentivos comerciais e pessoais? Estas perguntas constituem temas de acaloradas e contínuas discussões. Apesar disso, ao que posso saber, não se fizeram tentativas sistemáticas nem para depurar tais perguntas, e muito menos para pesquisá-las empiricamente.

O segundo aspecto refere-se ao grau de influência da eco­nomia «o governo. Uma escola de pensamento, desenvolvida por C. Wright Mills, sustenta que, nas últimas décadas, nos Estados Unidos, o'' poder político concentrou-se progressivamente, e que os detentores do poder e responsáveis por importantes decisões constituem um pequeno grupo de militares e diretores de companhia.47 Êste ponto de vista foi discutido por razões metodológicas,48 Além disso, apresentaram-se interpretações con­trárias. Por exemplo, alguns analistas sociais sustentaram que, embora possa ser verdade que o governo federal aumentou seu poder absoluto e mesmo relativo, as fontes de influência sôbre o govêrno tornaram-se mais diversificadas do que eram, por

(47) Consultar, Mills: The Power Elite (New York: Oxford University Press, 1956) e The Causes of World War III (New York: Simon and Schuster, 1958).

(48) Robert A. Dahl, “A Critique of the Ruling Elite Model”, American Political Science Review (1958), 52: 463-46D.

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exemplo, no fim do século XIX, quando as comunidades comer-* ciais e financeiras pareciam ter a mais forte posição diante do governo4D. No melhor dos casos, é complexa a solução desta controvérsia. Contra a posição de Mills existe o fato de que, nos últimos cinqüenta anos, nem a riqueza das companhias, nem a renda pessoal tiveram uma notável concentração (a renda pessoal tornou-se menos concentrada). O crescimento dos gran­des sindicatos e a conservação de um forte bloco agrícola con­firmam a interpretação pluralista, e não a que supõe a influência predominante da elite. De outro lado, a concentração específica do poder comercial e militar — causada pelo imenso orça­mento de defesa, desde o início da Segunda Grande Guerra — teve um impacto significativo e imediato nas decisões políticas.

Outro problema da sociologia econômica refere-se ao caráter do controle econômico da esfera política, no nível da comunidade local. Sem dúvida, em alguns tipos de comunidade — tais como a “cidade da companhia” ou a “cidade de uma indústria” — seria de se esperar o forte domínio econômico da vida política, Mas em outros tipos de comunidades — as metrópoles tenta­culares, as vilas dos subúrbios — seria de se esperar um quadro muito mais complexo que o domínio do interesse econômico. Numa cidade de desenvolvimento muito rápido seria de se esperar a ausência quase completa de qualquer esfera política independente, a não ser por uma proliferação informal de justiça vigilante.

A pesquisa empírica do controle econômico sobre a política local apresenta um quadro confuso. Num estudo de uma co­munidade do sul dos Estados Unidos, Floyd Hunter verificou que as principais decisões eram orientadas por um pequeno 49

(49) Diferentes versões dêste último ponto de vista encontram-se em John K. Galbraith, American Capitalism: The System of Coun­tervailing 'Power (Boston: Houghton-Mifflin, 1952); David Riesman, Nathan Glazer e Reuel Denney, The Lonely Crowd (Garden City, N. Y.: Doubleday, 1954), pp. 246-258; Talcott Parsons, "The Dis­tribution of Power in American Society", in Struture and Process in Modern Societe$ (Glencoe, 111.: The Free Press,, 1960), pp. 199-225.

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grupo dos indivíduos econômicamente dominantes.60 Contudo, Delbsrt Miller, encontrou provas divergentes. Ao tentar veri­ficar a hipótese de Hunter, segundo a qual “negociantes (indus­triais, banqueiros, comerciantes, corretores de investimentos e grandes proprietários) exercem influência predominante nas de­cisões da comunidade”, comparou a composição dos “influentes'* numa cidade americana e numa inglesa, ambas de tamanho semelhante à comunidade metropolitana de Hunter. Êsses ci­dadãos influentes eram dominados pelos negócios, mas, tanto na cidade americana (situada no noroeste da costa do Pacífico) quanto na inglesa, a mão-de-obra urbana e as elites educacionais estavam representadas de maneira mais significativa que na ci­dade de H unter.50 51 Num estudo de uma comunidade do Oeste médio Robert Schulze verificou que num período de 100 anos surgira uma tendência ao “afastamento dos dominadores eco­nômicos da participação ativa e manifesta na ( . . . ) vida pública”. Schulze atribuiu essa mudança — pelo menos em parte — ao controle crescente das questões econômicas da comunidade por poderes exteriores a ela, o que deixa as questões sociais e polí­ticas locais nas mãos de “um grupo de negociantes e profissio­nais liberais da classe média, nenhum dos quais se encontra em posições economicamente dominantes.” 52

Relações entre a Economia e Grupos de Solidariedade

O parentesco é o complexo de relações sociais estabelecido de acôrdo com o fato biológico do nascimento e o fato social do casamento. A família — e às vêzes a unidade extensa de

(50) Community Power Structure (Chapel Hill: University oi North Carolina Press, 1953).

(51) “Industry and Community Power Structure: A Compa­rative Study of an American and an English City”, American Sociological Review (1958), 23: 9-15.

(52) “The Role of Economic Dominants in Community Power Structure”, American Sociological Review (1958), 23: 3-9; também Ted C. Smith, “The Structuring of Power in a Suburban Commu­nity”, Pacific Sociological Review (1960), 3: 83-88.

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parentesco (que inclui avós, netos, tios, tias e primos) — é o núcleo de algumas das mais coesas ligações sociais do indivíduo. Consideraremos o parentesco, portanto, como um primeiro exem­plo de grupo de solidariedade.

•Um segundo exemplo de grupo de solidariedade é o grupo étnico. Nos Estados Unidos, segundo a definição de Oandlins, “o grupo étnico ( . . . ) é uma aglomeração frouxa de indivíduos, consciente de uma identidade comum e, até certo ponto, orga­nizada em associações voluntárias, que transmitem, de geração a geração, uma herança social e cultural definida”. O grupo étnico está estreitamente ligado ao de parentesco, pois “dentro [do grupo étnico] a família desempenha um importante papel, pois é através da família que as influências étnicas se expandem no tempo.” as Nos Estados Unidos, como em tôda parte, as características distintivas dos grupos étnicos são a côr, a origem nacional ou regional, a religião, ou alguma combinação delas.

Agrupamentos de Parentesco

Encontramos uma grosseira consistência estrutural entre o tipo de estrutura da família e o tipo de atividade econômica. Numa análise de 549 culturas, incluída em “Amostra Etnográ­fica Universal”, Ninkoff e Middleton verificaram as seguintes associações:

O sistema de família independente tende a predominar nas sociedades de caçadores e coletores, a família extensa onde existe um fornecimento maior e mais seguro de alimento. O sistema da família extensa tende a estar ligado à estratificação social [da propriedade], mesmo quando se conservam constan­tes os padrões de subsistência ( . . . ) A sociedade industrial moderna, com sua pequena família independente ( . . . ) asse­melha-se à sociedade simples de caçadores e coletores e, em parte, aparentemente isso se deve a algumas das mes­mas razões, ou seja, à necessidade limitada do trabalho da família e à mobilidade física. A mobilidade do caçador decorre 53

(53) Oscar Handlin e Mary F. Handlin, "Ethnic Factors in So­cial Mobility”, Explorations in- Entrepreneurial History (October, 1956), 9: 1.

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do fato de perseguir a caça; a do operário industrial, da procura do trabalho.54 55

Um traço difundido das sociedades tribais e camponesas — seja o sistema familial independente ou extenso — é que os papéis econômicos tendem a subordinar-se a uma posição individual, nos papeis de parentesco. Até certa idade, atribuem-se deveres econô­micos específicos às crianças, outros lhes são dados na adolescência, outros com o casamento; no casamento de seu filho é dispen­sado de alguns outros, e assim por diante.60 Na sociedade mo­derna, a regulamentação da idade e do sexo nas atividades eco­nômicas continuam em formas mais limitadas (por exemplo, excluímos crianças muito pequenas do trabalho e excluímos, pela aposentadoria, as pessoas idosas, dos papéis econômicos).

São muito gerais êsses traços estruturais da. vida econômica e do parentesco. De maneira mais específica, como influem as formas de parentesco no curso da vida econômica e como são influenciadas por esta? Ou, de outro modo, no que se refere à vida econômica, em que sentidos o parentesco é uma variável independente, e em quais é uma variável dependente?

As estruturas de parentesco estimulam determinados tipos de atividade econômica. O sistema familial japonês, por exem­plo, com a sua lei de progenitura, obrigava os filhos mais novos a abandonar o campo pela cidade, onde se tornavam candidatos potenciais ao trabalho nas fábricas.56 * * Uma pesquisa da primo- genitura na zona rural da Irlanda sugere que os filhos mais novos constituíam-se em candidatos à migração de jovens irlan-

(54) M. F. Nlmkoff e Russell Middleton, “Types of Family and Types of Economy”, American Journal of Sociology (1960-1961), 66: 215-225.

(55) Dois estudos de caso da estreita associação entre os papéis do parentesco e da economia, encontram-se em Meyer Fortes. The Web of Kinship among the Tallensi (New York: Oxford University Press, 1949); Conrad M. Arensberg e Solon T. Kimball, Family and Community in Ireland (Cambridge: Harvard University Press, 1940).

(56) James C. Abegglen, “Subordination and Autonomy Atti­tudes of Japanese Workers”, American Journal of Sociology (157--1958), 63: 181-189.

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dcscs de sua terra.67 Num outro contexto econômico — a navegação comercial — Bernard Milyn sustentou que:

O parentesco contribui para a explicação de início do comércio transoceânico na Nova Inglaterra [durante o século XV1I1 e a arregimentação dos primeiros comerciantes da Nova Inglaterra. O estudo das relações de família [principal­mente dos casamentos nas mesmas famílias] na segunda e terceira gerações, revela a consolidação dessas velhas famí­lias de mercadores. E nas ligações de parentesco, criadas entre os comerciantes estabelecidos e os aventureiros comer­ciais de após-Eestauração, pode-se observar a constituição final do grupo dos comerciantes, os

Diversos exemplos contrários apresentam uma influência refreadora do parentesco sobre a atividade econômica. David Landes provou que a estrutura peculiar da família de nego­ciantes franceses fêz com que a firma típica continuasse pequena, e isso inibiu o desenvolvimento econômico. Os traços espe­cíficos da vida familiar são: recusar-se a sair do círculo da família para a obtenção do capital (pois isso significaria uma perda do exclusivismo); dificuldade para separar o orçamento lamilial do orçamento da firma (o que impede uma contabilidade racional); o recrutamento de pessoal para a firma, segundo cri­térios estranhos à capacidade comercial.®8 Em sua pesquisa sõbre.a família chinesa, Marion Levy isolou os fatores de favo­ritismo particuiarista e de difusão funcional como características do sistema chinês de parentesco, e que constituem barreiras à industrialização.68

A partir dêstes casos, concluímos que o parentesco pode estimular ou desestimular algumas atividades econômicas. Mas 57 58 59 60

(57) Arensberg e Kimball, op. eit., Capitulo VI, VIII.(58) “Kinship and Trade in Seventeenth Century New En­

gland”, Explorations in Entrepreneurial History (maio, 1954), 6: 197-206.

(59) "French Business and the Business man: A Social and Cultural Analysis”, in E. M. Earle <ed.), Modern- France (Prin­ceton: Princeton University Press, 1951), pp. 334-353.

(60) The Family Revolution in Modern China (Cambridge: Harvard University Press, 1949), pp. 350-365.

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precisamos conhecer âs condições nas quais um determinado 'jj tipo de estrutura de parentesco facilitará ou obstruirá um deter- | minado tipo de atividade econômica. Isso exige uma tipologia J sistemática de estruturas de parentesco, uma tipologia sistemá- i tica de estruturas econômicas, uma descrição das condições e j contrôles aos quais estão sujeitos os dois tipos de estruturas, oj e um conjunto amplo de pesquisa comparativa. 1

Grande parte da literatura recente sobre a família, como variável dependente diante da atividade econômica de uma so- l ciedade, centralizou-se numa única pergunta: qual foi o impacto j da industrialização na família moderna, principalmente na fa- I mília norte-americana? Esta pergunta — como a referente às influências políticas dominantes, na sociedade americana moder- : na — é confusa e controvertida.

Uma escola de pensamento afirma que a família americana degenerou sob o impacto da vida industrial urbana. As razoes para esta posição incluem o aumento do divórcio no Oeste, durante o século passado, o declínio da autoridade dos progeni­tores, o declínio das relações emocionais profundas entre os cônjuges, as influências deletérias do desemprêgo na vida da família e o aumento da delinquência. Afirma-se, habitualmente, que todos esses são sinais de deterioração; além disso, essa de­terioração estaria íntimamente associada aos abusos da vida industrial urbana.81

Existem duas formulações alternativas desta tese. A pri­meira, associada ao nome de Talcott Parsons, afirma que embora seja verdade que a família americana moderna tivesse passado por mudanças fundamentais — mudanças ligadas, de fato, à urba­nização e à industrialização — é errado falar nessas mudanças familiais como “desorganização”. Ao contrário, em diversos sen­tidos a família tornou-se um tipo mais especializado de estrutura.É verdade que a família perdeu algumas de suas funções (tais 61

(61) Modalidades dessa posição encontram-se em W. F. Ogburn, “The Family and Its Functions”, in Presidents' Research Committee on Social Trends, Recent /Social Trends in the United States (New York; McGraw-Hill, 1933); Ernest W. Burgess e Harvey J. Locke, The Family (New York: American Book, 1950).

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i'nimo a produção de bens e serviços econômicos como unidade cooper ativa, a educação dos filhos em níveis formais); mas tor­nou-se a guardiã mais exclusiva de outras funções (especifica- mcnte, a socialização das crianças pequenas e criação de um am­biente para o controle da tensão emocional dos adultos). Além disso, os papéis de marido-pai e espôsa-mãe tornaram-se mais especializados em sua interação. Isto é, o homem tornou-se o realizador mais exclusivo das funções “instrumentais” (externas, provedoras da receita) da família, a mulher das funções “expres­sivas” (sócio-emocionais). Êsses novos aspectos estruturais da família, segundo Parsons, significam o contrário de desintegra­ção; apresentam uma família nuclear mais eficiente que sua predecessora, na socialização das crianças para os papéis adultos num moderno complexo urbano-industrial. 02

A outra explicação alternativa é que a família não mudou tão radicalmente quanto o afirma a apresentação “pessimista”. Eugene Litwak sugeriu que, embora as exigências da estrutura moderna de trabalho exijam uma elevada mobilidade familial, isso não destruiu a família extensa. De fato, Litwak afirma que “como os melhoramentos tecnológicos nos sistemas de comuni­cação reduziram as forças socialmente perturbadoras da distân­cia geográfica, e como uma família extensa pode proporcionar um importante auxílio às famílias nucleares, sem interferir no sistema de trabalho”, sobreviveu uma espécie de “família ex­tensa modificada” até meados do século XX. Litwak tenta reforçar as suas afirmações com estudos dos padrões de visitas nas grandes cidades.63

Em suma, decididamente não conseguimos avaliar o impacto exato da vida urbana e industrial sobre a família. Atualmente, podemos apenas estabelecer um período de competição entre afirmações a respeito de tendências muito gerais.

(62) Talcott Parsons, Robert F. Bales et al., Family, Sociali­sation and Interaction Process (Glencoe, 111,: The Free Press, 1955), Capitulo I.

(63) “Occupational Mobility and Extended Family Cohesion", e “Geographic Mobility and Extended Family Cohesion", American Sociological Review (1960), 25: 9-21, 385-394.

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Uma análise da estrutura familial esclarece dois fenômenos econômicos importantes — o problema da participação feminina na força de trabalho e o problema dos velhos. Geralmente as mulheres apresentam um índice mais elevado de mobilidade no emprego, que os homens; com maior freqüência aceitam empre­gos ocasionais e temporários; agrupam-se desproporcionalmente em algumas profissões — como enfermagem, ensino e trabalho de secretária e de escritório. Além disso, seu nível de participa­ção está estreitamente associado à idade e ao estado civil. Um alto índice de participação é encontrado “pouco antes e pouco depois dos vinte anos de idade”. Uma queda brusca na partici­pação caracteriza os anos em que dão à luz os filhos, mas apro­ximadamente aos 30 anos o índice de participação começa de novo numa rápida ascensão,84

Evidentemente, esses aspectos do emprego feminino são, em grande parte, uma função da estrutura da família norte-americana atual. Dada a responsabilidade básica da mulher pelas crianças pequenas, seu índice de participação cai nesse período. Como está sujeita às exigências do lar, e como se ausenta do mercado de trabalho durante alguns anos, não pode seguir uma carreira com a mesma facilidade que o homem; daí a tendência a aceitar empregos de tempo parcial, menos permanentes. Além disso, a tendência ascendente, a longo prazo, da participação feminina na fôrça de trabalho, pode estar ligada ao fato de a família ter perdido para os jardins de infância e as escolas, algumas de suas funções educacionais. Durante os anos em que essas estruturas “assumem” a responsabilidade pelas crianças, as mulheres fi­caram “livres” para empregos fora de casa. Finalmente, como as mulheres se ocupam em trabalhos quase-maternais e de proteção (enfermagem, ensino, assistência social, secretária e

(6<t) Os dados sôbre essas tendências encontram-se em National Manpower Council, Woman-power (New York: Columbia University Press, 1957), pp. 65-70, 125-135 e 241-250; Thomas A. Mahoney, “Factors Determining the Labor-Force Participation of Married Women”, Industrial and Labor Relations Review (1960-1961), 14: 563-577; Harold Wielensky, "Work, Careers, and Social Intagration”, International Social Science Journal (1960), 12: 543-560.

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escritório) existe uma continuidade entre os papéis familiais e os do trabalho.65

Com as crescentes expectativas de vida associadas ao desen­volvimento da medicina moderna, combinadas com a institucio­nalização da segregação, tornou-se cada vez mais sério o pro­blema dos velhos desempregados. Êstes (principalmente as viú­vas) estão sujeitos não só à privação econômica, mas também são vítimas frequentes de ajustamentos dolorosos ao isolamento e à perda de identidade.66 67

O isolamento dos velhos é, em parte, uma função da orga­nização de parentesco no mundo ocidental moderno. Uma das tendências gerais no desenvolvimento da família urbana-indus- trial é sua mobilidade crescente e sua tendência para movimen­tar-se como uma unidade de duas gerações — pais e filhos pequenos. Os mais velhos são deixados para trás; já não têm um papel característico de parentesco.07 Isso se opõe às estru­turas mais tradicionais da família, nas quais as pessoas idosas continuavam a ter um papel significativo, às vêzes extremamente reverenciado. Nesses sistemas de parentesco, eram menos neces­sários os “cuidados médicos com pessoas de idade1' e as medidas de seguros para elas. A necessidade dessas medidas de assis­tência às pessoas idosas reflete, portanto, não apenas o status econômico dos velhos, mas a ausência de uma participação sig-

(65) Mesmo na medicina as mulheres tendem a se especializar em pediatria, psiquiatria infantil e outras especialidadeds associadas ao bem-estar da infância.

(66) Philip M. Hauser, “Changes in the Labor-Force Participa­tion of the Older Worker”, American Journal of Sociology (1953- -1954), 59: 312-323; Peter O. Steiner e Robert Dorfman, The Eco­nomic Status of the Aged (Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1957), pp. 1-66, 146-152. Um, dentre vários es­tudos de atitudes das pessoas idosas diante da aposentadoria, é o de Eugene A. Friedmann e Robert J. Havighurst, et ai., The Meaning of Work and Retirement (Chicago: University of Chicago Press, 1954).

(67) Todavia, é preciso não desprezar o grande emprêgo de avós e outras mulheres de idade no cuidado de filhos pequenos de mulheres que trabalham ou estão ocupadas em outras atividades.

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nificativa numa unidade de parentesco que se responsabilize pelo cuidado e sustento dos parentes mais idosos.

Agrupamentos Étnicos

A história apresenta muitos casos de fusão entre a partici­pação num grupo étnico e a participação num papel econômico. Talvez o mais conhecido seja o encontrado na configuração da imigração americana. De maneira aproximada, durante os últimos 150 anos os imigrantes, ao chegar, preenchiam o estrato eco­nômico mais baixo — trabalho não-qualificado — e só “ascen­diam’* com a chegada de novas levas de imigrantes. Um no­tável exemplo dessas levas de sucessão étnica encontra-se no mercado de trabalho agrícola da Califórnia:

Os chineses desapareceram. Os japonêses, antes importan­tes, passaram, quase todos, para alguns tipos de propriedade das terras ou para atividades no comércio ( . . . ) O grande volume de força de trabalho ocasional, na agricultura, é de mexicanos ou de brancoá nascidos nos Estados Unidos. Para algumas plantações, destacando-se as de espargos e de alfa­ces, salientam-se os filipinos. Desde a guerra, os negros, atraídos originalmente pelos estaleiros e pelas fábricas de aviões, tanto quanto para o algodão, tornaram-se cada vez mais importantes como fôrça temporária de trabalho agrícola, es

Embora os grupos étnicos nos Estados Unidos tenham per­manecido apenas durante pouco tempo no estrato econômico mais baixo, subiram economicamente oom diferente rapidez. Quatro fatores determinam a relativa velocidade de ascenção;

1. Condições econômicas de procura. A ascenção do negro, durante a Segunda Grande Guerra e na prosperidade de após- -guerra, originou-se, em grande parte, das crescentes oportuni­dades econômicas em tôda a estrutura dc trabalho.

2. Os recursos internos do grupo étnico, tanto financeiros quanto sôcbculturms. Os judeus, os gregos e os armênios, com uma tradição comercial muito mais desenvolvida que os cam-

(68) Fisher, op. cit., p. 6.

Ui

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poneses poloneses, irlandeses ou italianos, tinham uma vantagem inicial quanto a capital e aptidão comercial, Da mesma forma, o padrão de parentesco e de lealdades comunitárias do homem irlandês tornaram-no especificamente capaz para as qualidades exigidas na vida política partidária dos Estados Unidos, na qual os irlandeses tiveram notável êxito.

3. A força contínua de ligações particidaristas. Depois de um determinado grupo étnico invadir um estrato novo de tra­balho, de nível mais alto, os poucos que obtiveram êxito utili­zarão seus novos talentos e recursos para “atrair” pessoas de seu grupo, que assim também colherão vantagens. Em graus diferentes, essa pressão particularista existe em todos os grupos étnicos.

4. Até que ponta o grupo étnico ê "mantido a distância” péla discriminação do grupo majoritário, Toda minoria étnica sofre alguma discriminação; no caso do negro, ela foi mais extremada. Por isso, o negro é relegado às fileiras do trabalho manual e de serviçal, e está pouco representado nas profissões liberais, comerciais e de escritório.69

A discriminação apoia-se em dois fundamentos — direto, em que os empregadores se opõem ao emprego de negros, por­que são negros; indireto, quando os empregadores se recusam a contratar os negros, porque são tècnicamente menos qualificados para o emprego — o que geralmente significa que já sofreram discriminação em outro ponto do sistema, principalmente na edu­cação.

Todavia nos Estados Unidos, nenhum grupo étnico se ligou permanentemente a um papel econômico específico (embora alguns grupos étnicos dominem algumas indústrias, como é o caso dos armênios na indústria de tapetes). Em algumas so-

(69) St. Clair Drake e Horace R. Cayton, Block Metropolis (New York: Harcourt, Brace, 1945), pp. 214 as.; Donald Dewey, "Negro Employment in Southern Industry”, Journal of Political Economy (1952), 69: 279*-293; uma apresentação do progresso dos negros na compra de propriedade durante o século passado encon­tra-se em E, Franklin Frazier, Block Bourgeoisie (Glencoe, 111.: The Free Press, 1957), pp. 29-51.

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ciedades coloniais» surgiu uma relação um pouco mais fixa entre a participação étnica e outros papéis. Em muitas colônias da Ásia e da África, a ordem social dividiu-se mais ou menos imperfeitamente em três grupos: primeiro, os representantes ocidentais (ingleses, franceses ou holandeses, por exemplo) que controlavam as maiores empresas econômicas e a administração política, e que freqüentemente se aliavam aos poderosos pro­prietários locais; segundo, uma grande população nativa que — quando incluída na economia colonial — era aceita nos gru­pos de arrendatários de terras, assalariados e assim por diante; terceiro, um grupo de estrangeiros — chineses, indianos, sírios, goaneses, libaneses — que se encaixam “entre” os dois primei­ros como comerciantes, agiotas, mercadores, credores e assim por diante. O importante aspecto estrutural desse sistema é a coincidência das participações econômica, política e étnico-racial.

Uma conseqüência dessa coincidência da divisão étnica e outras divisões é que todo tipo de conflito (por exemplo, a competição econômica) ténde a apresentar reflexos raciais e despertar, nas partes em conflito, as lealdades mais difusas e os preconceitos. Dessa forma, o conflito se generaliza para um nível muito mais destruidor, porque inclui não apenas conflitos de interesses, mas também os de valôres e das “maneiras de vi­ver”. Muitas explosões nas sociedades coloniais tiveram, real­mente, um cunho racial.70 Ou, para tomar um outro conjunto de exemplos, a oposição dos mineiros ingleses à mão-de-obra importada — polonesa, italiana e húngara — exaltou-se consi- deràvelmente pelo fato de estes serem grupos estrangeiros.71 Também da parte do grupo minoritário pode desenvolver-se uma hostilidade difusa, quando coincidem as participações no grupo e os papéis econômicos. Surgiu uma interessante comple­xidade no desenvolvimento de uma comunidade comercial en-

(70) Rupert Emerson, Lennox A. Mills e Virginia Thompson, Government and Nationalism in Southeast Asia (New York: Ins­titute of Pacific Relations, 1942), pp. 141-143; Erich H. Jacoby, Agrariern Unrest in Southeast Asia (New York: Columbia Univer­sity Press, 1949), Capitulo VIII.

(71) Baldwin, op. cit., pp. 194-199.

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trc os negros, nas cidades como Chicago — um desenvolvimento acompanhado por um “aumento do espírito comercial negro e do chauvinismo comercial negro” — o aparecimento de um anti-semitismo às vêzes grande entre os negros, que se sentem numa competição imediata e aguda com os comerciantes judeus.72 73 São esses os tipos de conflitos generalizados que tendem a apa­recer quando existe coincidência de estruturas étnico-raciais e outras estruturas. Se, de outro lado, as diferentes linhas de divisão social se cruzam, é mais pacífica a solução de problemas econômicos e políticos específicos.

Um aspecto final deve ser mencionado, quanto à influência económica d aaprticipação étnica. Geralmente, os grupos étni­cos impõem sanções a seus membros para que tenham relativa­mente maior frequência de interações no interior do grupo, do que fora do grupo. Existe uma pressão para votos a favor dos membros do grupo, para casamento com membros do grupo e assim por diante. Poderíamos sugerir que a intensidade da interação econômica, no interior de grupos étnicos, liga-se dire- ramente ao grau de conhecimento das condições do mercado.78 Por exemplo: numa análise da distribuição espacial dos médicos de Chicago, Stanley Lieberson verificou que os de determinada origem étnica (judaica ou irlandesa, por exemplo) tendiam a concentrar-se e a clinicar na área étnica correspondente da ci­dade. Os grupos étnicos com uma representação muito grande entre os médicos (judeus, anglo-saxões) tendiam a concentrar-se nos subúrbios e a concentrar-se nas especializações médicas.74 * Essa associação étnica, entre o papel profissional e os que recebem os ser­viços, é maior na medicina que na distribuição a varejo de alimen­tos, nas farmácias e assim por diante. A razão disso é que, para quase todos os pacientes a prática médica é um produto “desconhe-

(72) Harold L, Sheppard, “The Negro Merchant: A Study of Negro Anti-Semitism”, American Journal of Sociology {1947-1948), 53: 96-99.

(73) Lembre-se que o modelo da competição perfeita estabe­lecia. para todos os atores, um conhecimento completo das condições do mercado.

(74) “Ethnic Groups and the Practice of Medicine”, AmericanSociological Review (1958), 23: 542-549.

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eido” (não podemos conhecer a sua qualidade pela experiência ou í pelo gosto) e um produto a respeito do qual as pessoas sentem j profundas emoções. Por causa desses obstáculos ao cálculo eco­nômico, na escolha dos serviços, as pessoas passam para novos J critérios; procuram pessoas “semelhantes”, nas quais têm con­fiança. Verifica-se, freqüentemente, que essas pessoas são de seu grupo étnico. Disso decorre, para a análise da competição imperfeita, que na compra de bens e serviços, e na ausência | de conhecimento ou de neutralidade emocional quanto ao pro- Jj duto, as pessoas se voltam para os grupos de solidariedade. Êste | critério constitui um dos elementos básicos para que os mer- J cados se afastem do modêlo da competição perfeita. i|

Estratificação Social e Vida Econômica

Citamos, acima, pesquisas que indicavam uma tendência para coerência entre tipos dex sistema econômico e tipos de es­trutura familial. Êsses mesmos padrões extensivos de coerência estrutural são evidentes nas relações entre a economia e os sis­temas de estratificação. Arthur Stinchcombe ligou emprêsas agrícolas típicas a padrões típicos de estratificação e estilos de vida.TB

Tipd de Emprêsa

Senhorial 75

Características da Emprêsa

Divisão da terra em proprie­dade e terra para subsistência da mão-de-obra; a terra da propriedade é dedicada à pro­dução para o mercado. Tec­nologia tradicional; baixo cus­to da terra e pequeno mercado na terra.

Características da Estrutura de Classes

As classes são muito diferentes quanto aos privilégios legais e ao estilo de vida. A cul­tura técnica é criada, em grande parte, pe­los camponeses.

(75) "Agricultural Enterprise and Rural Class Relations”, Ame­rican Journal of Sociology (1961-1962), 67: 165-176.

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Arrenda­mento

familiar

Pequena proprie­dade fa­miliar

Latifún­dios

Fazenda

Pequenas parcelas de terra de As classes apresentam muito valor, trabalhadas por pequenas diferenças famílias que não possuem a de privilégios legais, terra, com uma grande parte mas muito grandes da produção para o merca- de estilo de vida. A do. Cultura muito intensiva, cultura técnica é ge- quanto ao trabalho e à terra, ralmente criada pelas com colheitas anuais ou ainda classes inferiores, mais freqüentes.

O mesmo que o arrendamen- As classes não apre- to de família, exceto pelo fa- sentam diferenças, to de os lucros continuarem nem de privilégios na empresa ( . . . ) pode tor- legais, nem de estilo nar-se de capital concentrado, de vida. A cultura num estágio posterior de in- técnica é criada por dustrialização. ricos e pobres.

Empresas de grande escala, As classes são difc- com escravos ou trabalhadores rentes, tanto pelo es- assalariados na produção in- tilo de vida como tensiva de produtos que exi- pelos privilégios le­gem investimento de capital, gais. A cultura téc- em terra relativamente bara- nica é monopolizada ta ( . . . ) Pouca ou nenhuma pelas classes superio- produção de subsistência. res.

Produção em grande escala As classes podem não de trabalho extensivo, em ter- apresentar diferenças ra de pouco valor, com a no siatus legal, pois mão-de-obra assalariada paga não há necessidade em espécie, em pousada e de arregimentar e clo- rancho. minar uma grande

força de trabalho. São desconhecidas as diferenças de estilo de vida. A cultura técnica está geral­mente distribuída por igual.

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Também nas sociedades industriais aparece essa coerência estrutural entre as estruturas econômicas e os tipos de estrati­ficação. Alex Inkeles e Peter Rossi verificaram que, em várias nações industrializadas, os tipos de trabalho associados à produ­ção industrial (engenheiro, contramestre, maquinista etc.) ti­nham posições muito semelhantes, na hierarquia geral de pres­tígio dos tipos de trabalho. De fato, a semelhança geral nessas nações, das hierarquias de prestígio dos tipos de trabalho, re­vela, em grande parte, as posições paralelas dos tipos de tra­balho industrial.Te Todavia, é importante não acentuar ex­cessivamente a identidade da estratificação do prestígio nas sociedades industriais. Inkeles e Rossi verificaram, por exem­plo, que tipos de trabalho sem uma associação intrínseca com a industrialização — os clérigos, os oficiais militares, os médi­cos — têm um prestígio muito diferente nas diversas sociedades industrializadas.

Outra ampla consistência estrutural é a existente entre o tipo de sistema de estratificação e o tipo de mobilidade social e econômica. Denominamos mobilidade o movimento de pes­soas na hierarquia econômica. Essa mobilidade apresenta-se em duas formas: (1) o movimento dos indivíduos numa hie­rarquia de posições. Na ideologia tradiconal americana, acen­tua-se esse tipo de mobilidade. (2) O movimento de grupo de organizações numa hierarquia de posições. A forma mais conhecida desta espécie de mobilidade é o movimento de uni­dades familiais, como no caso em que o chefe do lar sobe na hierarquia do trabalho, e o síatus dos membros dependentes de sua família o acompanha. Outra forma dessa mobilidade é o movimento das organizações formais; por exemplo, quando um departamento universitário, por um grande esforço, '‘abre caminho” entre os departamentos de maior prestígio.

Um dos principais determinantes da forma de mobilidade — individual ou coletiva — está no grau em que um sistema de estratificação se baseia na atribuição ou na realização. As so-

<76) “National Comparisons of Occupational Prestige", Ame­rican. Journal of Sociology (1956-1957), 61: 329-339.

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ciedades variam muito quanto ao grau em que os papéis (pro­fissionais, religiosos, políticos) decorrem de status atribuídos pelo nascimento. A base da atribuição pode ser o parentesco, a idade, o sexo, a raça, o grupo étnico ou a localização territo­rial. Na medida em que esses critérios constituem a base para o desempenho de papéis, a sociedade salienta a atribuição. Na medida em que a admissão é independente de bases atribuídas e se apoia em algum tipo de comportamento de realização por parte das pessoas, a sociedade salienta a realização.

São as seguintes as implicações da dimensão atribuição-rea­lização, para a forma característica da mobilidade social numa sociedade: se a atribuição está firmemente institucionalizada, a mobilidade tende a ser coletiva; se a realização está firme­mente institucionalizada, a mobilidade tende a ser individual.

Gomo exemplo, na índia clássica encontra-se um sistema de estratificação no extremo de atribuição. Geralmente o in­divíduo nascia numa casta e pràticamente todos os aspectos de sua vida futura seriam determinados por essa participação — sua escolha do cônjuge, seu trabalho, sua participação em associações, seu comportamento ritual, seu tipo de funeral. No momento de seu nascimento, as escolhas já estavam feitas para ele. Como os papéis eram estabelecidos dessa maneira, durante a vida de um indivíduo a mobilidade de uma casta para outra era impossível. A estrutura do sistema de castas não o permite. Num tal sistema, qual é a forma da mobilidade? De acordo com a explicação de Hutton, a mobilidade se manifestava como a decomposição coletiva de subcastas, ou o que ele denomina as “tendências fissíparas das castas indianas”. Menciona um processo pelo qual uma casta era segregada numa subcasta, que, durante algum tempo, aceitava espôsas de outras subcastas, mas recusava, simultaneamente, suas filhas a essas subcastas. Isso estabelecia uma reivindicação de superioridade, fortaleci­da por algumas transformações nos deveres profissionais. A fase final era a adoção do nome da nova casta e a negação de qualquer ligação com a casta de origem. Nas palavras de Hutton, “uma casta pode mudar de nome por organização e propaganda e, com o correr do tempo, arranjar um novo nome

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aceito e, através da modificação de seus cânones de comporta­mento, quanto a dieta e o casamento, aumentar a estima em que é tida”. 77 Essa multiplicação de castas, através dos séculos é a explicação para a forma característica de mobilidade na índia clássica.

Um sistema de estratificação no extremo da realização é encontrado no sistema tradicional americano. Êste sistema es­timula o movimento individual para novos papeis, a partir das posições atribuídas (baseadas em região, origem étnica e até na orientação da família). Na prática, naturalmente, as carac­terísticas atribuídas -— principalmente as raciais — impedem a atuação deste sistema em sua forma pura.

Uma das razões para a nítida hostilidade às práticas de “assistência” social nos Estados Unidos, encontra-se nessa acentua­ção caracteristicamente americana da realização. A introdução de medidas de assistência corresponde a proporcionar facilidades e recompensas a determinadas classe de pessoas, em vez de fazer com que as pessoas abram o seu caminho para essas facilidades e reoompensas. Uma das interessantes justificações para a in­trodução de medidas de assistência social nos Estados Unidos — em contraste com os países da Europa continental, onde as medidas estatais de assistência social são consideradas normais — é que tais medidas devem, presumivelmente, facilitar a igual­dade de oportunidade para os indivíduos na sociedade. As me­didas de assistência social têm mais probabilidade de ser consi­deradas legítimas se fôr possível sustentar que não tomar me­didas de bem-estar elimina, de certa forma, as oportunidades de um indivíduo ou de uma classe de indivíduos potencialmente móveis.

Observam-se, nos Estados Unidos, algumas variações inte­ressantes na forma predominantemente individual de mobilidade. Quando uma pessoa assume um papel profissional adulto e atinge, digamos, os 30 anos, está mais ou menos terminada sua mobilidade, a não ser, talvez, na mesma categoria profissional.

(77) J. H. Hutton, Caste ín índia (CambTidge: Cambridge TJniversity Press, 1946), pp. 41-61, 97-100.

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Dessa forma, os adultos com o mesmo status profissional estão, »ob certos aspectos, em posições atribuídas, embora essa atribui­ção não se refira à sua posição por ocasião do nascimento. Nestas circunstâncias, a mobilidade tende a tornar-se coletiva. Grupos profissionais em conjunto (as enfermeiras, por exem­plo) tentam melhorar a sua posição, ou salvaguardá-la contra n desagregação. Em resumo, nos Estados Unidos, a mobilidade coletiva torna-se legítima para o indivíduo, quando êste termina a batalha pela mobilidade individual, e quando se encaixa num grupo atribuído.

A forma de mobilidade está, pois, estreitamente ligada à estrutura do sistema de estratificação. Além disso, o coeficiente da mobilidade ascendente está estreitamente ligado ao tipo de sistema econômico. De acordo com os estudos realizados por Seymour M. Lipset e Reinhard Bendíx, “o padrão global [coe­ficientes] de mobilidade social parece ser o mesmo nas socie­dades industriais de vários países ocidentais” 78 Isso contradiz a suposição corrente de que os Estados Unidos constituem uma sociedade relativamente “aberta”, em contraste com muitos dos países ocidentais mais tradicionais. Lipset e Bendix sustentam que não são as diferenças ideológicas e culturais entre os países que exercem maior influência nos coeficientes de mobilidade, e sim as semelhanças e diferenças em suas estruturas de trabalho. Portanto, as sociedades industriais apresentarão grandes seme­lhanças globais nos coeficientes de mobilidade.

Os resultados de Lipset e Bendix precisam ser moderados por duas restrições. A primeira é que nem tôdas as sociedades ocidentais estudadas — Estados Unidos, Suécia, França, Itália, Finlândia, por exemplo — apresentam o mesmo grau de indus­trialização ou os mesmos coeficientes de transformação. Por­tanto, além da experiência industrial, outros fatôres provocam essas semelhanças notáveis no coeficiente de mobilidade. A segunda é que o único tipo importante de índice de mobilidade, aplicado â análise comparativa de Lipset e Bendix, foi o movi­

(78) Social Mobility in Industrial Society (Berkeley and Los Angeles: University oi California Press, 1959), p. 13.

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mento de trabalho manual para o não-manual. Êsse índice^ embora útil para algumas finalidades, é tão grosseiro que en­cobre muitas fontes de variação significativa — por exemplo, o movimento do comércio para trabalhos especializados.

Um dos tópicos muito discutidos na sociologia americana contemporânea refere-se ao estado atual do sistema de classes nos Estados Unidos. A facção mais expressiva das discussões — formada de diversas maneira por C. Wright Mill, Peter Drucker, W . Lloyd Warner e Vance Packard — afirma que a estratificação americana está se “cristalizando”, tornando-se menos “aberta” à oportunidade ou que as pessoas estão com menos motivação nara a ascencão.79 Entre as razões mais evidentes para a infe­rência dêsse declínio da mobilidade acendente, estão: a migra­ção estrangeira — fornecedora do “piso” de trabalho não espe­cializado — diminuiu por causa das leis de imigração de 1920; a redução gradual, durante muitas décadas, da diferença de ín­dices de natalidade entre as classes; muitos estudos que apresen­tam as inflexibilidades na mobilidade foram realizados em comunidades isoladas (e raramente se incluía medida da mobi­lidade para outras comunidades); muitos dos estudos de estra­tificação dessas comunidades foram feitos no período estacio­nário da depressão da década de 1930-1940.

Embora na sociologia americana80 existam muitas pesquisas em andamento sobre a mobilidade entre as gerações, sobre a ori­gem das elites e sôbre a mobilidade nas carreiras, a discussão do estado atual da estratificação social norte-americana provoca

(79) C. Wright Mills, White Collar (New York: Oxford Uni­versity Press, 1951), p. 259; Peter F. Drucker, “The Employee Society”, American Journal of Sociology, (1952-1953), 58: 358-363; W. Lloyd Warner e J. O. Low. The Social System of the Modern Factory (New Haven: Yale University Press, 1947), p, 185; Vance Packard, The Status Seekers (New York: McKay, 1959).

(80) Oe Tesumos dessa pesquisa encontram-se em Natalie Ro­goff. Recent Trends in Occupational Mobility (Glencoe, 111.: The Free Press, 1953), pp. 19-28; W. Lloyd Warner e James C. Abeg- glen, Occupational Mobility in American Business and Industry (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1955), pp. 13-25; Iipset e Bendix, op, cit.

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muito mais conflito que esclarecimento. Neste sentido, a dis­cussão equivale às referentes ao estado contemporâneo da estru­tura de poder nos Estados Unidos e à família americana.81 Quase tôdas as pesquisas sobre as tendências a longo prazo dos coeficientes da mobilidade indicam muito pouca ou nenhuma transformação nos últimos cinqüenta anos, com a exceção, talvez, tlc uma tendência ascendente muito suave, que se reduziu per- ccptivelmente com a depressão da década de 1930-1940.82

C onclusão

Êste capítulo teve, como tema contínuo, as relações entre as variáveis econômicas e as não-econômicas, no nível da socie­dade global. Agora, mudamos de perspectiva. Continuaremos a tratar das relações entre as variáveis econômicas e as não-eco­nômicas, mas no nível mais microscópico dos processos econô­micos.

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<81) Aeipa, pp. 104-105, 109-112.(82) In Rogoff, op, cit., encontram-se exemplos da pesquisa

mais cuidadosa; Sidney Goldstein, "Migration and Occupational Mobility in Morristown. Pennsylvania”, .American Sociological Review, (1955, 20: 402-403; Stuart Adams, "Origins of American Occupa­tional Elites, 1900-1955”, American Journal of Sociology (1956-1957), 62: 360-368.

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