a servidão moderna: defina necessidades

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Instituto de Educação Continuada Mariana Márcia Rezende da Costa DA SERVIDÃO MODERNA: Defina necessidades Belo Horizonte 2014

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Page 1: A servidão moderna: defina necessidades

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Instituto de Educação Continuada

Mariana Márcia Rezende da Costa

DA SERVIDÃO MODERNA: Defina necessidades

Belo Horizonte

2014

Page 2: A servidão moderna: defina necessidades

Mariana Márcia Rezende da Costa

DA SERVIDÃO MODERNA: Defina necessidades

Trabalho apresentado ao Programa de Pós-Graduação: Psicologia Organizacional e do Trabalho da PUC-MG. Professor: Robson Figueiredo Brito

Belo Horizonte

2014

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Socorro

Socorro, não estou sentindo nada

Nem medo, nem calor, nem fogo

Não vai dar mais pra chorar, nem pra rir

Socorro, alguma alma, mesmo que penada

Me entregue suas penas

Já não sinto amor, nem dor, já não sinto nada

Socorro, alguém me dê um coração

Que esse já não bate, nem apanha

Por favor, uma emoção pequena

Qualquer coisa

Qualquer coisa que se sinta

Em tantos sentimentos

Deve ter algum que sirva

Socorro, alguma rua que me dê sentido

Em qualquer cruzamento, acostamento, encruzilhada

Socorro, eu já não sinto nada, nada

(Arnaldo Antunes/ Alice Ruiz)

A era em que vivemos está preenchida pelo vazio... de valores, de afeto ou de

sentido, tornando os homens e mulheres cada vez mais solitários, confusos e

angustiados. O capitalismo não só percebe esta condição, como a utiliza como meio

de seu fortalecimento, de negócio e lucro.

São criados os mais diversos tipos de necessidades (cena de vários carros no

estacionamento, computadores, cadeia produtiva, pessoas olhando televisões).

s.f. Aspiração natural e muitas vezes inconsciente: comer é uma necessidade fisiológica. / Desejo ardente. / O que é necessário. / Indigência, miséria. // Ter necessidade de, precisar. // Ter necessidade de alguém, de alguma coisa, sentir-lhe a falta. // Caso de necessidade, caso de força maior. // &151; S.f.pl. Necessidades naturais, coisas indispensáveis à vida. // Pop. Fazer suas necessidades, urinar, defecar.

(Dicionário Aurélio On Line)

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Elas podem e muitas vezes, são inconscientes, mas jamais naturais. São

sustentadas pela ilusão de poder, status, conforto afetivo e auto-conhecimento. As

necessidades que o sujeito tem vão se fundir com suas emoções e identidade, e/ou

dizer muito sobre ela.

Através de seu entendimento, podemos saber quem é este sujeito, qual sua

condição sócio-econômica, como se configura sua rede social, quais são seus

valores e como ele se posiciona politicamente. As necessidades o moldam,

colocam-no em um determinado espaço na sociedade e são capazes inclusive, de

(des) construir sua auto-estima e auto-confiança.

O precisar, o indispensável à vida, a força maior se tornam líquidos, “porque,

como todos os líquidos, ele jamais se imobiliza nem conserva sua forma por muito

tempo”. (Bauman, 2011, p. 7). As necessidades são sempre reinventadas,

“O momento pós-moderno é muito mais do que uma moda, revela o processo da indiferença pura na medida em que todos os gostos, todos os comportamentos, podem coabitar sem se excluírem, tudo pode ser escolhido conforme o gosto, tanto o mais operatório como o mais exotérico, tanto o novo como o antigo, a vida simples e ecológica e a vida hiper-sofisticada, num tempo desvitalizado, sem referências estáveis, sem coordenadas principais.” (LIPOVETKY, 2005, p. 39).

Assim como citado no filme, as ofertas determinam as demandas (9’41’’),

estas que materializam reconhecimento e sentido em bens de consumo, a ilusão de

pertencimento se dá através da posse, do acesso palpável ao que é colocado como

belo e moderno. As necessidades da alma são expressas na mutilação e decoração

do corpo.

Para Lawson citado por Bauman (2011), “compramos coisas como sinais do

que queremos ser e de como queremos que os outros pensem que somos. O que

compramos misturou-se profundamente à nossa identidade. Agora somos o que

compramos”.

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Fonte: desconhecida

O sistema capitalista não apenas atende e recria como controla estas

necessidadesatravés da sedução no “sentido em que o processo de

personalização reduz os quadros rígidos e coercivos, funciona suavemente jogando

a cartada da pessoa individual, do seu bem-estar, da sua liberdade, do seu interesse

próprio.” (LIPOVETSKY, 2005, p.19).

Vendem-se produtos, modelos, sonhos e soluções. Para as mais diversas

necessidades são criados manuais, fórmulas e guias, sejam elas materiais ou

espirituais, todos eles trazendo respostas, definindo quem é o homem ou como ele

deve ser. Suas dúvidas são dirimidas, seu desespero é aliviado, mesmo que

momentaneamente. Ao sujeito são oferecidas referências e ele espera

ansiosamente por elas.

Se já não sei quem eu sou

E vivo sempre a esperar

A tendência... a tendência

Mudei o look,

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Aumentou minha audiência

Sem eu precisar, de essência... de essência...

Posso ser triste, emotivo

Alegre ou deprimido

Mudo até você me aceitar

Eu posso ser um nerd assumido

Ou fashion colorido

O que importa é alguém comprar

(Strike)

O trabalho possibilita a construção de subjetividades correspondentes a cada

época histórica, o que significa que “é pelo trabalho que o homem se faz homem,

constrói a sociedade, transforma-a e faz a história” (ARAÚJO; SACHUK, 2007, p.55).

A forma de produção dominante dita à organização do trabalho de

determinada conjuntura social, o que implica em posturas e ideologias próprias que

influenciam no investimento e nas considerações sobre o trabalhador. As diretrizes

econômicas articulam as políticas e ideias dominantes em cada contexto histórico,

subsidiando as manifestações coletivas e individuais.

Diante do contexto social hipermoderno, o trabalho tem representado não

apenas a sobrevivência econômica como também social e psicológica dos

indivíduos. O trabalho mais do que nunca, torna-se a possibilidade da obtenção de

realização pessoal. Segundo Borsoi,

[...] quando o trabalho começa a fazer parte efetiva da vida das pessoas, ele se torna tão significativo (ou quase) quanto às relações amorosas que elas constroem e – a meu ver, não seria exagero dizer - tão necessário quanto o sono [...] (BORSOI, 2007, p.106)

A lógica capitalista é reproduzida nos relacionamentos profissionais, o

trabalhador se torna uma mercadoria, passível de ser consumida, inclusive

subjetivamente. E como todo produto ofertado, está sujeito a ser descartado na

medida em que se torna menos “rentável, prático e inovador” assim como objetos,

tecnologia e serviços.

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O sujeito redefine suas necessidades com base no que o mercado requer e

tenta se tornar aquilo que o outro precisa, independentemente do custo para si

próprio.

Assim, o mundo do trabalho torna-se, de forma rápida e surpreendente, um complexo monstruoso, que se por um lado poderia ajudar, auxiliar o homem em sua qualidade de vida, por outro lado – patrocinado pelos que mantém o controle do capital, da ferramenta diária que movimenta a escolha de prioridades, avassala o homem em todos os seus aspectos. Alguns são absorvidos, exigidos, sugados. Outros alçados a postos de poder e de liderança que reproduzem o capital virtual. (CAPITÃO; HELOANI, 2003,p.103)

Tal realidade contribui para a emergência de sofrimento psíquico, que tende a

ser reforçado pelo discurso ideológico de que o indivíduo é o único responsável pelo

seu desenvolvimento profissional, ou seja, é ele o provedor de meios para seu

sucesso, através do esforço e de sua competência. Tal discurso tende a culpabilizar

o indivíduo por suas derrotas e dar mérito a suas vitórias, sendo subsidiado pela

falsa ideia de que apenas a dedicação romperá com as fronteiras econômicas e

sociais.

Surge assim um paradoxo, através do trabalho “o sujeito tem acesso ao

reconhecimento de si mesmo e, simultaneamente, pela via da alteridade, ao

inelutável reconhecimento do outro.” (VIEIRA et al, 2007, p.156), porém, ocorre que

a lógica hipermoderna somada a organização do trabalho ditada pela forma de

produção dominante, faz com que este mesmo trabalho distancie e reforce a

indiferença e a solidão entre os homens.

A ruptura entre trabalho e afeto pode desalojar o sujeito e transparecer em

sentimentos de desvalorização e incapacidade, com críticas profundas a si mesmo,

insatisfação e medo em relação à carreira, distanciamento social e culpa. O

indivíduo trabalha para atender, mais uma vez, o discurso capitalista que condena

quem não faz parte da cadeia produtiva ou quem não possui os recursos para

consumir, a estes são dirigidas severas críticas com o objetivo de fazer com que o

sujeito questione suas próprias capacidades e lugar social.

É lançada a necessidade de ser o melhor no que se faz e de se ter um

trabalho que seja reconhecido socialmente, pois seremos definidos por ele.

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Fonte: SENAC 2011

As necessidades hipermodernas são atreladas as emoções, aos afetos, aos

sentidos e principalmente a busca pela felicidade. Possuir, acumular, consumir,

ostentar são os verbos principais dessa era, que são capazes de abrir ou não portas

para o sujeito que faz parte deste mundo, mas não reflete sobre ele. Que clama por

atenção, por pertencimento e por realização pessoal e neste desespero, agarra-se

ao material, ao consumo, ao objeto como forma de minimizar suas dores

existenciais.

REFERÊNCIAS

ARAUJO, Romilda Ramos de; SACHUK, Maria Iolanda. Os sentidos do trabalho e suas implicações na formação dos indivíduos inseridos nas organizações contemporâneasMeanings attributed to labor and their implications in contemporary

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organizations. REGE-USP, São Paulo, v. 14, n. 1, mar. 2007 . Disponível em <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809- 22762007000100006&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 06 Jun. 2014. BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. 226p. BORSOI, Izabel Cristina Ferreira. Da relação entre trabalho e saúde à relação entre trabalho e saúde mental. Psicol. Soc., Porto Alegre, v. 19, n. spe, 2007 HELOANI, José Roberto; CAPITAO, Cláudio Garcia. Saúde mental e psicologia do trabalho. São Paulo Perspec., São Paulo, v. 17, n. 2, June 2003 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 88392003000200011&lng=en&nrm=iso>. access on 06 Jun. 2014. LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri: Manole, 2005. VIEIRA, Carlos Eduardo Carrusca; BARROS, Vanessa Andrade; LIMA, Francisco de Paula Antunes. Uma abordagem da psicologia do trabalho, na presença do trabalho. Psicol. rev. (Belo Horizonte), Belo Horizonte, v. 13, n. 1, jun. 2007 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677- 11682007000100010&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 06 Jun . 2014.