maat - o princípio ordenador do cosmo egípcio

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA GISELLE MARQUES CAMARA MAAT: O PRINCÍPIO ORDENADOR DO COSMO EGÍPCIO Uma reflexão sobre os princípios encerrados pela deusa no Reino Antigo (2686-2181 a.C.) e no Reino Médio (2055-1650 a.C.) Niterói 2011

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Principio Ordenador

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

    PS-GRADUAO EM HISTRIA

    GISELLE MARQUES CAMARA

    MAAT: O PRINCPIO ORDENADOR DO COSMO EGPCIO

    Uma reflexo sobre os princpios encerrados pela deusa no Reino Antigo (2686-2181 a.C.) e

    no Reino Mdio (2055-1650 a.C.)

    Niteri

    2011

  • ii

    C172 Camara, Giselle Marques.

    Maat: o princpio ordenador do cosmo egpcio: uma reflexo sobre os princpios encerrados pela deusa no Reino Antigo (2686-2181 a.C.) e no Reino Mdio (2055-1650 a.C.) / Giselle Marques Camara. 2011.

    134 f. ; il.

    Orientador: Ciro Flamarion Cardoso. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2011.

    Bibliografia: f. 130-133.

    1. Histria antiga. 2. Egito antigo. 3. Sociedade. 4. Religio. I. Cardoso, Ciro Flamarion. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.

  • iii

    GISELLE MARQUES CAMARA

    MAAT: O PRINCPIO ORDENADOR DO COSMO EGPCIO

    UMA REFLEXO SOBRE OS PRINCPIOS ENCERRADOS PELA DEUSA

    NO REINO ANTIGO (2686-2181 a.C.) E REINO MDIO (2055-1650 a.C.)

    .

    Dissertao apresentada ao curso de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obteno do Grau de Mestre. rea de Concentrao: Histria Social.

    Orientador: Prof. Dr. CIRO FLAMARION CARDOSO

    Niteri

    2011

  • iv

    GISELLE MARQUES CAMARA

    MAAT: O PRINCPIO ORDENADOR DO COSMO EGPCIO

    UMA REFLEXO SOBRE OS PRINCPIOS ENCERRADOS PELA DEUSA

    NO REINO ANTIGO (2686-2181 a.C.) E REINO MDIO (2055-1650 a.C.)

    Dissertao apresentada ao curso de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obteno do Grau de Mestre. rea de Concentrao: Histria Social.

    Aprovada em 30 de setembro de 2011

    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________________________________________

    Professor Dr. CIRO FLAMARION CARDOSO - Orientador

    Universidade Federal Fluminense - UFF

    ______________________________________________________________________

    Professora Dra. NORMA MUSGO MENDES

    Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

    ______________________________________________________________________

    Professor Dr. JULIO CESAR GRALHA

    Universidade Federal Fluminense - PUCG

    Niteri

    2011

  • v

    Aos meus avs queridos Selma e Orlando

    e ao doce Dr. Pimentel,

    vivos pela eternidade Djet.

  • vi

    AGRADECIMENTOS

    Essa dissertao veio em um momento em que eu pedia paz. Em meio a um cotidiano

    catico que mescla vida pessoal, compromissos acadmicos e trabalho, resta quase nada de

    tempo para a reflexo. Talvez, se o tema do presente escrito fosse outro seno Maat ordem e

    equilbrio , eu no teria conseguido finaliz-lo. Mas em meio crise, vem o companheirismo

    e a solidariedade: do marido querido, dos familiares, dos amigos do peito, dos alunos, dos ex-

    professores, dos colegas de trabalho e por meio de recordaes daqueles que j se foram, mas

    que se aqui estivessem, ofereceriam o seu aconchego.

    Agradeo a todos que amo, pois deixaram o seu rastro de carinho pelas pginas que se

    seguem: palavras de fora, afagos, lanchinhos. Isso que vale na vida! O que seria do

    contingente seno permeado por esperana e amizade? Como os egpcios eram sbios! As

    pginas que seguem foram construdas por mim levando em conta no meramente o seu

    carter utilitrio. Representam o retorno de um mundo (que talvez nunca tenha existido) de

    mais solidariedade, felicidade e paz. Ofereo Maat em retribuio a todos aqueles por meio

    dos quais eu consigo a ela me conectar!

  • vii

    Cest une cole pour les Grands que l`homme sage; ceux qui connaissent son savoir ne

    lattaquent pas, aucun mal ne survient dans son voisinage. La verit el a justice (Maat)

    viennent lui, dj brasses, conformment aux conseils que les anctres ont dits...

    Cherche galer tes pres, ceux qui ont vcu avant toi...

    vois, leurs paroles persistent dans les livres; ouvre ceux-ci: lhomme habile devient alors um

    homme instruit.

    ENSINAMENTO DO REI KHETI III A SEU FILHO MERIKAR

  • viii

    SUMRIO

    INTRODUO 14 - 33

    1. O TEMPO E O SER PARA OS ANTIGOS EGPCIOS

    1.1 NEHEH E DJET: O TEMPO NA ANTIGA KEMET 34 - 40

    1.2 O UNIVERSO VIVO DOS ANTIGOS EGPCIOS: A EXISTNCIA EM TODA A

    SUA PLENITUDE 40 - 45

    2. O INCIO DA EXISTNCIA DAS HIERARQUIAS CELESTES E DAS

    SOCIEDADES HUMANAS: MAAT NO REINO ANTIGO

    2.1 O LUGAR DE MAAT NO UNIVERSO COSMOGNICO EGPCIO 46 - 54

    2.2 MAAT COMO PRINCPIO FUNDADOR DO ESTADO E DA ORDEM SOCIAL

    NO EGITO FARANICO 54 - 59

    3. SOLIDARIEDADE E RECIPROCIDADE: MAAT COMO PRINCPIO DE

    COESO SOCIAL NA LITERATURA DO REINO MDIO

    3.1 ENTRE O DECLNIO DA ERA DAS PIRMIDES E O ESPLENDOR DO REINO

    MDIO: O CONTEXTO SCIOPOLTICO E A EMERGNCIA DE UM NOVO

    PARADIGMA SEMNTICO-CULTURAL 60 - 67

  • ix

    3.2 O CONCEITO DE MAAT NO IMAGINRIO DO REINO MDIO A PARTIR DO

    SEBAIT DE PTAH HOTEP E DO CONTO E LAMENTAES DE KHUNINPU

    3.2.1 Sobre o corpus documental egpcio: consideraes sobre a literatura como gnero

    narrativo na Antiga Kemet 68 - 70

    3.2.2 Literatura, poltica e Maat: a nova dimenso do princpio no Reino Mdio 70 - 74

    3.2.3 O sebait de Ptah-hotep 74 - 85

    3.2.4 O Conto e as Lamentaes de Khuninpu 85 - 102

    CONCLUSO 103 - 104

    IMAGENS 105 - 110

    QUADRO ANALTICO 111 - 129

    BIBLIOGRAFIA 130 - 134

  • x

    ILUSTRAES

    Imagem (I) Deusa Maat Tumba do fara Seth I (1294-1279 a.C.), Vale dos Reis p.

    109

    Imagem (II) Hierglifo representativo da deusa - p. 110

    Imagem (III) Representao simblica das duas eternidades egpcias: djet e neheh -

    p. 111

    Imagem (IV) Textos das Pirmides: Cmara morturia do fara Unas (1275-2345 a.C.) -

    p. 112

    Imagem (V) Livro do Vir Luz: Papiro de Ani, dcima nona dinastia (1295-1186 a.C.)

    Museu Britnico - p. 113

    Imagem (VI) Apresentao de Maat: Tempo de Abydos, fara Seth I (1294-1279 a.C.) -

    p. 114

  • xi

    ABREVIATURAS

    B1 Papiro de Berlim 3023 B2 Papiro de Berlim 3025

    PT Pyramids Texts (Textos das Pirmides)

  • xii

    RESUMO

    A presente dissertao prope uma reflexo sobre o significado expressado pela

    deusa/princpio Maat durante os Reinos Antigo (2649-2129 a.C.) e Mdio (2023-1720

    a.C.), perodos esses que constituram em parte a histria do Egito Faranico. Tal deusa

    encerrava em si os atributos de verdade/justia/ordem/equilbrio. De acordo com os

    mitos cosmognicos egpcios, a referida divindade foi gerada no primeiro movimento

    da criao csmica, juntamente com seu irmo gmeo Shu, o sopro vital, e s aps o

    nascimento de ambos o mundo dos deuses e dos homens pode ento ser criado. Alm de

    Maat ser a condio de existncia necessria para que o processo de criao do cosmo

    pudesse ter continuidade, as atribuies a ela associadas no se restringiram apenas ao

    mbito religioso, servindo, outrossim, de esteio para estruturao poltica e social da

    cultura em foco. Tratando-se de um povo cuja cosmoviso se assentava no mito e cuja

    funo temporal do fara, e por extenso da sociedade como um todo, era viabilizar a

    reproduo e a manuteno de uma ordem perfeita existente a priori, a deusa/princpio

    lanou as bases que legitimou o pacto de governabilidade do monarca para com o seu

    povo, e forneceu as diretrizes ao comportamento do homem egpcio, pois pode ser

    considerada a medida tica que orientou a conduta moral nos mbitos individual e

    coletivo.

    Palavras-chave: Histria Antiga. Egito Antigo. Sociedade e religio no Egito antigo.

  • xiii

    ABSTRACT

    This dissertation proposes a reflexion on the meanings expressed by the

    goddess/concept Maat throughout Ancient Egypts Old (2649-2129 a.C.) and Middle

    Kingdoms (2023-1720 a.C.). This goddess personified in itself the attributes of truth,

    justice, order and equilibrium. According to the cosmogenic Egyptian myths this

    divinity was created in the first movement of the cosmic creation, alongside its twin

    brother Shu, the personification of air/breath and only after their birth did the worlds of

    the gods and of men were able to be created. Apart from Maat being the necessary

    condition for the creation process of the universe to continue, the attributes associated to

    her are not restricted to the "religious" sphere - it was also a vital concept for the

    political and social structures of the Egyptian culture. As the Egyptians cosmovision

    centred itself in myths, and whose temporal function was the pharaoh, and by extension

    the society itself, to institute the reproduction and establishment of a perfect order, the

    goddess/concept introduced the basis that legitimized the governability pact between the

    monarch and his people, gave a behavioural code to the Egyptians, because it can be

    considered as the ethical principle that oriented the Egyptian moral conduct individually

    and collectively.

    Keywords: Ancient History. Ancient Egypt. Egyptian society and religion.

  • INTRODUO

    Maat has come so that she may be with you. Maat is present in all your dwellings so that you are furnished with Maat. The robe for you limbs is Maat. Maat is a breath for your nose. Maat is your

    bread. Maat is your beer. Parte de um ritual dirio realizado nos templos egpcios1

    O passado do Egito foi constantemente representado nestes ltimos dois sculos, criando um imaginrio que quase sempre nos remete a lugares-comuns facilmente associveis a tais representaes. Dos faras autoritrios profanao das mmias, passando pela construo de um imprio s custas da escravizao do povo hebreu e pelas impressionantes edificaes, como as pirmides que se tornaram cones de especulaes sobre a inacreditvel capacidade intelectual desse povo que emergiu do obscurantismo pr-histrico tornando-se o Bero das Civilizaes Ocidentais, o Egito Antigo adquiriu um carter quase lendrio para o Ocidente, seja via religio, mdia e/ou crculos intelectuais. No cabe a este estudo explorar a construo da histria da historiografia faranica ao longo dos dois ltimos sculos2, mas importante salientar que esse maravilhar, despertado desde sua redescoberta

    1 Maat veio para que ela possa estar com vocs. Maat est presente em todas as suas moradas, de modo que

    vocs esto equipados com Maat. O manto para os seus membros Maat. Maat um sopro de vida em seu nariz. Maat o seu po. Maat a sua cerveja. Erik Hornung. Idea into Image. Essays on Ancient Egyptian Thought. New York: Tinken, 1992, p. 132. Nesse ritual, semelhante ao de apresentao de Maat pelo fara, o sacerdote representa o deus Thot. O trecho faz referncia ao po e a cerveja por se tratarem dos alimentos bsicos da dieta egpcia. 2Temtica explorada tanto pela minha monografia de graduao (2002) como pela minha dissertao de mestrado em Histria Social da Cultura (2005). Ambas foram defendidas pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Ver bibliografia.

  • 15

    pela tropa intelectual napolenica, tem em grande parte fundamento na prpria capacidade organizativa e grande longevidade do estado faranico, edificado sobre uma slida estrutura poltico-social calcada em uma coerente e peculiar viso de mundo. um dos elementos que tornaram o Egito Faranico possvel o objeto da reflexo que discorre nas pginas que se seguem.

    O Egito faranico no somente representa o primeiro reino unificado historicamente conhecido, como tambm a mais longa experincia humana documentada de continuidade poltica e cultural. (...) Tal histria conheceu, verdade, fases de descentralizao, anarquia e domnio estrangeiro, mas durante esses longos sculos o Egito constituiu uma mesma entidade poltica reconhecvel. A continuidade e longevidade so ainda mais impressionantes do ponto de vista cultural: a antiga lngua egpcia manteve-se relativamente estvel, embora sofrendo algumas mudanas, durante quatro mil e quinhentos anos. E de cerca de 3000 a.C at o V sculo da nossa era, muitos outros aspectos atestam com sua presena ininterrupta, a grande permanncia dos padres culturais egpcios: escrita hieroglfica, concepes acerca da realeza, religio, estilos artsticos, estruturaes econmico-sociais. (...) um fenmeno fascinante o de uma civilizao que, atravs de numerosas transformaes, arrosta impvida vrias dezenas de sculos sem perda das caractersticas essenciais que definem sua especificidade.3

    Esse fenmeno fascinante, tal como descrito por Ciro Flamarion, pode ser atribudo em grande parte ao fato de que os egpcios se pensavam como uma sociedade cujas instituies e forma de organizao social no foram moldadas pelo esforo inventivo e material humanos, e sim herdadas de um projeto divino espelhado em um ideal de harmonia e perfeio apriorsticos prpria criao da humanidade. Cabia ao homem, portanto, cuidar e vigiar a criao. Acrescida a essa cosmoviso que ajudou a conferir estabilidade e durabilidade s instituies egpcias, apesar das crises internas e invases estrangeiras, podemos enumerar algumas outras situaes que ajudaram a modelar uma histria social to peculiar, dentre elas o fato de que a natureza foi particularmente generosa com as populaes humanas que se estabeleceram nas margens frteis do Vale do rio Nilo.

    3 Ciro Flamarion Cardoso. O Egito Antigo. So Paulo: Editora Brasiliense, 1982, pp. 7-10.

  • 16

    Quase circunscrito pelo deserto, protegido pelo Mar Mediterrneo ao norte, e o Vermelho ao leste, o Egito do Reino Antigo, ao contrrio das cidades-estado mesopotmicas que viviam a iminncia da guerra em seu cotidiano, disps de centenas de anos sem nenhuma ameaa externa significativa para formular instituies e um refinado pensamento cosmognico que sintetizava na figura do fara a ligao e a continuidade entre as estruturas terrena e csmica. At a dominao pelos hicsos (por volta do dcimo oitavo e dcimo stimo milnio antes de Cristo), o Egito permaneceu inclume a uma invaso significativa. Por conseguinte, justifica-se a compreenso de que os mais importantes arranjos scio-polticos e manifestaes culturais tenham se desenvolvido durante as primeiras dinastias.

    Antes de prosseguir a apresentao do tema, importante clarificar que, quando o presente texto se referir de forma generalizante ao pensamento do homem egpcio, ou tratar da concepo de mundo segundo os egpcios antigos, devemos entender que o estudioso de egiptologia no possui praticamente nenhum indcio de como era a cosmoviso do homem egpcio comum. Todo o material recuperado do passado pelos arquelogos foi extrado de tumbas ou stios vinculados elite templria, ou elite burocrtica, cuja viso de mundo pode no ter sido partilhada pelos demais grupos sociais que deram corpo a antiga Kemet4.

    Portanto, fica a ressalva: apesar de a presente narrativa lanar mo, em inmeros trechos, de generalizaes, tais como as apresentadas no pargrafo anterior, para se referir aos egpcios do estado faranico, toda a documentao a que se tem acesso provm de um lugar de fala privilegiado, j que no podemos mensurar at que ponto essa viso de mundo se estendia aos demais setores da populao.

    O que os egpcios pensavam sobre isso ou sobre aquilo? Talvez essa pergunta no deva ser respondida de forma rpida e unvoca. De fato, um campons, um chefe de escriba, um alto sacerdote, provavelmente teriam representaes divergentes dos mesmos fatos, dos mesmos processos. Por certo, talvez pudessem convergir em alguns pontos, ou o que para um constituiria a percepo dominante de um fenmeno, para outro seria uma aproximao subordinada ou sobredeterminada por outras

    4 Um dos nomes pelos quais os antigos egpcios denominavam o seu Estado. Tal vocbulo significa na lngua

    egpcia antiga Terra Negra, provvel aluso ao humos depositado em ambas as margens do Nilo aps as cheias.

  • 17

    concepes. Alm disso, o mesmo indivduo poderia oscilar entre percepes diversas em funo de diferentes situaes.5

    Um dos pilares que lanou as bases para a edificao da sociedade faranica residia na maneira pela qual os antigos egpcios construram a sua noo de tempo. Uma vez que se entendiam como extenso de um modelo de sociedade idealizado e executado por uma divindade criadora, que ao partilhar sua essncia inaugurou a existncia de deuses e homens, a viso de tempo engendrada por tal sociedade era absolutamente coerente a esse olhar sobre a existncia. De forma bastante peculiar, baseava-se na crena de que a histria da sociedade no se fazia inscrita no transcorrer de acontecimentos que se sucediam em uma linha temporal de forma irreversvel6, o que pressupe constante transformao, mas na ideia de um tempo ligado ao eterno, ao permanente, que, mesmo quando comportava a mudana, a desestabilizao por uma contingncia necessria, era apenas para que o seu estado anterior pudesse ser restaurado, revivido em ciclos, tal como ocorre com os movimentos da natureza. Para Jan Assmann,

    De toda a construo de sentido que a minha histria deve rastrear, a construo cultural do tempo fundamental e abrangente. Ele fornece a estrutura bsica para qualquer relato histrico e compreenso da forma e rumo tomados pela histria, ou seja, somente por meio desse mbito que podemos reconhecer claramente que as configuraes culturais tm histrias prprias e que a prpria histria moldada em um molde que lhe culturalmente especfico. Estas questes so de especial urgncia para os egiptlogos porque, como veremos, a

    5 Qu pensaban los egipcios acerca de esto o aquello? Quiz no debiera ser respondida de un modo rpido

    y unvoco. En efecto, un campesino, un jefe de escribas, un alto sacerdote, probablemente tendran representaciones divergentes respecto de los mismos hechos, de los mismos procesos. Por cierto, quiz tendran tambin puntos en comn, y quiz lo que para uno constituira la percepcin dominante de un fenmeno, para otro seria una aproximacin subordinada o sobredeterminada por otras concepciones. Incluso ms, quiz el mismo individuo oscilara entre percepciones diversas en funcin de diferentes situaciones. Marcelo Campagno. Notas sobre espacio, tiempo y alteridad en el Antiguo Egipto. Buenos Aires: Ed. Universidad de Buenos Aires CONICET, 2010. 6 Quando se fala em modelo de tempo que pressupe reversibilidade, ou seja, recomeo pelo ciclo, uma das

    caractersticas pelas quais os egpcios encaravam o tempo, faz-se oposio ideia de transformao inerente s concepes modernas ocidentais, segundo a qual, uma vez transformado o contexto, no h como vivenci-lo de novo. Essa concepo ser mais adequadamente desenvolvida no primeiro captulo da dissertao, quando tomada a reflexo de Jan Assmann sobre o tempo na era dos faras. Jan Assmann. The mind of Egypt: history and meaning in the time of the pharaohs. Massachusetts: Harvard University Press, 2003.

  • 18

    histria dos faras revela peculiaridades formais altamente conspcuas.7

    Essa forma de vivenciar o tempo, que perpassou a experincia social da Antiga Kemet, inseria-se em uma concepo mtica de mundo em que o contnuo reviver do momento inicial da criao seria a garantia de uma sociedade ordenada e produtiva, j que a chave da existncia perfeita foi conferida pelo demiurgo a todas as criaturas no momento da suprema gnese. No bojo dessa cosmoviso, surge um conceito, personificado por uma deusa, que possibilitou a conexo entre tal concepo apriorstica sobre o funcionamento do universo e o universo aps a criao: Maat.

    Tal deusa que, para um no especialista, pode passar despercebida se levarmos em conta a grande visibilidade revelada por outras divindades ao longo de toda a histria do Egito Faranico costurou, pelo menos desde a terceira dinastia, a trama religiosa, poltica e social, de modo a possibilitar que o Estado egpcio fosse cultural e socialmente compreendido, ainda que apenas pela elite letrada, como o espelho de uma perfeita ordem csmica.

    Realizar a compreenso do simbolismo expresso pela deusa Maat no Egito Faranico o foco geral deste estudo. As suas mltiplas facetas constituem um dos alicerces fundamentais para a construo de uma slida reflexo sobre o pensamento e a estruturao social do povo que se enraizou durante milnios em ambas as margens de quase toda a extenso do rio Nilo. A deusa Maat, ao contrrio dos demais deuses egpcios, que geralmente encerravam atributos especficos, no pode ser imediatamente associada a um epteto que a vincular a uma funo restrita a ser desempenhada no universo pantenico, pois descrita como um princpio inerente a todos os elementos da criao csmica, incluindo os prprios deuses. Rich treasure of meaning, assim definida por Morenz8 por sua plurisignificao no curso da histria faranica. Partiremos, ento, de um entendimento comum entre os egiptlogos da atualidade, o de que a deusa encerra em si os princpios da

    7 Of all the constructions meaning that my history must trace, the cultural construction of time is the

    fundamental and all-encompassing. It provides the basic framework for any account of history and any understanding of the shape and course taken by history; only within that framework can we clearly recognize that cultural configurations have histories of their own and that history itself is cast in a mold that is culturally specific. These matters are of particular urgency for Egyptologists because, as we shall see, the history of pharaohs displays highly conspicuous formal peculiarities. Jan Assmann, op. cit., pp. 12-13. 8 Tesouro rico em significados. Morenz apud Karenga in Maat: the moral ideal in ancient Egypt a Study in

    Classical African Ethics. New York: Routledge, 2004, p. 5.

  • 19

    Verdade / Justia / Ordem / Equilbrio9 absolutos.

    Maat, ordem csmica e justia divina e humana, estava intrinsecamente ligada criao divina, e era de responsabilidade da humanidade mant-la no mundo, j que, ao mesmo tempo, era perpetuamente ameaada.10

    Ou seja, a relevncia deste estudo se encontra centrada na busca pela elucidao do lugar que a deusa Maat ocupou na cosmoviso egpcia, enquanto princpio encarnado da ordem regente do universo: sua prpria condio de existncia e de perptuo funcionamento. E ser a partir desse entendimento sobre a natureza da divindade trabalhada, e as formas pelas quais ela foi socialmente vivenciada, que tomaremos a anlise de um conjunto de fontes, a fim de trazer tona algumas das mais relevantes dimenses assumidas por tal deusa/princpio no decorrer de uma significativa parcela da histria do Egito Antigo.

    Consequentemente, como princpio que orienta, e est contido em todos os elementos da criao, Maat, alm de suas prerrogativas estritamente religiosas se que possvel coloc-las em tais termos visto a concepo de mundo unicista dos egpcios , tornou-se o alicerce de toda a estrutura poltica e social do Estado faranico, conferindo governabilidade ao monarca, e regendo o comportamento individual e coletivo do homem egpcio, por ser compreendida como a medida tica reguladora das aes humanas. Portanto, a palavra vivificante deveria ser evocada e renovada diariamente atravs do zelo pelas coisas religiosas (rituais dirios nos templos), ticas (conduta de vida baseada em um conjunto de preceitos sapienciais) e polticas (o zelo poltico do fara para com o seu povo), a fim de que o equilbrio individual e coletivo fosse perpetuamente mantido.

    9 Ciro Flamarion Cardoso. Deuses, mmias e Ziggurats: uma comparao das religies antigas do Egito e da

    Mesopotmia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999, p. 26. 10

    Maat, cosmic order and divine and human justice, was intrinsically linked to the divine creation, and it was the responsibility of humankind to maintain it in the world, for it was at the same time perpetually threatened. Franoise Dunand e Christiane Zivie-Coche. New York: Gods and Men in Egypt: 3000 BCE to 395 CE. Cornell University Press: 2004, p. 63.

  • 20

    Maat a concepo egpcia de ordenao e da relao que evidencia e governa todos os aspectos da existncia, semelhante noo ocidental de lei natural. Estende-se desde os elementos da natureza (o mundo dos deuses) at o comportamento moral e social da humanidade.11

    Apesar de a deusa transitar no mundo dos vivos e dos mortos, limite um tanto fluido para os egpcios, sua presena e ao interventora na esfera terrena deveria ser realizada e mantida pela agncia humana, j que nem sempre o princpio agia por si mesmo. Sendo assim, Maat se revela, por exemplo, na necessidade do fara sntese de todas as foras coordenadoras do Estado de zelar pela manuteno do equilbrio Estado/Sociedade e Estado/Natureza como representante supremo da ordem divina na terra.

    Uma das mais importantes cenas de adorao do antigo Egito, presente no Templo de Abydos, diz respeito apresentao de Maat. O fara ofertava Maat a imagens divinas como parte de seu ritual de entronizao. A deusa era representada como uma pequena figura ajoelhada, usando uma pluma de avestruz em sua cabea (imagem VI). Em tal templo, a cena protagonizada pelo segundo fara da dcima nona dinastia, Seth I (1294-1279 a.C.), que, ao ofertar Maat aos deuses, estabelece um pacto de governabilidade com os mesmos, ato que simboliza o compromisso em restabelecer, renovar e manter diariamente a ordem e a justia no mundo natural e no mundo espiritual. Se acaso o fara falhasse em seu papel, a ordem seria subvertida. Vejamos um trecho de um hino em celebrao ascenso de Ramss II (1279-1213 a.C.) ao trono do Egito:

    dia feliz! O cu e a terra esto alegres porque tu s o grande senhor do Egito! Os que fugiram regressaram s suas cidades, os que se escondiam apareceram; os que tinham fome esto saciados e alegres.

    11 Order (Maat) is the Egyptian concept of the arrangement and relationship that underlines and governs all

    aspects of existence, somewhat akin to the western notion of natural law. It extends from the elements of nature (the world of the gods) into the moral and social behavior of mankind. James Allen. Genesis in Egypt: The philosophy of ancient Egyptian creation accounts. New Haven: Yale University Press, 1998, p. 26. Outra referncia terica que faz meno mesma questo encontra-se no captulo intitulado As religies antigas do Egito e da Mesopotmia: princpios bsicos. In: Ciro Flamarion Cardoso, op. cit., 1999.

  • 21

    Os que tinham sede embriagaram-se, os que estavam nus esto vestidos de linho fino, os que estavam sujos resplandecem. Os que estavam na priso esto livres, os que estavam tristes esto alegres, os que combatiam neste pas, pacificaram-se. Um Nilo abundante sai de suas fontes, para refrescar o corao dos homens. As vivas abrem as casas e mandam entrar os viandantes, as donzelas exultam e entoam cnticos de jbilos, [...] Os filhos vares que nascerem tero sorte, [porque] um criador de geraes em geraes o Senhor por todos os tempos. As barcas alegram-se na corrente, no precisam de reboques: alcanam a margem usando velas e remos. Todos resplandecem de jbilo desde que foi dito: o rei do Alto e Baixo Egito Heqamaatra, ostenta de novo a coroa branca! O filho de R, Ramss, ocupou o trono que foi de deu pai! As Duas Terras dizem-lhes: Belo Hrus no trono de seu pai Amon-R, do deus que o enviou, do protetor deste soberano, que conquista todos os pases!12

    Outros hinos anlogos foram utilizados por faras do Reino Novo. Eles revelam uma expectativa ideal de realidade a partir da ascenso de um novo fara, portanto, do reincio de uma nova era. Estando a presena de Maat garantida no cosmo com a ascenso de um novo rei, cada elemento presente no universo estaria em sua perfeita harmonia, visto que a transgresso regra no faria parte do mundo ordenado. Esse estado de equilbrio era gerador de felicidade, elemento ldico que tambm fez parte da criao. Segundo o mito heliopolitano, o criador Atum convidado pela guas primordiais, o Nun, a brincar com os seus filhos, os gmeos Shu e Maat: Beija tua filha Ordem (Maat), leva-a a teu nariz, que assim teu corao viver13.

    12 Erik Hornung. O rei. In. Srgio (org.). O homem egpcio. Lisboa: Ed. Presena, 1990, pp. 251-252.

    13 Texto dos Sarcfagos 80. Citao retirada da obra de: Rundle Clark. Mitos e Smbolos do Antigo Egito. So

    Paulo: Hemus, 1992, p. 40.

  • 22

    Se o Estado desmoronasse, segundo Jan Assmann, isso tambm ocorreria com Maat, fora harmonizadora e justia conectiva que unifica todos os humanos, os animais, os deuses, os mortos, o cosmo. Todo o universo de prticas e aes partilhados entre os homens a linguagem, o conhecimento, a memria iriam desaparecer, pois o intacto crculo de existncia e a circulao de sentido seriam quebrados14. A presena da deusa manifestada em um bom governo e na manuteno do culto aos deuses consistia no verdadeiro sentido e misso do Estado.

    Maat tambm pode ser compreendida como um conjunto de preceitos ticos que deveria orientar o comportamento do homem egpcio. Alm de ser um importante mecanismo de regulamentao e controle social, pois fornecia os princpios primordiais para o posicionamento moral do homem no mbito coletivo/pblico (respeito ao prximo e s regras institucionais), era, de igual forma, a medida que balizava a conduta individual. Entretanto, vale reiterar que ao teor de tais orientaes de cunho tico no deve ser atribudo um carter dogmtico.

    Os egpcios acreditavam que o corao, rgo identificado com a deusa Maat e sede da compreenso subjetiva humana, tambm deveria orientar o posicionamento tico do homem egpcio perante a sociedade na qual estava inserido, alm do conjunto de valores socioculturais que lhes eram impostos pelo meio em que vivia. Sendo assim, o indivduo necessitava estar sempre em harmonia com o rgo a ela associado, que representava a leveza proporcionada pela Retido Csmica. Maat tratava-se de um princpio imutvel inscrito no corao dos homens desde a criao. Opor-se a ele significava desarmonia e, consequentemente, caos e sofrimento.

    Se encontrares um contendor em seu (melhor) momento, um homem humilde que no seja um teu igual, no o ataques por ser fraco. Deixa-o em paz, ele se refutar a si mesmo. No lhe respondas para aliviar teu corao, no laves teu corao contra teu oponente. Desprezvel aquele que humilha um homem humilde, (embora) cada um aja segundo seu corao. Mas se bateres nele ters a reprovao dos magistrados.15 [grifos meus]

    14 Jan Assmann, op. cit, p. 139.

    15 Mximas de Ptah-hotep apud Emanuel Arajo, op. cit, p. 247.

  • 23

    Ainda no mbito da ao individualizada, a deusa Maat era protagonista de uma das mais importante cenas no mundo post mortem, em que o indivduo deveria prestar contas de sua conduta moral no decorrer de sua jornada terrena. Para exemplificar essa questo, veremos um trecho extrado do Livro do Vir Luz16, que corresponde terceira regio do Duat17. Tal regio era denominada Cmara de Maat (imagem V), lugar em que o morto era julgado perante um tribunal constitudo por deuses (que variam em nmero de papiro para papiro), presidido pelo deus Osris18. Esse julgamento acontecia quando o corao do ru era pesado em uma balana, outro smbolo da deusa. Para ser aprovado em seu julgamento, o morto teria que confessar ao deus todos os atos que cometera contra ou a favor de seus semelhantes, da natureza e das leis csmicas, durante a sua vida. Caso mentisse, o seu corao o denunciaria, pois penderia mais que a pena de Maat, seu contrapeso. Sendo o morto reprovado, ele no alcanaria o mrito de avanar no seu caminho pelas muitas provaes que ainda teria que enfrentar no Duat. Vejamos alguns trechos em que o morto, nesse caso um fara, se refere ao deus Osris:

    Eu disse e pratiquei a integridade (Maat), eu falei a verdade, eu transmiti as palavras justas. Eu governei com retido, de modo a beneficiar-me do amor dos humanos. Usei da equidade para com aqueles que se confrontavam, Na medida do possvel, salvei o fraco das garras do forte. Dei po a quem tinha fome, gua a quem tinha sede, vestimentas a quem no a possua. Aquele que no tinha um barco, Fiz com que chegasse a outra margem do rio. Dei uma morada da eternidade quele que no tinha um filho que lhe construsse uma morada.19

    16 A terminologia Livro dos Mortos foi amplamente utilizada pela historiografia, principalmente no sculo

    XIX, e ainda circula na mdia e em bibliografia voltada para o pblico leigo. Tal terminologia faz aluso ao fato de que os livros eram encontrados junto s mmias. Entretanto, a traduo mais adequada de seu ttulo na lngua egpcia antiga era Livro do Vir Luz. Tal obra consiste na jornada que o morto realizaria ao mundo do deus Osris, onde deveria atravessar um conjunto de catorze regies designadas Duat (cada uma com uma provao especfica), a fim de que pudesse fundir-se essncia do deus criador, completando, assim, seu ciclo de existncia no universo. 17

    Geralmente traduzido por Mundo Inferior ou Mundo Subterrneo, o Duat era o domnio de existncia dos mortos, cujo governo era gerido pelo deus Osris. 18

    Representa no tribunal dos deuses o que o fara representa para o seu povo. 19

    Lus Manuel Arajo. Mitos e Lendas do Antigo Egito. Lisboa: Ed. Livros e Livros, 2005, p. 63.

  • 24

    Antes que se discorra sobre os objetivos lanados em cada captulo, bem como as fontes por meio das quais foi possvel deline-los, ser apresentado o norte terico que conduziu o exerccio da escrita da histria neste estudo, possibilitando que a natureza da reflexo sobre o passado da Antiga Kemet adquirisse os contornos que sero apresentados nas pginas que se seguem. A escolha do autor foi mera coincidncia. Jan Assmann, egiptlogo alemo a quem se dispensam referncias pela seriedade do trabalho e pelas valiosas contribuies conferidas ao estudo da egiptologia (sua rea de concentrao especfica), vem se tornando cada vez mais popular no meio intelectual europeu por suas reflexes tericas sobre historiografia e estudos culturais, propostas em parceria com sua esposa, a tambm egiptloga Aleida Assmann. History of meaning e cultural memory20 so os dois conceitos por meio dos quais o intelectual vem operando no campo dos estudos da antiguidade. Ser do primeiro conceito que iremos nos apropriar.

    Assmann estabelece, na introduo de sua obra The mind of Egypt: history and meaning in the time of the pharaohs, um panorama terico sobre a concepo de historiografia que desenvolve - history of meaning -, alicerada sobre trs nveis de abordagem, que se sobrepem na anlise da histria de uma dada sociedade, e sobre as quais se discorrer mais a frente: a arqueolgica (traces), a epigrfica ou iconogrfica (messages), e a mitolgica (memories)21. Entretanto, antes de trat-las individual e coletivamente (pois no entrelaar das abordagens que se configura o olhar do autor para a histria), sero trazidas discusso alguns aspectos do entendimento conceitual mais amplo sobre o que Assmann compreende pela arte narrativa de se produzir um discurso histrico.

    O autor inicia o captulo designado Spiders and Webs22 apropriando-se da metfora usada pelo Iluminista e Gro Mestre manico setecentista Ignaz Von Born. Nela, os seres humanos so como aranhas: seu campo de ao delimitado pelo espao de uma teia que eles prprios tecem. Ao contrrio das aranhas, entretanto, as teias humanas so invisveis e produzidas no solitariamente, mas como resultado de um conjunto de interaes: tais teias so mundos de sentido/significado worlds of meaning cujo horizonte delimita a ao, a

    20 Referncia para aprofundamento sobre o conceito: Jan Assmann. Collective Memory and Cultural Identity,

    In: New German Critique. No. 65, Cultural History/Cultural Studies. (Spring - Summer, 1995), pp. 125-133. (traduo para o ingls do original em alemo por John Czaplicka). Site:http://links.jstor.org/sici?sici=0094033X%28199521%2F22%290%3A65%3C125%3ACMACI%3E2.0.CO%3B2-Z 21

    Os termos foram traduzidos como vestgios, mensagens e memrias. 22

    Jan Assmann, op. cit., pp. 3-17.

  • 25

    experincia e a memria humanas. Segundo Assmann, sem esse horizonte organizado, a atividade humana seria impensvel23. A palavra meaning24, nesse contexto, exprime finalidade, direo. E, quando dizemos que algo faz sentido, entendemos que esse algo se conecta a um conjunto de experincias vividas que podemos encaixar em um universo semntico que comporte essa referncia. Esse sentido que confere finalidade e direo a uma experincia, ou a um conjunto de experincias, s pode ser compreendido em um dado contexto, ou seja, o conjunto de significados que delineiam uma sociedade produto de uma experincia de tempo e de espao que lhes particular. Sendo assim, espao e tempo no so categorias meramente abstratas dentro das quais todas as sociedades se envolvem da mesma maneira, mas sim fices de coerncia produzidas por sociedades humanas em especficas conjunturas.25 O intelectual apresenta o conceito fices de coerncia a partir de um trecho extrado da obra Kulturgeschichte do suo Jacob Burckhardt:

    O que costumamos chamar de fatos histricos, aqueles eventos que nos so transmitidos na forma de narrao (...) so, em muitos aspectos fices incertas, controversas, coloridas, ou ento (dado o que sabemos do talento para a fabricao grega) totalmente ditadas pela imaginao ou pelo preconceito.26

    Ao relacionar histria lembrada e forma narrativa, Burckhardt inaugura o precedente para se pensar a relao entre produo de histria e produo de fico. De acordo com o mesmo, o ato de se moldar a histria em uma estrutura narrativa - dictated by imagination or bias27 - gera, inevitavelmente, a equivalncia do discurso histrico fico. Assmann se debrua sobre essa reflexo e a toma como premissa na construo de um entendimento que tenta dar conta do passado. Segundo o autor, o sentido da histria no se

    23 Idem, Ibidem p.5.

    24 Podemos traduzi-la por sentido, significado.

    25 Jan Assmann, op. cit., p. 5.

    26 What we usually call historical facts, those events passed down to us in the form of narration ... are in many

    ways uncertain, controversial, colored, or else (given what we know of the Greek talent for fabrication) fictions entirely dictated by imagination or bias. Jan Assmann, op. cit., p.7. 27

    ... ditadas por imaginao ou preconceito.

  • 26

    encontra em um discurso retrospectivamente imposto ao tempo vivido, nem no trabalho interpretativo de historiadores, pois, de acordo com Burckhardt, aquele que confere estrutura histria inevitavelmente a falsifica. Para o egiptlogo, resta buscar a compreenso sobre o passado por meio do sentido inerente ao curso dos prprios acontecimentos histricos, tal como as experincias vividas por uma sociedade foram semanticamente organizadas em seu contexto de existncia. Em outros termos, pode-se afirmar que a produo de um entendimento sobre as experincias pretritas de uma determinada sociedade encontra-se baseada na investigao sobre as estruturas de significado produzidas pelas aes e sentimentos humanos, cujo significado composto de projees coletivas e fices. Portanto, a construo de fices de coerncia no nica e exclusivamente o trabalho de historiadores, mas sim uma condio necessria para qualquer tipo de conhecimento histrico, qualquer experincia da histria (termo que neste contexto no deve ser compreendido como rea de conhecimento especfico, mas como o tipo de construo espao-temporal elaborada pela espcie humana, dotada da capacidade de simbolizar o mundo em seu entorno, ou seja, produzir um sentido meaning que transcenda o imediatismo ditado pelo instinto). Vejamos, ento, como se expressam os trs nveis de anlise na interpretao do universo cultural encerrado por uma dada sociedade.

    Retomemos, ento, as categorias construdas pelo autor - vestgios, mensagens e memrias na anlise e elaborao da escrita da histria. Ao contrrio do que possa parecer, Assmann no despreza o estudo dos resqucios materiais trazidos luz pelo trabalho dos arquelogos, que direcionam sua ateno para o passado como uma sequncia de acontecimentos cotidianos que, justamente por seu emprego corriqueiro, deixa vestgios desinvestidos de significado. Alm disso, os estudos de tal carter revelam a sequncia temporal e formao espacial que tal sociedade adquiriu, alm do modo como essas dimenses se sobrepem. A arqueologia examina resqucios escavados como indexical signs, tomando a terminologia da semitica.

    A abordagem epigrfica ou iconografia concentra-se sobre o significado investido no decorrer dos eventos por seus prprios agentes, como, por exemplo, a representao dos acontecimentos polticos significativos em imagens e inscries que so, na linguagem

    semitica, simbolic signs. Ao contrrio dos indexical signs, os simbolic signs equivalem ao seu significado no mbito do sistema semitico, portanto a relao entre sinais simblicos e as

  • 27

    coisas que significam no natural ou dada por Deus, ao contrrio, ela nasce de um sistema semitico cultural. A escrita um exemplo tpico de significado simblico. Como os sinais simblicos pressupem a existncia de cdigos convencionados e sistemas de notao, a maneira como esses sinais desenvolvem permite concluses sobre grupos sociais que os usaram.

    Um subconjunto de sinais simblicos especificamente conhecido como iconografia. Esses sinais tambm "representam" algo, mas a relao entre eles e o que eles designam sua semntica no se baseia em um cdigo ou um consenso convencionados, mas na similaridade. Portanto, ao contrrio dos sinais simblicos, os iconic signs podem ser criados ad hoc. Assim, eles permitem um alcance muito maior para a imaginao, criatividade e inovao do que sinais simblicos. O estudo da semntica de cada smbolo conhecido como iconografia28. Ento, Assmann utiliza o termo massages para designar o processo de apropriao e simbolizao de uma realidade vivenciada pelos egpcios antigos. O autor tambm atenta para as divergncias que podem ocorrer entre traces e messages, quando as ltimas contradizem o significado dos testemunhos deixados pelos primeiros (vestgios arqueolgicos).

    A elucidao do ltimo nvel de anlise encerra a variante mitolgica, que investiga as formas pelas quais uma poca, cujos acontecimentos foram considerados relevantes para o povo que legou esse passado, foi moldada e recordada em sua transmisso ao longo do tempo. Assmann denomina o processo de mitolgico no pelo fato de que ele s se expressa na esfera das sociedades cuja construo social se assenta no mito, mas porque entende que tudo o que se configura como formao e transmisso de eventos significativos na tradio de um povo se equivale ao mito em sua funo bsica.

    Por conseguinte, a histria tambm mito, uma vez que encontra o seu caminho na memria coletiva como tradio normativa. Para o autor, os mitos, por sua constante repetio e atualizao, traam um dos caminhos por meio dos quais uma sociedade afirma sua identidade, sendo, portanto, as figuras fundamentais da memria29. O egiptlogo sugere que tal abordagem seja denominada de mnemohistrica30, pois a questo no deve ser meramente entendida como a lembrana de uma histria, ou seja, a realizao do exame de memrias

    28 Idem, Ibidem, pp. 9-10.

    29 Idem, Ibidem, p. 10.

    30 Na traduo de Andrew Jenkins do alemo para o ingls, l-se mnemohistorical. Idem, Ibidem, p. 10.

  • 28

    coletivas como forma de alcanar o passado, mas sim o modo como essas memrias so elaboradas por especficas culturas: como o passado deve ser lembrado, quais os elementos do passado que devem ser lembrados, como pensaram o seu passado a partir de suas representaes de mundo e como o passado a partir dessas selees e escolhas pode construir a identidade cultural no presente.

    Sendo assim, buscar a compreenso do passado do Egito por esse prisma significa, usando a terminologia de Burckhardt, analisar a fabricao, ou seja, a construo das fices de coerncia com que os egpcios organizaram suas memrias e experincias. A history of meaning no tem seu foco voltado para o desvelar dos fatos reais a partir do desmantelamento do sentido que os seus prprios agentes sociais conferiram s suas construes de histria. Essa compreenso mais ampla de abordagem histrica comporta a ideia de que, para alm da histria egpcia ter sido transmitida a ns como vestgios, deixados por um passado em grande parte irreversvel, digno de proteo, coleo e ordenao, ou como mensagens que exigem ser lidas e compreendidas se por ns inquiridas - sem contar com abordagens que tentam buscar elementos que estabeleam uma conexo entre cultura egpcia antiga e o nosso passado, e, portanto, a torne digna de ser recordada , ela deve se debruar sobre o entendimento do modo pelo qual os egpcios relataram o seu prprio passado, a partir da construo de sentido e das fices de coerncia pelas quais esse povo incorporou o legado pretrito em seu presente. Fabricaes, construes e

    projees, ou seja, as confeces de significado que revelam as dinmicas que moldaram a cosmoviso de uma sociedade que se pretende estudar.

    Para exemplificar os nveis de anlise supracitados, ser tomada como exemplo a abordagem realizada pelo autor do que ele prprio denomina de a histria egpcia do corao. Isso significa a histria da relao humana com o rgo que simbolizou os princpios encerrados por Maat, em consonncia com o contexto scio-poltico de cada um dos trs grandes perodos31 que constituem a histria do Antigo Egito. Portanto, o autor secciona a histria do corao em trs grandes estgios.

    31 Jan Assmann, op. cit., pp. 135-142.

  • 29

    King-guided individual32 foi o estgio que imperou durante o Reino Antigo, em que no h registros de meno explcita ao corao. Tal perodo testemunhou o surgimento das cosmogonias, da construo de grandes complexos morturios rgios (pirmides e mastabas) e da estruturao das principais instituies poltico-administrativas que serviram de modelo para os perodos subsequentes. Por conseguinte, o poder do fara assumiu o seu grau mximo de divinizao. Nesse estgio, o indivduo se definia como um mero executor da vontade do rei, pois o corao do Hrus vivo pensava e planava sobre todos os seus sditos.

    J no Reino Mdio, perodo de reestruturao do poder, visto os sculos precedentes de instabilidade, descentralizao poltica, e, consequentemente, descrena no poder sobrehumano do fara (o que de forma alguma gerou contestao em relao natureza do poder de que o monarca era investido, mas na capacidade do fara, em sua dimenso humana, assumir as prerrogativas de um verdadeiro deus reinante), ocorre uma significativa mudana de perspectiva em relao ao perodo anterior, na medida em que no mais o rei, mas cada um dos seres humanos, tornou-se capaz de conectar-se individualmente com Maat atravs de seu prprio corao heart-guided individual , que passa a ocupar uma funo central em inscries bibliogrficas e textos literrios. Essa relao se faz comumente presente em relatos de oficiais que dizem serem levados por impulso / vontade do corao de servir ao rei. Portanto, para Assmann, a real religio do Reino Mdio construda pela ideia de mrito individual Heart full of Maat.

    A relao do homem do Reino Novo o Imprio do deus Amon com seu corao espelhou a dimenso imperial do Estado faranico nesse perodo. A to pacfica Kemet, no mais podendo manter-se neutra frente a um cenrio internacional em que o equilbrio de poder se tornava cada vez mais tnue, imps seu poderio militar parte do Oriente Prximo e grande parcela da Nbia. Nesse contexto, o homem egpcio no mais enxerga o rgo intuitivo como um receptculo cheio de Maat, pois, agora, o corao tomado pela vontade do deus criador que passa a gui-lo: God-guided heart.

    32 Como a expresso de difcil traduo para o portugus, podemos dizer que seu significado reside no fato de

    que o fara guia toda a coletividade, pois sendo o representante mximo do poder divino sobre a terra, o indivduo aparecia como um mero executor da vontade do rei-deus.

  • 30

    Essa anlise evidencia no apenas a reelaborao simblica de uma relao entre o homem egpcio e o rgo que representa a deusa Maat a partir de um contexto especfico, e que chegou at ns por meio de mensagens (textos funerrios, textos sapienciais, contos, estelas, iconografia), mas tambm nos revela a elaborao de novas identidades a partir das memrias que tomaram de seu passado, como foi o caso do Reino Mdio em relao ao Primeiro Perodo Intermedirio. No nos esqueamos de que os vestgios, deixados pelos protagonistas sociais desse perodo tambm foram de fundamental importncia para a compreenso das transies no comportamento cultural dos egpcios ao longo de toda a sua histria.

    Portanto, a partir do aporte terico construdo por Jan Assmann, leme que norteou a nossa reflexo sobre o passado do Egito faranico, podemos dizer que a histria, a evoluo espao temporal33 das sociedades humanas, no pode ser considerada independentemente das fices de coerncia por elas produzidas. Diferentemente das colees de antiqurios que acumulavam os vestgios materiais do passado, o historiador das teias est inevitavelmente enredado por essas conexes de sentido invisveis, que se revelam ao investigador como colees de vestgios do passado, lembrana dos eventos e colees de teias.

    Deixemos, por conseguinte, o prprio autor encerrar: toda nossa discusso converge em assumir que histria, tempo e realidade so construes sociais e formas simblicas que assumem moldes e pesos especficos em cada cultura e em cada era. (...) Para a histria que se prope realizar no somente relevante o entendimento sobre os eventos ocorridos no interior de grupos, naes, ou culturas, mas tambm a compreenso sobre suas aspiraes, sobre como atribuam significados s suas realidades e como construam suas memrias coletivas. (...) Ento a histria do sentido history of meaning centrada no Egito deve inquiri-lo a partir de suas especficas construes de tempo, histria e realidade. E, para o sentido tornar-se visvel, necessrio espi-lo pela janela dos parmetros culturais que lhes so peculiares: sua histria, sua concepo de mundo, suas representaes simblicas34.

    33 Que se entenda, em qualquer parte do trabalho em questo, o emprego do vocbulo evoluo como

    sinnimo de transformao/movimento, e no progresso (significado que s admitido como sinnimo do vocbulo no sculo XIX). 34

    Idem, Ibidem, p. 17.

  • 31

    Tratando-se de uma documentao abundante e do carter polissmico assumido pela divindade, ser descrito nos prximos pargrafos o modo pelo qual o material selecionado foi organizado, num esforo de sistematizao que buscou facilitar a compreenso do leitor sobre esse to vasto universo. Sendo assim, a dissertao ser divida em trs partes: a primeira comporta a discusso sobre as concepes de tempoe de existncia, o que ajuda o estudioso a delinear o mundo de sentido criado pelos egpcios.

    Os dois captulos subsequentes abordam a concepo ontolgica e antropolgica de Maat35, no Reino Antigo, no Reino Mdio e no interldio catico que marcou a transio de ambos: o Primeiro Perodo Intermedirio. Cada um dos reinos em questo ser tratado, respectivamente, no segundo e no terceiro captulos. O Primeiro Perodo Intermedirio, pela maior pertinncia ao contexto explorado, ser parte integrante do ltimo.

    Apesar de o presente trabalho utilizar como critrio de organizao das fontes a serem analisadas, no recortes temticos, mas sim cronolgicos, deve estar claro que os nveis de interpretao dos conceitos encerrados pela deusa se sobrepem ao longo do desenrolar da histria egpcia. Portanto, quando se tornar oportuno e necessrio, faremos uso de documentos que no correspondam exatamente ao perodo que o captulo estar enfocando, mas ser sinalizada a relevncia do uso de tal fonte no dado contexto. Como exemplo, podemos apontar o uso dos Textos dos Sarcfagos, datados do Primeiro Perodo Intermedirio e Reino Mdio, no segundo captulo, que trata substancialmente de documentos do Reino Antigo, pois os princpios cosmognicos abordados em tal fonte derivam dos Textos das Pirmides.

    Feitas as observaes de cunho geral em relao abordagem do tema central ao longo do corpo da dissertao, debruaremos-nos, ento, sobre o aporte terico que nos forneceu importantes chaves interpretativas para se pensar as temticas pertinentes a cada um dos captulos. Os documentos selecionados tambm sero apresentados.

    O primeiro captulo tomou como norte a anlise terica dos egiptlogos que se seguem, a partir das seguintes obras: The mind of Egypt: History and Meaning in the Time of

    35 A abordagem em relao ao princpio Maat, tal como referida acima - antropolgica e ontologicamente - foi

    sugerida por Maulana Karenga. A primeira, ontolgica, encerra o princpio intrnseco deusa enquanto membro do panteo egpcio. A segunda refere-se dimenso que a mesma assumiu como sinnimo de um conjunto de preceitos ticos, e a como tais preceitos se modelaram a diferentes contextos vivenciados pela sociedade no transcorrer de sua histria. Karenga, op. cit.

  • 32

    the Pharaohs, de Jan Assmann; Genesis in Egypt: The Philosophy of Ancient Creation Accounts, de James Allen; Gods and Men in Egypt: 3000 BCE to 395 CE, de Franoise Dunand e Christiane Zivie-Coche; Mitos e Smbolos do Antigo Egito, de Rundle Clark; e, para finalizar, Idea into Image: Essays on Ancient Egyptian Thought, de Erik Hornung. O captulo no trabalhou com nenhum corpus documental especfico, diferentemente dos captulos subsequentes.

    O segundo captulo tomou os trabalhos de Maulana Karenga em Maat: the moral ideal in ancient Egypt a Study in Classical African Ethics e, novamente, os de Rundle Clark e de James Allen como fios condutores das reflexes propostas nesta seo. A referncia bibliogrfica da traduo dos Textos das Pirmides, fonte principal selecionada para anlise, est contida na primeira parte do captulo.

    E a ltima parte da dissertao tem como norte central os trabalhos de Jan Assmann em The mind of Egypt. History and meaning in the time of the pharaohs, que se somaram reflexo de Maulana Karenga e de Emanuel Arajo em Escrito para a eternidade literatura no Egito faranico. Os documentos centrais que ajudaram a pensar as questes referentes ao contexto abordado pelo captulo foram o sebait de Ptah-hotep e o Conto e as Lamentaes de Khuninpu, cujas transliteraes e tradues tambm so apresentadas de forma detalhada em seu interior.

    Em termos metodolgicos, ainda que de forma bastante simplificada, optou-se pelo mtodo de anlise de contedo, uma vez que tal metodologia tem por finalidade geral a evidenciao de alguns aspectos que no esto explcitos no corpo textual, j que se trata de uma abordagem de natureza predominantemente qualitativa. Sob esse prisma, esse mtodo comporta inferncias sobre a fonte, as condies em que o material foi produzido e, muitas vezes, sobre o universo de intelocutores. Foi tomado como referencial terico a obra de Andr Robert e Annick Bouillaguet Lanalyse de Contenu36. Em anexo ao trabalho, consta a tabela analtica utilizada para o estudo do Conto de Khuninpu, o que permite ao leitor melhor compreender quais os critrios utilizados na avaliao das fontes selecionadas para a dissertao.

    36 Andr D. Robert e Annick Bouillaguet. Lanalyse de Contenu. Paris: PUF, 1997.

  • 33

    Antes de finalizarmos, algumas consideraes a mais: a fim de estabelecer o mesmo parmetro cronolgico para todos os reinados, dinastias e governos de faras, foi tomada como base a cronologia estabelecida por Ian Shaw e Paul Nicholson no British Museum Dictionary of Ancient Egypt37. As imagens anexas ao trabalho so meramente ilustrativas, portanto, no foram consideradas, na elaborao do presente trabalho, como objeto de anlise especfica.

    37 Ian Shaw e Paul Nicholson. British Museum Dictionary of Ancient Egypt. London: British Museum Press,

    1997.

  • 1. O TEMPO E O SER PARA OS ANTIGOS EGPCIOS

    The eternal duration of time (neheh djet) passes before your faces.

    Hino atribudo deusa Neith Templo de Esna1

    1.1 NEHEH E DJET: O TEMPO NA ANTIGA KEMET

    O especialista em Histria das Religies Comparadas e em Fenomenologia da Religio,

    Mircea Eliade2 inicia o captulo intitulado O tempo sagrado e os mitos, de sua obra O

    Sagrado e o Profano, com a seguinte afirmao:

    Tal como o espao, o Tempo tambm no , para o homem religioso, nem homogneo nem contnuo. H por um lado, os intervalos de Tempo sagrado, o tempo das festas (na sua grande maioria festas peridicas); por outro lado, h o Tempo profano, a durao temporal ordinria na qual se inscrevem os atos privados de significado religioso. Entre essas duas espcies de Tempo, existe, claro, uma soluo de continuidade, mas por meio dos ritos o homem religioso pode passar, sem perigo, da durao temporal ordinria para o tempo sagrado.

    1 Que a eterna durao do tempo passe diante de sua face. Sauneron apud Franoise Dunand e Christiane Zivie-Coche. New York: Gods and Men in Egypt: 3000 BCE to 395 CE. Ithaca: Cornell University Press, 2004. p. 70. 2 Mircea Eliade. O Sagrado e o Profano: a essncia das religies. So Paulo: Martins Fontes, 2008.

  • 35

    Surpreende-nos em primeiro lugar uma diferena essencial entre essas duas qualidades de Tempo: o tempo sagrado por sua prpria natureza reversvel, no sentido em que , propriamente falando, um Tempo mtico primordial tornado presente. Toda a festa religiosa, todo Tempo litrgico, representa a reatualizao de um evento sagrado que teve lugar em um passado mtico, nos primrdios.3 [grifos do autor].

    Por essa definio clssica de tempo mtico, que, segundo o autor, se aplicaria forma

    de concepo temporal das denominadas sociedades tradicionais, ou at mesmo das

    sociedades modernas, por aqueles que vivenciam a suspenso momentnea do tempo

    ordinrio em detrimento da vivncia de algum tipo de experincia religiosa, entende-se que

    apenas o rito levaria os homens a um outro nvel de realidade temporal. Entretanto, para os

    egpcios, nem mesmo o tempo cotidiano era ordinrio. Qual era, portanto, a relao do

    homem egpcio com o tempo?

    Assmann disserta sobre a construo cultural do tempo para os egpcios a partir da

    noo das duas eternidades: a eternidade neheh e a eternidade djet (imagem III). Mas

    Franoise Dunand e Christiane Zivie-Coche4 atentam para a impropriedade da traduo

    eternidade, que continua a ser largamente empregada pelos estudiosos, dada a ausncia de

    vocbulos que possam oferecer uma compreenso mais satisfatria sobre tais termos. Alm

    disso, as eternidades so duas, o que pressupe concepes semnticas distintas para os

    vocbulos.

    Neheh pode ser compreendida como a eternidade inscrita na sucesso de ciclos

    repetidos ininterruptamente, como: o dia / a noite; ao longo de cada dia, o sol nascente / o sol

    a pino /o sol poente; a sucesso dos ciclos anuais dos festivais divinos nos templos; as cheias

    do rio Nilo; as estaes do ano; os ciclos de aparecimento e desaparecimento de constelaes

    no cu egpcio. gerada pelo movimento dos corpos celestes, portanto determinada pelo deus

    solar R. Esse tipo de temporalidade era representado pelo escaravelho, associado ao deus

    Kheper, o sol do meio dia (cada forma solar est associada a uma entidade diferente de R),

    3 Idem, Ibidem, p. 63. 4 Franoise Dunand e Christiane Zivie-Coche, op. cit., p. 69.

  • 36

    portanto ao movimento do vir a ser em um dos muitos esquemas mticos dessa sociedade5.

    Um estado dinmico de existncia, tambm impregnado de potencialidade, j que intermedeia

    a ao de passagem da no existncia para a existncia.

    Portanto, a temporalidade neheh, representada pelo deus Kheper, associa-se

    dimenso do vir a ser, expressa a ao criativa em seu estado de pleno movimento. No a

    ausncia da existncia, nem a existncia consolidada. a existncia em trnsito, que pode ser

    complementada pela adjetivao da reversibilidade, ao contrrio da outra construo de

    tempo djet, associada a Osris. Essa ltima ainda mais difcil de ser definida do que a

    anterior, pois significava, de acordo com a cosmoviso egpcia, a dimenso da absoluta

    imutabilidade. Compreendida por Assmann a partir dos eptetos de estabilidade e

    permanncia, seus smbolos eram a mmia e a pedra.

    Hence djet is not a linear concept of time, but rather the suspension of time6, ou seja,

    o mundo tal como concebido pelos egpcios no suporta a construo de tempo linear

    (sucesso de acontecimentos), que substituda pela ideia de espao, o local de

    aparecimento/surgimento das coisas. No incomum a palavra djet na lngua egpcia antiga

    vir acompanhada do determinativo associado categoria de espao.

    A mmia associada a Osris, de nome Unnefer aquele que permanece na perfeio,

    revela a imutabilidade da natureza daqueles que so eternos em Osris, ou seja, os mortos.

    A tumba, por exemplo, era denominada per djet, a casa de eternidade. J a pedra se

    associava tambm ao eterno devido a sua grande durabilidade. Os templos e tumbas eram

    construdos de pedra, por isso que nos testemunham o passado por meio de seus resqucios

    que rasgaram o tempo chegando at ns. As demais construes casas, palcios por serem

    feitos de tijolo de adobe, esvaneceram-se.

    Djet is time at a standstill. Only in neheh does time move7. [grifos meus]

    5 O deus criador poderia ser designado por quatro termos distintos, cada um associado a uma divindade de acordo com a posio do astro em seu percurso dirio: R, o mais usual, referia-se plenitude zenital do sol (representada por um homem com um disco solar na cabea), Aton era a sua manifestao vespertina, Kheprer, o sol da manh, e Aton o nome do disco luminoso que percorria o cu. Ciro Flamarion Cardoso. Deuses, mmias e ziggurats. Uma comparao das religies do Egito e da Mesopotmia, op. cit., 59. 6 Assmann, op. cit., p. 18. 7 Idem, Ibidem.

  • 37

    Neheh significa, por conseguinte, o transcorrer dos ciclos no interior de um espao de

    existncia djet. Sendo assim, there is no place for history in the system of neheh and djet8.

    A construo do tempo histrico, como analisa Assmann, pressupe irreversibilidade e

    mudana; j a construo do tempo egpcia enfatiza a reversibilidade neheh e a

    permanncia djet , princpios opostos e complementares. Os egpcios, se tomarmos o

    entendimento da histria por eles mesmos, viviam fora da histria, em um tempo de

    existncia do eterno reviver, que foi determinado, no momento da criao, por Atum, e

    renovado a cada novo ciclo. Vejamos um exemplo, no j referido texto Ensinamentos de

    Ptah-hotep, de como s duas eternidades aparecem no ttulo do texto:

    Ensinamentos do governador da capital vizir Ptah-hotep, sob

    a majestade do rei do alto e baixo Egito, Issi, que viva pela eternidade djet e pela eternidade neheh9.

    Se no h linearidade nem um telos histrico, consequentemente os egpcios

    periodizavam o seu cotidiano de uma outra forma. O fato de acreditarem em um tempo cclico

    e eterno no subtraa a necessidade da construo de marcos referencias temporais que

    dessem conta do pragmatismo exigido pelas atividades dirias: cronogramas de obras, datas

    festivas, anos de reinado de um fara, ciclos de movimentos celestes, periodicidade das cheias

    do Nilo etc.

    Os egpcios, desde o princpio do terceiro milnio, construram conhecimentos nos

    campos da astronomia e da matemtica, que os permitiram compreender que o movimento de

    translao da terra em torno do sol poderia ser desmembrado em 365 dias, com cada dia

    composto de 24 horas. Esses 365 dias foram divididos em 12 meses de 30 dias, e em trs

    estaes (akhet, peret, shemu)10. Os cinco dias que finalizavam o ano egpcio eram

    denominados pelos gregos de Epagmenos, e eram dias festivos, ligados ao mito de Geb e

    Nut, ou seja, ao par de deuses provenientes do segundo ato de criao divina, de acordo com a

    escola de Helipolis. Como o ano solar apresenta uma durao de cerca de 365 dias e de

    8 Ibidem, p.19. 9 Emanuel Arajo, op. cit., p. 245. 10 akhet (inundao durao de julho a novembro), peret (semeadura novembro a maro) e shemu (colheita maro a julho).

  • 38

    dia de cada ano, o que nos faz compensar essa diferena com um dia a mais no ano a cada

    ciclo de quatro, os egpcios ajustavam o seu calendrio a cada mil quatrocentos e sessenta

    anos, quando o primeiro dia do ano civil voltava a coincidir com o do ano astronmico.

    Contudo, para alm do conhecimento da periodicidade que rege os ciclos naturais, a

    construo cultural do tempo para os egpcios era costurada pelos ciclos terrenos de ascenso

    e morte de um fara reinante, visto que o rei, Hrus vivo, era o representante mximo da

    ordem divina na terra, doador de Maat sociedade e natureza. Cada reinado formava uma

    espcie de nova era que se iniciava com a entronizao de um dado fara, e se findava com a

    sua morte. A cada nova ascenso rgia, um ciclo era reiniciado, simbolizando, portanto, a

    recriao cclica do cosmos. Assim, dizia-se: stimo ano do reinado do fara Mer-en-Ptah.

    Quando um fara morria, o ciclo era concludo, e voltava-se ao ano um a partir do qual o

    tempo era contado novamente.

    A construo da Histria do Antigo Egito pela historiografia moderna,

    principalmente a partir dos oitocentos, foi baseada em critrios de organizao e atribuio de

    sentido a essa histria consoante a cosmoviso partilhada pelo universo intelectual daquela

    poca. Num esforo de sistematizao do conhecimento, a histria faranica foi dividida em

    trs reinos, alm de ser tomada de emprstimo dos anais de Manethon a diviso clssica em

    trinta e uma dinastias.

    Manethon, segundo os poucos dados de que dispomos, foi um sacerdote egpcio

    nascido em Sebenitos, no Delta, que na primeira metade do terceiro sculo antes de Cristo

    escreveu em grego uma histria do Egito para o Rei Ptolomeu II Filadelfo, denominada

    Aegyptiaca. Conhecemos tal obra de maneira indireta e fragmentada, pois foi citada por

    autores antigos como o judeu Josefo (sculo I); e pelos cristos Jlio, o africano (cerca de 220

    a.C); Eusbio de Cesareia (cerca de 320 d.C); e Jorge, o Sincelo (no ano de 800 d.C.).

    Alm do legado da diviso em dinastias deixado aos egiptlogos modernos, (vale

    ressaltar que as trinta e uma dinastias eram precedidas pelo reinado terreno de deuses e

    semideuses, e a contagem das dinastias iniciava-se definitivamente com o primeiro fara a

    unificar as duas terras, Mens, finalizando-se com Nectanebo II11), Manethon tambm

    especificou a durao dos reinados, repetiu anedotas relativas vida dos monarcas e

    11 De acordo com a historiografia contempornea, esses reinados se situariam aproximadamente em: Mens (cerca de 3.100 a.C.) e Nectanebo II (360-343 a.C.).

  • 39

    relacionou nomes. A narrativa produzida pelo sacerdote da era ptolomaica , portanto, a

    referncia cronolgica mais antiga da sucesso rgia egpcia.

    Dentre as listas reais citadas acima, podemos destacar: a Pedra de Palermo (diodorito

    s/data: inventrio dos mais antigos faras desde Mens, o primeiro at Neuserr - quinta

    dinastia); o Cnone Real de Turim (um papiro hiertico datado do reinado de Ramss II); a

    Lista de Abydos (inscrita nas paredes do Templo de Abydos, realizada pelo fara Seth I); a

    Tbua de Sakkara (encontrada na sepultura de um mestre de obras de Mnfis, registra o nome

    de cinquenta e sete antepassados venerados por Ramss III, mas apenas cinquenta esto

    legveis); a Tbua de Karnak (datada do reinado de Tutms III, encontra-se inscrita na parede

    do Templo de Karnak, e nos fornece os nomes de soberanos desconhecidos em outras listas,

    mas troca a ordem cronolgica).

    Alm da identificao do nome do fara, a maioria delas especifica a data de sua

    morte, a coroao de seu sucessor, as festas religiosas mais significativas, a construo de

    palcios e templos, a fabricao de esttuas, a altura atingida pelas cheias do Nilo, as viagens

    martimas, as expedies comerciais ou militares, as observaes astronmicas. Reiterando o

    que j foi anteriormente aludido, tais descries factuais de marcos considerados relevantes

    para os antigos egpcios no podem ser encaradas como a produo do gnero narrativo

    Histria, j que no existe um telos, ou seja, um sentido prprio no transcorrer dos

    acontecimentos terrenos que justificasse as dinmicas vivenciadas em tal sociedade. O tempo

    continua sendo cclico e eterno.

    Justamente por ser concebido dessa forma, os domnios cronolgicos da antiga Kemet

    ainda so parcialmente obscuros para historiadores e egiptlogos da atualidade. Alm, claro,

    das referncias de Manethon serem fragmentrias, os egpcios construram a memria da sua

    realeza de acordo com o que consideravam estar ou no em consonncia com a ordem, com a

    tradio, portanto, inscritas no mbito de Maat. A Lista de Abydos, por exemplo, no

    menciona a invaso dos hicsos nem o nome dos faras Akhenaton e Hatshepsut.

    O que importava para os protagonistas de tal experincia social era a insero do fara

    em uma dada ordem csmica, e no o rigor metodolgico moderno que v a necessidade do

    estabelecimento de uma linearidade causal que justificaria no movimento histrico o prprio

    sentido da mudana.

  • 40

    Assim, no podemos fazer uma leitura da sociedade egpcia a partir da pr-concepo

    de que, sendo o seu horizonte a eternidade, o homem egpcio desprezaria a vida mundana.

    Muito pelo contrrio, s h existncia porque h materializao da essncia da criao,

    por isso o Egito, mantido em harmonia por Maat, espelho do cosmos, ou seja, a

    existncia s possvel pela deusa/princpio. E essa histria egpcia ao calar, revela os

    aspectos culturais mais significativos dessa peculiar experincia social.

    A discusso em torno das concepes de tempo se justifica no contexto do presente

    estudo pelo fato de que o entendimento do conceito de Maat s assume sentido quando

    compreendido a partir do modo pelo qual os egpcios concebiam o tempo. Em um mundo

    histrico como o nosso, sinaliza Assmann, que pressupe a irreversibilidade e a

    mudana, no h espao para uma concepo eternizada e imutvel de ordem e de

    justia, tal qual era a crena egpcia.

    1.2 O UNIVERSO VIVO DOS ANTIGOS EGPCIOS: A EXISTNCIA EM TODA A SUA

    PLENITUDE

    James Allen inicia o segundo captulo de sua obra Genesis in Egypt: the philosophy of

    ancient Egyptian creation accounts12 citando uma chave interpretativa apontada pelo

    egiptlogo Henri Frankfort, que nos orienta na busca de entendimento do modo pelo qual os

    antigos egpcios compreendiam o universo em que se encontravam inseridos: segundo ambos,

    os membros da sociedade em questo se enxergavam como parte de um universo formado de

    seres e no de coisas13, o que significa dizer que todos os componentes fsicos eram

    tambm dotados de personalidade e de vontade.

    12 James Allen, op. cit. 13 Idem, Ibidem, p.9.

  • 41

    (...) os egpcios viviam em um universo composto no de coisas, mas de "seres". (...) A atmosfera que separa cu da terra no um vazio, mas um deus. O Duat no meramente uma regio misteriosa atravs do qual o Sol passa durante a noite, mas o deus Osris.14

    O conceito de monismo, desenvolvido pelas egiptlogas escandinavas Gertie Enlung e

    Ragnhild Bjerre Finnestad, tambm nos fornece um importante instrumento de compreenso

    em relao questo do ser na cosmoviso dos antigos egpcios. Para os antigos, no existiam

    diferenas entre animado e inanimado, animal e humano, natural e sobrenatural, o que para o

    mundo ocidental moderno, implica um alargamento da concepo de existncia para alm do

    que culturalmente se compreende como tal15 existia uma unidade e coerncia em toda a

    criao. O mundo era visto como um todo inter-relacionado: uma grande rede. Qualquer

    mudana ou ao em um ponto dessa rede trazia consequncias para todo o sistema.

    Sem ter a pretenso de aprofundar o assunto, j que por si s seria tema de uma outra

    dissertao, importante ressaltar a crena egpcia na presena de uma energia csmica,

    descrita pelos textos antigos como mais antiga que a prpria criao, de nome heka. O termo

    comumente traduzido por magia, apesar de no guardar relao com o que compreendemos

    pelo vocbulo na atualidade. Alm disso, tal como Maat, heka um conceito polissmico e,

    pela falta de uma palavra em nosso universo semntico que a traduza, perde-se muito de seu

    entendimento.

    Como dito, heka era um princpio, uma substncia que perpassava toda a existncia

    em seu sentido mais amplo: os deuses, os homens, os animais, os elementos inanimados da

    natureza. Nada escapava a essa teia que unia os elementos da criao em uma grande cadeia

    csmica. De forma resumida, podemos dizer que esse princpio conferia organicidade ao

    cosmo, permitindo que a existncia fosse entendida como partilha da essncia do deus criador,

    contida em cada coisa criada. Portanto, apesar de a hierarquia ser uma caracterstica pertinente

    ao contexto criacionista, todos os elementos contidos no universo estavam intrinsecamente

    conectados, concepo de mundo essa que se refletiu na organizao das estruturas sociais.

    14 (...) the Egyptians lived in a universe composed not of things, but of beings. (...) The atmosphere that separates sky from earth is not an empty void, but a god. The Duat is not merely a mysterious region through

    which the sun passes at night, but the god Osiris. Idem, Ibidem, p.8. 15 Gertie Englund e Ragnhild Bjerre Finnestad. The religion of the ancient Egyptians: cognitive structures and popular expressions. Uppsala: Acta Universitatis Upsaliensis 1989, pp. 53-54.

  • 42

    Sendo assim, a construo do conhecimento sobre o universo para os egpcios foi

    diametralmente oposta tradio iniciada com a metafsica e culminada com o cartesianismo,

    cosmoviso esta que passou a compreender a natureza como extenso despida de sentido

    prprio, e o homem como o centro pensante distinto do mundo externo. Em consonncia com

    esse raciocnio, devemos estar cnscios de que tal compreenso racional da concepo de

    universo, de que as coisas s so porque os homens as atribuem sentido pela razo, no pode

    ser tomada como chave de entendimento da viso de mundo engendrada pela sociedade

    estudada, quando nos debruamos na anlise dos vestgios materiais por ela deixados.

    Para os egpcios, como nos revelam os resqucios histricos de que dispomos, o

    homem apenas uma engrenagem do universo, e podemos especular que, talvez pela certeza

    de que a prtica ritualstica levaria a um contato com a real natureza do ser, ao contrrio das

    especulaes tericas e experimentos que compreendem nossos modelos de explicao para

    os fenmenos naturais e humanos, os grandes centros de produo de conhecimento do Egito

    nunca tenham se prestado funo de centros normatizadores de pretensas concepes

    religiosas universais.16

    Por conseguinte, no existiam para os egpcios textos cosmolgicos ou cosmognicos

    oficiais, e sim uma enorme heterogeneidade de prticas mticas e ritualsticas. O

    conhecimento produzido pelos intelectuais egpcios, entretanto, no era desprovido de uma

    coerncia que fosse capaz de conferir sua cultura um carter especfico, pois suas

    manifestaes religiosas sempre remetiam a questes que convergiam para concepes

    mticas centrais, que conferiam um carter peculiar ao pensamento mitolgico do Antigo

    Egito.

    Essa reflexo que se d como ponto de partida para a compreenso do conceito de

    Maat no Antigo Egito tem por inteno apontar para o fato de que, segundo os egpcios, os

    deuses possuam uma existncia prpria em relao humanidade e que a forma de lidarem

    com essas entidades no era relacional, e sim identitria.17

    16 A religio egpcia no se apia nem sobre uma revelao divina nem sobre uma tradio proftica; no h, portanto, nem doutrina codificada nem texto cannico no sentido estrito do termo. Claude Traunecker. Os deuses do Egito. Braslia: UNB, 1995, p. 17. 17 Ver Joseph Campbell. O Vo do pssaro selvagem. Rio de Janeiro: Ed. Record: Rosa dos Tempos, 1997.

  • 43

    O oxmoro, o autocontraditrio, o paradoxo, o smbolo transcendente, apontando para alguma coisa alm de si mesmos, so o portal sem tranca, a porta solar, a passagem alm das categorias. Em consequncia, deuses e budas no so no Oriente termos finais tais como Jeov, a Trindade, ou Al, no Ocidente -, mas aponta para alm de si mesmos indicando aquele ser inexprimvel, conscincia e xtase que o Todo em ns. E quando so adorados, o objetivo final produzir no devoto uma transfigurao psicolgica atravs de mudana no seu plano de viso, do temporrio para o duradouro, atravs do qual ele pode finalmente compreender por experincia (e no simplesmente como artigo de f) que idntico quilo diante do qual se prostra. Eles so, portanto, religies de identidade. Suas mitologias e ritos, filosofias, cincias e artes associados tem por objetivo, em ltima anlise, no cultuar qualquer deus externo, mas reconhecer a divindade interior.18 [grifos do autor]

    O autor estabelece uma comparao entre as religies advindas da tradio judaica,

    que se caracterizariam fundamentalmente pela distino entre a natureza humana e divina,

    com as chamadas Religies de Identidade, como descrito no trecho acima, cujo cerne se

    fundamenta no estabelecimento de uma relao de identificao, de partilha de essncia, entre

    homens ou divindade / divindades e, claro, vice-versa.

    No mesmo captulo19 em que o autor conceitua as terminologias dadas s distintas

    prticas religiosas, Campbell cita um trecho do Livro do Vir Luz, extrado do papiro do

    sacerdote Ani (imagem V), dcima nona dinastia (1295-1186 a.C.), em que se pode

    claramente perceber a identificao do morto com as divindades egpcias:

    Meus cabelos so os cabelos de Nut. Minha face a face do Disco Solar. Meus olhos so os olhos de Hthor. Meus ouvidos so os ouvidos de Apuat (...). Meus ps so os ps de Ptah. No h membro em meu corpo que no seja o membro de algum deus (...).

    18 Idem, Ibidem p. 233. 19 A secularizao do sagrado: Religies e Identidade. Idem, Ibidem.

  • 44

    Eu sou Ontem, Hoje e Amanh, e tenho o poder de renascer. Eu sou a Alma divina oculta que cria os deuses (...).

    Salve, senhor do santurio que ests no centro de terra. Ele eu e eu sou ele, e Ptah cobriu seu cu com cristal.

    Desse prisma decorre o fato de que, discorrer sobre a natureza da religiosidade no

    antigo Egito sob o ngulo da unicidade ou pluralidade dos deuses, ou seja, se suas prticas

    religiosas se aproximaram do monotesmo ou se eram realmente politestas - nem mesmo

    fazer aluso a uma noo de henotesmo ou kathenotesmo torna-se secundrio na

    compreenso da natureza da relao do homem egpcio com suas divindades.

    Todas essas discusses, que giram em torno da necessidade de estabelecer marcos que

    definam o limite entre a prtica da adorao a vrios, ou a apenas a um s deus, soam um

    tanto etnocntricas se buscamos a sua origem, como, por exemplo, em Sir Wallis Budge20,

    que, na introduo de sua obra A magia egpcia, sinaliza para elementos pr-cristos que

    poderiam ser identificados na religiosidade egpcia, sugerindo uma possibilidade de transio

    entre as prticas religiosas de adoraes a vrias divindades e a tradio judaico-crist

    centrada em um deus nico. Se a natureza das divindades una ou mltipla, o relevante, a

    meu ver, buscar a identificao dos elementos que ajudem o praticante de estudos sobre o

    Egito Antigo a desenvolver uma reflexo que o possibilite, atravs da compreenso dos

    mecanismos mentais e do funcionamento das estruturas institucional e social egpcias, tocar

    o vivido.

    Quando refletimos no elevado carter espiritual da maior parte da religio egpcia, e nos lembramos da sua grande antiguidade, -nos difcil compreender por que os egpcios preservavam com tanto cuidado, em seus escritos e cerimnias, tanta coisa que sabia a superstio grosseira e infantil, produto, com certeza, de seus antepassados pr-dinsticos ou pr-histricos, mesmo durante o perodo de sua maior lucidez intelectual. Subsiste, porm, o fato de que eles acreditavam em um Deus uno e todo-poderoso, eterno e indivisvel, que criou o cu, a terra e todos os seres e coisas neles existentes; na ressurreio do corpo em uma forma mudada e glorificada, que viveria por toda a eternidade em companhia dos espritos e almas dos justos, num reino governado por um ser de

    20 Wallis Budge. A magia egpcia. So Paulo: Ed. Cultrix, 1996.

  • 45

    origem divina, mas que vivera na terra, sofrera morte cruel nas mos dos seus inimigos erguera-se dentre os mortos, e se tornara o Deus e o Rei do mundo que h alm do tmulo; e, embora acreditassem em todas essas coisas e proclamassem sua crena com fervor quase apaixonado, no parece ter-se libertado da nsia de ter amuletos, talisms, nomes e palavras mgicas, nas quais parecem ter-se fiado para salvar alma e corpo, tanto vivos quanto mortos, com a mesma confiana que tinhas na morte e na ressurreio de Osris. O que surpreende que eles no parecem ver nada de incongruente nesta mistura de magia e religio (...). 21

    21 Idem, Ibidem. p. 13.

  • 2. O INCIO DA EXISTNCIA DAS HIERARQUIAS CELESTES E DAS SOCIEDADE HUMANAS: MAAT NO REINO ANTIGO

    O fara colocou como escada para seus ps esta claridade que a luz divina. Textos das Pirmides 1108 a-b

    2.1 O LUGAR DE MAAT NO UNIVERSO COSMOGNICO EGPCIO

    inevitvel tomar um dos mais recorrentes e importantes mitos criacionistas egpcios como ponto de partida para a compreenso da divindade aqui em questo, devido necessidade de situar a gnese e inserir a deusa Maat no universo cosmognico egpcio, e, consequentemente, sinalizar a fundao desse princpio que ter desdobramentos outros ao longo da histria de tal sociedade.

  • 47

    O foco de anlise do aspecto estritamente mtico da deusa a ser estudado nessa seo recair sobre os textos referentes cosmogonia de um dos mais tradicionais centros religiosos do Egito faranico, assentado na cidade de nome grego Helipolis, na lngua egpcia antiga, Iunnu, localizada atualmente ao norte do Cairo, cujo deus adorado era R.

    Tomaremos a anlise de trechos extrados dos Textos das Pirmides e dos Textos dos Sarcfagos1, o primeiro datado do Reino Antigo, e o segundo datado do Primeiro Perodo Intermedirio e Reino Mdio, j que constituem algumas das mais importantes fontes referentes aos mitos criacionistas ligados escola de Helipolis. Como mencionado na introduo, apesar dos Textos dos Sarcfagos no fazerem parte do Reino Antigo so derivados dos Textos das Pirmides (imagem IV), o que justifica, portanto, a sua relevncia nesse contexto de anlise.

    Os Textos das Pirmides foram descobertos em 1881, e compunham um conjunto de inscries registradas nas paredes de pedra que compem no s as cmaras morturias, mas tambm, as salas adjacentes a estas, de cinco pirmides em Sakkara (necrpole que se localiza ao sul do Cairo), de faras da quinta e sexta dinastias: as de Unas (2375-2345 a.C), Teti (2345-2323 a.C.), Pepi I (2321-2287 a.C.), Mer-en-R I (2287-2278 a.C.) e Pepi II (2278-2184 a.C.).

    J os Textos dos Sarcfagos so um conjunto de inscries presentes em esquifes do Primeiro Perodo Intermedirio. Seu corpo narrativo era composto de pequenos textos e/ou encantamentos, frmulas mgicas que suplicavam proteo para a alma do morto, na passagem para o outro mundo. Os primeiros encantamentos foram encontrados na tumba do dignitrio Mednefer, em Balat, durante o reinado de Pepi II (2254-2160 a.C.). Embora tambm derivado dos Textos das Pirmides, grande parte da comunidade de egiptlogos modernos defendem que essas inscries apresentam como caractersticas, alm da linguagem simples, a popularizao ou democratizao da ascenso do morto aos cus, junto aos deuses, em busca da imortalidade, j que durante o Reino Antigo apenas o fara possua tal privilgio. Tal questo ser recuperada no captulo subsequente.

    1 Ver: Maria Thereza David Joo. Dos Textos das Pirmides aos Textos dos Sarcfagos: A democratizao da

    imortalidade como processo scio poltico. Niteri, 2008. Dissertao de Mestrado Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense.

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    Segundo a mtica heliopolitana, antes do desenvolvimento de um cosmos estruturado, existia um oceano ilimitado de gua inerte, imerso em trevas, atemporal. Esse oceano era considerado uma entidade que precedia todos os deuses, e todas as coisas posteriormente criadas. Foi designado pelos egpcios por Nwn ou Nun. Para essa entidade, considerada o pai dos deuses, nunca foram erigidos templos, pois ela encontrava-se presente em todos eles: em seus lagos sagrados simbolizando a "no-existncia estava a matria prima a partir da qual o visvel e o invisvel foram modelados.

    A gua no tem forma, no possui caractersticas positivas e por si no assume forma. Por serem infinitas as guas Primordiais, so irrelevantes todas as dimenses, direes ou qualidades espaciais. No obstante, as guas no so o nada. So a matria bsica do universo e, de um modo ou de outro, todos os viventes dependem delas. Sem a chuva e as inundaes dos rios, as plantas e os animais no poderiam viver, e a volta da estao da inundao ou dos aguaceiros de inverno marca o incio de um novo ano de vida e crescimento. As guas so, ento, guas da vida e o Oceano Primordial, conhecido dos egpcios como Nun, o pai dos deuses.2

    No princpio, o deus Atum considerado aquele que completo, aquele que encerra todas as coisas, a residncia da luz do universo estava imerso no Nun, e pode ser metaforizado como sendo uma semente de claridade e ordem rodeada pela eterna noite do Oceano Primordial. Portanto, a no-existncia no deve ser confundida com a noo de caos, desordem, desestrutura, mas sim com a ideia de ausncia de movimento. Tal compreenso pode ser reiterada pelo primeiro ato de criao que, em todos os mitos, aparece representado por uma ao que gera a