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Espiritualidade para a vida cotidiana JAMES MARTIN a sabedoria dos JESUÍTAS PARA (QUASE) TUDO

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Espiritualidade para a vida cotidiana

J a m e s m a rt i n

a sabed oria d os

j e s u í ta s pa r a

(quase) tudo

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Sumário

Capítulo 1 UM MODO DE CONDUTA

O que é a espiritualidade inaciana? 7

Capítulo 2 OS SEIS CAMINHOS

Espiritual, religioso, espiritual não religioso e todas as outras possibilidades 28

Capítulo 3 O QUE VOCÊ QUER?

Desejo e vida espiritual 50

Capítulo 4 PASSADOS BONITOS

Encontrando Deus e deixando que Ele o encontre 74

Capítulo 5 COMEÇANDO A ORAR

Encontrei Deus... e agora? 89

Capítulo 6 AMIZADE COM DEUS

A descoberta do Padre Barry 99

Capítulo 7 DEUS O ENCONTRA ONDE VOCÊ ESTÁ

Tradições inacianas de oração 123

Capítulo 8 VIDA SIMPLES

A liberdade surpreendente do movimento de descida 149

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Capítulo 9 ASSIM COMO OS ANJOS?

Castidade, celibato e amor 182

Capítulo 10 MAIS AÇÕES DO QUE PALAVRAS

Amizade e amor 197

Capítulo 11 RENDER-SE AO FUTURO

Obediência, aceitação e sofrimento 227

Capítulo 12 O QUE DEVO FAZER?

O caminho inaciano para tomar decisões 259

Capítulo 13 SEJA QUEM VOCÊ É!

Trabalho, emprego, carreira... e vida 285

Capítulo 14 O CONTEMPLATIVO EM AÇÃO

Nosso modo de conduta 321

Agradecimentos 328

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Capítulo 1

Um modo de conduta

O que é a espiritualidade inaciana?

Quem é Santo Inácio de Loyola e o que ele tem a nos dizer hoje? Santo Inácio de Loyola foi um soldado que se tornou místico e fundou,

no século XVI, uma ordem católica chamada Companhia de Jesus, cujos integrantes eram conhecidos como jesuítas. Sua visão não ortodoxa do cris-tianismo tem ajudado milhões de pessoas a descobrirem a paz, a alegria e a liberdade e a terem experiências com Deus na vida cotidiana.

O caminho de Inácio, ou seu “modo de conduta”, para usar uma de suas expressões preferidas, permitiu que muitas pessoas encontrassem mais sa-tisfação em suas vidas em um período de mais de 450 anos.

O caminho de Inácio nos leva ao encontro da liberdade: a liberdade de nos tornarmos a pessoa que somos destinados a ser. Ele nos ensina a amar e a aceitar o amor. E nos torna capazes de tomar boas decisões, desfrutar da beleza da criação e participar do mistério do amor de Deus. O cami-nho de Inácio é fundamentado em seus próprios escritos, assim como nas tradições, nas práticas e nos conhecimentos espirituais transmitidos pelos padres e irmãos jesuítas de geração a geração.

Embora essas tradições, práticas e conhecimentos espirituais tenham orientado os membros da Ordem dos Jesuítas desde a sua fundação, em 1540, Inácio sempre desejou que seus métodos se tornassem acessíveis a todos e não ficassem restritos apenas à comunidade jesuíta. Desde os pri-mórdios da ordem, Inácio incentivou os jesuítas a transmitir esses ensina-mentos a outros padres, a irmãs e irmãos do ministério, e também aos leigos.

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A “espiritualidade inaciana” deve alcançar o maior número possível de fiéis em busca da verdade.

Talvez seja pertinente fazer esta outra pergunta antes de seguir adiante: o que é “espiritualidade”?

A espiritualidade é um modo de viver em relacionamento com Deus. Na tradição cristã, todas as espiritualidades, independentemente de sua origem, têm o mesmo foco: o desejo de união mística com Deus, a ênfase no amor e na caridade e a fé em Jesus como o Filho de Deus enviado a este mundo.

No entanto, cada espiritualidade ressalta aspectos diferentes da tradição – uma enfatiza a vida contemplativa; outra, o ativismo, e daí por diante. A espiritualidade inaciana dá mais importância à alegria, à liberdade, à toma-da de consciência, à dedicação à oração e ao cuidado com os pobres. Todos esses aspectos são relevantes para todas as espiritualidades cristãs, porém a diferença está na atenção dedicada a eles por cada “escola” espiritual.

Os jesuítas são práticos

Os jesuítas seguem o exemplo de Inácio no que se refere a uma es-piritualidade prática. Contam uma piada em que um franciscano, um dominicano e um jesuíta estão celebrando uma missa juntos e, de repente, falta luz na igreja. O franciscano agradece a chance de poder rezar uma missa com mais simplicidade. O dominicano aproveita para fazer um sermão erudito sobre como Deus traz luz para este mundo, enquanto o jesuíta vai até o porão e troca o fusível.

Em seu livro Os jesuítas: suas doutrinas e práticas espirituais, publicado em 1964, Joseph de Guibert, um jesuíta francês, apresenta uma analogia interessante que vem da Idade Média.

A espiritualidade é como uma ponte: nos leva de um lugar para outro, algumas vezes sobre terrenos perigosos, como um rio ou grandes precipí-cios. Todas as pontes têm a mesma função, mas a cumprem de maneiras di-ferentes. Elas podem ser feitas de concreto, madeira, pedra ou metal; podem ser arqueadas, pênseis ou apoiadas sobre vigas. “Portanto”, escreve o padre De Guibert, “sempre haverá muitos tipos diferentes, e cada uma terá suas vantagens e desvantagens. Cada tipo é adaptável a terrenos e contornos es-

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pecíficos e não a outros. No entanto, cada ponte, com sua característica pró-pria, alcança o propósito comum a todas: proporcionar travessias por meio de uma combinação organizada e equilibrada de materiais e formatos.”

Da mesma forma, todas as espiritualidades proporcionam uma “traves-sia” até Deus.

Muitas das espiritualidades da tradição cristã tiveram sua origem nas ordens religiosas: beneditinos, franciscanos, carmelitas e cistercienses. Cada ordem desenvolveu, ao longo dos séculos, suas próprias tradições, algumas diretamente elaboradas por seu fundador, outras resultantes de uma meditação posterior sobre sua vida e suas práticas. Hoje os membros dessas ordens religiosas vivem o que o padre De Guibert chama de “tradi-ção de família”.

Quem passa algum tempo com os franciscanos, por exemplo, logo irá notar o amor que eles têm pelos pobres e pela natureza, uma paixão que marcou a vida de seu fundador, São Francisco de Assis. Viver alguns dias em uma comunidade beneditina significa desfrutar do espírito caloroso e hospitaleiro transmitido por São Bento, o que não é nenhuma surpresa tratando-se de alguém que disse certa vez: “Todos os hóspedes devem ser recebidos como Cristo.” As ordens religiosas chamam isso de “carisma”, que vem da palavra em latim para “dom” e “presente”. O carisma, portanto, é o espírito original, passado adiante pelo fundador.

Da mesma forma, passar algum tempo com um padre ou irmão jesuí-ta é experimentar a espiritualidade distintiva de Santo Inácio de Loyola e da Ordem dos Jesuítas. Isso significa vivenciar as práticas, os métodos, o ânimo, o estilo de vida e a maneira de compreender o cristianismo e a vida cristã que chegou a nós por meio de Santo Inácio e ficou conhecida como “espiritualidade inaciana”.

Essa espiritualidade ajudou a Companhia de Jesus a realizar feitos ad-miráveis durante a sua movimentada história. É impossível falar sobre as realizações jesuítas sem que eu pareça muito orgulhoso delas, então deixa-rei que o historiador inglês Jonathan Wright faça isso por mim. O trecho a seguir foi retirado de seu ótimo livro God’s Soldiers: Adventure, Politics, Intrigue and Power – A History of the Jesuits:

•Eles foram conselheiros da corte em Paris, Pequim e Praga, orientando os reis sobre quando e como deviam se casar ou partir para a guerra. Foram os as-trônomos dos imperadores chineses e os capelães do exército japonês na in-

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vasão da Coreia. Como esperado, ministraram sacramentos e sermões e pro-porcionaram educação a homens tão diversos quanto Voltaire, Fidel Castro, Hitchcock e James Joyce. Mas também foram pastores em Quito, fazendeiros no México, viticultores na Austrália e latifundiários nos Estados Unidos antes da guerra civil. A Companhia de Jesus frutificou no mundo das letras, das artes, da música e da ciência e dissertou sobre dança, enfermidades e leis da eletricidade e da óptica. Os jesuítas enfrentaram os desafios de Copérnico, Descartes e Newton, e 35 crateras da superfície lunar foram nomeadas por cientistas jesuítas.

Nos Estados Unidos, os jesuítas talvez sejam mais conhecidos como educadores, dirigindo atualmente 28 instituições de ensino superior entre faculdades e universidades, além de dezenas de colégios e escolas técnicas na periferia das cidades.

Seguindo a orientação de Inácio para que fossem homens práticos que se expressassem de maneira acessível, não é de surpreender que, ao lon-go dos anos, os jesuítas tenham sintetizado sua espiritualidade em algumas frases fáceis de lembrar. Nenhuma definição isolada é capaz de traduzir a riqueza da tradição, mas, juntas, essas frases proporcionam uma introdução ao caminho de Inácio.

Apresento a seguir quatro vias para o entendimento da espiritualidade inaciana. Pense nelas como arcos sob as pontes de que já falamos.

Quatro vias

Costumava-se dizer que a formação jesuíta era tão organizada que, se fizéssemos uma mesma pergunta para cinco jesuítas espalhados pelo mundo, todos dariam a mesma resposta. Hoje, porém, a ordem é bem mais flexível, e provavelmente teríamos cinco respostas diferentes.

Mas se fossem convocados a definir a espiritualidade inaciana, eles se-riam unânimes em dizer: encontrar Deus em tudo.

Essa frase simples um dia foi considerada revolucionária. O que ela quer dizer é que nada pode ser considerado fora do alcance da vida espiri-tual. A espiritualidade inaciana não está confinada às paredes de uma igreja e não acredita que a vida espiritual de uma pessoa seja composta apenas pelas orações e pelos textos sagrados.

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Acima de tudo, ela não considera trabalho, dinheiro, sexo, depressão ou doença tópicos a serem evitados quando se trata de vida espiritual.

A espiritualidade inaciana considera tudo um elemento importante da nossa vida. Isso inclui os cultos religiosos, a leitura da Bíblia, a oração e o cuidado dos pobres, evidentemente, mas também se estende aos amigos, à família, ao trabalho, aos relacionamentos, ao sexo, ao sofrimento e à alegria – assim como à natureza, à música e à cultura pop.

Uma boa história para ilustrar esse ponto vem de um padre jesuíta cha-mado David Donovan, que serviu como sacerdote paroquiano em Boston antes de entrar para a Ordem dos Jesuítas aos 39 anos.

Após ingressar na Ordem, David passou décadas estudando a sabedo-ria de Inácio de Loyola e durante muitos anos foi o responsável pela forma-ção dos jovens jesuítas. Foi também um diretor espiritual muito capacitado, que ajudava os fiéis nas orações e em seu relacionamento com Deus.

David e eu nos encontramos pela primeira vez quando ingressei no no-viciado em Boston. Nos dois anos seguintes, ele foi meu guia espiritual, me orientando na caminhada com Deus em conversas que eram muitas vezes marcadas por risos e lágrimas.

Graças a seu programa de treinamento abrangente, David era sempre mui-to requisitado em seminários, casas de retiro, paróquias e conventos ao redor do mundo. Há alguns anos, porém, ele morreu subitamente de um ataque car-díaco aos 65 anos. Sua irmã estimou que ele estava encarregado da direção es-piritual de cerca de 60 pessoas. Muito do que sei sobre oração aprendi com ele.

Certa tarde, eu estava aborrecido por causa de alguns problemas fa-miliares, mas evitava falar sobre o assunto porque eles não estavam rela-cionados com a minha “vida espiritual”. David sentou-se em sua cadeira de balanço e me escutou atentamente. Depois de alguns minutos, ele disse: “Tem alguma coisa que você está me escondendo?”

Eu admiti que andava preocupado com minha família, mas evitava falar sobre aquilo, pois achava que ali deveríamos conversar apenas sobre coisas espirituais. Ele retrucou: “Jim, tudo faz parte de sua vida espiritual. Você não pode colocar um pedaço de sua vida numa caixa, trancá-la numa estante e fingir que ela não está lá. Você tem que abrir essa caixa e confiar que Deus o ajudará a olhar para o que está dentro dela.”

A imagem de David sempre me impressionou. Na espiritualidade ina-ciana não há nada que possa ser trancado e escondido. Não há nada a ser temido. Nada a ser deixado de lado. Tudo pode ser aberto perante Deus.

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Este livro é um guia para descobrir como Deus pode ser encontrado em todas as dimensões de nossa vida. Como Deus pode ser encontrado em tudo – e também em todos.

As perguntas a seguir são apropriadas à espiritualidade inaciana, da qual iremos tratar nos próximos capítulos:

Como descubro o que devo fazer na vida?Como descubro o que devo ser?Como tomo boas decisões?Como pratico uma vida simples?Como consigo ser um bom amigo?Como consigo lidar com o sofrimento?Como posso ser feliz?Como encontro Deus?Como devo orar?Como devo amar?

Todos esses questionamentos são adequados à espiritualidade inaciana, pois estão diretamente relacionados às pessoas.

Depois de “encontrar Deus em tudo”, a segunda questão com a qual aqueles cinco jesuítas talvez concordem é a seguinte: a espiritualidade ina-ciana é voltada para a contemplação na ação.

Essa questão mobiliza muita gente hoje em dia. Quem não gostaria de ter uma vida mais contemplativa ou simplesmente mais tranquila? Você não gostaria de se desligar por um tempo de celulares, TV, e-mails, e ter uma vida mais sossegada? Mesmo que goste de todos esses recursos da tecnolo-gia, nunca pensou em se afastar deles?

Bem, mesmo que a paz e a solidão sejam essenciais para o crescimento espiritual, a maioria de nós não vai abandonar seus empregos e ingressar em um mosteiro para viver em permanente oração. E isso não quer dizer que a rotina dos jesuítas não seja dura.

Embora Inácio tenha aconselhado os jesuítas a dedicar um tempo à oração, também esperava que eles levassem uma vida ativa. “A estrada é o nosso lar”, disse Jerônimo Nadal, um dos primeiros companheiros de Inácio. No entanto, deviam ser pessoas ativas que adotavam uma postura contemplativa e meditativa em relação ao mundo – deviam ser “contem-plativos em ação”.

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A maioria de nós tem rotinas atarefadas e não nos sobra muito tem-po para orar e meditar. Mas, tomando consciência do mundo ao redor, é possível obter um enfoque contemplativo que dê mais qualidade às nossas ações. Em vez de enxergar a vida espiritual como algo que só pode existir na clausura de um mosteiro, Inácio pede que você enxergue o mundo como o seu mosteiro.

A outra maneira de compreender o caminho de Inácio é a espirituali-dade encarnada.

A teologia cristã sustenta que Deus se tornou humano, ou “encarnado”, na pessoa de Jesus de Nazaré. A palavra encarnação vem da raiz latina carn, para “carne”. Ter uma espiritualidade encarnada significa acreditar que Deus pode ser encontrado nos acontecimentos diários de nossa vida. Ele não está em algum outro lugar; Ele está aqui também. Se você está procurando Deus, olhe em volta. Uma das melhores definições de oração foi dada por Walter Burghardt, um teólogo jesuíta do século XX, que se referiu à oração como um “olhar demorado e amoroso para o real”. A espiritualidade encarnada, portanto, fala desse novo olhar para a realidade.

Com certeza não podemos conhecer Deus por completo, pelo menos nesta vida. Santo Agostinho, o excepcional teólogo do século IV, disse certa vez que, se nós pudermos compreendê-Lo, então “Ele” não pode ser Deus, pois Deus é incompreensível. Mas isso não significa que não possamos co-meçar a conhecê-Lo. Portanto, se por um lado a espiritualidade inaciana admite essa transcendência de Deus, ela, por outro lado, crê na encarnação, reconhecendo a imanência, ou proximidade, de Deus em nossas vidas.

A espiritualidade inaciana, por fim, diz respeito à liberdade e ao desapego. Inácio tinha consciência aguçada do que impedia que ele e os demais

levassem uma vida de liberdade e alegria. Grande parte de seu livro clássico, Exercícios espirituais, escrito entre 1522 e 1548, foi produzida para ajudar as pessoas a encontrar a liberdade de tomar boas decisões. O título original da obra era “Exercícios espirituais para vencer a si mesmo e organizar a vida livre de decisões influenciadas por algum sentimento desequilibrado”.

Algumas ideias importantes estão embutidas nesse título tão esquisito. No seu final, por exemplo, o que ele chama de “sentimento desequilibrado” é o seu modo de descrever tudo o que nos impede de ser livres. Quando Inácio diz que devemos ser “desapegados”, ele está falando de não ficarmos aprisionados a coisas sem importância. O que acontece se a sua maior preo-cupação na vida, por exemplo, for ganhar dinheiro? Bem, você pode não

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ter tempo para se relacionar com pessoas que não contribuam para o seu crescimento profissional. Pode até começar a tratá-las como instrumentos – ou pior, como empecilhos – na sua busca de ascensão desenfreada. Com o passar do tempo, pode até ver todas as coisas girando em torno do seu trabalho e da sua ambição de enriquecer.

Claro que todos nós queremos nos realizar profissionalmente e progre-dir na carreira. Mas, se depois de algum tempo sacrificarmos todo o resto para alcançar este fim, logo descobriremos que o trabalho se tornou um tipo de “deus” para nós.

Quando me perguntam de que forma alguém pode desobedecer ao pri-meiro mandamento (“Não terás outros deuses além dEle” ou “Amar a Deus sobre todas as coisas”), costumo dizer que, embora algumas poucas pessoas hoje ainda acreditem em muitos deuses como no passado, muito mais gente está acreditando em novos “deuses”. Para algumas, seu “deus” é a carreira. Ou o dinheiro. Ou o sucesso.

O que Santo Inácio diria sobre tudo isso?Muito provavelmente ele franziria o cenho e diria que, embora os se-

res humanos precisem ganhar dinheiro, eles têm de tomar cuidado para não deixarem o trabalho se tornar um “sentimento desequilibrado” que os impeça de serem livres para conhecer gente nova, passar tempo com quem amam e ver as pessoas como fins e não como meios. Trata-se de um “sen-timento” na medida em que ele afeta a pessoa. E é “desequilibrado” porque não está em harmonia com o fluir da vida.

Inácio nos convidaria a abraçar o desapego. Quando conseguimos al-cançar esse estado, nos tornamos mais livres e felizes.

Ele aconselhou as pessoas a evitar os sentimentos desequilibrados por-que eles bloqueiam o caminho para o desapego, impedindo-as de viver com mais liberdade e crescer como seres humanos, chegando mais próximo de Deus. Se isso parecer surpreendentemente budista, não se espante: essa pro-posta de vida faz parte de muitas tradições espirituais.

Portanto, se alguém pedir que eu defina em poucas palavras a espiritua-lidade inaciana, eu diria que ela significa:

1. Encontrar Deus em tudo.2. Tornar-se um contemplativo em ação.3. Enxergar o mundo na perspectiva da encarnação.4. Desejar liberdade e desapego.

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Para entender o pensamento de Inácio, é relevante conhecer um pouco o homem que ele foi. Assim como acontece com todos os mestres espiritu-ais, as experiências dele influenciaram sua visão de mundo e suas práticas espirituais. Mais ainda, a história de Santo Inácio de Loyola é um bom lem-brete de que a vida é, antes de tudo, uma jornada do espírito.

Uma breve biografia de Inácio de Loyola

Inácio nasceu na região basca do nordeste da Espanha, em 1491, e passou grande parte de sua juventude se preparando para ser cortesão e soldado. Era popular entre as mulheres e, segundo algumas fontes, um tanto colérico. O primeiro parágrafo de sua autobiografia revela que ele era “dado às vaidades do mundo” e movido principalmente por “grande desejo de conquistar fama”.

Em outras palavras, era um sujeito vaidoso, interessado principalmente no sucesso mundano. “Ele tinha mania de sair vestindo casaco de carteiro”, escreveu um contemporâneo sobre o Inácio da faixa dos 20 e poucos anos, que “tinha cabelo comprido até os ombros e costumava desfilar com um gibão de duas cores e um chapéu extravagante”.

Assim como muitos homens santificados, Inácio nem sempre foi santo. O historiador jesuíta John W. Padberg me contou que Inácio pode ter sido o único santo com ficha na polícia por agressão.

Durante uma batalha em Pamplona em 1521, o aspirante a soldado teve uma das pernas estilhaçada por uma bala de canhão e sua dolorosa recupe-ração se estendeu por longos meses. A primeira cirurgia foi malsucedida, e Inácio, que desejava poder usar os trajes bem apertados da moda, se subme-teu a uma série de operações pavorosas. A maratona cirúrgica, entretanto, o deixaria manco para o resto da vida.

Enquanto convalescia no castelo da família em Loyola, a esposa de seu irmão o presenteou com um livro sobre a vida de Jesus e outro sobre a vida dos santos. Mas esses eram os últimos temas sobre os quais ele desejava ler. O soldado ambicioso preferia as movimentadas novelas de cavalaria, com cavaleiros executando façanhas galantes para impressionar nobres donze-las. “Mas naquele lugar nenhum dos livros que ele costumava ler podiam ser encontrados”, diz sua autobiografia.

Quando ele folheava, entediado, as páginas das vidas aparentemente en-tediantes daqueles santos, algo surpreendente aconteceu. Inácio começou a

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imaginar se ele poderia seguir os seus passos. Dentro dele um estranho desejo se acendeu: tornar-se como os santos que servem a Deus. “E se eu pudesse fazer o que São Francisco fez e o que São Domingos fez?”, escreveu ele.

Ele era um homem mediano que nunca se interessara pela observância religiosa acreditando que poderia imitar dois dos maiores santos da tradi-ção católica.

Inácio trocara sua ambição pela vida militar por uma vontade de seguir a vida espiritual? David, meu diretor espiritual no noviciado jesuíta, explica de outra forma: Deus usou até mesmo o orgulho arrogante de Inácio para o bem. Pois todas as partes de uma vida podem ser transformadas pelo amor de Deus. Até os aspectos que consideramos mais pecaminosos podem se tornar dignos e santos. Como diz o ditado popular: “Deus escreve certo por linhas tortas.”

E assim começou a transformação de Inácio. Em vez de querer em-preender heroicas expedições militares para impressionar “certa senhora”, como escreveu, ele sentia um desejo ardente de servir a Deus, assim como fizeram os santos, seus novos heróis.

Depois de se recuperar, Inácio ponderou sobre os insights que teve no castelo e, apesar dos protestos da família, decidiu renunciar à vida militar e se consagrar inteiramente a Deus. Assim, em 1522, aos 31 anos, ele peregri-nou até uma abadia beneditina em Montserrat, na Espanha, onde se despo-jou de todos os seus trajes e os deu a um mendigo. Em seguida, depositou sua armadura e sua espada diante de uma estátua da Virgem Maria.

Ele ficou quase um ano morando numa pequena cidade nas imedia-ções chamada Manresa e passou a adotar práticas ascéticas: além de fazer jejum e orações intermináveis, parou de cortar o cabelo e as unhas. Foi um período sombrio em sua vida, durante o qual ele experimentou uma grande aridez espiritual, se arrependeu de seus pecados e chegou a pensar em cometer suicídio.

A dificuldade de tentar viver como um santo o levava ao desespero. Como ele poderia mudar sua vida tão drasticamente? “Como você será ca-paz de suportar esta nova vida pelos 70 anos que tem pela frente?”, parecia dizer uma voz dentro dele. Mas ele rejeitou aqueles pensamentos, consi-derando que eles não vinham de Deus. Com a ajuda de Deus, decidiu que conseguiria mudar. E foi assim que venceu a depressão.

Pouco a pouco, Inácio foi reduzindo o rigor de suas práticas e recupe-rou o equilíbrio interno. Mais tarde, em Manresa, ele iniciou uma série de

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experiências místicas em oração que o convenceram de que fora chamado para um relacionamento mais profundo com Deus.

Para ele, foi uma época de aprendizado sobre a vida espiritual. Em uma analogia comovente, Inácio escreveu: “Deus me tratou como um professor trata uma criança a quem está educando.”

Certo dia, caminhando pelas margens do rio Cardoner, nas redon-dezas, e envolvido na oração, teve uma experiência de união mística com Deus. Em sua autobiografia, ditada a Pe. Luís da Câmara, ele conta:

•Quando prosseguiu, absorto em suas meditações, sentou-se por um instan-te com o rosto voltado para o rio que corria caudaloso. Enquanto estava ali sentado, os olhos do seu entendimento começaram a se abrir. Ainda que não tenha tido visão alguma, ele entendeu e conheceu muitas coisas, tanto espiri-tuais quanto questões de fé e de aprendizado, e aquilo foi uma iluminação tão grande que tudo pareceu novo para ele.

Os detalhes do que compreendeu naquele instante ele não pôde manifes-tar, exceto que experimentou uma grande clareza em seu entendimento. E foi uma clareza tal que por todo o curso de sua vida, ao longo de 62 anos, mesmo que ele reunisse todas as muitas ajudas que havia recebido de Deus e todas as muitas coisas que conhecia e as somasse, acreditava que não se equiparariam ao que ele recebeu naquele momento tão especial.

O tempo que passou em Manresa foi fundamental para sua formação e também ajudou a sedimentar as ideias que um dia seriam reunidas nos Exercícios Espirituais.

Depois de vários inícios falsos, incluindo uma peregrinação à Terra Santa – onde descobriu ser impossível obter permissão oficial para traba-lhar –, Inácio decidiu que poderia servir melhor à Igreja tendo uma educa-ção específica e se tornando padre ordenado. Então retomou seus estudos em duas universidades espanholas, depois de aceitar dividir salas de aula do curso primário para aprender os rudimentos do latim. Por fim, foi para a Universidade de Paris, onde dependeu de caridade para se sustentar.

Em Paris, fez vários novos amigos que se tornariam seus companheiros originais, ou os primeiros jesuítas. Entre eles estavam homens como Fran-cisco Javier, conhecido mais tarde como o grande missionário São Francisco Xavier. Em 1534, Inácio e mais seis amigos fizeram um voto conjunto de pobreza e castidade.

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18 A sabedoria dos jesuítas para (quase) tudo

Na época, Inácio concluiu que o seu pequeno grupo poderia ter mais utilidade se recebesse aprovação do papa. Assim, finalmente solicitaram ao papa permissão formal para começar uma nova ordem religiosa, a Compa-nhia de Jesus. Mas não foi fácil conseguir a aprovação. Em 1526, quando estudava na cidade espanhola de Alcalá, suas novas ideias sobre oração le-vantaram suspeita, e ele foi preso pela Inquisição. Ficou preso por 17 dias sem ser interrogado e sem saber o motivo de sua detenção.

O conceito de “contemplativos em ação” também incomodou muitos no Vaticano, por ser considerado vagamente herético. Alguns clérigos pro-eminentes acreditavam que membros de ordens religiosas deveriam estar enclausurados nos mosteiros, assim como os cistercienses e as carmelitas, ou, pelo menos, levar uma vida separada das loucuras do mundo, como os franciscanos. Era chocante a ideia de membros de uma ordem religio-sa estarem soltos no mundo sem se reunirem de hora em hora para orar. Mas Inácio permaneceu firme em seu propósito: seus homens deveriam ser contemplativos em ação, orientando as pessoas a encontrar Deus em todas as coisas.

Alguns consideraram até o nome da ordem arrogante. Quem eram es-ses desconhecidos que se autoproclamavam a Companhia de Jesus? O ter-mo “jesuíta” foi aplicado como zombaria pouco depois da fundação da or-dem, mas, por fim, foi adotado como uma insígnia de honra.

Em 1537, Inácio e outros companheiros foram ordenados, mas ele pre-feriu adiar por um ano a celebração de sua primeira missa, a fim de se prepa-rar espiritualmente para esse acontecimento tão importante. Ele esperava celebrá-la em Belém, mas, quando viu que seria impossível, realizou-a na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, que muitos acreditavam ser o ver-dadeiro berço de Jesus.

Na ocasião, Inácio convenceu seus críticos ao explicar meticulosamente os objetivos de seu grupo e ao apresentar os Exercícios Espirituais a alguns de seus detratores. Em 1540, a Companhia de Jesus foi oficialmente reco-nhecida pelo papa Paulo III. A meta dos jesuítas era ao mesmo tempo sim-ples e ambiciosa: ao contrário do que se pensa, não era se “opor” à Reforma Protestante, e sim “ajudar as almas”.

Inácio viveu o restante de seus dias em Roma como superior da Com-panhia de Jesus. Na capital italiana, escreveu as Constituições dos jesuítas, enviou homens a todos os cantos do mundo, correspondeu-se com as co-munidades jesuítas, prosseguiu com seu aconselhamento espiritual, criou

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o primeiro orfanato de Roma e inaugurou o Collegio Romano, uma escola para meninos que logo se tornou universidade.

No final, os tempos de ascetismo apresentaram a conta. Nos últimos anos de vida, Inácio teve problemas de fígado, febre alta e exaustão física, além das complicações estomacais que sempre o atormentaram. Por fim, ele ficou confinado ao seu quarto. Pouco antes de sua morte, a enfermeira jesuíta que cuidava dos enfermos da ordem relatou ter ouvido Padre Inácio suspirando durante sua oração, clamando suavemente por Deus. Ele faleceu em 31 de julho de 1556.

Nos dias de hoje, Santo Inácio de Loyola pode não provocar o tipo de afeição calorosa que muitos outros santos despertam – como São Fran-cisco de Assis e Santa Teresinha. A razão disso talvez seja o tom austero de sua autobiografia. Ou talvez porque suas cartas em geral se refiram a assuntos práticos, como a arrecadação de dinheiro para as escolas jesuítas. Talvez ainda porque em algumas pinturas ele esteja retratado não como um jovem romântico, mas como um administrador sisudo diante de sua escrivaninha.

Mas a sua habilidade para reunir seguidores dedicados mostra que ele deve ter sido um homem bastante cordial. Sua compaixão profunda também o tornou capaz de lidar com algumas personalidades difíceis na Companhia de Jesus. Um contemporâneo seu escreveu: “Ele é manso, amigável e agradável, e fala do mesmo jeito com o letrado e o analfabeto, com gente importante e com gente simples. É um homem digno de todo o louvor e reverência.”

Em todas as coisas, atitudes e conversas, Inácio contemplava a pre-sença de Deus e vivenciava a realidade das coisas espirituais, de forma que ele era um contemplativo em ação e acreditava que Deus deve ser encontrado em tudo.

– Jerônimo Nadal, um dos primeiros membros da Companhia de Jesus

Graças às suas práticas espirituais, Inácio desfrutava de uma poten-te liberdade interior: ele se considerava “desapegado” até mesmo de sua

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ordem. Disse certa vez que, se o papa algum dia ordenasse a dispersão dos jesuítas, ele precisaria de apenas 15 minutos em oração para se res-tabelecer e seguir em frente.

No entanto, foi bom ele não estar por perto em 1773, quando a Santa Sé dispersou os jesuítas. Uma confusão armada pelos poderes políticos europeus forçou o papa a dissolver a ordem, principalmente porque seus integrantes achavam que a sua universalidade e a devoção ao papado co-lidiam com sua soberania. O papa Clemente XIV expediu formalmente um documento de “supressão”, dissolvendo a Companhia de Jesus. A im-peratriz Catarina, a Grande, que não era favorável a Clemente, se recusou a promulgar o decreto na Rússia, e assim os jesuítas continuaram a existir naquele país.

Após quatro décadas, os ventos políticos mudaram, e os membros da ordem, que mantiveram contato entre si durante os anos de separação, fo-ram oficialmente “restaurados” em 1814.

Os Exercícios Espirituais e as Constituições

Enquanto escrevia as Constituições, Inácio dava também os últimos retoques no seu texto clássico Exercícios Espirituais, seu manual de me-ditação de quatro semanas sobre a vida de Jesus, publicado pela primeira vez em 1548. E para entender seu conteúdo é preciso saber alguma coisa sobre os exercícios espirituais em si, o primeiro presente de Inácio para o mundo.

Os Exercícios Espirituais

Eles são organizados em quatro seções separadas, que Inácio chamou de “semanas”. Uma versão convida a pessoa a renunciar à vida cotidiana para se entregar a quatro semanas de meditação, com quatro ou cinco perío dos diários de oração. Hoje, esta versão costuma ser aplicada nas casas de retiro, onde o praticante é orientado por um diretor espiritual. E assim os exercícios espirituais em geral são completados no curso de um mês inteiro.

Mas, como Inácio queria que o máximo de pessoas se beneficiasse dos exercícios, ele incluiu em seu texto várias anotações a fim de torná-los mais

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flexíveis. Algumas pessoas podem não estar prontas para o programa com-pleto de exercícios, mas ainda assim poderiam desfrutá-los parcialmente. Ele sugere, por exemplo, que as pessoas envolvidas em “questões públicas ou atividades tensas” poderiam fazer os exercícios por períodos maiores em meio aos seus compromissos diários. Em vez de se afastarem e orarem durante um mês inteiro, elas poderiam orar uma hora por dia e estender o programa por vários meses.

“O ensinamento fundamental de Inácio era que os indivíduos encon-trassem o caminho em que se encaixassem melhor”, escreveu o historiador jesuíta John W. O’Malley em sua obra sobre os primeiros anos da Compa-nhia, The First Jesuits.

Os exercícios seguem um esquema minucioso baseado na trajetória de progresso espiritual que Inácio observou em si mesmo e mais tarde nos outros. A Primeira Semana é dedicada à gratidão pelas dádivas de Deus na vida do praticante e depois à sua tendência ao pecado. Algumas vezes é re-velado um pecado profundo, como o egoísmo. No final da primeira semana, o praticante geralmente é levado a perceber que é um pecador – ou um ser humano falho –, mas mesmo assim é amado por Deus.

A Segunda Semana consiste em uma série de meditações extraídas di-retamente do Novo Testamento, com foco no nascimento, na juventude e, por fim, no ministério de Jesus de Nazaré. O praticante acompanha Jesus em suas pregações, suas curas e seus milagres e entra em contato, de forma imaginativa, com Jesus em seu ministério terreno.

A Terceira Semana é dedicada à Paixão: a entrada final de Jesus em Jerusa-lém, a Última Ceia, seu julgamento, crucificação, sofrimento na cruz e morte.

A Quarta Semana está baseada nos relatos do Evangelho sobre a ressur-reição e, de novo, no amor de Deus pelos indivíduos.

Ao longo dos exercícios, Inácio inclui meditações específicas sobre te-mas como humildade, tomada de decisão e escolha entre o bem e o mal.

Algumas obras clássicas de espiritualidade foram feitas para serem lidas de forma contemplativa. Com Exercícios Espirituais é diferente. Em vez de apenas lido, esse livro deve ser colocado em prática.

Quando os jesuítas pensam sobre os exercícios, eles estão pensando so-bre um estilo particular de oração recomendado por Inácio: usar a imagi-nação como ajuda para orar, como um meio de se colocar dentro de alguns episódios específicos da Bíblia. Logo, os Exercícios não se resumem a um programa de oração: eles também introduzem um modo de orar.

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Os Exercícios Espirituais são a maior referência para entender o cami-nho de Inácio – que conduz a Deus, proporciona maior liberdade e o guia para uma vida com propósito.

As Constituições

Durante seus anos em Roma, Inácio passou muito tempo escrevendo as Constituições, uma série de diretrizes que governa a vida jesuíta – nas comunidades, nos vários trabalhos que fazemos, na maneira como nos re-lacionamos – em quase todas as áreas. Inácio trabalhou nelas até sua morte e, assim como aconteceu com os Exercícios Espirituais, aprimorava o texto constantemente. Elas são um outro recurso para se entender a sua espiritua-lidade singular.

Todas as ordens religiosas têm algum documento parecido com as Constituições. Normalmente ele é chamado de “regra”, como no caso da Re-gra de São Bento, que governa a vida da ordem beneditina. Cada regra é uma janela para a espiritualidade subjacente, ou “carisma”, da ordem reli-giosa. É possível aprender bastante sobre os beneditinos lendo a sua Regra, assim como é possível aprender muito sobre a espiritualidade inaciana len-do as Constituições.

Para um jesuíta, se os Exercícios ensinam como viver a própria vida, as Constituições orientam a como se relacionar com os outros. Os Exercí-cios são sobre você e Deus; já as Constituições são sobre você, Deus e seus irmãos jesuí tas.

Nas Constituições, Inácio apresentou suas ideias sobre a maneira como os jesuítas deviam ser treinados, como deviam conviver uns com os outros, como deviam trabalhar melhor juntos, os tipos de atividade que deviam desempenhar, como os superiores deviam se comportar, como os doentes deviam ser cuidados e que homens deviam ser aceitos na ordem – em suma, todas as facetas da vida jesuíta que ele conseguiu imaginar. Buscando inspiração divina, ele orava fervorosamente sobre cada item an-tes de colocá-lo no papel.

Nesse processo, ele consultou alguns de seus primeiros companheiros sobre o melhor curso de ação. Portanto as Constituições são resultado de sua própria experiência e suas orações, assim como do conselho de seus amigos de confiança. Por isso elas refletem uma espiritualidade bastante sensível.

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André de Jaer, um jesuíta belga, diz que elas incorporam “um realismo espi-ritual, sempre atento ao concreto e prático”.

Ainda que as Constituições estabeleçam regras precisas para a vida nas comunidades jesuítas, Inácio reconhecia a importância da flexibilidade. De-pois de uma extensa descrição do que era exigido para a vida comunitária, ele acrescentaria um adendo, sabendo que circunstâncias imprevistas sem-pre pedem flexibilidade: “Se alguma coisa mais for conveniente para um indivíduo, o superior examinará a matéria com prudência e poderá abrir uma exceção.” Flexibilidade é a marca distintiva desse documento.

Também são encontradas sugestões sobre tomadas de decisão, trabalho em conjunto, como levar um estilo de vida modesto e sobre como contar com os amigos. Portanto é uma fonte bastante útil não apenas para jesuítas, mas para todos os interessados em seguir o caminho de Inácio.

Cartas, atividades, santos, regras vivas e especialistas

A Autobiografia, os Exercícios Espirituais e as Constituições são três das principais fontes para a espiritualidade jesuíta, mas não são as únicas. Vá-rias outras podem ajudar a entender o caminho de Inácio.

Entre elas estão as cartas que ele escreveu – e foram muitas. Algumas de suas cartas são pequenas obras-primas do gênero, combinando incentivo, con-selhos, novidades e promessas generosas de apoio e amor. Assim como muitas figuras públicas do século XVI, para ele, escrever cartas era uma arte. E, assim como muitas figuras religiosas, ele considerava isso um ministério. Ele aconse-lhava os jesuítas em postos oficiais, em especial os missionários, a escreverem duas cartas: a primeira traria histórias edificantes para os camaradas jesuítas e o público em geral. A segunda conteria mais novidades pessoais e nela o remetente deveria se expressar “de maneira impetuosa e do fundo do coração”.

Outra fonte para a compreensão do caminho de Inácio são as ativida-des jesuítas. O historiador John W. O’Malley ressalta que para entender a es-piritualidade inaciana é importante olhar não apenas para o que os jesuítas escreveram, mas também para o que eles fizeram.

Saber, por exemplo, que os primeiros jesuítas implantaram tão variadas instituições como colégios para meninos e um lar para prostitutas aposen-tadas, enquanto eram conselheiros de papas e de um concílio ecumênico,

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nos dá uma ideia de sua abertura para novos ministérios, o que não se pode imaginar lendo as Constituições. E ao ler sobre seus primeiros trabalhos na educação compreende-se a ênfase que Inácio dava à razão, ao aprendizado e à formação acadêmica.

A história dos santos jesuítas que seguiram Inácio é outro recurso para entender o seu legado. Esses homens aplicaram seus próprios insights ao caminho de Inácio tanto no cotidiano mais conhecido quanto nos ambientes mais hostis. Quer estivessem trabalhando entre os huronianos e iroqueses, povos nativos da Nova França do século XVII, como Santo Isaac Jogues e São João de Brébeuf, ou ministrando secretamente para os católicos ingle-ses do século XVI durante a perseguição da Coroa, como Santo Edmundo Campion, ou sobrevivendo em um campo de trabalhos forçados soviético nas décadas de 1940, 1950 e 1960, como Walter Ciszek. Ou ainda trabalhando junto aos pobres, como os jesuítas salvadorenhos que foram martirizados nos anos 1980. Cada vida desses santos e homens de Deus ressalta uma fa-ceta específica da espiritualidade inaciana.

Em muitas ordens religiosas, os membros cujas vidas incorporam os ideais de sua ordem são chamados de “regras vivas”. Se a comunidade por alguma razão perdesse a sua regra ou constituição, seria preciso apenas olhar para esses homens e mulheres para entendê-las de novo. Estas regras vivas, cujas histórias irei compartilhar aqui, são outra fonte de compreensão da espiritualidade inaciana.

Finalmente, há o recurso dos experts, os especialistas que fizeram do estudo da espiritualidade inaciana a obra de suas vidas. Felizmente, isto se estende para muito além dos padres e irmãos jesuítas. Em uma progressão que teria alegrado Inácio – que recebia qualquer um em seu caminho espiri-tual –, freiras, padres e irmãos católicos de outras ordens religiosas, clérigos e leigos de outros segmentos cristãos, e até homens e mulheres de outras tradições religiosas, todos adotaram o caminho de Inácio. Alguns estiveram entre os mais perspicazes comentaristas de sua espiritualidade.

O caminho de Inácio

O caminho de Inácio foi trilhado por centenas de milhares de jesuítas nos últimos 450 anos em todas as partes do mundo e em quase todas as situações concebíveis, muitas delas perigosas.

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As concepções de Inácio inspiraram o jesuíta italiano Matteo Ricci a viver e se vestir como um mandarim para poder ter acesso à corte imperial chinesa nos anos 1600. Elas estimularam o paleontólogo e teólogo francês Teilhard de Chardin a partir para uma escavação arqueológica pioneira na China na década de 1920. Também inspiraram John Corridan, um cien-tista social americano, a lutar pela reforma trabalhista na Nova York dos anos 1940.

O caminho de Inácio deu consolo a Alfred Delp, um jesuíta alemão, quando ele estava preso aguardando a execução por ter ajudado o movi-mento aliado de resistência ao nazismo. Também trouxe conforto a Dominic Tang, um jesuíta que passou 22 anos em uma prisão chinesa por sua lealdade à Igreja Católica. E motivou Daniel Berrigan, o pacifista americano, em seus protestos contra a Guerra do Vietnã, nos anos 1960.

E milhares de jesuítas menos conhecidos encontraram na espiritua-lidade inaciana um guia para suas vidas diárias. O professor tentando se comunicar com as crianças da periferia. O médico trabalhando em um campo de refugiados. O capelão assistindo um paciente moribundo no hospital. O pastor confortando um paroquiano angustiado. O capelão do exército acompanhando os soldados e tentando achar o sentido da vida no meio da violência. Essa lista está bem próxima de mim, pois conheci cada um desses homens.

Acrescente a esse rol os milhões de irmãos leigos e irmãs leigas que vieram a conhecer a espiritualidade inaciana por meio de escolas, pa-róquias ou casas de retiro – maridos, esposas, pais, mães, solteiros de ambos os sexos, de todas as camadas sociais, de todas as partes do mun-do –, que encontraram nela um caminho para a paz e a alegria, e você começará a ter um vislumbre da enorme vitalidade desta tradição antiga, porém bem viva.

Em resumo, a espiritualidade inaciana funcionou para as pessoas de uma impressionante variedade de épocas, lugares e procedências. E funcio-nou para mim: ela me ajudou a passar de uma sensação de paralisia para a certeza de estar livre.

Este livro é uma introdução ao caminho de Santo Inácio de Loyola, pelo menos da forma como o aprendi em mais de 20 anos como jesuíta. Ele não tem a intenção de ser excessivamente intelectual ou acadêmico e também não pretende ser completo. É impossível sintetizar quase cinco séculos de espiritualidade em poucas páginas.

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Porém a espiritualidade inaciana é tão ampla que a apresentarei em uma grande variedade de tópicos, entre eles: fazer boas escolhas, encon-trar uma ocupação relevante, ser um bom amigo, viver com simplicidade, pensar sobre o sofrimento, aprofundar a oração, se esforçar para ser uma pessoa melhor e aprender a amar.

O caminho de Inácio nos ensina que não há nada que não faça parte da vida espiritual. Todos aqueles assuntos nos quais você tem evitado tocar – dificuldades conjugais, problemas no trabalho, uma doença gra-ve, um relacionamento rompido, preocupações financeiras – podem ser abordados e examinados sob a luz de Deus.

Veremos como encontrar Deus em tudo e tudo em Deus. E tentaremos fazer isso com senso de humor, um elemento essencial da vida espiritual. Não há necessidade de ser ranzinza ao lidar com a religião e a espiritualida-de, porque a alegria, o humor e o riso são presentes de Deus.

Também apresentarei algumas maneiras claras e simples de incorporar a espiritualidade inaciana à sua vida cotidiana. Desenvolver a espirituali-dade não deve ser uma tarefa complexa, por isso oferecerei dicas simples e exemplos da vida real.

Você não precisa ser católico, cristão, religioso nem espiritualizado para se beneficiar de alguns dos insights de Santo Inácio de Loyola. Quando transmiti a alguns incrédulos as técnicas inacianas para se tomar boas de-cisões, eles se encantaram com os resultados. E, quando expliquei a alguns ateus por que tentamos viver com simplicidade, eles se admiraram com a sabedoria de Inácio.

Mas seria insano negar que para Inácio “ser espiritual” e “ser religioso” não eram a coisa mais importante do mundo. Seria igualmente insano sepa-rar Deus ou Jesus da espiritualidade inaciana. Isso tornaria os escritos dele absurdos. Deus estava no centro da vida de Inácio. O fundador dos jesuítas teria algumas coisas afiadas a dizer sobre quem ousasse separar suas práti-cas de seu amor por Deus.

Mas Inácio sabia que Deus encontra as pessoas onde elas estão. Nós esta-mos todos em estágios diferentes na nossa caminhada com Deus, e em estradas diferentes também. O próprio Inácio fez um percurso tortuoso e reconhecia que a ação de Deus não pode estar limitada ao povo que se considera “religio-so”. Portanto a espiritualidade inaciana abraça naturalmente a todos, desde o crente consagrado até o buscador errante. Para usar uma das expressões pre-diletas de Inácio, seu caminho é uma “via de conduta” na jornada para Deus.

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Mas não se preocupe se não se sentir perto de Deus neste momento. Nem se nunca se sentiu. Ou se tem dúvida da Sua existência. Ou mesmo se está razoavelmente convencido de que Deus não existe. Continue lendo. Deus cuidará do resto.

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