a roma do coriolano de shakespeare nunca

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A Roma do "Coriolano" de Shakespeare nunca existiu. É um território afectivo/electivo, prenhe de interrogações de carácter político, que o autor ",;; isabelino ficcionou a partir duma leitura da biografia do general romano escrita por Plutarco. Mais do que mera fonte de inspiração e de informação, o texto de Plutarco terá sido material de colagem pois que o grande dramaturgo dele extraiu sem alterações alguns trechos. que lhe pareceram, na sua forma original, mais percutantes do que qualquer glosa. A Pátria do herói Coriolano também já não existia ao tempo em que se inscreve o meteórico trajecto que a peça narra; Roma, politicamente instável, é descrita como um estado em vias de degenerescência, de gestação ou de definição, consoante o ponto de vista, reflexo duma Inglaterra identicamente fustigada por ventos de revolta popular e de mudança política. Por seu lado, a língua de Shakespeare, bem como outras línguas europeias do seu tempo, era dotada duma grande flexibilidade de regras (tolerância em relação à coexistência de várias "normas", acomodação ao uso, etc.). As relações entre Pátria e Língua são, como é portuguesmente sabido, complexas e, na sua obscuridade, ordenadas por um tropel de desejos em vã busca de fixação, de território. Não podia o texto de Manuel Resende deixar de evidenciar - de traduzir - este estado de convulsão de afectos e objectos, que correponde . também a um processo de legitimação do poder através dos poderes da linguagem, embrulho e conteúdo do "Coriolano". E é a isso que o tradutor matéria, mediante as soluções formais deliberadamente anacrónicas que nos propõe. A língua deste "Coriolano" é um fluido denso "e infixável. Não cola perfeitamente a um tempo ou a um espaço, exprimindo antes o magma da acção que assim se transforma, paradoxalmente, em puro movimento mental. Nesta língua podem coabitar termos e expressões vicentinos, ressonâncias da lírica de Sá de Miranda ou do verso camoniano no seu metro heróico, habilidades de artífice setecentista, maneiras neoclássicas, solenidades, singelezas e um certo travo esteta à boa tradição do século passado, formulações de elipse de ruptura e de fragmentação próprias duma era que foi do cinema. O efeito vaga e incomodamente arcaizante que de tal hibridez linguística resulta não se revela porém incompatível com uma exigência paralela de concisão, de contenção, de coloquialidade, de colorido e de truculência, tanto mais que se anulam todas as receitas no tocante à escolha dos registos. Sobre a tradução de Manuel Resende pesa ainda (e muito bem) a negra sombra do próprio Coriolano. Porque a sofisticação, por vezes na fronteira do rebuscado, a que o tradutor se obriga fazendo seus todos os possíveis da língua ao mesmo tempo (a um mesmo tempo de escrita) engendra uma matéria textual de grande opacidade à qual só a chave das vozes pode conferir a almejada pontuação metálica (que Eliot realça e sintetiza) e O'ritmo guerreiro condizente. O árduo trabalho de versificação e a introdução de regularidades do foro da poesia que se observa nas falas em prosa (verso e prosa ecoam grosso modo a distinção entre palavra patrícia e palavra plebeia) inflectem também no sentido do peso e da opacidade, fazendo do texto de Manuel Resende um laboratório de pesquisa onde fabrica uma hipótese daquela que é a rude poética do palco. Parece-nos pois haver grande sintonia entre esta tradução-laboratório e uma peça que reclama, por razões intrínsecas e extrfnsecas, um tratamento experimental. Não é inútil situar o labor de Manuel Resende no contexto das traduções que nos anos mais recentes se têm vindo a fazer das peças de Shakespeare em Portugal. Debruçámo-nos sobre d,uas traduções que se destinaram a dois espectáculos da Cornucópia: "Ricardo III", editada pela Difel, da autoria de Eduarda Dionísio, Maria Adélia Silva MeIo e Luis Miguel Cintra e "Conto de Inverno", editada pela Relógio de Água, assinada por Gastão Cruz. Em ambas as traduções foi preocupação fundadora, porventura dominante, a restituição da mais-valia formal atribuída aos originais do dramaturgo inglês, a busca dos chamados equivalentes que podemos entender como justo tributo a pagar ao grande homem do passado cada vez que lhe (e nos) fabricamos um pouco mais de futuro. Porém, as opções que surgem como resposta a essa preocupação são diversas porque diverge a hierarquia de valores subjacente à pesquisa linguística: enquanto na tradução de "Ricardo lU" se encontra claramente valorizada a ideia de uma língua a que a antiguidade confere estranheza e encanto, na tradução do "Conto de Inverno" o primado ~ dado não à língua de Shakespeare ou do seu tempo mas à própria poesia do autor enquanto sistema particular de produção de efeitos de sentido. A esta diferença de escolhas não será alheio o facto de a primeira ser uma tradução assumida como colegial e a segunda ser 34

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A Roma do "Coriolano" de Shakespeare nuncaexistiu. É um território afectivo/electivo, prenhe deinterrogações de carácter político, que o autor",;;

isabelino ficcionou a partir duma leitura dabiografia do general romano escrita por Plutarco.Mais do que mera fonte de inspiração e deinformação, o texto de Plutarco terá sido materialde colagem pois que o grande dramaturgo deleextraiu sem alterações alguns trechos. que lhepareceram, na sua forma original, mais percutantesdo que qualquer glosa. A Pátria do herói Coriolanotambém já não existia ao tempo em que se inscreveo meteórico trajecto que a peça narra; Roma,politicamente instável, é descrita como um estadoem vias de degenerescência, de gestação ou dedefinição, consoante o ponto de vista, reflexo dumaInglaterra identicamente fustigada por ventos derevolta popular e de mudança política. Por seu lado,a língua de Shakespeare, bem como outras línguaseuropeias do seu tempo, era dotada duma grandeflexibilidade de regras (tolerância em relação àcoexistência de várias "normas", acomodação aouso, etc.). As relações entre Pátria e Língua são,como é portuguesmente sabido, complexas e, nasua obscuridade, ordenadas por um tropel dedesejos em vã busca de fixação, de território.

Não podia o texto de Manuel Resendedeixar de evidenciar - de traduzir - este estado deconvulsão de afectos e objectos, que correponde

. também a um processo de legitimaçãodo poderatravés dos poderes da linguagem, embrulho econteúdo do "Coriolano". E é a isso que o tradutordá matéria, mediante as soluções formaisdeliberadamente anacrónicas que nos propõe. Alíngua deste "Coriolano" é um fluido denso "einfixável. Não cola perfeitamente a um tempo ou aum espaço, exprimindo antes o magma da acçãoque assim se transforma, paradoxalmente, em puromovimento mental. Nesta língua podem coabitartermos e expressões vicentinos, ressonâncias dalírica de Sá de Miranda ou do verso camoniano noseu metro heróico, habilidades de artíficesetecentista, maneiras neoclássicas, solenidades,singelezas e um certo travo esteta à boa tradição doséculo passado, formulações de elipse de ruptura ede fragmentação próprias duma era que foi docinema. O efeito vaga e incomodamente arcaizanteque de tal hibridez linguística resulta não se revelaporém incompatível com uma exigência paralela deconcisão, de contenção, de coloquialidade, decolorido e de truculência, tanto mais que se anulamtodas as receitas no tocante à escolha dos registos.

Sobre a tradução de Manuel Resende pesaainda (e muito bem) a negra sombra do próprioCoriolano. Porque a sofisticação, por vezes nafronteira do rebuscado, a que o tradutor se obrigafazendo seus todos os possíveis da língua aomesmo tempo (a um mesmo tempo de escrita)engendra uma matéria textual de grande opacidadeà qual só a chave das vozes pode conferir aalmejada pontuação metálica (que Eliot realça esintetiza) e O'ritmo guerreiro condizente. O árduotrabalho de versificação e a introdução deregularidades do foro da poesia que se observa nasfalas em prosa (verso e prosa ecoam grosso modo adistinção entre palavra patrícia e palavra plebeia)inflectem também no sentido do peso e daopacidade, fazendo do texto de Manuel Resendeum laboratório de pesquisa onde fabrica umahipótese daquela que é a rude poética do palco.Parece-nos pois haver grande sintonia entre estatradução-laboratório e uma peça que reclama, porrazões intrínsecas e extrfnsecas, um tratamentoexperimental.

Não é inútil situar o labor de ManuelResende no contexto das traduções que nos anosmais recentes se têm vindo a fazer das peças deShakespeare em Portugal. Debruçámo-nos sobred,uas traduções que se destinaram a doisespectáculos da Cornucópia: "Ricardo III", editadapela Difel, da autoria de Eduarda Dionísio, MariaAdélia Silva MeIo e Luis Miguel Cintra e "Contode Inverno", editada pela Relógio de Água,assinada por Gastão Cruz.

Em ambas as traduções foi preocupaçãofundadora, porventura dominante, a restituição damais-valia formal atribuída aos originais dodramaturgo inglês, a busca dos chamadosequivalentes que podemos entender como justotributo a pagar ao grande homem do passado cadavez que lhe (e nos) fabricamos um pouco mais defuturo.

Porém, as opções que surgem comoresposta a essa preocupação são diversas porquediverge a hierarquia de valores subjacente àpesquisa linguística: enquanto na tradução de"Ricardo lU" se encontra claramente valorizada aideia de uma língua a que a antiguidade confereestranheza e encanto, na tradução do "Conto deInverno" o primado ~ dado não à língua deShakespeare ou do seu tempo mas à própria poesiado autor enquanto sistema particular de produçãode efeitos de sentido. A esta diferença de escolhasnão será alheio o facto de a primeira ser umatradução assumida como colegial e a segunda ser

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um trabalho "solitário" (embora a solidão seja oúnico estado de alma de que um tradutor não sepodequeixar). .

O texto de "Ricardo III", tendo a línguacomo fetiche, surge como criação dum espaçoimaginário de língua, espaço de pavor onde seagitam fantasmas da forma, espaço curiosamenteextra-linguístico por que privilegia a plasticidadeda mátéria linguística. O texto do "Conto deInverno" é uma criação de poeta e de excelenteleitor da poesia portuguesa, distinguindo-se pelasegurança da paleta de metros utilizados -decassílabos, hexassílabos, conjugados com rarosalexandrinos e alguns metros mais curtos - e pelainfalível intuição dos micro-ritmos e respirações decada verso. O arcaísmo do texto é por isso menossensível, muito embora a forma poética estejabastante mais próxima da produção lírica nacionalcontemporânea de Shakespeare.

Naturalmente, em ambas as traduções adistinção verso/prosa existente nos textos originaisfoi respeitada. Mas, para Gastão Cruz, a prosa é,como o seu texto o prova à saciedade, ainda umarealização da voz poética, com os recursosestilísticos que lhe são peculiares: a quebra daregularidade faz tão só ressaltar as figuras depensamento. Em relação aos seus colegas de ofício,

Manuel Resende parte dum princípio alternativo aque já aludimos: a instabilidade. A fixaçã~ do textode Shakespeare é obra de leitores, editores ecorrectores (censores?) posteriores à suaelaboração, pelo que a matéria textual se encontrarepleta de sábias reconstituições e adivinhações.Sendo cada texto apenas um estado de elaboraçãode si próprio, estado escrito e descrito pela pena doautor, e tendo o texto de Shakespeare sido fixadopor leitores não-contemporâneos do dramaturgo,afigurou-se-Ihe pertinente. traduzir atranstemporalidade que o texto carrega, essaespécie de viagem que o traz até nós e, dericochete, o devolve ao estado de "perfeito"inacabamento em que foi gerado. Por muito quenos comovam as transes da instituição literária, nãodevemos esquecer que a vocação que liga a palavraà criação é anterior à noção de literatura. A talviagem que Manuel Resende propõe aos actores(com todas as dificultosas peripécias que o percursocontém) constitui talvez uma maneira de recuperarou ,inventar uma outra ideia de língua e deredescobrir a forma como as palavras da língua sedesprendem e a ela se prendem, quais pés darevolta, quais mãos do pensamento.

Duas imagens_da encenação de Giorgio Strehler para o Piccolo Teatro de Milão (1957-58), com WandaCapodaglia (VoIÚlnnia),Relda Ridoni (VirgI1ia) e Tino Carraro (Coriolano).

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