a situação do homem no cosmo

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obra importante de Max Scheler

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MAX SCHELER

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SITUAÇÃO DO HOMEM NO COSMOS

Título Original: Die Stellung des Menschen im KosmosAutor: Max Scheler Tradução: Artur MorãoGrafismo: Cristina LealPaginação: Vitor Pedro

Todos os direitos reservados desta edição paraEdições Texto & Grafia, Lda.

Avenida Óscar Monteiro Torres, n.º 55, 2.º Esq.1000-217 LisboaTelefone: 21 797 70 66Fax: 21 797 81 30E-mail: [email protected]

Impressão e acabamento:Papelmunde, SMG, Lda.1.ª edição, Junho de 2008

ISBN: 978-989-95689-6-9Depósito Legal n.º 278384/08

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzidano todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,sem a autorização do Editor.Qualquer transgressão à lei do Direito de Autorserá passível de procedimento judicial.

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É em torno da ideia de conhecimento articulado com as necessidades de aquisição de uma cultura geral consistente que se projecta a colecção “Biblioteca Universal”.

Tendo como base de trabalho uma selecção criteriosa de autores e temas – dos quais se destacarão as áreas das ciências sociais e humanas –, pretende-se que a colecção esteja aberta a todos os ramos de saber, sejam de natureza filosófica, técnica, científica ou artística.

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APRESENTAÇÃO

presente escrito de Max Scheler poderia, de certo modo, olhar-se quase como um “mani-festo”. Com ele se traçam, de facto, as linhas

fundamentais de uma nova disciplina que, mais tarde, viria a figurar no currículo de muitas faculdades universitárias sob o nome de “Antropologia filosófica”. É, a esse título e apesar da sua brevidade, um texto fundamental da filosofia contem-porânea, e fruto igualmente de uma das mentes alemãs mais atentas, enérgicas e radiosas da primeira metade do século XX. Representa, ao mesmo tempo, o resumo coeso, denso e brilhante, de um projecto antropológico muito mais vasto que o autor tinha em mente realizar, que por ele foi repetidamente anunciado e prometido, mas nunca de todo levado a efeito. Em parte devido à morte prematura do filósofo em 1928, com a idade de 54 anos; em parte ainda devido ao espírito inquieto, quase vulcânico, de Max Scheler, fonte perene de ideias e de intuições geniais, mas talvez sem paciência e concentração para o trabalho lento de as organizar numa obra sistemática.

No seu estado definitivo, mas de índole programática, este escrito é o desenvolvimento de uma conferência dada pelo autor em 24 de Abril de 1927, numa jornada rotulada de “Escola da sabedoria” (“Schule der Weisheit”) e organi-zada pelo Conde Hermann Keyserling em Darmstadt à volta do tema “Homem e Terra”, na qual participaram também, entre outros, C. G. Jung e Leo Frobenius. Dentro da evo-lução intelectual do filósofo, situa-se naquele que é habitual e consentâneo reconhecer como o segundo período do seu pensamento, que vai de 1920/22 a 1928 e representa uma

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inflexão significativa em relação aos anteriores motivos e núcleos da sua reflexão, graças aos quais Max Scheler havia conquistado um lugar de grande destaque na cena filosófica da Alemanha.

De facto, o primeiro período, desdobrado ao longo do arco temporal de 1897 a 1920, centrara-se nos temas das emo-ções humanas, do amor, da natureza da pessoa, dos valores e da sua respectiva hierarquia, do “eterno no homem”, ou seja, do “divino”; insistira, ao mesmo tempo, numa crítica virulenta a Kant, a Husserl e às noções de razão e consciên-cia puras, próprias do idealismo alemão, contrapondo-lhes o lugar central do coração, do homem como “ens amans”, na linha agostiniana (do “ordo amoris”) e pascaliana (das “raisons du coeur”).

O segundo período, em contrapartida, desenha uma viragem dramática no itinerário scheleriano; por um lado, o filósofo distancia-se da fé católica, de que antes fora um paladino muito apreciado e a cuja sombra desentranhara uma notabilíssima filosofia da religião; por outro, continua atento ao problema do “divino”, mas agora inserido numa visão do processo cósmico universal, em que adquirem realce os temas da energia vital (‘impulso’) e do ‘espírito’. Mas este é olhado como “impotente”, como necessitando das condições vitais, da história e das dimensões culturais para se realizar como ‘espírito’, num processo evolutivo de ‘teomorfose’ de cunho panteísta, englobando todas as esferas da vida, desde a planta até ao elemento espiritual.

Aqui se inscreve A situação do homem no cosmos. Depois de constatar na cultura europeia três ideias irreconciliáveis do ‘homem’, que inspiraram respectivamente uma antro-pologia teológica, outra filosófica e uma terceira científico--natural, Max Scheler apresenta o seu projecto de uma dou-trina englobante do ser humano. Começa por fazer uma distinção entre o conceito sistemático-natural e o conceito

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APRESENTAÇÃO

essencial de ‘homem’, que possibilite o seu enquadramento e faça sobressair a sua posição específica no todo cósmico. A filosofia, ao encarar o homem terrestre, deve igualmente atender à organização vital do sujeito de conhecimento e à sua vontade de domínio. Em virtude da sua participação no impulso vital biopsíquico, o homem encontra-se radicado na série gradual das forças e capacidades psíquicas que, desde a planta, passando pelos animais mais insignificantes, chega ao nível dos animais superiores. No entanto, a sua especificidade não radica em ulteriores estádios do ser orgânico e vital, mas na dimensão espiritual, radicada no cosmos. Enquanto pes-soa, as suas características são a abertura ao mundo, a cons-ciência de si, a capacidade de objectivação. Enquanto espírito, dispõe de actos emocionais e volitivos, do poder de ideação e da intuição de fenómenos originários, que o capacitam para a “redução fenomenológica” e a consequente apreensão de conteúdos essenciais, autónomos, autógenos e inderiváveis de outras realidades. Nesta idoneidade reside o critério de toda a configuração cultural, mas cujo cumprimento só é possível através da fantasia impulsiva determinadora de imagens sob a direcção e o controlo do espírito. Se este é, na sua forma, originariamente desprovido de força, o impulso vital, por seu lado, carece de direcção no seu movimento. Por isso, a meta de todo o ser e acontecer finitos é a recíproca compenetração do espírito originariamente impotente e da força avassaladora do impulso, cego perante todas as ideias e valores espirituais – a espiritualização da vida e o revigoramento vital do espírito. Neste drama metafísico, que resume e condensa todo o acon-tecer cósmico, o homem torna-se ‘colaborador de Deus’, em cujo ser absoluto, também ele em processo de auto-realização, têm o seu fundamento a natureza e o espírito.

* * *

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O texto original, a partir do qual se fez a tradução aqui pro-posta, encontra-se no volume IX das Obras Completas [Gesam‑melte Werke] de Max Scheler, editadas pela Francke Verlag de Berna/Munique, 1976, pp. 7-71, sob a supervisão de Manfred S. Frings.

Artur Morão

* * *

Nota do Editor:

Os títulos das secções e subsecções [entre parêntesis rectos] não aparecem no texto de origem; indicam‑se para orientação do leitor e para uma identificação mais fácil dos conteúdos, à medida que vão sendo expostos.

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PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO

ste trabalho constitui um resumo breve e muito conciso das minhas ideias sobre alguns pontos ful-crais da antropologia filosófica; dela me ocupo desde

há anos e aparecerá no início de 1929. As questões – Que é o homem, e qual é a sua situação no ser? – assediaram-me, desde o despertar da minha consciência filosófica, de um modo mais essencial do que qualquer outra questão filosófica. Os esforços de longos anos com que em todas as vertentes abordei o pro-blema condensaram-se, desde 1922, na elaboração de uma obra mais vasta consagrada a este tema; e vi, com satisfação cres-cente, que a maior parte de todos os problemas da filosofia, por mim já tratados, desembocava cada vez mais nesta questão.

De muitos lados me expressaram o desejo de que a minha conferência “A situação peculiar do homem” (ver também Der Leuchter, VIII, 1927) que fiz em Darmstadt em Abril de 1927, na jornada da Escola da Sabedoria, aparecesse publicada à parte. Aqui se responde a tal desejo.

Se o leitor se quiser informar sobre o desenvolvimento das minhas ideias em torno deste grande tema, recomendo-lhe a leitura sucessiva de: – 1. O ensaio Zur Idee des Menschen [Sobre a ideia do homem], que apareceu pela primeira vez na revista Summa em 1914 e foi, mais tarde, inserido na minha colectâ-nea de ensaios e de artigos Von Umsturz der Werte (A subver-são dos valores) 3.ª ed., 1927, Leipzig, 1923. Em seguida, na mesma obra, o meu ensaio (1912) O ressentimento na génese das morais. – 2. As secções correspondentes no meu livro Formalis‑mus in der Ethik und die materiale Wertethik [Formalismo na ética e ética material dos valores] (1913/1916), 3.ª ed., Leipzig

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1927 1. Em seguida os capítulos relativos à especificidade da vida emocional no homem em Wesen und Formen der Sympa‑thie [Essência e formas da simpatia], 3.ª ed., Bona. – 3. Sobre a relação do homem com a teoria da história e da sociedade, deveria referir-se o meu artigo Mensch und Geschichte [Homem e História] na Neue Rundschau de Novembro de 1926 (que aparecerá provavelmente no Outono de 1928 numa brochura especial, na editora da Neue Schweitzer Rundschau, Zurique, e também a minha obra Die Wissensformen und die Gesellschaft [As formas do saber e a sociedade], Leipzig 1926. Sobre a relação do homem, do saber e da cultura, comparem-se Die Formen des Wissens und die Bildung [As formas do saber e a cultura], Bona, 1915. – 4. Quanto às possibilidades de evolu-ção do homem, expressei-me na conferência Der Mensch im kommenden Zeitalter des Ausgleichs [O homem na era futura do compromisso], impressa na colectânea que em breve aparecerá: Ausgleich als Aufgabe und Schicksal [Compromisso como tarefa e destino], editada pela Escola Superior alemã de política, na série “Ciência política”, Berlim, 1928.

Nas lições que, entre 1922 e 1928, dei na Universidade de Colónia sobre os “fundamentos da biologia”, a “antropolo-gia filosófica”, a “teoria do conhecimento” e a “metafísica”, já várias vezes expus, de modo pormenorizado – e muito além do fundamento aqui proposto –, os resultados das minhas investigações.

Posso constatar, com satisfação, que os problemas de uma antropologia filosófica se tornaram hoje na Alemanha o

1 Nesta obra, importa ler, entre outros, os capítulos dedicados à teoria da realidade, da experiência e da percepção, p. 109 ss.; à crítica das teorias naturalistas do homem, p. 278 ss; ao estrato da vida emocional, p. 340 ss; e à pessoa, p. 384 ss. Cf. também no índice analítico dos assuntos, acrescentado à 3.ª ed., as referências indicadas pelos termos “homem”, “físico”, “psíquico”, etc, etc.

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verdadeiro centro de todas as pesquisas [no campo] da filosofia, e que fora dos círculos filosóficos especializados, também os biólogos, os médicos, os psicólogos e os sociólogos se esforçam por constituir uma nova imagem da estrutura essencial do homem.

E todavia nunca na história, de todos nós conhecida, o homem foi, tanto como hoje, um problema para si mesmo. No momento em que reconheceu que, menos do que nunca, possui um conhecimento rigoroso do que ele é, e em que a resposta possível a esta questão, seja ela qual for, a esta questão não o atemoriza, o homem parece animado de uma nova coragem: a coragem da verdade; ousa então levantar esta questão essencial de um modo novo, sem a associar, mais ou menos consciente-mente, como até aqui era habitual, a uma tradição teológica, filosófica e científico-natural; e, firmando-se no tesouro con-siderável de saberes particulares, que as diferentes ciências do homem constituiram, atreve-se a elaborar uma forma nova da sua autoconsciência e da intuição de si próprio.

Francoforte, fim de Abril, 1928Max Scheler

PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO

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e a um europeu culto se perguntar que entende ele pela palavra ‘homem’, quase sempre começam, na sua cabeça, a defrontar-se três âmbitos de ideias de todo

inconciliáveis. Primeiro, o universo intelectual da tradição judeo-cristã de Adão e Eva, da criação, do paraíso e da queda. Em segundo lugar, o círculo de ideias da Grécia antiga em que, pela primeira vez no mundo, a autoconsciência do homem se elevou a um conceito da sua situação particular, mediante a tese de que o homem é homem pela posse da “razão”, logos, phronesis, ratio, mens, etc. – Logos significa aqui tanto o discurso como a aptidão para apreender a ‘quididade’ de todas as coisas. Estreitamente unida a esta ideia está a doutrina segundo a qual existe também, subjacente ao todo integral, uma “razão” sobre--humana, da qual o homem, e só ele entre todos os seres, par-ticipa. O terceiro círculo intelectual, também ele já há muito transformado em tradição, é o da ciência moderna da natureza e da psicologia genética: o homem seria o resultado final, muito tardio, da evolução do planeta Terra – um ser que se distingue das formas animais que o precederam só pelo grau de complica-ção das combinações de energias e de capacidades que, em si, se encontram já na natureza infra-humana. Estes três círculos de ideias não têm entre si unidade alguma. Possuímos assim uma antropologia científico-natural, uma antropologia filosófica e uma antropologia teológica, que mutuamente se ignoram – do homem, porém, não possuímos nenhuma ideia unitária. Ademais, por valiosa que possa ser a multiplicidade sempre crescente das ciências especiais que tratam do homem, ela, em vez de elucidar, oculta a sua essência. Se pensarmos também que os

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três referidos sistemas de ideias da tradição se encontram hoje muito abalados, que a solução darwiniana do problema da nossa origem foi afectada de um modo muito especial, pode dizer-se que nunca como agora, em época alguma da história, o homem se tornou para si mesmo tão problemático.

Decidi, por isso, sobre uma base mais ampla, fornecer um novo ensaio de antropologia filosófica. No que se segue, discutir-se-ão apenas alguns pontos que concernem à essência do homem em relação ao animal e à planta, em seguida, à sua peculiar situação metafísica e indicar-se-á uma pequena parte dos resultados a que cheguei.

Não se pode atacar a questão da situação peculiar do ser humano sem perscrutar a insidiosa ambiguidade encerrada já na palavra e no conceito “homem”. A palavra especificará, em primeiro lugar, as características particulares que o homem, no plano morfológico, possui, enquanto subgrupo dos vertebrados e dos mamíferos. É evidente, seja qual for o resultado desta construção conceptual, que o ser vivo denominado homem, não só permanece subordinado ao conceito de animal, mas constitui também um rincão, relativamente muito pequeno, do reino animal. Tal continua ainda a ser verdade mesmo se, com Lineu, se designar o ser humano como “o pico da série dos vertebrados mamíferos” (o que, aliás, é muito discutível no domínio factual e conceptual), pois este pico, como toda a sumidade de uma coisa, pertence ainda à coisa de que ele é pico. De um modo totalmente independente de semelhante conceito, confluem na unidade do homem a marcha vertical, a transformação da coluna vertebral, o equilíbrio do crânio, o poderoso desenvolvimento do seu cérebro e as configurações orgânicas suscitadas pelo andar erecto (como a mão preênsil com o polegar oponível, a regressão da mandíbula e dos den-tes); mas o próprio termo “homem” designa, na linguagem de todos os dias e em todos os povos civilizados, algo de tão

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inteiramente diverso que só com dificuldade se encontrará na linguagem humana um outro vocábulo, que ostente análoga ambiguidade. Deve ele significar igualmente um conjunto de coisas que se opõem do modo mais estrito ao conceito de “ani-mal em geral” e, por conseguinte, a todos os mamíferos e ver-tebrados. E opõe-se a estes no mesmo sentido que, porventura, ao infusório stentor, embora seja difícil contestar que o ser vivo apelidado de “homem” é, do ponto de vista morfológico, fisio-lógico e psicológico, incomparavelmente mais semelhante a um chimpanzé do que o homem e o chimpanzé a um infusório.

Este segundo conceito deve, claro está, ter um sentido intei-ramente diverso, uma origem de todo diferente do primeiro 2. É desejo meu chamar ao segundo conceito o conceito eidético do homem, em oposição ao primeiro, de cunho sistemático--natural. Será em geral legítimo este segundo conceito, que atribui ao homem enquanto tal uma situação peculiar, incom-parável a qualquer outra posição específica de uma espécie? Tal é o nosso tema.

2 Cfr., a este respeito, o ensaio “Sobre a ideia de homem” (1914), na obra Von Umsturz der Werte. Demonstro aí que o conceito tradicional do homem é constituído pela semelhança com Deus; que, portanto, pressupõe já a ideia de Deus como centro de referência.

INTRODUÇÃO

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ó nos é possível clarificar a situação peculiar do homem, se examinarmos a estrutura global do mundo bio-psíquico. Tomarei então como ponto de partida uma

série gradual das forças psíquicas e das capacidades, que a ciência, pouco a pouco, destacou. Quanto ao limite do psíquico, ele coincide em geral com o limite do vivo 3. Além das proprie-dades essenciais objectivas que se manifestam nas coisas que dizemos “vivas”, como o automovimento, a autoformação, a autodiferenciação, a autodelimitação no espaço e no tempo (não há aqui que entrar nos seus pormenores), é um facto que os seres vivos não só são objectos para observadores externos, mas também possuem um ser para‑si e uma interioridade (Fürsich und Innensein) em que se apreendem a si mesmos, uma carac-terística a eles essencial – a cujo respeito se pode mostrar que ela tem a mais íntima comunhão, na estrutura e na forma de fluxo, com os fenómenos objectivos da vida. É o lado psíquico da autonomia, do movimento espontâneo, etc., do ser vivo em geral – o fenómeno originário psíquico da vida.

[Impulso afectivo (planta)]O grau ínfimo do psíquico – ao mesmo tempo o vapor

que tudo impele até às alturas mais luminosas da actividade espiritual e fornece a energia eficaz aos mais puros actos do

3 Revelou-se errónea a doutrina segundo a qual o psíquico só começa com a “memória associativa”, ou somente no animal − ou até só no homem (Descartes). Mas é arbitrário atribuir um psiquismo ao inorgânico.

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pensamento e aos mais ternos gestos da bondade irradiante – é constituído pelo “impulso afectivo” (Gefühlsdrang) inconsciente, privado de sensação e de representação. Nele não há ainda sepa-ração entre “sentimento” (Gefühl) e “pulsão” (Trieb) (que, como tal, tem já sempre uma orientação específica e uma finalidade “para” algo, por exemplo, alimento, satisfação sexual, etc.). Um simples “movimento de aproximação”(Hinzu), por exemplo em direcção à luz, e “um movimento de retirada” (Vonweg), um prazer e uma dor sem objecto, os seus dois únicos estados. Mas o impulso afectivo é já muito afastado dos centros e campos de forças subjacentes às imagens transconscientes, que deno-minamos corpos “anorgânicos”; em nenhum sentido se pode atribuir a estes uma interioridade.

Este primeiro estádio do devenir psíquico, tal como se apre-senta no impulso afectivo, devemos e podemos atribuí-lo já à planta. A impressão de que a esta falta um estado interno nasce apenas da lentidão dos seus processos vitais; frente à lupa do tempo, esmorece esta impressão. Mas não se trata de à planta atribuir já a “sensação” e a “consciência”, como fez Fechner. Quem, como ele, considera – erroneamente – a “sensação” e a “consciência” como as componentes básicas mais elementares do psíquico deveria recusar à planta a ocorrência anímica. O impulso afectivo da planta está já, sem dúvida, ordenado ao seu meio, a um crescimento nela segundo as orientações fun-damentais do “em cima” e do “em baixo”, para a luz e para a terra; todavia, está apenas ordenado ao todo indeterminado dessas direcções do meio, às possíveis resistências e realidades nelas presentes – importantes para a vida do organismo vegetal –, mas não a determinadas componentes e estímulos do meio ambiente, a que corresponderiam particulares qualidades sen-soriais e elementos imaginais. Por exemplo, a planta reage espe-cificamente à intensidade dos raios luminosos, mas não altera a sua reacção segundo as cores e as orientações dos raios. De acordo com investigações aprofundadas feitas, não há muito,

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pelo botânico holandês Blaauw, à planta não se podem atri-buir tropismos específicos, sensações, nem sequer os mínimos começos de um arco reflexo; também não associações e reflexos condicionados, por conseguinte, nenhuma espécie de “órgãos dos sentidos”, como os que Haberlandt tentou circunscrever. Demonstrou-se que os fenómenos motores desencadeados por estímulos, e que anteriormente se referiam a semelhantes coi-sas, são componentes dos movimentos gerais de crescimento da planta. Se perguntarmos o que é o conceito mais geral de “sensação” – nos animais superiores, as estimulações exercidas sobre o cérebro pelas glândulas de secreção interna poderiam representar as sensações mais primitivas e estar na base tanto das sensações orgânicas como das dos processos externos –, então ele é o conceito da réplica específica de um momentâneo estado orgânico e motor do ser vivo a um centro e a possibili-dade de, graças a esta réplica, modificar os movimentos que se vão seguir no próximo momento temporal. No sentido desta determinação conceptual, a planta não tem nenhuma sensação, nenhuma “memória” específica que ultrapasse a dependência dos seus estados vitais relativamente ao todo da sua pré-história, e nenhuma genuína capacidade de aprendizagem, como a que já apresentam até os mais simples infusórios. As investigações que, supostamente, atribuíram às plantas reflexos condiciona-dos e uma certa aptidão para a domesticação, poderiam muito bem ter-se transviado.

Do que nos animais chamamos “vida instintiva” existe, na planta, apenas a geral pulsão para o crescimento e a reprodução, ínsita no impulso afectivo. A planta demonstra, pois, com a máxima clareza, que a vida não é essencialmente “vontade de poder”, mas, sim, que o impulso para a reprodução e para a morte é o impulso originário de toda a vida. Não escolhe por si o alimento, não se comporta activamente na fecundação; é fecundada passivamente pelo vento, pelas aves, pelos insectos e, como em geral prepara o alimento de que necessita a partir

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da matéria inorgânica que, em certa medida, existe em toda a parte, não precisa, como o animal, de procurar sítios determi-nados para encontrar alimentos. A planta não tem a margem do movimento local espontâneo do animal, não tem nenhuma sensação ou pulsão específica, não tem nenhuma associação ou reflexo condicionado, não tem nem sistema motor nem sistema nervoso, é um todo de carências, que se apreendem claramente e sem equívoco a partir da sua estrutura de ser. Pode mostrar-se que, se a planta possuísse uma só que fosse destas coisas, deveria possuir também outra e todas as outras. Como não há sensação sem impulso e sem início de uma acção motora, é forçoso que onde falta o sistema motor seja também inexistente um sistema de sensações. A multiplicidade das qualidades sensoriais, que um organismo animal possui, nunca é maior do que a diversi-dade da sua mobilidade espontânea – e é função da última.

A orientação essencial da vida, designada pelo termo “vege-tal”, “vegetativo” – os múltiplos fenómenos de transição, já conhecidos de Aristóteles, entre a planta e o animal, provam que não lidamos aqui com conceitos empíricos – é uma pulsão exclusivamente dirigida para fora. Por isso, falo, a respeito da planta, de impulso afectivo “extático”, para indicar a carência total de réplica, típica da vida animal, dos estados orgânicos a um centro, a ausência plena de um retorno da vida a si mesma, de uma re‑flexio primitiva, do mais débil estado interno “cons-ciente”. Pois a consciência só aparece na primitiva re‑flexio da sensação, e tal sempre por ocasião de resistências – toda a cons-ciência assenta na dor e todos os graus superiores da consciência na dor crescente – com que depara o movimento espontâneo originário. Juntamente com a consciência, com a sensação, falta à planta toda a “vigilância” vital, que dimana apenas da função vígil da sensação. Mas a planta pode dispensar as sensações, justamente porque – sendo o maior químico entre os seres vivos – prepara ela própria, a partir das substâncias inorgânicas, o material da sua construção orgânica. A sua existência é assim

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absorvida pela nutrição, pelo crescimento, pela reprodução e pela morte (sem duração vital específica).

Na existência vegetal, encontra-se já, todavia, o fenómeno originário da expressão, uma certa fisionomia dos seus estados internos, das condições circunstanciais do impulso afectivo do ser interno da sua vida, como murcho, vigoroso, luxuriante, pobre. A “expressão” é um fenómeno primigénio da vida – de nenhum modo, como pensava Darwin, um conjunto de acções teleológicas atávicas. Em contrapartida, o que de todo falta à planta são as funções de notificação, com que deparamos em todos os animais, e que determinam toda a interacção entre eles; tornam o animal já bastante independente da presença imediata das coisas necessárias à sua vida. Só no homem é que, nas funções de expressão e de notificação, se edifica a função representativa e denominativa dos signos. Não encontramos no mundo vegetal o duplo princípio, essencial a todos os animais que vivem em grupo, de pioneiro e seguidores, de ostentação e imitação.

Em virtude da ausência de centralização da vida vegetal, sobretudo da inexistência de um sistema nervoso, a dependên-cia dos órgãos e das funções orgânicas é nas plantas, por natu-reza, mais íntima do que nos animais: cada estímulo, graças ao sistema reticular de condução das estimulações, presente na planta, altera nela todo o estado vital em maior medida do que acontece no animal. Por isso, a planta presta-se com maior, e não menor, dificuldade a uma explicação mecânica da vida do que o animal (em geral). Pois, só com o aumento da centralização do sistema nervoso no animal cresce também a independência das suas reacções parciais – e, assim, uma certa aproximação do corpo animal à estrutura da máquina.

Além disso, a individualização, isto é, a medida da consis-tência espacial e temporal, é muito menor na planta do que no animal. A planta não é capaz de uma adaptação activa ao ambiente morto e vivo; por isso, no caso das suas efectivas

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relações teleóclinas 4 com o contexto anorgânico do seu meio, e ainda com os insectos e com as aves, etc., pode dizer-se que ela atesta, em maior medida do que o animal, não só a unidade da vida em sentido metafísico, ínsita em todos os fenóme-nos figurais morfológicos, mas também o devir progressivo de todo o tipo de elaborações das formas de vida em complexos compactos de matéria e energia. É descabido o princípio de utilidade, tão desmedidamente valorizado pelos darwinistas e teístas – como se, num sentido objectivamente teleológico, a planta existisse ali “para” o animal, o animal “para” o homem, como se na natureza existisse um anelo que tem por fim o ser humano; despropositado é também o lamarckismo. Além disso, as formas luxuriantes das suas partes folhosas indicam, na sua plenitude, ainda de modo mais enfático do que a riqueza de formas e cores dos animais, a presença de um princípio que actua ludicamente e domina só de modo estético, na raiz desconhecida da vida.

O primeiro estádio da vertente interna da vida, o impulso afectivo, está presente não só em todos os animais, mas tam-bém no homem. (Este – como veremos – congrega em si todos os graus essenciais da existência em geral, em particular da vida, e nele a natureza inteira, pelo menos quanto às suas regiões essenciais, chega à unidade mais concentrada do seu ser). Não há nenhuma sensação, nenhuma percepção, nenhuma representação, que não assente neste impulso obscuro, e que este não sustenha com o seu fogo que se imiscui incessante-mente nos tempos do sono e da vigília – inclusive, a sensação mais elementar nunca é só efeito da excitação, mas é sempre também função de uma atenção pulsional. O impulso repre-senta ao mesmo tempo a unidade de todas as tendências e emoções humanas, na sua rica articulação. Segundo alguns

4 Palavra composta, de origem grega, que significa “inclinar-se para um fim”. N. do T.

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sábios modernos, ele poderia estar localizado no nosso tronco cerebral que, provavelmente, é também o centro das funções das glândulas endócrinas, mediadoras dos processos somáticos e anímicos. Ademais, o impulso afectivo é, no homem, o sujeito da vivência primária de resistência, a qual constitui a raiz de toda a noção de “realidade” e de “ factualidade”, sobretudo da unidade e da impressão de realidade efectiva, prévia a todas as funções representativas. A representação e o pensamento mediato (raciocínio) nunca nos podem indicar coisa alguma excepto o “ser-assim” (Sosein) e o “ser-outro” (Anderssein) da realidade efectiva. Esta, enquanto “ser-real” do real, só nos é dada numa resistência geral ligada à angústia, a saber, numa vivência da resistência 5.

Do ponto de vista “organológico”, o sistema nervoso “vege-tativo”, que regula sobretudo a distribuição do alimento, repre-senta no homem, como já o seu nome indica, o que nele ainda subsiste de natureza vegetativa. Uma subtracção periódica de energia no sistema animal, que regula o comportamento dinâ-mico exterior, em benefício do sistema vegetativo é, prova-velmente, a condição fundamental do ritmo dos estados de sono e de vigília. O sono é, assim, um estado relativamente vegetativo.

[Instinto (animal)]A segunda forma anímica essencial, que se segue ao impulso

afectivo extático na hierarquia objectiva da vida, é por nós vis-lumbrada no que designamos como “instinto” – palavra obscura, muito controversa segundo a sua interpretação e o seu sentido. Subtrair-nos-emos a esta obscuridade, abstendo-nos, antes de mais, de toda a definição por meio de conceitos psicológicos

5 Cfr. os meus ensaios “Erkenntnis und Arbeit” in Die Wissensfor‑men und die Gesellschaft (1926) e “Idealismus – Realismus” in Philoso‑phischen Anzeiger, 2, Fasc. 3, Bona 1927.

[I – HIERARQUIA DO SER PSICOFÍSICO]

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e determinando o instinto (e os subsequentes estádios essen-ciais) só a partir do chamado “comportamento” do ser vivo. Tal “comportamento” é sempre objecto de observação externa e presta-se à descrição. Pode determinar-se sem atender às uni-dades fisiológicas do movimento que o suportam, e também sem introduzir na sua característica conceitos de excitação física ou química. Independentemente de toda a explicação causal, quer fisiológica quer psicológica, e antes dela, podemos apreen-der unidades e mudanças da conduta de um ser vivo, quando se alteram os elementos do meio, e obtemos assim relações regulares, que são já significativas na medida em que apre-sentam um carácter holístico e teleóclino. Os “behavioristas” erram quando, no conceito de comportamento, incorporam já o processo fisiológico da sua ocorrência. O valor deste conceito consiste precisamente em ele ser um conceito psicofisicamente indiferente. Ou seja, todo o comportamento é sempre também expressão de estados internos; pois, nada há de intrapsíquico que não se “expresse”, imediata ou mediatamente, na conduta. Por conseguinte, ele pode e deve explicar-se sempre, ao mesmo tempo, de dois modos, fisiológico e psicológico: é tão erróneo preferir a explicação psicológica à explicação fisiológica como a segunda à primeira. O “comportamento” é o campo de obser-vação, descritivamente “médio”, de que devemos partir.

Nesta acepção, chamamos “instintivo” a um comporta-mento que possui as seguintes características: primeiro, deve ter um sentido, quer dizer, ser de tal modo que relativamente ao todo do portador da vida, à sua alimentação e reprodução, ou ao conjunto de outros portadores da vida, possua um carácter teleológico (ao serviço de interesses próprios ou estranhos). Deve, em segundo lugar, desenrolar-se segundo um ritmo fixo, inalterável. Depara-se com este ritmo, não nos órgãos que se usam para a conduta e que, com a remoção de qualquer um deles, se podem alterar; também não na combinação de movimentos singulares, que podem mudar, segundo a situação

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de partida do corpo animal numa tarefa ou operação seme-lhante. A natureza amecânica do instinto, a impossibilidade de o reduzir a combinações de reflexos isolados ou em cadeias (a “tropismos”, como Loeb fez), está assim garantida. Este ritmo, esta forma temporal, cujas partes reciprocamente se exigem, também não os têm os movimentos significativos, adquiridos por associação, por exercício e hábito – segundo o princípio que Jennings designou de “tentativa e erro”. O nexo de sen-tido não precisa de se vincular a situações presentes, mas pode igualmente visar situações muito afastadas no tempo e no espaço. Por exemplo, os preparativos de um animal em vista do inverno ou da postura dos ovos não são, decerto, carentes de sentido, embora se possa demonstrar que ele, enquanto indi-víduo, jamais viveu situações semelhantes, e que aí se encontra excluída a informação, a tradição, a imitação dos congéneres; comporta-se, como o faz já o electrão, segundo a teoria dos quantos: “como se” previsse um estado futuro.

Um terceiro rasgo do comportamento instintivo é que ele responde somente a situações que se repetem de modo típico, que são importantes para a vida da espécie enquanto tal, mas não para a experiência peculiar do indivíduo. O instinto está sempre ao serviço da espécie, quer da própria quer de outra, com a qual a primeira se encontra numa importante relação vital (as formigas e os seus hóspedes; formações de fungos nas plantas; insectos e aves, que fecundam os vegetais, etc.). Esta característica distingue nitidamente a conduta instintiva, pri-meiro, do “treino espontâneo” por “tentativa e erro” e de toda a “aprendizagem”; em segundo lugar, do uso da “inteligência” – porque, como veremos, são ambos originariamente úteis ao indivíduo, e não à espécie. A conduta instintiva nunca é, pois, uma reacção aos conteúdos peculiares do meio, que variam de indivíduo para indivíduo, mas apenas a uma estrutura muito especial, a um tipo específico de organização dos possíveis ele-mentos do ambiente. Enquanto os conteúdos particulares

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podem ser profundamente modificados, sem que o instinto se transvie e induza a enganos, a mínima mudança da estru‑tura suscitará erros. Eis o que se caracteriza como “rigidez” do instinto, em contraste com os modos de comportamento extremamente plásticos, que se baseiam no treino, na auto--instrução e na inteligência. Na sua poderosa obra, Souvenirs entomologiques, J.-H. Fabre aduziu, com a máxima precisão, uma multiplicidade ingente de semelhante comportamento instintivo. A esta subserviência à espécie é inerente o facto de o instinto, nos seus rasgos fundamentais, ser inato e hereditário: e decerto enquanto aptidão especificada para tal comportamento, e não apenas enquanto aptidão geral para adquirir modos de conduta, como também o são, naturalmente, o hábito, o treino e a inteligência. Aliás, o carácter inato não significa aqui que o comportamento, que importa apelidar de instintivo, se deveria desenrolar logo após o nascimento, mas somente que ele está ordenado a períodos determinados de crescimento e de matu-ridade, e até eventualmente a formas diversas dos animais (no caso de polimorfismo).

Por fim, uma característica muito importante do instinto é esta: ele representa uma conduta que é independente do número das tentativas feitas por um animal para enfrentar uma situação: pode, neste sentido, designar-se como previamente já pronto. Se não é possível conceber a genuína organização do animal como suscitada por meio de pequenos passos de varia-ções diferenciadas, também não se pode explicar o “instinto” mediante a adição de movimentos parciais bem sucedidos. Pode, sem dúvida, o instinto ser especializado pela experiência e pela aprendizagem, como se vê, por exemplo, nos instintos dos animais predadores, aos quais é inato o perseguir uma determinada presa, mas não a arte de levar a bom termo tal exercício. Mas o que o exercício e a experiência aqui realizam corresponde apenas, por assim dizer, às variações de uma melo-dia, não à aquisição de outra nova. O instinto está, portanto,

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já incorporado na morfogénese dos próprios seres vivos e actua, na mais estreita ligação, com as funções fisiológicas configu-radoras, que constituem as formas estruturais do corpo do animal.

Deveras relevante é a relação do instinto com as sensações, com a actividade das funções sensoriais e com os órgãos dos sentidos, e também com a memória. Exclui-se que o instinto surja só graças às experiências sensoriais externas (sensualismo). O estímulo da sensação desencadeia apenas o decurso ritmica-mente firme da actividade instintiva, sem determinar que ele ocorra de um certo modo. Estímulos de sensações olfactivas e visuais podem aqui desencadear a mesma actividade – mas não devem ser sequer da mesma modalidade, e menos ainda da mesma qualidade, as sensações que fomentam tal desen-cadeamento. Antes se verifica a proposição inversa: o que um animal para si pode representar e sentir é, em geral, regido e determinado a priori pela relação dos seus instintos inatos à estrutura do meio ambiente. O mesmo vale acerca das suas pro‑duções mnésicas: emergem estas sempre no sentido e no âmbito das suas tarefas instintivas predominantes, da sua sobredeter-minação; e só de modo secundário é importante a frequência das ligações associativas dos reflexos condicionados e dos exer-cícios. O animal, que pode ver e ouvir, vê e ouve apenas o que é relevante para a sua conduta instintiva – inclusive, em análogos estímulos e condições sensoriais da sensação. Na história da evolução, as vias nervosas aferentes e os órgãos receptores só se formaram todos após o estabelecimento das vias nervosas eferentes e dos órgãos efectores. No homem é ainda subjacente ao ver o impulso para ver e, a este, o impulso geral para a vigília; o impulso para o sono encerra os órgãos e as funções sensoriais. Por isso, a memória, tal como a vida sensorial, está totalmente rodeada pelo instinto, nele imersa. As chamadas acções “impulsivas” do homem são nele o absoluto contrário

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da acção instintiva; olhadas na sua inteireza, podem ser de todo absurdas (por exemplo a busca de um veneno tóxico).

Demonstrou-se já como impossível (Jennings – Alverdes) toda a derivação dos modos instintivos de comportamento a partir de tropismos e taxias 6 mecanicamente concebidos (Loeb) – que são, antes, instintos mais simples –, toda a redu-ção a combinações de reflexos isolados das vias motoras (que, segundo investigações recentes, não existem; nem sequer o reflexo patelar ou o reflexo de fechar as pálpebras é um reflexo mecânico) e a reflexos em cadeias. Igualmente impossível, porém, é reduzir o instinto à herança de modos de conduta que assentam no “hábito” e no “treino espontâneo” (Spencer), ou seja, em última análise, na regularidade associativa e no reflexo condicionado, ou ver nele uma automatização ulterior do comportamento “inteligente” (Wundt). O devir do instinto de uma espécie é um produto parcial da própria formação específica; o instinto é, “em linha pura”, de todo inalterá-vel. Passos parciais, como os do hábito e do exercício, não o podem modificar, como também não a “arquitectura” de um animal. O instinto é, sem dúvida, uma forma mais primitiva do ser e acontecer do que as formações anímicas complexas determinadas por associações. É-nos possível mostrar que os fluxos psíquicos, subsequentes à regularidade associativa (de harmonia com o hábito), se localizam no sistema nervoso bas-tante mais acima, são, portanto, geneticamente mais tardios do que os modos instintivos de conduta. De facto, os modos comportamentais sensorialmente unitários (agarrar uma coisa, cantar uma melodia) podem ainda ter lugar em manifestações patológicas de deficiência, onde já não se consegue extrair algo de sensorialmente menos articulado (movimentos isola-dos, como mover apenas um dedo; ou cantar a escala). Estas

6 Palavra de origem grega, ligada à biologia, que significa “ordena-ção”, “classificação”. N. do T.

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APRESENTAÇÃO ........................................................ 7

PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO ........................... 11

INTRODUÇÃO ........................................................... 15[Impulso afectivo (planta)] ................................................. 19

[I – HIERARQUIA DO SER PSICOFÍSICO] ................... 19[Instinto (animal)] ............................................................. 25[Memória associativa] ........................................................ 32[Inteligência prática (animais superiores)] .......................... 40

[II – DIFERENÇA ESSENCIAL ENTRE O HOMEM E O ANIMAL] ............................................................. 47[Essência do espírito] ......................................................... 49[Exemplos de categorias “espirituais”] ............................... 54[O espírito como actualidade pura] ................................... 59

[III – O ACTO FUNDAMENTAL DO ESPÍRITO] – [Ideação] ................................................. 61[Redução fenomenológica] ................................................. 64[O homem como “asceta da vida”] .................................... 67

[IV – TEORIA “NEGATIVA” E TEORIA “CLÁSSICA” DO HOMEM] ............................................................. 69[Crítica da teoria negativa] ................................................. 70[Crítica da teoria clássica] .................................................. 76[Relação do espírito e da vida] ........................................... 80

[V – IDENTIDADE DO CORPO E DA ALMA] .............. 85[Crítica das concepções naturalistas] ................................. 95[Crítica de Klages] ............................................................. 98

[VI – CONTRIBUTO PARA A METAFÍSICA DO HOMEM] ............................................................. 103

ÍNDICE