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1 ANGELA CORRÊA FERREIRA BAALBAKI A revista Ciência Hoje das Crianças e o discurso de divulgação científica: entre o ludicismo e a necessidade Niterói 2010

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ANGELA CORRÊA FERREIRA BAALBAKI

A revista Ciência Hoje das Crianças e o discurso de divulgação

científica: entre o ludicismo e a necessidade

Niterói

2010

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ANGELA CORRÊA FERREIRA BAALBAKI

A revista Ciência Hoje das Crianças e o discurso de divulgação

científica: entre o ludicismo e a necessidade

Tese apresentada ao Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras. Área de concentração: Estudos Lingüísticos.

Orientadora: Profª Drª Bethania Sampaio Corrêa Mariani

Niterói

2010

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B111 Baalbaki, Angela Corrêa Ferreira.

A revista Ciência Hoje das Crianças e o discurso de divulgação científica: entre o ludicismo e a necessidade / Angela Corrêa Ferreira Baalbaki. – 2010.

308 f.

Orientador: Bethania Sampaio Corrêa Mariani. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2010.

Bibliografia: f. 249-262.

1. Análise do discurso. 2. Divulgação científica. 3. Criança. 4. Lúdico. I. Mariani, Bethania Sampaio Corrêa. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.

CDD 801.955

4

ANGELA CORRÊA FERREIRA BAALBAKI

A revista Ciência Hoje das Crianças e o discurso de divulgação científica:

entre o ludicismo e a necessidade

Tese apresentada ao Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras. Área de concentração: Estudos Lingüísticos.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________

Profa Dra. Bethania Sampaio Corrêa Mariani – Orientadora UFF

_____________________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães

UNICAMP

_____________________________________________________ Profa Dra. Evandra Grigoletto

UFPE

_____________________________________________________ Profa Dra. Rosa Helena Blanco Machado

UNEB

_____________________________________________________ Profa Dra. Vanise Gomes de Medeiros

UFF Suplentes:

_____________________________________________________ Profa Dra. Vera Lucia de Albuquerque Sant'Anna

UERJ

_____________________________________________________ Profa Dra. Renata Ciampone Mancini

UFF

5

Para minhas três meninas lindas, Amanda, Beatriz e Yasmin. E para Marcelo, com muito amor.

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Agradecimentos

À Profª Drª Bethania Mariani, orientadora incansável e leitora atenta. À Profª Drª Moema de Rezende Vergara, pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST, pela indicação de artigos sobre história da divulgação científica na Europa e no Brasil. Às professoras Natalia Pinagé Ribeiro e Jaqueline da Silva Araújo e seus alunos, pela realização das testagens. Às funcionárias da biblioteca do Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST, pelo auxílio na consulta dos exemplares da revista analisada. Aos funcionários do Arquivo Edgard Leuenroth (UNICAMP), pelo auxílio com os microfilmes. Às amigas Beatriz, Joyce e Carla, pelo apoio nos momentos mais difíceis da pesquisa. Às amigas de sempre, Zilda, Isabel Cristina e Patrícia, pelo apoio durante o doutorado. À Ana Beatriz, pelo auxílio com a digitação e diagramação da tese. A Marcelo, pelo carinho, companheirismo, atenção. À minha mãe, à minha irmã e às minhas sobrinhas, pela dedicação nesta empreitada. A todos os amigos que compartilharam desta aventura discursiva e colaboraram para sua realização. À CAPES, pela bolsa concedida.

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RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo principal investigar o funcionamento do discurso de

divulgação científica para crianças. Baseia-se na fundamentação teórica da Análise do

Discurso de linha francesa, tradição inaugurada por M. Pêcheux. Tomando como corpus

recortes de seções das revistas Ciência Hoje das Crianças – uma publicação do Instituto

Ciência Hoje – e de textualizações que abordam a temática, oferece-se uma análise que busca

depreender as imagens projetadas das posições-sujeito que operam nesse discurso. Considera-

se o discurso de divulgação científica para crianças como efeito de sentidos entre divulgador,

cientista e leitor (criança e professor). É um discurso constituído por quatro ordens de

discurso, a saber: da ciência, do cotidiano, da mídia e do ensino. O divulgador, trabalhando no

entremeio de diferentes discursividades, promove um gesto de interpretação que produz um

determinado efeito- leitor: a criança, ou melhor, uma imagem de criança tomada como um vir-

a-ser-sujeito. Com o objetivo de observar as redes de sentidos que constituem tal discurso,

propõe-se uma análise dos termos “criança” e “divulgação científica”. Noções como a de

categoria criança, de ludicismo e de discurso da necessidade foram propostas na tentativa de

compreender a constituição dos sentidos de criança para a divulgação científica. Nesse

discurso, alimenta-se o imaginário de diversão atrelado a uma profissão de cientista, diga-se

uma profissão socialmente prestigiada. Como conseqüência, promove-se uma construção

imaginária de futuro promissor para os futuros-cientistas.

Palavras-chave: Análise do Discurso; discurso de divulgação científica para crianças; ludicismo; discurso de necessidade

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ABSTRACT

This research is chiefly aimed at investigating the functioning of the scientific

popularization discourse for children. Its theoretical-methodological background is the French

Discourse Analysis, as conceived by M. Pêcheux. The work has been developed upon an

analysis of clippings from sections of issues of the periodical Ciência Hoje das Crianças – a

publication by Instituto Ciência Hoje – and theoretical texts that address the theme. An

analysis is developed in order to elicit the images projected in the subject-positions that

operate in this discourse. The scientific popularization discourse for children is considered to

be an effect of senses between the popularizer, the scientist and the reader (child and teacher).

It is a discourse constituted by four orders, namely: science, everyday life, media and

teaching. Working in-between the different discourses, the popularization promotes a gesture

of interpretation that produces a certain reader effect: the child, or better saying, the image of

a child is taken as a subject-to-be. An analysis of the terms “child” and “scientific

popularization” is carried out to investigate the nets of senses that make up that discourse.

Notions such as the categories of child, ludicism and demand discourse were proposed in an

attempt to understand the constitution of senses of child for scientific popularization. In this

discourse, the set of images related to amusement is tied to the scientist profession, that is to

say, to a socially prestige occupation. As a consequence, there follows an imaginary

construction of a promising future for the scientists-to-be.

Key words: Discourse Analysis, discourse of scientific popularization for children; ludicism; demand discourse.

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SUMÁRIO

Apresentação.............................................................................................................................11 CAPÍTULO 1: Entre teoria e prática: um percurso analítico ...................................................16

1.1 Fundamentos teóricos .....................................................................................................16 1.2 Procedimentos analíticos.................................................................................................34

CAPÍTULO 2: À procura de sentidos: a divulgação científica para crianças ..........................45

2.1 A criança e a divulgação científica .................................................................................45 2.1.1 A criança...................................................................................................................50

2.2 Vulgarizar ou divulgar ciência: uma questão..................................................................60 2.2.1 Nos dicionários .........................................................................................................63 2.2.2 Sentidos outros .........................................................................................................68

2.3 Por que a grande demanda por ciência na sociedade atual? ...........................................74 CAPÍTULO 3: Por entre discursos: ciência, cotidiano, mídia e ensino ...................................81

3.1 O discurso de divulgação científica e a encenação da ciência ........................................81 3.2 A divulgação científica como um discurso específico....................................................86 3.3 O discurso de divulgação científica e o efeito- leitor.......................................................90 3.4 O discurso de divulgação científica: um espaço discursivo intervalar ...........................93 3.5 O discurso de divulgação científica para crianças ..........................................................97

CAPÍTULO 4: O editorial da revista e o divulgador..............................................................102

4.1 Eis que surge o editorial da revista Ciência Hoje das Crianças ...................................102 4.2 Entre a opinião e a informação .....................................................................................104 4.3 O lugar do sujeito nos editoriais da revista Ciência Hoje das Crianças ......................106

4.3.1 O divulgador: quem sou eu para falar- lhe assim? ..................................................107 4.4 Pontuação: lugar de interpretação .................................................................................118

4.4.1 Pontuação e textualização.......................................................................................122 4.4.2 Pontuação: sinais discursivos .................................................................................124 4.4.3 A pontuação nos editoriais da Ciência Hoje das Crianças. ...................................126

4.5 Editorial ou carta enigmática?.......................................................................................132 CAPÍTULO 5: As imagens produzidas: o leitor e o cientista ................................................141

5.1 O leitor da Ciência Hoje das Crianças .........................................................................141 5.2 Análise dos artigos........................................................................................................142

5.2.1 Para que serve o parágrafo inicial?.........................................................................143 5.2.2 O corpo do texto .....................................................................................................147 5.2.3 Os boxes .................................................................................................................154

5.3 A revista e sua inserção na escola .................................................................................159 5.3.1 A didatização da mídia ou a midiatização da escola? ............................................160

5.4 E o cientista? .................................................................................................................168 5.4.1 O cientista e a Ciência Hoje das Crianças .............................................................168 5.4.2 O Cientista e o não-cientista...................................................................................171 5.4.3 Cientista e criança – o lugar do Mesmo .................................................................173

CAPÍTULO 6: Quando o leitor é autor ..................................................................................178

6.1 Por falar em cartas de leitores.......................................................................................178 6.2. Seção de cartas e Análise do Discurso.........................................................................187

10

6.3 As cartas de leitores da Ciência Hoje das Crianças .....................................................191 6.4. Analisando as cartas.....................................................................................................193

Capítulo 7: Memória: o futuro da criança...............................................................................209

7.1. Sobre memória: lembrança e esquecimento.................................................................210 7.2 Memória e Análise de Discurso ....................................................................................216

7.2.1 O papel da memória ................................................................................................216 7.2.2 Memória discursiva, memória institucional e memória metálica...........................218 7.2.3 Memória do futuro..................................................................................................220

7.3 Cientistas de amanhã e criminosos de amanhã .............................................................222 7.4 Quando crescer, vou ser... .............................................................................................228

7.4.1 As profissões elencadas ..........................................................................................231 7.4.2 O discurso do outro ................................................................................................234 7.4.3 Temporalidade e espacialidade...............................................................................237

É chegada a hora: a ilusão de fechamento ..............................................................................243 Referências Bibliográficas ......................................................................................................249 Anexos ....................................................................................................................................263

Anexo 1 ...............................................................................................................................264 Anexo 2 ...............................................................................................................................268 Anexo 3 ...............................................................................................................................269 Anexo 4 ...............................................................................................................................270 Anexo 5 ...............................................................................................................................273 Anexo 6 ...............................................................................................................................275 Anexo 7 ...............................................................................................................................276 Anexo 8 ...............................................................................................................................278 Anexo 9 ...............................................................................................................................283 Anexo 10 .............................................................................................................................285 Anexo 11 .............................................................................................................................288 Anexo 12 .............................................................................................................................290 Anexo 13 .............................................................................................................................291 Anexo 14 .............................................................................................................................292 Anexo 15 .............................................................................................................................294 Anexo 16 .............................................................................................................................296

Apêndices ...............................................................................................................................298

Apêndice 1 ..........................................................................................................................299 Apêndice 2 ..........................................................................................................................303 Apêndice 3 ..........................................................................................................................306

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Apresentação

A arte, a religião, a vida afetiva e a vida cotidiana, que não se deixam reduzir à obediência às normas físico-matemáticas, são desacreditadas como desprovidas de sentido [...] Tudo se passa como se os critérios da ciência devessem ser universalmente válidos, e como se a preponderância das preocupações científicas e técnicas devesse ser considerada como verdade eterna ( Japiassu, 1975: 73).

A epígrafe acima, retirada de Japiassu (1975), convocou-nos ao seguinte

questionamento: qual é o lugar da ciência em nossa sociedade? Um questionamento que se

abre a várias respostas, todas determinadas pelo lugar social, teórico, político de quem as

formula, assim como pela conjuntura histórica em que são elaboradas. Dentre essa abertura do

escopo de ponderações, enfocamos a questão do lugar da ciência no século XXI, no Brasil,

nos centros urbanos – locus privilegiado da produção de conhecimento – sob o olhar de uma

teoria materialista do discurso.

Fundamentamos nosso trabalho na perspectiva teórica da Análise do Discurso de linha

francesa. Destacamos o nome de Michel Pêcheux como o fundador1 dessa disciplina a partir

da publicação de Análise Automática do Discurso (AAD-69). Um dos pilares dessa teoria que

surgia no cenário francês, no final da década de 1960, é a relação entre sujeito e sentido.

Trata-se, portanto, de uma teoria não-subjetiva da subjetividade.

É uma teoria em que o histórico e o ideológico são convocados a participar como

categorias determinantes dos sujeitos e dos sentidos. Disso vale dizer que os sentidos se

confrontam em disputa por espaços de estabilização.

Considerando o referencial teórico da Análise do Discurso, podemos nos posicionar

criticamente frente à definição de ciência como portadora de verdades universais. A partir

dessa perspectiva, então, procuramos elaborar respostas a nossa pergunta inicial, a saber: qual

é o lugar da ciência em nossa sociedade? Vale lembrar que a “ciência moderna”, fundada sob

o aparato jurídico do Estado e na relação do sujeito com o jurídico, é significada como uma

instância de poder.

1 Não se pode esquecer, contudo, os demais pesquisadores que participaram dessa nova empreitada teórica: F. Gadet, P. Henry, D. Maldidier, J. Authier-Revuz, R. Robin, M. Plon, entre outros.

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Para compreender os sentidos de ciência, em uma perspectiva discursiva, deslocamos

a concepção dominante de forma a depreender outros sentidos possíveis. Para tal, retomamos

Pêcheux (1988 [1975]), em suas considerações sobre ciência. Esse autor afirma que o

processo histórico de construção das disciplinas científicas é apagado. A ciência é

representada por modos de falar pragmática e retoricamente eficazes. Enquanto tal, ela seria

reduzida aos procedimentos de raciocínio lógico (retórica lógico-matemática) e confundida

com processos operacionais que podem ser aplicados a quaisquer fatos. Pêcheux (idem)

esclarece ainda que

a idéia de que a produção dos conhecimentos consistiria no puro e simples desenvolvimento (empírico-dedutivo) das propriedades dos objetos é, pois, um mito idealista, que identifica ciência e lógica e, ao colocar esta última como princípio de toda ciência, concebe inelutavelmente a prática científica como uma atividade de triagem entre enunciados verdadeiros ou falsos, repelindo tudo o que diz respeito às condições próprias de aparição desses enunciados, isto é, às questões que lhe são correspondentes no interior de uma problemática historicamente determinada (Pêcheux, 1988 [1975]: 197 – grifos do autor).

Consideramos, tal como Pêcheux (idem), que tanto teorias empiristas quanto realistas

esquecem a constituição histórica das ciências “em proveito de uma teoria universal das

idéias, quer tome ela a forma realista de uma rede universal e, a priori, de noções, quer tome a

forma empirista de um procedimento administrativo aplicável ao universo pensado como

conjunto de fatos, objetos, acontecimentos ou atos” (ibidem : 72).

A produção dos conhecimentos científicos está inscrita nas condições de

(re)produção/transformação das relações de produção. Prática científica e prática política

estão imbricadas e são determinadas sócio-histórica e ideologicamente em uma dada

formação social. Assim sendo, Pêcheux (1988 [1975]) salienta que não é possível elaborar um

discurso puro da ciência, pois não há discurso isento de ideologia e nisso consiste a nossa

crítica frente à concepção de ciência dominante: “ciência como verdade eterna” (Japiassu,

1975: 73).

Podemos dizer que o rompimento da Análise do Discurso com uma concepção de

“ciência régia” (Pêcheux, 2007 [1983]) ideal, perfeita, verdadeira, deve-se à própria maneira

como essa teoria concebe o sujeito, a linguagem e a história. Ademais, para o quadro teórico

em que se inscreve esta pesquisa, o que há são discursos, que são produzidos em determinadas

condições de produção por sujeitos, inscritos na história e interpelados ideologicamente.

Paralelamente, de um ponto de vista epistemológico, tomamos as palavras de Japiassu

(1991):

a ciência não existe enquanto entidade independente que poderíamos considerar como causa ou efeito individualizado de outros fenômenos. Ela é um conjunto de

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atividades humanas inseparável das outras atividades. Participa da história das nossas sociedades (Japiassu, 1991: 10).

Partindo de momentos históricos distintos, de diferentes concepções teóricas, é digno

de nota que as palavras de Pêcheux ressoem na elaboração de Japiassu. Ambos tomam

posições que contradizem a concepção dominante de ciência como detentora de verdades.

No discurso da ciência e nos discursos sobre as ciências, a historicidade, como em

qualquer outro discurso, é constitutiva. Nessas produções discursivas, o funcionamento da

ideologia imputa ao conhecimento científico um efeito de verdade no qual se apagam suas

condições históricas de produção.

A ciência não está confinada aos laboratórios, ela circula no social, na prática

cotidiana, nos pequenas realizações diárias, no uso de aparelhos, instrumentos, muito embora

o processo de produção de conhecimento não seja visível aos sujeitos.

Para melhor compreendermos a circulação da ciência na sociedade, devemos colocar

em relevo a relação entre produção de conhecimento e política de Estado. Por ser a ciência

financiada por recursos públicos através de agências próprias de fomento, é possível afirmar

que a produção de conhecimento sofra diretamente a ação do Estado. Por seu turno, o Estado

capitalista, mais precisamente neoliberal, individualiza os sujeitos e, na relação de direitos e

deveres, imputa- lhes responsabilidades. De fato, a todos os cidadãos, supostamente iguais

perante a lei, impõe-se que conheçam os supostos benefícios da ciência. Para atender a essas

exigências, a ciência deve circular na sociedade. De que forma? Como? Através de quais

meios? A princípio, parece-nos que esse papel de fazer circular a ciência na sociedade é o da

divulgação científica, uma prática em grande parte engendrada pela mídia.

Com base na fundamentação teórica da Análise do Discurso, acima mencionada, a

partir de uma perspectiva de ciência como construção sócio-histórica, encetamos nosso

trabalho de pesquisa. Em um primeiro momento, delimitamos o tema, a saber: o discurso de

divulgação científica. Em seguida, demos início à coleta de materiais de divulgação científica.

Verificamos que a divulgação científica se faz presente em vários meios (televisão, rádio,

internet, livros, revistas, etc.). Dentre esses materiais, direcionamos nossa atenção à revista

Ciência Hoje das Crianças, e o adotamos como nosso material de análise. Dessa forma,

procedemos a um segundo movimento de delimitação e passamos a tratar, mais

especificamente, sobre o discurso de divulgação científica para crianças.

O interesse em analisar essa revista partiu de uma questão: por que divulgação

científica para crianças? Por ter como foco a criança, enveredamos por novas possibilidades

de sentidos. Durante muito tempo uma inquietação nos perseguiu: a qual recorte de pesquisa

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proceder? Após a leitura de vários exemplares da revista e de outros materiais relativos à

temática, definimos nosso objetivo: compreender o funcionamento do discurso de divulgação

científica para crianças. Uma questão central se impôs: qual a imagem de criança que se

produz na revista Ciência Hoje das Crianças?

Delimitado o material, delineado o objetivo e definida a questão de pesquisa,

procuramos traçar um caminho – diga-se um caminho marcado por idas e vindas entre teoria e

análise. Começamos a construir um arquivo de pesquisa: compra de revistas, livros,

empréstimos, cópias. Questões subseqüentes foram surgindo: quais os sentidos de divulgação

científica para crianças? Qual imagem de leitor é construída na revista Ciência Hoje das

Crianças? Qual a imagem de cientista se procura construir? Como compreender o político e a

política de Estado inscritos nos sentidos da divulgação científica para crianças? Na tentativa

de responder a essas e outras perguntas, fomos montando gradativamente um arquivo amplo e

heterogêneo que proporcionou investigar questões acerca da divulgação científica para

crianças.

Passamos à organização de nossa pesquisa. No primeiro capítulo, tratamos dos

principais conceitos teóricos da Análise do Discurso, assim como o dispositivo analítico e de

construção do nosso corpus.

No segundo capítulo, de forma a historicizar a categoria criança e a prática da

divulgação científica, procedemos à análise dos diferentes materiais, além da revista, que

compuseram nosso arquivo. Com base nas análises realizadas, pudemos propor a noção de

ludicismo e de discurso da necessidade. O primeiro refere-se ao laço que marca a relação do

jurídico com a criança, uma relação de ordem imaginária que faz funcionar uma determinada

formulação do discurso de divulgação científica para a criança. Já o discurso da necessidade

justifica o próprio discurso da divulgação científica visto que o põe como necessidade do

povo em receber informação sobre os avanços da ciência.

No terceiro capítulo, retomamos quatro trabalhos sobre o discurso de divulgação

científica no âmbito dos estudos da linguagem. Trouxemos as propostas de Authier-Revuz

(1998, 1999), Zamboni (1997), Orlandi (2001b, 2004b) e Grigoletto (2005). De forma a

realizar a reflexão sobre o discurso de divulgação científica para crianças, travamos diálogos

com esses trabalhos e nosso corpus.

A partir do quarto capítulo, apresentamos as análises de seções da revista Ciência

Hoje das Crianças. Essas análises têm um duplo objetivo: depreender as posições-sujeito e

compreender o funcionamento de cada textualização, ou seja, do editorial, dos artigos

grandes, das cartas dos leitores e da seção que versa sobre profissões. É importante destacar

15

que consideramos que cada seção integra o discurso de divulgação científica da revista em

pauta.

A primeira textualização a ser analisada, no capítulo 4, é a do editorial da revista.

Nesse capítulo, são realizadas as primeiras análises da revista, análise que nos permite

compreender o modo como é representada a imagem do divulgador.

No capítulo 5, analisamos os chamados “artigos grandes” da revista. As análises estão

centradas, fundamentalmente, na representação das imagens do leitor e do cientista. Nesse

quinto capítulo, também realizamos análises das experiências publicadas na revista, além de

um encarte dirigido ao professor, intitulado “Dicas do Professor”.

No capítulo 6, tratamos da questão da função-autor, uma posição do sujeito- leitor

quando da produção de carta de leitores publicadas na revista. Por fim, no capítulo 7,

analisamos as profissões elencadas pela revista, na seção “Quando crescer, vou ser...”.

Devemos destacar que a interpretação está no cerne das análises realizadas pela

Análise do Discurso, visto ser essa uma disciplina de interpretação. De fato, são as condições

sócio-históricas que apontam caminhos para interpretar os efeitos de sentidos produzidos.

Fazer análise, nessa perspectiva teórica, é fazer relação a. Por meio de nosso gesto de

interpretação, produzido em relação à teoria e ao corpus, construímos uma posição frente ao

tema de pesquisa. Nossa posição não é jamais isenta, pois somos afetados pela ideologia e

atravessados pelo inconsciente.

Na posição de analistas, procuramos compreender o jogo de diz, re-diz, des-diz do

discurso de divulgação científica para crianças.

16

CAPÍTULO 1: Entre teoria e prática: um percurso analítico

No presente capítulo, tratamos dos dispositivos teóricos e de procedimentos analíticos.

Vale destacar que um princípio constitutivo da Análise do Discurso é a vinculação desses dois

dispositivos. E é exatamente a vinculação entre teoria e prática que faz com que a disciplina

se movimente. Tal movência não se dá em virtude de uma superação teórica, mas de

adequação ao material de análise. Ao longo de nossa pesquisa, trabalhamos esse batimento.

Ressaltamos que a escrita da Análise do Discurso tem papel fundamental na

textualização das pesquisas realizadas. Segundo Orlandi (2003a) “é só quando finalizamos a

análise e passamos à sua escrita (para os leitores) que ela adquire a organização (já

administrada) que separa: quadro teórico, corpus, e análise dos resultados” (Orlandi, 2003a:

15). É essa escrita que efetivamente realiza a relação entre teoria e análise. Vamos então à

escrita.

1.1 Fundamentos teóricos

Em Análise do Discurso, o dispositivo teórico refere-se a todo seu quadro teórico. Tal

dispositivo se particulariza frente aos conceitos mobilizados em cada pesquisa. O conjunto de

conceitos trabalhados em vista à pergunta, aos objetivos e à natureza de material de análise

compõe o que podemos chamar de “dispositivo analítico” (Orlandi, 2000). Nesta seção,

apresentamos o nosso dispositivo analítico, ou seja, aqueles conceitos que fundamentam a

nossa pesquisa a respeito do funcionamento do discurso de divulgação científica para

crianças.

O marco fundacional da Análise do Discurso na França deu-se com foi publicação de

Análise Automática do Discurso, em 1969, por Michel Pêcheux. Sua obra, largamente

investida pela filosofia e, mais especificamente, pelo materialismo histórico, propunha uma

articulação entre língua, ideologia e discurso. Devemos ressaltar que se a Análise do Discurso

surgiu na França, foi no Brasil que ela galgou novos e vigorosos rumos a partir da década de

80, principalmente, como os trabalhos de Orlandi (1984).

17

A proposta teórica instaurada por Pêcheux, que tinha como propósito abrir uma fissura

no campo das ciências sociais (Henry, 1997: 14), especificamente no campo da psicologia

social, convocava três regiões do conhecimento científico, a saber: o materialismo histórico,

como teoria das formações sociais, incluindo a ideologia; a lingüística, como teoria dos

mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação; e a teoria do discurso, como teoria de

determinação histórica dos processos semânticos. Todas atravessadas e articuladas por uma

teoria da subjetividade de natureza psicanalítica (Pêcheux, 1997 [1969]); sendo a Psicanálise,

portanto, solicitada a intervir nos três campos.

O objeto teórico dessa nova disciplina – o discurso – nasce da confluência de uma

releitura de Marx realizada por Althusser, uma releitura de Freud feita por Lacan e uma

releitura de Saussure realizada por Pêcheux, conforme esclarece Henry (1997). Os conceitos

originados em cada uma das áreas não foram “implantados”, mas reterritorializados e

ressignificados na construção de uma teoria do discurso.

Ao explicitar os fundamentos teóricos imbricados na formulação da Análise

Automática de Discurso, Henry (1997) salienta as influências marcantes de Althusser e de

Lacan, desde os primeiros textos publicados sob o pseudônimo de Thomas Herbert2, na

referida obra de Pêcheux. Destaca-se que Pêcheux postula uma teoria que interroga as

relações entre sujeito, linguagem e história e, para tal, não se esquiva de criticar as correntes

lingüísticas vigentes3. Pêcheux, de um ponto de vista materialista, ressalta a necessidade de

uma mudança de terreno nos estudos da linguagem.

Uma característica fundante da disciplina é a de ser intervalar, constituir-se entre. Esta

condição, apontada por Pêcheux (2002 [1983]) e retomada por Orlandi (2004a), caracteriza a

Análise do Discurso como uma disciplina de entremeio. Considera-se uma disciplina de

entremeio aquela que discute continuamente seus pressupostos teórico-analíticos, de forma a

não acumular positivamente conhecimentos. A Análise do Discurso que reinscreve suas

questões a cada prática ana lítica, em um movimento de compreensão da teoria em sua relação

à prática.

2 Sob o pseudônimo de Thomas Herbert, Pêcheux escreveu os artigos “Reflexões sobre a situação teórica das ciências sociais, especialmente da psicologia social” (1966) e “Observações para uma teoria geral das ideologias” (1968). 3 Pêcheux e Gadet (1998 [1997]), no artigo “Há uma via para a Lingüística fora do logicismo e do sociologismo”, destacam que a história da lingüís tica desenvolve-se no embate entre as duas vias, a saber: logicismo e sociologismo. A primeira via, ligada ao formalismo, busca universais; e a segunda, ligada ao historicismo, efetua descrições, mais precisamente, um estudo empirista sobre os dados. Nas duas vias (além das formas intermediárias) é a noção de sujeito que realiza a contradição da lingüís tica: o sujeito lógico-natural instaurado entre a língua abstrata do logicismo e o indivíduo do sociologismo.

18

Após a breve incursão sobre o percurso da Análise do Discurso, passamos ao seu

quadro teórico de referência.

Em seu livro Análise Automática do Discurso, Pêcheux (1997 [1969]), ao definir

discurso como “efeito de sentido entre locutores”, distanciou sobremaneira o objeto teórico

da AD à noção de mensagem atrelada ao esquema de comunicação elaborado por Jakobson,

entendida como transmissão de informação. O objeto teórico com o que se preocupa a Análise

do Discurso não é uma simples superação da lingüística saussuriana, haja vista que não é um

objeto lingüístico, mas um objeto sócio-histórico, no qual o lingüístico é pressuposto. Trata-

se, efetivamente, de outro objeto teórico.

O recorte teórico que relaciona língua e discurso não pode ser confundido como

continuidade da dicotomia língua/fala, tal como entendido por Saussure, na medida em que a

noção de discurso não pode ser posta como uma realização individual do sistema lingüístico.

Nessa perspectiva, língua e discurso recebem outra significação, pois “nem o discurso é visto

como uma liberdade em ato, totalmente sem condicionantes lingüísticos ou determinações

históricas, nem a língua como totalmente fechada em si mesma, sem falhas ou equívocos”

(Orlandi, 2000: 22).

A língua é condição de possibilidade do discurso. A relação existente entre processos

discursivos e a língua repousa na materialidade da língua. Em outros termos, a língua

constitui o lugar material, a base na qual se realizam os processos discursivos, fonte de

produção de efeitos de sentido.

O discurso, por sua vez, não pode ser considerado um conjunto de frases portadoras de

várias significações. Ele é um processo que se desenvolve em determinadas conjunturas

sócio-históricas, é o lugar em que a ideologia se materializa e estabelece relação com a língua,

produtora de sentidos por e para sujeitos. Se a definição de discurso que trabalhamos é a de

efeito de sentido entre interlocutores, como falar de sentidos em uma teoria como a Análise

do Discurso?

Consideramos a relação dos sujeitos e dos sentidos afetados pela língua e pela história.

Cumpre destacar que sujeito e sentido constituem-se mutuamente no discurso. Ou nos

dizeres de Orlandi, “ao produzir sentido, o sujeito se produz, ou melhor, o sujeito se produz,

produzindo sentido” (Orlandi, 2004a [1996]: 56-57).

O processo histórico de constituição de evidência do sentido faz com que o sentido

pareça estar fixado como essência das palavras, como se houvesse um elo que ligasse palavras

e seus sentidos e apagasse as determinações históricas e sociais. Em uma perspectiva

materialista, os sentidos não existem em si mesmos, não há uma relação transparente com a

19

literalidade, mas são determinados por posições ideológicas no processo sócio-histórico. A

literalidade não pré-existe, ela é um efeito de discurso.

Por ser contrária à noção de sujeito idealista da teoria da enunciação e à de sujeito

universal dos formalistas, a Análise do Discurso trabalha com um sujeito descentrado, que

não é origem nem centro do dizer. Não se trata, portanto, do sujeito cartesiano – racional,

soberano, consciente. A essa imagem, opôs-se aquela de um sujeito dividido, determinado

pelo inconsciente e pela ideologia. Destaca-se que o sujeito discursivo não se confunde nem

com o sujeito ideológico, nem com o sujeito da psicanálise; ele é pensado como posição.

A evidência do sujeito apaga o fato de que os indivíduos são sempre-já sujeitos:

indivíduos são interpelados em sujeitos pela ideologia (Althusser, 2003 [1971]). As duas

evidências estão relacionadas à ilusão da transparência da linguagem. A interpelação do

indivíduo em sujeito pela ideologia traz necessariamente o apagamento da inscrição da língua

na história para que signifique, produzindo o efeito de evidência do sentido (o sentido- lá) e a

impressão do sujeito ser a origem do que diz.

Pêcheux (1988 [1975]) assevera que o sujeito se esquece das determinações históricas

(interpelação ideológica) que o colocaram no lugar que ocupa. Trata-se de uma ilusão

necessária que constitui o sujeito. Pêcheux, de forma a precisar o funcionamento dessa ilusão,

tematiza sobre o esquecimento, apoiando-se na interpretação freudiana do inconsciente.

O autor esclarece que, em um trabalho anterior4, considerou a primeira tópica freudiana,

a saber: pré-consciente-consciente e inconsciente para definir os dois esquecimentos que

constituem o sujeito. Segundo o autor, a interpretação da primeira tópica possuía vantagens e

desvantagens na explicação de tais esquecimentos em relação à fronteira ou à solução de

continuidade no interior de uma formação discursiva na qual se inscreve por identificação-

interpelação. Retomando as noções, diz Pêcheux (1988 [1975]) que o esquecimento nº 1 dá

conta do fato de que o sujeito não se pode encontrar no exterior da formação discursiva, ou

seja, não há dizer que não se relacione a outros. Já o esquecimento nº 2 remete ao fato que o

sujeito seleciona enunciados no interior da formação discursiva que o domina. Após apontar

as vantagens e desvantagens das definições precedentes como insuficientes, uma vez que

“levavam a fazer o pré-consciente-consciente uma zona autônoma com relação ao

inconsciente”, Pêcheux (1988 [1975]: 174), por meio da re-elaboração lacaniana da segunda

tópica freudiana (id, ego, superego), apresenta a seguinte elaboração teórica: “todo discurso é

ocultação do inconsciente” (idem : 175). O que fica apagado para o sujeito é seu vínculo à

4 De fato, Pêcheux faz referência ao artigo “A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas”, escrito por ele e por Fuchs (1997 [1975]).

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formação discursiva que o domina. A partir desse ponto, o autor passa a uma nova

representação do esquecimento nº 2, definido como aquele que “cobre exatamente o

funcionamento do sujeito do discurso na formação discursiva que o domina, e que é aí,

precisamente, que se apóia sua ‘liberdade’ de sujeito falante” (ibidem). Em ambos os

esquecimentos, Pêcheux retoma a relação entre ideologia e inconsciente, noções que operam

na base da própria teoria do discurso.

Orlandi (2000), ao considerar as duas formas de esquecimento postuladas por

Pêcheux, distingue os dois esquecimentos. O esquecimento nº 1, de natureza inconsciente,

revela o modo como o sujeito é afetado pela ideologia, como os sentidos “são determinados

pela maneira como nos inscrevemos na língua e na história e é por isto que significam e não

pela nossa vontade”. (Orlandi, 2000: 35). Já o esquecimento nº 2, da ordem da enunciação, é

um esquecimento parcial, uma ilusão referencial que dá a impressão que há uma relação direta

entre o pensamento, a linguagem e o mundo, atestando que o modo de dizer não é indiferente

aos sentidos.

Um ponto que ainda devemos tocar é que só há sujeito e sentido se houver

assujeitamento à língua (Orlandi, 2002). Para significar e constituir-se como sujeito, faz-se

necessário que seja afetado pelo simbólico (sistema significante). A língua é a materialidade

simbólica que estrutura o sujeito, o sujeito da linguagem.

Pêcheux (1988 [1975]) afirma que as palavras mudam de sentido de acordo com as

“posições ideológicas” daqueles que as empregam. Essas posições referem-se às condições de

produção sócio-históricas nas quais os sujeitos se situam para serem sujeitos de seu dizer. Nas

palavras de Pêcheux,

poderíamos resumir essa tese dizendo: as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas [...] nas quais essas posições se inscrevem (Pêcheux, 1988 [1975]: 160 – grifos do autor).

A formação ideológica, por sua vez, materializa-se em uma formação discursiva que,

conforme Pêcheux, é definida como “aquilo que numa formação ideológica dada, isto é, a

partir de uma posição dada numa conjuntura dada [...] determina o que pode e deve ser dito”

(idem : 160 – grifos do autor). Vale salientar ainda que uma formação ideológica pode

comportar uma ou várias formações discursivas, que se definem por sua relação com aquela,

determinando assim os sentidos.

A ideologia, longe de ser ocultamento, mascaramento da realidade, é entendida como

o mecanismo de projeção/construção de transparências para serem interpretadas como

21

evidências. Assim sendo, podemos afirmar que a “ideologia não é ‘X’, mas é o mecanismo de

produzir ‘X’” (Orlandi, 2002: 265). A ideologia pode ser “compreendida como a direção nos

processos de significação, direção esta que se sustenta no fato de que o imaginário que institui

as relações discursivas (em uma palavra, o discursivo) é político” (Orlandi, 1990: 36), em

outros termos, a ideologia não é dissimulação da verdade, mascaramento, mas interpretação

do sentido (em uma direção), ou seja, como os sentidos são fixados historicamente em

determinada direção. Não se relaciona “a ideologia à falta, mas, ao contrário, ao excesso: é o

preenchimento, a saturação, a completude que produz o efeito da evidência, porque se assenta

sobre o mesmo, o já- lá” (idem : 36). Na Análise do Discurso, o imaginário institui as relações

discursivas, em outros termos, possibilita a condição de significação do sentido, como

também da constituição do sujeito. É nele/por meio dele que se produz o efeito da

transparência da linguagem; a ilusão de que podemos atravessar as palavras e atingir seu

sentido literal, seu “conteúdo”.

Podemos dizer que o sentido de uma palavra é decorrente de sua relação com uma

formação discursiva. Uma mesma palavra inserida em diferentes formações discursivas

produzirá sentidos diversos. Assim como diferentes palavras inseridas em uma mesma

formação discursiva podem produzir o mesmo sentido. A respeito da questão da relação entre

palavras e sentido, Pêcheux escreve:

se uma mesma palavra, uma mesma expressão e uma mesma proposição podem receber sentidos diferentes - todos igualmente "evidentes" - conforme se refiram a esta ou aquela formação discursiva, é porque [...] não tem um sentido que lhe seria "próprio", vinculado a sua literalidade. Ao contrário, seu sentido se constitui em cada formação discursiva [...] De modo correlato, se se admite que as mesmas palavras, expressões e proposições mudam de sentido ao passar de uma formação discursiva a uma outra, é necessário também admitir que palavras, expressões e proposições literalmente diferentes podem, no interior de uma formação discursiva dada, "ter o mesmo sentido"[...] A partir de então, a expressão processo discursivo passará a designar o sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias, etc., que funcionam entre elementos lingüísticos - "significantes" - em uma formação discursiva dada (Pêcheux, 1988 [1975] : 161).

São os processos discursivos – os sistemas de relações de significantes em uma

formação discursiva – que nos interessam como analista de discurso. Voltando ao efeito da

transparência do sentido, pode-se dizer que não há sentido único, literal. O sentido será

diferente conforme se refira a uma ou outra formação discursiva. Porém, no seu interior, o

sentido é sempre “evidente”, pois é “próprio de toda FD dissimular na transparência de

sentido, que nela se forma, [...] que ‘algo fala’ (ça parle) sempre ‘antes, em outro lugar e

independentemente” (idem : 162). Dessa forma, o sentido que se pretende no discurso de

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divulgação científica também é considerado único – embora não o seja, como constatamos

nas análises.

Os sentidos que se apresentam como literais são produtos da história, e não o resultado

de uma relação natural entre palavras e coisas do mundo. Em determinadas condições de

produção, há a dominância de um dos sentidos, mas outros sentidos possíveis ressoam. Por

isso, podemos afirmar que toda produção discursiva é investida em processos de significação

variados. É preciso ressaltar que “se os sentidos podem sempre ser vários e podem ser outros,

isso não significa dizer que o sentido possa ser qualquer um” (Orlandi, 2004a [1996]: 56-57

grifos da autora). O sentido dominante – ao ser legitimado – fixa-se ideologicamente como

sendo o único, o centro; cristaliza-se. Daí, o efeito de literalidade.

No caso do nosso objeto de pesquisa, o sentido de divulgação científica como uma

atividade que reformula o texto científico em linguagem cotidiana parece ser o sentido fixado,

funcionando, no imaginário social, a divulgação científica como um texto segundo. Nas

análises, sobretudo do corpus auxiliar, a construção desse sentido pode ser depreendida em

diferentes textualizações, desde verbetes de dicionários até artigos científicos sobre o tema. A

hegemonia desse sentido aponta para a primazia do discurso da ciência.

Retornando à questão dos sentidos, como já apresentamos anteriormente, esses não

têm origem no sujeito, já que são determinados pela formação discursiva na qual o sujeito se

inscreve. Em outros termos, o sujeito posiciona-se na formação discursiva que o determina,

identifica-se com determinados sentidos e rejeita outros. É também dessa forma que sujeitos e

sentidos – constitutivamente descontínuos em sua historicidade, divididos em sua constituição

pelo inconsciente e marcados por uma incompletude – garantem, pela força do imaginário,

uma aparente unidade. Esse é efeito da ideologia que, dissimulando sua existência em seu

próprio funcionamento, produz evidências nas quais se constitui o sujeito. O sujeito, no

entanto, tem a ilusão de ser origem do dizer (esquecimento nº 1), como também ter domínio

sobre o que diz (esquecimento nº 2).

É importante frisar que as formações discursivas são constituídas pelas diferenças, por

contradições e confrontos. Estão em constante movimento, em um processo de

reconfiguração, delimitando-se por aproximação e afastamento. É dessa forma que sujeitos e

sentidos constitutivamente descontínuos, incompletos, divididos produzem a unidade

imaginária a que nos referimos.

Pêcheux (1988 [1975]) afirma que toda formação discursiva, pela aparente

transparência de sentido que lá se constitui, dissimula sua dependência em relação ao “todo

complexo com dominante” das formações discursivas, intrincadas no complexo das

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formações ideológicas (idem : 162). Neste ponto, Pêcheux (1988 [1975]) propõe chamar de

interdiscurso esse “todo complexo com dominante” das formações discursivas. Toda FD se

constitui na relação com o interdiscurso, sendo este, portanto, seu o exterior específico. Vale

destacar que o interdiscurso é irrepresentável, mas seus efeitos estão representados na

articulação das formações discursivas.

Vinculada ao interdiscurso, Pêcheux propõe a noção de intradiscurso. Este, por sua

vez, é considerado o “fio do discurso” enquanto discurso de um sujeito. Entende-se que o

intradiscurso assinala o funcionamento do discurso com relação a si mesmo (o que é

enunciado agora, antes e depois). Nas palavras de Pêcheux (1988 [1975]), “o intradiscurso

[...] é, a rigor, um efeito do interdiscursivo sobre si mesmo, uma ‘interioridade’ inteiramente

determinada como tal ‘do exterior’” (Pêcheux, 1988 [1975]: 167). Muito embora, por um

efeito da forma-sujeito, o interdiscurso seja absorvido/esquecido no intradiscurso, como se

fosse apenas um já-dito do intradiscurso, no qual se articula como “co-referência”. Apaga-se,

portanto, o fato de que só faz sentido porque já há sentido.

Orlandi (1990), ao tematizar a questão, diz que há uma relação necessária entre

interdiscurso (o já-dito) com o intradiscurso (o que se está dizendo). O interdiscurso

determina o intradiscurso, dando um estatuto preciso à constituição, ou seja, a partir dessa

teorização, observa-se que há uma relação entre o interdiscurso e o processo de constituição

dos sent idos, bem como, uma relação entre o intradiscurso e o processo de formulação do

dizer.

Um outro deslocamento ocorre quando a autora redefine interdiscurso ao tomá-lo na

relação com a memória discursiva. Com efeito, o interdiscurso é o lugar onde o sujeito se

relaciona com a história e a ideologia, pelo viés da memória. Tal conceito será discutido no

capítulo 7 desta tese. Convém, no entanto, esclarecer que a memória é entendida como um

saber discursivo que torna possível todo dizer, o já-dito que está na base do dizível,

sustentando cada tomada de posição5. Em suma, a memória discursiva é constituída tanto por

lembranças como por esquecimentos.

Em nossa pesquisa, a memória do dizer, que sustenta a possibilidade de produzir

sentido (2004a [1996]), trabalha a atualização dos sentidos de divulgação científica que

circulam em nossa sociedade. Em nosso corpus, há um trabalho discursivo entre a memória e

o esquecimento nos dizeres da divulgação científica.

5 A tomada de posição é o efeito das identificações assumidas, mas sempre apagadas para o sujeito (vínculo do sujeito à FD que o domina).

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Como já foi anteriormente definida, a ideologia é condição para a constituição dos

sujeitos e dos sentidos. Retomamos a seguinte afirmação de Pêcheux (1988 [1975]: 161) “os

indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos de seu discurso, pelas formações discursivas que

representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes”. Nela, o

autor refere-se a um sujeito que se identifica plenamente com a forma-sujeito. Pêcheux

designa forma-sujeito como o sujeito de saber de uma determinada formação discursiva. É por

meio da forma-sujeito que o sujeito do discurso se inscreve em uma ou outra formação

discursiva que o constitui enquanto sujeito.

O sujeito do discurso, ao se identificar plenamente com a forma-sujeito de uma

formação discursiva, é considerado como o bom sujeito6. Essa é a primeira modalidade de

tomada de posição. Ela remete à superposição entre o sujeito do discurso e o Sujeito (forma-

sujeito histórica); uma identificação plena que aponta para “unicidade imaginária do sujeito”

(idem : 163). Essa reduplicação da identificação do sujeito à forma-sujeito é relativizada por

Pêcheux.

A segunda modalidade corresponde ao que Pêcheux caracterizou como mau sujeito.

Essa tomada de posição ocorre quando o sujeito se contrapõe à forma-sujeito. Segundo

Pêcheux (1988 [1975]), há um distanciamento, um questionamento, contestação do sujeito do

discurso em relação à formação discursiva em que está inserido. É uma negação revertida no

próprio terreno da formação discursiva. Trata-se não de uma identificação plena, mas de uma

contra- identificação que faz vicejar que há desdobramentos na relação entre o sujeito e a

forma-sujeito. Esse aspecto toca no imaginário que produz um sujeito ilusoriamente uno,

indivisível.

A terceira é uma tomada de posição que conduz ao trabalho de transformação-

deslocamento da forma-sujeito. Essa modalidade funciona sobre o modo da desidentificação,

que não representa um fora da ideologia, não implica um processo de desassujeitamento, pois

o sujeito é sempre interpelado, ou seja, é impossível escapar às injunções da ideologia. Nessa

modalidade, a interpelação ideológica funciona, de certo modo, às avessas, contra e sobre si

mesma. O sujeito rompe com a formação discursiva em que se inscrevia, pois já se identifica

com outro domínio de saber e nele se inscreve.

Para compreender o funcionamento dessa modalidade é necessário considerar, como o

fez Pêcheux (idem), a interpelação ideológica como ritual: “apreender até seu limite máximo a

6 Em um primeiro momento, Pêcheux apontou o funcionamento de dois “tipos” de sujeito, pelo mecanismo de identificação: o “bom sujeito” e o “mau sujeito” (Pêcheux, 1998 [1975]). Posteriormente, em uma retificação, Pêcheux esclareceu que o mecanismo de identificação-interpelação aponta para o funcionamento de três modalidades de subjetivação: a identificação, a contra-identificação e a desidentificação.

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interpelação ideológica como um ritual supõe reconhecer que não há ritual sem falhas” (idem :

300-301). Considerar a falha no ritual não significa desconsiderar a tese da interpelação

ideológica, muito pelo contrário, essa tese permanece como o fundo teórico da Análise do

Discurso, mas de certa forma modificada: não é mais no sucesso da interpelação que se toca o

sujeito, mas nos seus obstáculos (cf. Maldidier, 2003).

Devemos ressaltar que o sujeito não tem acesso às reais condições de produção de

seu discurso. Esse conceito – definido como “o conjunto de mecanismos formais que

produzem um discurso de tipo dado em ‘circunstâncias’ dadas” (Pêcheux, 1997 [1969]: 74) –

foi proposto como uma maneira de explicar o processo de produção de discurso, ou melhor,

de explicar a relação com a exterioridade que lhe é constitutiva. Cabe aqui uma observação.

Anteriormente, falamos em exterioridade relacionada à noção de interdiscurso, ou seja, aquilo

que se fala antes, em outro lugar. Agora, ao tratarmos da exterioridade, referimo-nos às

condições de produção do discurso, ou seja, aos contextos situacionais e sócio-históricos.

Esses são elementos que, mesmo não marcados materialmente no discurso, fundam sua

constituição.

Orlandi (1998a) preconiza que as circunstâncias imediatas (os contextos situacionais)

são atravessadas, ou melhor, determinadas pelo interdiscurso. Orlandi (idem) complementa

dizendo que “a significância do contexto é delimitada pelo já-dito que conforma o conjunto da

situação que intervém no dizer” (Orlandi, 1998a: 76). Importa frisar que o trabalho do

contexto não é direto, tampouco automático; não é um trabalho empírico, mas determinado

historicamente.

Voltando à noção de condições de produção, para Pêcheux (1997 [1969]), os lugares

determinados na estrutura de uma formação social estão representados nos processos

discursivos; entretanto, eles se encontram transformados. O autor ressalta que a

correspondência entre os lugares empíricos e posições discursivas não é biunívoca, pois não

são os lugares sociais e sujeitos empíricos que funcionam no discurso, mas “suas imagens que

resultam de projeções” (Orlandi, 2000: 40). São essas projeções que possibilitam passar dos

lugares sociais para as posições de sujeito no discurso.

E então, com relação a nosso corpus, nos perguntamos: quais as condições de

produção do discurso de divulgação científica? Para responder a essa questão, observamos os

sujeitos que o constituem, as posições ocupadas, a determinação histórica, o trabalho da

memória. Os lugares sociais da ciência, da mídia e do senso comum são ocupados, nesse

discurso, pelo cientista, divulgador e leitor. No entanto, como consideramos em nossas

análises, não há uma relação direta entre o lugar social e a posição. Por exemplo, divulgador

26

pode ocupar diferentes posições: aproximação com o leitor; identificação com o cientista;

oposição ao homem do campo, dentre outras.

De forma a pensar o processo discursivo, Pêcheux propõe o conceito de formações

imaginárias – que também fazem parte da constituição das condições de produção de

qualquer processo discursivo. Pêcheux afirma que todo processo discursivo é constituído por

formações imaginárias que representam “o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao

outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro” (Pêcheux, 1997

[1969]: 82). Essa maneira de reconhecer a si próprio e ao outro pode ser considerado como

um de jogo de imagens de um discurso. Daí um discurso não implicar uma mera troca de

informações entre A e B, mas sim um jogo de “efeitos de sentido” entre sujeitos.

Com base na proposta de Pêcheux, podemos explicitar o jogo de imagens que

atravessa a produção do discurso de divulgação científica da seguinte maneira:

Expressão que designa as formações imaginárias

Significado da expressão Pergunta subjacente

ID(D) Imagem do lugar do divulgador para o sujeito-divulgador

Quem sou eu para lhe falar assim?

ID(L) Imagem do lugar do leitor para o sujeito-divulgador

Quem é ele para que eu lhe fale assim?

ID(C) Imagem do lugar do cientista para o sujeito-divulgador

Quem é ele para que eu lhe fale assim?

IL(L) Imagem do lugar do leitor para o sujeito-leitor Quem sou eu para que ele me fale assim?

IL(D) Imagem do lugar do divulgador para o sujeito-leitor

Quem é ele para que me fale assim?

Quando restringimos nosso olhar para a análise do nosso corpus, a revista Ciência

Hoje das Crianças, devemos especificar a imagem do lugar do sujeito- leitor: leitor-criança e

leitor-professor.

Convém enfatizar que, além das instâncias A e B, Pêcheux incorpora ao quadro das

formações imaginárias o elemento R – que implica a noção de “contexto” ou “situação” na

qual se produz o discurso – pertence igualmente às condições de produção. Com efeito, trata-

se não de uma realidade física, mas de um objeto imaginário. Há aí também duas

representações imaginárias do referente, a saber: a imagem que o sujeito, ao enunciar seu

discurso, faz do próprio discurso ou do que é enunciado; a imagem que o sujeito, ao enunciar,

faz da imagem que seu interlocutor faz do discurso ou do que é enunciado. Em nosso estudo,

27

cabe-nos interrogar sobre a imagem da ciência para o sujeito divulgador, a do sujeito-leitor e a

do cientista.

As representações imaginárias das diferentes instâncias do processo discursivo

(imagens que A e B fazem de si mesmo, do outro e do referente) podem ser consideradas

como resultantes de processos discursivos anteriores, que por sua vez decorrem de outras

condições de produção. Tais processos dão as condições de possibilidade para a “tomada de

posição” que asseguram o processo discursivo em foco. Logo, as formações imaginárias são

sempre atravessas pelo ‘já ouvido’ e o ‘já dito’.

No processo discursivo, as formações imaginárias funcionam por meio de certos

fatores, que são: o mecanismo de antecipação, as relações de força e de sentido; todos eles

imbricados. Na antecipação, o sujeito projeta uma representação imaginária do outro e, a

partir dela, direciona as posições no discurso. Orlandi (2000) salienta que, por meio do

mecanismo de antecipação, todo sujeito pode colocar-se no lugar em que seu interlocutor

ouve suas palavras. Dessa forma, podemos compreender o modo como o divulgador significa

o leitor, o cientista e a ciência na própria prática discursiva da divulgação científica.

Podemos dizer que, no discurso de divulgação científica, há uma trama complexa das

antecipações de imagens: a imagem que o divulgador faz da imagem do leitor; a imagem que

o divulgador faz da imagem do objeto do discurso; a imagem que o leitor faz da imagem do

divulgador, assim como a do cientista. Ressaltamos que as imagens são regidas pela formas

como as relações sociais se inscrevem na história, em outros termos, há intervenção da

história nas imagens discursivas.

A noção de relação de sentido, segundo Orlandi (2000), é mantida em todos os

discursos, visto que não há discurso que não se relacione com outros. Dessa forma, “os

sentidos resultam de relações: um discurso aponta para outros que o sustentam, assim como

para dizeres futuros” (Orlandi, 2000: 39), ou seja, um discurso tem relação com “outros

dizeres realizados, imaginados ou possíveis” (idem). O discurso é tomado como um estado de

um processo discursivo contínuo, não tendo começo absoluto nem ponto final.

Por fim, a relação de força deriva da forma como a sociedade se inscreve na história.

Pautados nessa noção, é possível afirmar que “o lugar a partir do qual fala o sujeito é

constitutivo do que ele diz” (ibidem). Se o sujeito fala do lugar do cientista, seu dizer significa

diferentemente se falasse, por exemplo, do lugar do leitor do discurso de divulgação

científica.

Outro conceito teórico que tem relação direta com nossas análises é o de tipologia

discursiva. Em busca da generalidade de tipos de discurso em relação à dimensão sócio-

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histórica, Orlandi (2003b [1983]) distingue três tipos de discurso, a saber: o lúdico, o

polêmico e o autoritário. Essas tipologias não derivam nem de critérios ligados diretamente

à noção de instituição, nem de domínios de saber, tampouco de características formais, mas

incorporaram a relação da linguagem com suas condições de produção – tanto estrito

(situação) como lato (sócio-histórica). A tipologia do discurso é entendida como um princípio

organizador que, ao distanciar-se de determinações empíricas, generaliza certas características

discursivas, como também reúne determinadas propriedades e distingue classes. Cumpre

ressaltar que o tipo só pode ser entendido em relação ao funcionamento discursivo – definido

como a “atividade estruturante de um discurso determinado” (Orlandi, 2003b [1983]: 125).

A distinção entre os três tipos deriva de critérios discursivos: as condições de

produção; as relações entre os interlocutores; entre os interlocutores em relação à constituição

do referente (objeto do discurso); a interação entre os interlocutores; e a tensão entre os

processos de paráfrase e polissemia - processos determinantes na estruturação do

funcionamento do discurso.

Dos dois processos de funcionamento, o primeiro tende a permanência do sentido sob

diferentes formas, ocorrendo uma reiteração dos processos já cristalizados pelas instituições.

Na paráfrase, o dizível se mantém em um espaço já instituído. O segundo, a polissemia

instaura a multiplicidade de sentidos, rompe com os processos de dominância de sentidos

(ruptura ocasionada pela tensão constante entre linguagem e contexto sócio-histórico),

podendo realizar um deslocamento em relação ao dizível. Disso resulta afirmar, que a

produção da linguagem acontece no jogo discursivo constante dos processos de paráfrase e

polissemia.

Postas as considerações gerais sobre paráfrase e polissemia, retornamos às tipologias

discursivas. Sabemos que todo discurso é polissêmico, porém, dependendo da relação dos

interlocutores com o objeto do discurso, haverá “maior ou menor carga de polissemia”

(Orlandi, 2003b [1983]: 154). Vejamos a definição de cada tipo.

O discurso lúdico trata da multiplicidade de sentidos. O objeto está presente e os

interlocutores se expõem ao objeto. Segundo Orlandi (idem), há no discurso lúdico a expansão

da polissemia, visto que o referente do discurso está disposto à presença dos interlocutores.

Disso resulta dizer que a polissemia é aberta. Logo, o discurso lúdico é o pólo da polissemia,

da multiplicidade de sentidos.

No discurso polêmico, a polissemia controlada, visto que chega a um sentido

negociado. O referente do discurso está presente e os interlocutores (cada qual) procuram

29

estabelecer um sentido para ele. Nesse discurso, o jogo entre a paráfrase (o mesmo) e a

polissemia (o diferente) é entreaberto.

No discurso autoritário, a polissemia é contida. Um sentido único é imposto, pelo

sujeito do discurso. O objeto do discurso é falado, mas não é mostrado. Em linhas gerais,

podemos dizer que o discurso autoritário “não expõe o sujeito ao jogo” polissêmico (Orlandi,

1988b: 16).

Além das características expostas acima, as tipologias devem acolher a dinâmica da

interlocução, ou melhor, “a dinâmica da tomada da palavra” (id, 2003b [1983]: 239). Essa

dinâmica é determinada pela reversibilidade . Dessa forma, a autora considera o grau de

reversibilidade em cada um dos discursos: no discurso lúdico, a reversibilidade entre

interlocutores é total; no polêmico, a reversibilidade se dá sob certas condições; e no

autoritário, ela tende a zero, ou seja, o discurso autoritário não permite a reversibilidade.

Entende-se por reversibilidade a possibilidade de movimento nas posições sujeito.

Em nosso corpus, de forma a compreender o funcionamento do discurso de divulgação

científica para crianças, observamos a dinâmica da interlocução. Dessa forma, observamos, no

discurso de divulgação científica, que reversibilidade não se destina a fixar de forma

categórica o divulgador no lugar do divulgador e o leitor no lugar do leitor. Tais lugares são

definidos quando referidos ao processo discursivo, ou seja, um se define pelo outro e, nessa

relação, estabelecem o espaço da discursividade.

No artigo “Paráfrase e polissemia: a fluidez nos limites do simbólico”, Orlandi

(1998b), ao trabalhar a contradição existente entre paráfrase e polissemia, destaca que as duas

noções ocupam um lugar de tensão no funcionamento da linguagem; tensão, pois um processo

não existe sem o outro. Na paráfrase, ocorre a reiteração, uma tentativa de manutenção dos

mesmos sentidos. Já na polissemia, há a produção da diferença. O que funciona nessa tensão

entre o mesmo e o diferente, na constituição dos sentidos, é o trabalho da memória com as

condições de produção.

No referido artigo, a autora retoma a definição das tipologias. Distanciando-se da

noção de interação, Orlandi (idem) redefine a noção de reversibilidade e introduz a noção de

intercambialidade. Enquanto a primeira noção se refere ao deslocamento de diferentes

posições, a segunda se refere à possibilidade de substituição, em uma mesma posição, e à

impossibilidade em posições diferentes. Dessa forma, Orlandi põe em pauta a possibilidade de

produção de deslocamento na voz dominante. E aqui cabe uma questão: há, no discurso de

divulgação científica, a legitimidade do discurso do leitor? Há reversibilidade entre as

posições do divulgador e do leitor?

30

Embora a caracterização de cada tipo pareça, a princípio, estanque, não se pode falar

de uma essência dos tipos, mas de tendência. Nas palavras da autora, “o lúdico tende para a

polissemia, o autoritário tende para a paráfrase, o polêmico tende para o equilíbrio entre

polissemia e paráfrase” (Orlandi, 2003b [1983]: 155). Ressalta-se que não há necessariamente

tipos puros, o que há são misturas de tipos. Nessas misturas, há um jogo de dominância entre

as três tipologias que deve ser observado em cada prática discursiva. Não é possível

determinar a dinâmica dos tipos a priori, ou seja, a tipologia discursiva não é dada, é um

processo. A interpretação de qualquer tipologia resulta do trabalho de análise do

funcionamento discursivo que deve levar em conta as condições de produção e as relações

mantidas com as formações discursivas. Para se caracterizar um tipo é preciso “determinar

qual é sua(s) propriedade(s) e depois referir as marcas a essa(s) propriedade(s)” (idem : 236).

Como não existem marcas específicas para cada tipo de discurso, cabe ao analista identificar o

funcionamento da marcas em dada condição de produção de um ou outro discurso.

Devemos ressaltar que a noção de tipo é uma sedimentação histórica, ou seja, o tipo é

o produto de um funcionamento discursivo que se cristalizou historicamente. Ao considerar

os tipos de discurso não podemos desconsiderar as condições sócio-históricas que os

constituem. Ao considerar essa condição, Orlandi afirma que o discurso lúdico coloca-se

como um contraponto entre o polêmico e o autoritário, uma vez que

em uma formação social como a nossa, o lúdico representa o desejável. O uso da linguagem pelo prazer (o lúdico), em relação às práticas sociais em geral, no tipo de sociedade em que vivemos, contrasta fortemente com o uso eficiente da linguagem voltado para fins imediatos, práticos, etc., como acontece nos discursos autoritário e polêmico. Nesse sentido não há lugar para o lúdico em nossa formação social. O lúdico é o que “vaza”, é ruptura (Orlandi, 2003b [1983]: 154-155 – grifos nossos).

Mesmo representando o desejável, o discurso lúdico vaza, visto que, em nossa

sociedade, organizada sobre homogeneidade lógica dos sentidos, o lugar ao non sense, ao

chiste e à polissemia aberta é coibido, sobretudo, nos espaços onde vigora a seriedade.

Sobre o discurso da seriedade, impõe-se trazer as reflexões de Orlandi (2003b). Ao

considerar a palavra “sério” no discurso acadêmico, a autora interrogou-se sobre o efeito de

sentido em enunciar a “seriedade”: uma palavra reivindicada para se colocar em

funcionamento “processos de exclusão e de atribuição de prestígios e poderes” (Orlandi,

2003b [1983]: 265). Na conquista ou manutenção de poder, o sujeito ao se apresentar como

sério, exclui o outro como não-sério e silencia-o. Por outro lado, o sujeito, ao se dizer sério,

não só se legitima, como também todos aqueles que reproduzem o mesmo discurso. Em suma,

para Orlandi, “o discurso da seriedade realiza tanto o objetivo do silenciamento como o da

31

injunção ao dizer: de um lado, silencia e, de outro, obriga a reprodução do discurso instituído

(o do mesmo)” (idem : 268). O discurso da seriedade tem seu funcionamento pautado no

reconhecimento, por parte do outro, da seriedade do sujeito do discurso.

Observamos que, historicamente, o discurso da ciência, que se coloca no imaginário

como verdadeiro, verificável, legitima-se como sério e silencia outros discursos, como por

exemplo, o do homem do campo e/ou o dos não- letrados, dos marginalizados. A imprensa,

por sua vez, também toma esse discurso como sério, produzindo um efeito de

respeitabilidade.

Nas tipologias definidas por Orlandi (2003b [1983], 1998b), encontramos uma

tendência: “a forma do discurso autoritário passa a ser a forma da linguagem em geral” (id,

2003b [1983]: 157). Seria essa a tendência do discurso de divulgação científica para crianças?

Ou poderíamos considerá-lo do tipo lúdico? Com certeza, essa é uma questão que se impõe

em nossas análises.

Por fim, destacamos a relação entre discurso e texto. Podemos dizer que tanto a

pretensa unidade do sujeito, quanto a do texto são produzidas pela relação do sujeito com a

formação discursiva que o domina. Nas próximas linhas, versamos, especificamente, sobre as

noções de texto e autor.

Ao longo de sua reflexão teórica, Orlandi (1999 e 2005) propõe trabalhar mais

especificamente a noção de texto. Em um primeiro momento, para apreender como se

constitui a relação do sujeito com o texto, a autora observou a história da própria palavra

texto. Segundo Orlandi (1999),

a palavra texto, no século XII, significa ‘livro de evangelho’. No século XIII, perde seu caráter estritamente sagrado para ter um sentido mais geral. Passa, então, a designar qualquer texto, sagrado ou profano. Isso acontece dada a pressão de textos profanos: a grande quantidade de textos autênticos (sagrados) e comentários (profanos). Mais tarde, autêntico vai-se referir não ma is à distinção entre sagrado e profano, mas entre o autor (ou aquele que é reconhecido como autor) e o que não o é (Orlandi, 1999: 48).

Esse percurso histórico da palavra ‘texto’ nos faz pensar em uma distinção entre o

texto científico e o texto da divulgação científica que parece circular em nossa sociedade:

seria o texto científico autêntico (sagrado) em relação ao de divulgação (profano)?

Retornando às considerações de Orlandi (1999), podemos dizer que um texto se

realiza como um conjunto de enunciados, um objeto empírico, uma superfície lingüística, que

ilusoriamente, tem começo, meio e fim. Entretanto, diz-nos a autora que, se consideramos o

texto em contrapartida ao discurso, não podemos tomá-lo como unidade fechada.

32

Segundo Orlandi (idem), o discurso é caracterizado duplamente pela dispersão: a dos

textos e dos sujeitos. Assim sendo, a autora afirma que o texto é atravessado por várias

posições do sujeito e que estas podem corresponder a diversas formações discursivas. Do

ponto de vista da constituição, todo texto é heterogêneo.

De forma a refletir sobre os conceitos de discurso e texto, trazemos nosso tema de

pesquisa. Se for possível falar em um discurso de divulgação científica (ou em um estado

resultado de processos discursivos sedimentados, institucionalizados de divulgação

científica), este é materialmente marcado por uma dispersão de textos: artigos em revistas de

divulgação, notícias em jornais (impressos e televisivos), livros de divulgação, etc. E um texto

de divulgação científica, como os artigos grandes da revista Ciência Hoje das Crianças, é

atravessado por várias posições-sujeito, como veremos nos capítulos referentes às análises.

Tomando o texto como uma linearidade do discurso (este sempre disperso),

consideramos que qualquer modificação em sua materialidade corresponde a distintas

relações com a exterioridade que o constitui, ou seja, a diferentes gestos de interpretação.

Vale destacar que, em Análise do Discurso, o gesto é considerado um ato no nível simbólico

(Pêcheux, 1997 [1969]). Sendo o sujeito condenado a interpretar, o gesto de interpretação,

também um ato simbólico, é marcado pelo trabalho da linguagem na história.

O processo de textualização do discurso – linearização da dispersão – se faz com

“falhas”. Na textualidade da matéria discursiva, há uma distância não preenchida,

incompletude que marca a abertura do texto em relação à discursividade. Essa abertura é uma

possibilidade do sujeito significar indefinidamente. Para Orlandi (2001a), a textualização –

um efeito imaginário de unidade – é uma versão praticada dentre inúmeras possíveis. Em suas

palavras, “as margens das diferentes versões exibem difíceis limites fluidos e cambiantes” (id,

2005: 65). Nessas margens, há pontos de deriva possíveis que indicam possibilidades de

formulação. São outros tantos textos possíveis.

Uma questão que surge na relação do discurso com o texto é a noção de autor.

Foucault (1982 [1969], 2001 [1971]) põe em relevo a noção de autor em duas obras distintas,

a saber: “O que é o autor?” e “A ordem do discurso”. Para Foucault, o autor é um princípio de

controle interno dos discursos. Em suas palavras,

o autor, não entendido, é claro, como um indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento de discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência (Foucault, 2001[1971]: 26).

33

Foucault considera a função-autor – função unificadora que organiza, agrupa e toma

um texto – a alguns discursos, enquanto outros são excluídos dessa atribuição. Para o autor,

“esse princípio não voga em toda parte nem de modo constante” (idem). Seriam discursos que

circulam sem receber seu sentido ou sua eficácia de um autor ao qual são conferidos:

conversas cotidianas, decretos ou contratos que necessitam de signatários, receitas técnicas

que se transmitem no anonimato.

O surgimento do autor constitui um momento de individualização: indivíduo inserido

na história das idéias, do conhecimento, da literatura, da filosofia e das ciências. O discurso

portador da função-autor aparece como objeto de apropriação, ligado, historicamente, à

questão da apropriação penal – uma questão de instituição do sistema de propriedade. O autor

torna-se juridicamente responsável pelo seu texto e passível de penalidades por eventuais

transgressões. É uma função ligada ao sistema jurídico e está sujeita às coerções das

instituições.

Outra propriedade da função-autor é que ele produz a possibilidade e a regra de

formação de outros textos, ou melhor, é um fundador de discursividade. Em suma, a função-

autor é característica, segundo Foucault (idem), de um modo de existência, de certos

discursos no interior da sociedade.

Orlandi (1999) toma a noção de autoria como uma extensão àquela elaborada por

Foucault; extensão, pois atribuiu “um alcance maior e que significa o princípio da autoria

como necessário para qualquer discurso, colocando-o na origem da textualidade” (Orlandi,

1999: 61). No sentido em que toma a autoria, Orlandi (idem) assinala que a própria unidade

ilusória do texto é efeito discursivo derivado da função-autor. Assim sendo, o autor é a

função que o eu assume enquanto produtor de linguagem, ou seja, quando o sujeito se coloca

ilusoriamente na origem do que diz, afetado pelos dois esquecimentos já mencionados.

A função-autor é a dimensão discursiva do sujeito que está mais determinada pela

relação com a exterioridade (contexto sócio-histórico) e, portanto, mais submetida às regras

das instituições. “Nela são mais visíveis os procedimentos disciplinares” (idem : 77). E é

dessa função que mais se cobra a ilusão de ser origem e fonte do discurso, de

responsabilidade pelo texto produzido. Pode-se dizer que nela a relação com a linguagem está

mais sujeita ao controle, pois se imputam ao autor exigências tais como: coerência,

explicação, clareza, originalidade, não-contradição, conhecimento de regras textuais.

Pode-m dizer que a constituição do autor e a do texto são contemporâneas.

Explicando melhor, a função-autor se instaura quando o sujeito se coloca na origem do seu

dizer. Esse gesto de constituição do sujeito em autor é, ao mesmo tempo, o que constitui o

34

texto como unidade de sentidos. Na instância do imaginário, o sujeito posiciona-se em

função-autor que começa, progride e termina um texto. Na dispersão do discurso, o autor dá

unidade, organiza as posições-sujeito em um todo supostamente coerente, conciso, fechado.

Orlandi (2001a, 2005) propõe tratar o texto e o autor como contrapartes da relação com o

discurso e o sujeito. Se é na função-autor que o sujeito é mais afetado pelas determinações

sociais, ou seja, cobrado pela responsabilidade do dito, pela unidade, também é no texto

(linearização, dimensionamento e textura do discurso) que se deve organizar a dispersão

segundo injunções da sociedade e das instituições. Em outros termos, o texto denuncia o

movimento contínuo entre unidade e dispersão.

Podemos dizer que o texto de divulgação científica é considerado uma versão, uma

textualidade possível, no qual o sujeito-autor (divulgador) produz gestos de interpretação na

distância produzida quando da linearidade do discurso de divulgação científica.

1.2 Procedimentos analíticos

No que tange às questões teórico-analíticas, não pretendemos configurar um método

fechado e totalmente formalizado como é suposto em uma visada positivista. Muito pelo

contrário, em Análise do Discurso, não podemos recorrer a um método específico, a uma

metodologia de pesquisa definida por critérios empíricos, positivistas. Não há o método a ser

seguido, mas caminhos a serem construídos pelo analista frente às questões de pesquisa e ao

seu material de análise. Como foi dito, os conceitos teóricos têm seu valor enquanto

operadores na análise.

Orlandi (2000) indica três grandes etapas metodológicas possíveis de serem realizadas

em uma pesquisa inspirada pelo quadro teórico da Análise do Discurso. A primeira refere-se

à constituição do corpus, a segunda trata da delimitação do objeto discursivo e a terceira

corresponde à investigação do processo discursivo. Cabe destacar que todas as etapas estão

intimamente ligadas, assim como seus procedimentos. Para a autora,

inicia-se o trabalho de análise pela configuração do corpus, delineando-se seus limites, fazendo recortes, na medida mesma em que se vai incidindo um primeiro trabalho de análise, retomando-se conceitos e noções, pois a Análise do Discurso tem um procedimento que demanda um ir-e-vir constante entre teoria, consulta ao corpus e análise. Esse procedimento dá-se ao longo de todo o trabalho (Orlandi, 2000: 66-7).

Nossa análise é marcada por idas e vindas, ou seja, todos os passos de análise (desde a

coleta do corpus até a etapa final de análise) são mediados, permanentemente, pelo quadro

35

teórico. Dessa forma, a análise não é uma atividade final que objetiva descrever dados, mas

um processo contínuo, iniciado pela constituição do corpus – que se organiza face à natureza

do material e à(s) pergunta(s) de pesquisa – e finalizado pelo cotejo de determinados

funcionamentos discursivos. O ponto de vista teórico é imprescindível, uma vez que baliza

todo processo de análise. E esta, por sua vez, retorna ao corpo teórico.

O corpus em Análise de Discurso é instável e provisório (Orlandi, 2003a). Isso nos

remete a pensar o corpus não como um depósito de dados prontos que podem ser observados

e medidos, mas uma construção de montagens discursivas que obedecem a determinados

critérios teóricos em face aos objetivos da pesquisa. Como nos lembra Orlandi (2000), nunca

estamos diante de um corpus inaugural, pois ele resulta de uma construção do próprio

analista.

O objeto de análise não é algo pronto, precisa receber certos tratamentos. Esse

primeiro tratamento da materialidade lingüística fornece pistas para a compreensão do modo

de funcionamento do discurso, ou melhor, a partir de “vestígios” lingüísticos a análise do

processo discursivo pode ser desenvolvida.

Os “vestígios” lingüísticos – marcas identificáveis na superfície lingüística que remete

à existência material da língua (Pêcheux, 1988 [1975]) – não apresentam uma relação

automática com o processo discursivo. Deve-se considerar o modo como tais marcas

aparecem no discurso, em outros termos “temos de estabelecer seu modo de existência em

relação à propriedade do discurso que é o objeto da análise, já que estamos caracterizando

significativamente o discurso, em relação às marcas que o constituem” (Orlandi, 2003a: 10).

Este primeiro momento é chamado por Pêcheux e Fuchs (1997 [1975]) de “de-

superficialização” e é feito em contato direto com o texto.

As unidades de análise, ou seja, os textos coletados – o material bruto – após a de-

superficialização cedem seu “lugar à compreensão de todo um processo discursivo do qual

eles fazem parte” (Orlandi, 2000: 72), entretanto, permanecem "abertos" para inúmeras

investigações. Há uma provisoriedade nos textos, ou melhor,

os textos, enquanto objetos que se constituem em materiais da Análise de Discurso, são provisórios. A duração do texto se dá, de um lado, empiricamente, porque são constituídos de materiais tangíveis, e, de outro, no trabalho de arquivo porque eles permanecem (são acondicionados) como parte da memória institucionalizada. Feita a análise, no entanto, o analista prescinde dos textos. Uma vez atingido o processo discursivo este é que dá ao analista as indicações de que ele necessita para compreender a produção dos sentidos. Os textos deixam de ser seus objetos (idem: 72-3).

36

Verificamos, na citação acima, a distinção entre objeto de análise (o texto) e o objeto

teórico (o discurso). É importante destacar que o tratamento de “de-superficialização” não

pode ser confundido com o mero mapeamento factual e, por vezes, qualitativo das marcas

lingüísticas. A de-superficialização é fundamental para que ocorra a passagem do material de

linguagem bruto ao objeto discursivo. Como podemos verificar,o objeto discursivo não é

dado, ele supõe um trabalho do analista e, para se chegar a ele, é preciso converter a

superfície lingüística (o corpus bruto) em um objeto teórico, isto é, um objeto

lingüisticamente de-superficializado: o objeto discursivo. Ao atingir esse objeto, o analista

obtém, desse primeiro procedimento, as indicações necessárias para compreender a produção

dos sentidos.

Em outra etapa, da análise dos processos discursivos relacionada às formações

discursivas distintas resulta o produto da análise. Tem-se com esse produto, segundo Orlandi

(2000), a “compreensão dos processos de produção e de constituição dos sujeitos em suas

posições” (Orlandi, 2000: 72).

A operacionalização desses processos não se realiza pela segmentação de frases

(como na lingüística), mas o por recortes – uma unidade discursiva, entendida como

“fragmentos correlacionados de linguagem-e-situação” (id, 1984: 14). “um fragmento de

situação discursiva” (idem). Recortar pressupõe relacionar sentidos que não estão,

necessariamente, linearmente apresentados no texto. O recorte não é segmento mensurável

em sua linearidade, mas é fragmento, pedaço, naco (cf. Orlandi, 1984). A autora apresenta

uma distinção entre “segmentação lingüística” – a qual opera com a análise frasal – e o

“recorte discursivo” – que opera com a análise discursiva.

Com essa proposta, supera-se a posição lingüística que apenas considera o domínio da

distribuição dos segmentos para uma relação não positivista da relação partes com o todo.

Indursky (1990) acrescenta que “o exame puramente textual de um fragmento não faz dele

um recorte. Para que tal passagem se dê, faz-se necessário considerá- lo em sua dimensão

discursiva” (Indursky, 1990: 122). Para que um fragmento textual seja um recorte discursivo,

é preciso examiná- lo em suas relações com a memória. Para Serrani (1993), a reprodução de

seqüências discursivas supera o mero caráter de exemplo, no sentido de elemento

apresentado, sobretudo, com a função de ilustrar uma afirmação.

O recorte se apresenta como uma unidade discursiva em que se pode compreender o

funcionamento discursivo. Não há um princípio único segundo o qual o recorte se efetue – o

que não significa dizer que não seja regulado. Ele se faz de acordo com o objeto de análise e

varia segundo os diferentes tipos de discurso, segundo a configuração das condições de

37

produção. Os recortes contêm seqüências discursivas (SDs) que já mostram um

encaminhamento da análise.

As orientações sobre o dispositivo teórico em Análise do Discurso incidem na

construção do corpus pelo do analista. Não há um caminho pronto a se percorrer, mas um

caminho a ser trilhado a partir das pistas colocadas na superfície lingüística dos materiais

textuais que são analisados.

Seguindo as orientações acima, enveredamos na primeira etapa: constituição do

corpus bruto. Para tal, iniciamos pela coleta de edições da revista Ciência Hoje das Crianças.

Visitamos a sede do Instituto Ciência Hoje, situado ao campus da Praia Vermelha da UFRJ na

cidade do Rio de Janeiro. Lá encontramos exemplares (a partir do ano de 2000) disponíve is

para venda. As edições anteriores ao ano de 1999, no entanto, só estão disponíveis para

consulta dos próprios funcionários do Instituto. Recorremos à outra fonte de buscas: a

biblioteca do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), localizado em São Cristóvão,

também na mesma cidade. Encontramos no acervo da instituição quase todos os exemplares

editados. Sem dúvida, foi o nosso principal local de coleta de material bruto.

Contemplamos as edições dos últimos vinte anos da revista – o que representa 176

exemplares7. Nosso material principal de análise é a revista Ciência Hoje das Crianças, uma

publicação do Instituto Ciência Hoje – uma organização social de interesse público que

assume ser sem fins lucrativos, vinculada à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência

(SBPC) –, cuja principal meta é a divulgação da ciência para a sociedade.

Das várias seções da revista, consideraremos as seguintes:

• o editorial (da revista e do encarte “Dicas do Professor”)

• os artigos grandes;

• a seção “Quando crescer, vou ser...”;

• a seção de cartas dos leitores.

No editorial, analisamos, sobretudo, a imagem do divulgador. Nas seções de artigos

grandes e na seção “Quando crescer, vou ser...” analisamos as imagens de leitor e de cientista.

E na seção de cartas, como o leitor assume (ou não) a função-autor.

Também achamos relevante incorporar ao corpus bruto o encarte: “Dicas do

Professor”, um material destinado a professores da rede pública. Destaca-se que esse encarte

só é encontrado nos exemplares comprados e distribuídos pelo Ministério da Educação

(MEC). As revistas enviadas às escolas públicas têm a logomarca da FNDE (Fundação

7 A lista contendo o número de cada revista, mês e ano de publicação encontra-se no anexo 1.

38

Nacional de Desenvolvimento da Educação) impressa na capa e a designação “segunda

edição”. Coletamos os encartes de nº 97 e 98, ambos publicados no ano de 1999.

Após essa breve explanação sobre o corpus bruto, podemos considerar que o mesmo

se compõe heterogeneamente, mas tendo em comum o fato de que seus elementos constituem

parte de um projeto de divulgação científica.

Decidir o que faz parte do corpus já é decidir acerca das propriedades discursivas.

Podemos adiantar que, em relação à revista, os recortes serão orientados pelas seguintes

questões:

Quem é o leitor da revista Ciência Hoje da Criança? Como ele é discursivizado? Quais imagens de divulgador, de leitor e de cientista são construídas pela revista? A revista atualiza ou não certas relações do Estado com a ciência e a sociedade? Qual tipologia discursiva (lúdico, polêmico, autoritário) é dominante no discurso de divulgação científica para crianças?

Nosso corpus discursivo é constituído de seqüências discursivas oriundas de

materialidades distintas. As seqüências foram organizadas a partir de eixos parafrásticos,

observando para tal o modo de funcionamento das marcas lingüísticas (pronomes, advérbios,

adjetivos, sinais de pontuação, conjunções, perguntas, dentre outras) no discurso de

divulgação científica. Vale destacar que as seqüências foram numeradas no interior de cada

capítulo.

Além do corpus principal, constituímos, um corpus auxiliar, que tem como objetivo

esclarecer questões de análise suscitadas e que não podem ser respondidas pelo corpus

principal. A utilização de o corpus auxiliar8 permite-nos melhor observar a discursividade de

diferentes textos em diferentes momentos históricos. Para a construção desse corpus,

seguimos o procedimento metodológico chamado de “montagem de textos”, tal como

proposto por Orlandi (2006).

O corpus auxiliar que delimitamos está organizado em torno dos séculos XIX, XX e

XXI, e os materiais de linguagem analisados são:

• artigos acadêmicos;

• trechos de livros de literatura infantil;

• entrevistas;

8 Em anexo, listamos os materiais que compõem nosso corpus auxiliar. Confira o anexo 3.

39

• documentos produzidos por associações;

• dicionários .

Esse corpus é utilizado como uma maneira de buscar regularidades dispersas,

comparar diferentes séries temporais. Tais regularidades são identificadas na confluência da

constituição (interdiscurso) e da formulação (intradiscurso). É a memória discursiva que

possibilita a constituição dos dizeres. No movimento, ou melhor, por entre lembrança e

esquecimento, que a memória é atualizada no fio de cada discurso. E aí (no fio discursivo)

podemos encontrar as regularidades.

Como já apontamos na seção anterior, a dispersão de textos – textos que dialogam e

apontam para redes de sentidos – configura que estamos lidando com a natureza heterogênea

do discurso. Referindo-nos aos recortes de diferentes textos que compõem o corpus auxiliar,

tomamos as palavras de Orlandi como nossas, pois

são recortes que nos interessam, colocando em relação textos diferentes e que nos mostram propriedades importantes em relação ao tema de nossa pesquisa, na medida em que indicam características dos processos de significação (Orlandi, 2003a: 11).

A constituição de um corpus auxiliar mostrou-se preponderante para responder as

questões que surgiram no desenrolar da pesquisa. Buscamos compreender quais efeitos de

sentidos são vinculados às designações9 “criança” e “divulgação científica”. Como se dá o

jogo entre o mesmo e o diferente, ou seja, como certos sentidos de criança e de divulgação

científica se mantêm ou se deslocam em função de diferentes condições de produção e da

relação mantida com a memória discursiva.

Em suma, com a intervenção da teoria, coletamos textos, selecionamos, recortamos –

sempre buscando respostas a certos questionamentos – e agrupamos seqüências em eixos

parafrásticos. Enfim, montamos nosso corpus discursivo.

Um pouco mais sobre a revista

A revista Ciência Hoje das Crianças é designada como “a única revista brasileira de

divulgação científica para o público infantil”10. O Instituto ainda é responsável pela

publicação da revista Ciência Hoje, dos livros paradidáticos da série Ciência Hoje na Escola e

9 Trabalhamos com a noção de designação, tal como apresentada por Guimarães (2001), no capítulo 2 de nossa tese. 10 Conferir o anexo 14.

40

de livros na área de divulgação científica (Cientistas do Brasil e Pequeno manual de

divulgação científica). O ICH atua na divulgação científica em meios audiovisuais (o

programa televisivo Tome Ciência e vários filmes de 30 segundos) e desenvolve o Programa

Ciência Hoje de Apoio à Educação (PCHAE), que objetiva melhorar a qualidade do ensino

nas escolas públicas brasileiras.

A revista, doravante CHC, tem periodicidade mensal e é composta por “três artigos

grandes sobre diferentes temas da ciência; experiências; jogos; contos11; resenhas (sobre

livros, discos, filmes, peças de teatro, televisão, brinquedos); cartaz (patrimônio natural,

cultural, e histórico) e uma seção de cartas com os palpites e as contribuições do público”.

(Sousa, 2000: 75). Ao considerar as publicações dos últimos anos, as seções mais recorrentes

são: matérias e artigos; experiências; “Por que”; jogos e passatempos; “Quando crescer, vou

ser...”; galeria de bichos ameaçados; bate-papo e seção de cartas.

A revista caracteriza-se por publicar temas relativos às ciências humanas, exatas,

biológicas, da terra, ao meio ambiente, à saúde, às tecnologias e à cultura – que em geral é

representada pela publicação de contos e lendas. Um lugar especial é concedido à poesia: a

contracapa.

Cabe destacar que poucos trabalhos versam sobre a revista. Podemos citar ao menos

dois12. Um deles é a tese de doutorado de Sousa (2000), intitulada “A divulgação científica

para crianças: o caso da Ciência Hoje das Crianças”, o outro é o artigo de Encarnação (2001),

cujo título é “Criança e ciência: o relato de uma relação possível e de muito entusiasmo”. Ao

longo de nossa pesquisa, retomaremos o trabalho das duas autoras. Suas constatações serão

introduzidas não como verdades definidoras sobre a revista, mas apenas como um ponto de

vista.

De acordo com Encarnação (2001) e Sousa (2000), o objetivo da revista é promover a

aproximação entre cientista e público infanto-juvenil, incentivando o fazer e o saber

científicos e estimulando a curiosidade infantil para fatos e métodos da ciência; acrescentando

doses de humor e diversão. Tal proposta tem como finalidade levar a criança a construir suas

próprias explicações para os fenômenos que a cercam a partir do conhecimento científico

11 Diz Sousa (2001: 142) que “a escolha por colocar contos, adivinhas, parlendas, poesias e cantigas na revista Ciência Hoje das Crianças apoiava-se no reconhecimento da capacidade de fabulação das crianças”. Seria essa uma capacidade da criança ou uma capacidade posta para a criança? 12 Sobre as referidas autoras , cabem duas ressalvas. Sousa (2000) trabalhou com divulgação científica na coordenação da produção da revista Ciência Hoje das Crianças, de 1986 a 1994, e no Departamento de Educação do Museu de Astronomia e Ciências Afins, de 1992 a 2001. Encarnação (2001) é jornalista e editora executiva da revista Ciência Hoje das Crianças. Portanto, o gesto de interpretação dessas autoras é produzido no interior da FD que constitui a revista. Ao longo de nossa tese, dialogaremos como esses trabalhos, ou melhor, retornaremos a esses dois trabalhos, seja para confirmá -los ou refutá-los.

41

apresentado nas várias seções da revista. Constatamos em nossas análises que, na divulgação

científica para crianças, há um jogo de discursividades que contrasta o lúdico à suposta

seriedade da ciência.

As matérias científicas, produzidas por pesquisadores da comunidade científica

brasileira, são, em geral, encomendadas pela equipe. Para que os artigos sejam publicados,

algumas etapas são realizadas. De forma a detalhar as etapas de preparação da revista, Sousa

(2000) enumera uma ordenação de atividades (seu modus operandi): a) a material recebido é

avaliado por um comitê; b) já aprovado o conteúdo, é encaminhado à redação para que os

jornalistas façam uma “adaptação da linguagem”13; c) o texto é novamente submetido ao

comitê e ao autor; d) a versão editada, já autorizada pelo autor, passa para a edição de arte,

que busca dar ao texto uma apresentação gráfica atraente para as crianças.

Essa explicitação recupera os meandros da produção da revista e mostra como a

prática jornalística da divulgação pauta na ilusão de referencialidade, de informatividade e de

reformulação de texto fonte.

Inicialmente, a CHC circulava encartada à revista Ciência Hoje; estrutura mantida até

1990. De fato, sua formatação indicava que se tratava de uma publicação destinada aos filhos

dos leitores da revista Ciência Hoje. Vale lembrar que um esboço da revista foi elaborado em

1984, mas que somente em maio de 1986 a revista foi criada O primeiro encarte, o número

zero, foi publicado em dezembro de 1986 e continha dezesseis páginas, sendo oito em

formato de revista e oito em formato de cartaz. Segundo Sousa (2000), para a realização do

número zero da CHC, várias revistas estrangeiras para crianças14 foram consultadas, tais

como: Billiken (revista argentina), Wapti (revista francesa), Chispa15 (revista mexicana) e

Highlights for children (revista norte-americana).

Em 1989, após uma avaliação técnica realizada por uma comissão nomeada pela

diretoria da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), decidiu-se, 13 Sousa (2000) e Encarnação (2001) apontam que, na tentativa de tornar os artigos e matérias mais leves e palatáveis para os pequenos leitores, recursos lingüís ticos como comparações e metáforas são extremamente utilizados. Esse fato também foi constatado por Zamboni (1997) que, ao analisar os recursos metalingüísticos específicos na divulgação para crianças (em um cartaz da CHC), notou que as comparações buscam equivalências no conhecimento prévio das crianças no mundo de sua vivência diária. Destacamos que em AD não trabalhamos com a possibilidade de “adaptação de linguagem”. Essa questão será apresentada nos próximos capítulos. 14 Algumas das revistas eram de interesse geral e continham apenas alguma seção destinada à ciência. 15 A revista Chispa teve início em setembro de 1980 e teve duração de dezenove anos. Caracterizou-se por ser uma publicação mensal destinada a crianças entre oito e onze anos. Como diretriz geral, a revista seguia os programas oficiais de ciências para séries finais da educação primária. Um dos seus objetivos era contribuir, de forma complementar, com a educação escolarizada (considerada lacunar em relação ao conhecimento científico). O público considerado eram as crianças, seus familiares, professores do ensino básico e jovens operários. Os conteúdos incluíam as ciências básicas, as humanidades, as ciências sociais e a técnica. Os temas eram escolhidos a partir de livros do ensino formal ou de eventos publicados na imprensa (cf. Garza, 2005).

42

favoravelmente, à independência do projeto da CHC. A revista passou a contar com um

conselho editorial próprio e, a partir de setembro de 1990, foi transformada em uma revista

independente. Não se pode olvidar, no entanto, um outro fator preponderante na colaboração

da independência editorial da revista: a compra de vários exemplares pela FAE. Como lembra

Sousa (2000), “a aquisição, pela Fundação de Apoio ao Estudante – FAE, vinculado ao

Ministério de Educação – MEC, de 50 mil exemplares de coleções, em dezembro de 1989,

destinadas ao projeto Sala de Leitura foi um indicador da possibilidade da revista se

consolidar como material paradidático” (Sousa, 2000: 238). Em termos de diagramação, a

revista passou a ser publicada com vinte e quatro páginas, sendo as oito páginas de cartaz

reduzidas a quatro e fixadas em seu interior. A mudança ocorreu em função de duas ordens

distintas: facilitar a coleção e a encadernação; possibilitar a venda regular da revista ao Fundo

Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE – para o programa Sala de Leitura.

A independência da revista não estaria atrelada ao fato de poder ser comercializada e

circular em outros espaços além daquele dos leitores da Ciência Hoje?

É importante ressaltar que a revista mudou sua forma de circulação (de bancas de

jornais para bancos escolares) e produziu novos leitores. Se, em sua fase inicial, os leitores

eram os filhos dos leitores de Ciência Hoje, com a entrada na escola, via “Sala de Leitura”, a

revista passou a ter como leitores tanto alunos quanto professores de escolas públicas de

vários municípios brasileiros. Do nosso ponto de vista, que é o discursivo, a mudança na

forma de circulação da revista, mais do que ind icar uma variação no “público-alvo”, aponta

para uma relação entre revista e escola – lugar onde se materializam os sentidos de ciência,

onde se ritualiza a memória do que é científico e do que não-científico.

Deve-se registrar que a maior parte dos recursos financeiros da CHC é oriunda do

Ministério da Educação, responsável pela compra de mais de 180 mil exemplares que são

distribuídos todos os meses em cerca de 100 mil escolas públicas de todo o país.

No início da década de noventa, precisamente no ano de 199216, a revista foi avaliada

em termos de qualidade editorial e de potencial como material paradidático. Afirma Sousa

(2000) que o objetivo da avaliação era mapear os possíveis usos da revista em escolas de

diferentes estratificações sociais. Ainda eram previstos cursos para professores sobre o uso da

revista. Ao longo dessa década, o ICH realizou várias pesquisas17 com a revista CHC em

diferentes municípios: São Paulo (1992), Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo, Belo

16 No mesmo ano, a revista recebeu o prêmio José Reis de Divulgação Científica, na modalidade Instituição. Vale lembrar que tal prêmio foi criado pelo CNPq em 1978. 17 Em geral, as pesquisas recebiam apoio financeiro do PADCT/SPEC ou de Secretarias Municipais de Educação.

43

Horizonte (1993). Nas pesquisas seguintes, os dados passaram a ser coletados por meio de

entrevistas realizadas com professores de sala de leitura e por questionários preenchidos por

alunos. No final da década, uma pesquisa foi realizada junto ao público assinante. É

interessante destacar que tal pesquisa foi implementada por meio de um questionário18

destinado a dois públicos específicos: a criança (Se você é criança, responda) e o professor

(Se você é professor, responda).

Em relação às seções da revista, destacamos a seção de cartas. A primeira carta foi

publicada na revista de número 6. No entanto, a seção de cartas só se tornou regular a partir

do número 12. Até então, recebia a denominação de “Correio”, mas logo após, a partir do

número 16, a seção passou a ser chamada de “Cartas”. Nessa seção, perguntas feitas pelas

crianças e por professores, como as respectivas respostas da revista, sugestões de jogos,

experimentos, experiências variadas são publicadas. A revista justifica a importância da

seção, pois entende que as cartas também são essenciais para estabelecer a comunicação entre

revista e leitor em relação aos desafios e concursos19. Sobre as demais seções da revista,

destacamos “Por que”, inaugurada em junho de 2001, a seção “Quando crescer, vou ser ...”,

iniciada em março de 2001, a “Galeria de bichos ameaçados”, que já teve outras versões

(Galeria da flora ameaçada, Galeria do Patrimônio ameaçado).

Outros subprodutos foram lançados nas duas últimas décadas: Índice especial da CHC

(1996); série de livros paradidáticos Ciência Hoje na Escola (1996), Dicas do Professor

(1998); CD-rom Máquina Maluca (1998);e a CHC On-line (2000).

Encarnação (2001) e Sousa (2000) afirmam que as formas de financiamento da revista

sempre foram limitadas. Por meio de nossa leitura da revista, observamos que as principais

fontes de recurso são as agências de fomento (CNPq, FINEP, FAPs) e agências de governo,

principalmente, o FNDE. A propaganda aberta a outras empresas – em sua maioria, estatais –,

ou seja, além dos produtos do Instituto Ciência Hoje, foi paula tinamente ganhando espaço a

partir do número 36, citamos como exemplo a Fundação Banco do Brasil e a Fundação

Bradesco – que patrocinou parte da série Ciência Hoje na Escola. Algumas matérias têm

patrocínio, por exemplo, da Petrobrás, das Centrais Elétricas de São Paulo ou do Ministério

da Saúde.

Como já afirmamos, o maior comprador da revista é o Ministério da Educação (MEC)

e, dentre os demais financiadores, grande parte é constituída por órgãos governamentais e

agências nacionais de fomento. Colocamos em relevo a relação da produção do conhecimento

18 A reprodução do questionário encontra-se no anexo 2. 19 Até o ano de 2000, somava-se um total de seis premiações.

44

e as políticas de Estado e modo de circulação do conhecimento na sociedade. A observação

das agências de financiamento atreladas a “políticas científicas dos organismos de Estado”

(Guimarães, 2001: 73) nos propicia pensar em que medida os modos de financiamento fazem

parte da produção da revista, funcionando como uma exterioridade que também a constitui.

Afirma Guimarães (2001) que, de certa maneira, os discursos do Estado e da mídia de

divulgação, do ponto de vista ideológico, não são diferentes, uma vez que “as políticas para a

produção do conhecimento e sua divulgação pensam a ciência a partir de uma mesma

posição” (Guimarães, 2001:77). No caso da CHC, não podemos nos esquecer das políticas

educacionais do Estado que também a constituem.

No presente capítulo, nosso objetivo foi o de delinear as bases teóricas que permeiam

todo nosso trabalho, como também descrever a constituição de nosso corpus. As análises

apresentadas nos próximos capítulos são marcadas por um caminho não linear, repleto de idas

e vindas, no qual o retorno à teoria traz possibilidades de novas considerações. Nossas

análises resultam de uma “tomada de posição”, isto é, de um movimento de identificação com

a teoria na observância de pontos de encontro sempre opacos donde o ideológico materializa-

se no lingüístico.

45

CAPÍTULO 2: À procura de sentidos: a divulgação científica para crianças

Iniciamos nosso capítulo questionando: o que é divulgação científica para crianças?

Seria a atividade de transformar a linguagem científica em linguagem cotidiana para um

público específico? Em um primeiro momento, à procura de uma resposta, tentamos definir

tal expressão como se pudesse ser tomada como algo pronto, já-dado. Percebemos, então, que

não estávamos considerando as redes de sentido que constituem o que é possível dizer e não

dizer sobre divulgação científica para crianças, pois para que as palavras façam sentido é

preciso que elas já façam sentido antes. Esse é um efeito produzido pela relação com o

interdiscurso – um conjunto de já-ditos esquecidos que sustenta nosso dizer.

Para realizar essa etapa de nosso trabalho, analisamos textos sobre divulgação em

diferentes domínios teóricos e em diferentes temporalidades. Recortamos textos distintos que

nos mostram propriedades importantes em relação ao nosso tema de pesquisa.

2.1 A criança e a divulgação científica

Na presente seção, colocamos em pauta a questão da divulgação científica para

crianças, compreendendo que as imagens, a historicidade, a memória estão em jogo para os

autores que tratam do tema. Lemos esse conjunto de autores tendo em vista que neles

configuram-se discursos, produções de sentido determinadas historicamente, vindo a

constituir redes de já-ditos.

Ao tratar das origens da divulgação científica na Europa, autores como Le Men (1990)

e Malet (2002) consideram que o registro de sua aparição deu-se paralelamente à produção de

edições de literatura infantil no século XVIII – século das luzes, da razão e da experiência – e

à edição de livros didáticos. Especificamente Malet (idem) confere ao “jogo científico”, a

partir de 1750, outro aspecto do aparecimento da divulgação científica. Esses jogos incluíam

desde aqueles de mesa, baseados em conhecimento de nomes e datas, até modelos de

instrumentos e máquinas, em particular, microscópios e telescópios, como zoológicos e

aviários em miniatura.

46

Pêcheux (1971[1969]), ao tratar da ideologia e da história das ciências, salienta que o

domínio das montagens instrumentais dispõe de um estatuto particular que, com raras

exceções, são

brinquedos ligados não ao tempo de produção, mas ao dos ócios, quer dizer, a sua função social é essencialmente de distrair certas classes da sociedade através do espanto que provocam (os Príncipes e os Grandes da Terra, em seguida a Burguesia): as bengalas, os carrilhões, os ‘molinetes’ eléctricos, etc., são visìvelmente brinquedos; a garrafa de Leyde e a máquina electrostática surgem como os acessórios indispensáveis das ‘Sessões eléctricas’ que se realizam nos salões (Pêcheux (1971[1969]): 30-grifos do autor).

Esses visíveis brinquedos – instrumentos científicos apropriados – foram incorporados

aos lares da classe média. Encenava-se, com esses brinquedos, a realização de experimentos

científicos, ou melhor, encenava-se a produção da ciência enquanto se consumia novos

aparatos.

Retornando à questão da edição de livros de divulgação científica, Le Men (1990)

afirma que “a ciência infantil procede à ‘ciência para todos’, movimento de divulgação cujo

impulso data da segunda metade do século XIX. Para a criança, o começo foi anterior e

remonta aos anos de 1780, fundadores da literatura juvenil na França” (Le Men, 1990: 61 –

tradução nossa)20. E o autor complementa dizendo que “a divulgação infantil é declarada

como uma das fontes da divulgação para todos” (idem : 63 - tradução nossa)21.

O livro de divulgação científica para crianças também é situado face a outro pólo da

edição infantil: o manual escolar – que teve seu crescimento atrelado, ao longo do século, às

leis escolares e à regularização de programas. Malet (2002) comenta que no final do século

XVII aparecem, na Europa, os primeiros livros didáticos pensados para crianças. São livros

com margens amplas, páginas pequenas, letras grandes, desenhos, vocabulário e gramática

simplificados. Além dos livros de literatura infantil,

o livro infantil e juvenil de divulgação científica pertence ao que anacronicamente podemos chamar de mercado de ócio. Este mercado muda de natureza ente 1670 e 1770, impelido pela aparição de uma classe média cada vez mais ampliada e de maior poder aquisitivo. Na Ilustração, esta classe média, principalmente urbana, sempre esteve bem disposta àquelas atividades e bens de consumo que prestigiam ao mesmo tempo em que entretém e educam (Malet, 2002: s.d. – tradução nossa)22.

20 “La science enfantine procède de la ‘science pour tous’, mouvement de vulgarisation dont l’élan date de la seconde moitié du XIXe siècle. Pour l’enfance, le démarrage fut antérieur et remonte aux années 1780, fondatrices pour la literature de jeunesse en France (Le Men, 1990:61). 21 “La vulgarisation enfantine est déclaré comme l’une des sources de la vulgarisation pour tous” (Le Men, 1990:63). 22 “El libro infantil y juvenil de divulgación científica pertenece a lo que anacrónicamente podemos llamar el mercado del ocio. Este mercado cambia de naturaleza entre 1670 y 1770, arrastrado por la aparición de una clase media cada vez más extendida y de mayor poder adquisitivo. En la Ilustración, esta clase media, principalmente

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O livro de divulgação científica para crianças – um meio que une entretenimento e

educação – está relacionado à ascendente classe média, portadora de recursos para consumir

bens culturais. O livro de divulgação tornou-se um produto, um bem de consumo.

A divulgação científica para crianças, situada em relação à escola – via primordial da

transmissão dos saberes científicos para a criança ao longo do século XIX –, parece também

poder ser atrelada à literatura infantil, uma literatura considerada menor, não séria e

possivelmente destinada ao camponês 23.

Teria sido esse também um marco na aparição da divulgação científica para crianças

no Brasil? Não podemos afirmar. No entanto, Reis e Gonçalves (2000) destacam que

Monteiro Lobato24 teria feito algumas incursões pela divulgação científica. Segundo estudos

realizados no campo da educação – podemos citar o de Camenietzki (1988) e o de Carvalho

(2002) –, o interesse de Lobato pela ciência pode ser observado nas obras de literatura

infantil, por exemplo: Serões de Dona Benta, Aritmética da Emília, Geografia de Dona

Benta, O poço do Visconde. Em um trecho retirado do livro infantil Serões de Dona Benta,

encontramos referências à dificuldade, por parte das crianças, em entender a ciência. Vejamos

um trecho a seguir:

urbana, siempre estuvo bien dispuesta hacia aquellas actividades y bienes de consumo que prestigian, al mismo tiempo que entretienen y educan” (Malet, 2002:s.d.). 23 Ariès (1981[1973]) expõe que os contos que circulavam na corte foram, ao poucos, sendo abandonados, a princípio, foram os próprios nobres, posteriormente, a burguesia ascendente. Os contos acabaram por ser destinados ao povo do campo e às crianças. Sendo que os primeiros os abandonaram também com a circulação do jornal. Logo, as crianças se tornaram seu único público. 24 Para Camenietzki (1988), a “coisa científica” é assunto de extrema importância na obra lobatiana. Não há livro infantil no qual não apareça o saber científico com face bem definida. Segundo Camenietzki, “as idéias acerca do papel de ciência na sociedade brasileira são a chave para a interpretação da obra infantil de Monteiro Lobato” (Camenietzki, 1988:7). Monteiro Lobato não só deu destaque à ciência em seus livros infantis como também defendeu amplamente a campanha de saneamento. Para Camenietzki (idem), a então vigorosa campanha iniciada em São Paulo, no ano de 1918, entre os poucos intelectuais que se colocaram à frente da emp reitada, estava Monteiro Lobato que defendia a higiene como forma de livrar o país das pragas que tornam o povo improdutivo. Já Carvalho (2002) afirma que foi com “a figura do Jeca Tatu que Monteiro Lobato ganha projeção como escritor. Algumas nuanças do caipira e sertanista são visualizadas em Urupês (publicado em 1914) e problema Vital (publicado em 1918). A figura do Jeca reflete, desde sua criação, o projeto de formação da nação brasileira, seja pelo aceleramento da modernização urbana – influenciada pelo desenvolvimento cultural e industrial americano e europeu, seja pelas campanhas sanitárias de cunho eugênico – que visavam o aprimoramento do povo brasileiro pela miscigenação (branqueamento), higiene e cultura (Carvalho, 2002:37).

_ Sinto um comichão no cérebro – disse Pedrinho. _Quero saber coisas. Quero saber tudo quanto há no mundo. _ Muito fácil, meu filho – respondeu Dona benta – A ciência está nos livros. Basta que os leia. _ Não é assim, vovó – protestou o menino. – Em geral os livros de ciências falam como se o leitor já soubesse a matéria de que tratam, de maneira que a gente lê e fica na mesma. Tentei ler uma biologia que a senhora tem na estante mais desanimei. A ciência de que gosto é a falada, a contada pela senhora, clarinha como a água do pote, com explicações de tudo quanto a gente não sabe, ou sabe mal-e-mal. (Lobato, 1955).

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Nesse trecho, podemos dizer que a imagem de ciência que se produz é de uma prática

inacessível às crianças. Mesmo como cérebro comichando, a personagem desanimaria ao

encontrar uma ciência hermética. Pedrinho necessitaria receber informações claras e bem

explicadas de sua avó. A imagem construída é de uma criança ávida pelas “coisas-a-saber”,

curiosa e cheia de perguntas que sente comichão no cérebro para saber tudo sobre ciências. O

jeito mais fácil de aprender a ciência – que é incompreensível nos livros – é ter acesso à

ciência divulgada (ciência falada pela avó, no rádio, na revista de entretenimento, no jornal,

na brincadeira), a ciência clara tal como a “água do pote”.

Do trecho retirado da obra de Monteiro Lobato, podem ser depreendidos sentidos lidos

ainda hoje. Um deles é o não-dito: a não existência de divulgação científica para crianças.

Outro é da posição da avó de representar tanto a sabedoria quanto a transmissão de

conhecimento. Em sua transmissão oral, a avó acaba por se tornar a detentora do saber e, ao

mesmo tempo, ocupa uma posição de divulgadora.

A imagem de criança curiosa construída na ficção reaparece em artigos que versam

sobre a temática divulgação científica para crianças. Vejamos duas seqüências recortadas:

SD1: A divulgação científica na forma escrita não tem, porém, este mesmo alcance, muitas vezes, não é nem mesmo notado nos meios infantis. Deve-se a isto uma série de fatores, independentes da vontade e do interesse desse público, pois ele é ávido de notícias e tem sua atenção bastante aguçada para tudo o que diz respeito às ciências. Cheio de perguntas, de forma incisiva e insistente, é o seu mundo (Ormastroni, 1989: 23). SD2: A idéia de realizar um evento sobre a divulgação científica para o público infanto-juvenil surgiu a partir da premissa de que a curiosidade é uma característica importante nas crianças. Sistematicamente, elas tentam entender como as coisas funcionam e como é o mundo a sua volta. Além disso, experiências educacionais vêm demonstrando que o público infantil tem grande capacidade de lidar com temas de ciência (Neves e Massarani, 2008: 8).

A criança é considerada mais um público para a divulgação científica; todavia, um

público com uma característica específica: ser curioso. A curiosidade é supostamente uma

característica importante da criança – ela é ávida por notícias. A imagem de criança

produzida nessas seqüências é uma criança que, por pretensamente ter grande capacidade de

lidar com temas da ciência, está pronta a receber textos de divulgação científica, ou mais do

que isso, necessita recebê- los: é um público aberto para receber materiais de divulgação

científica. É uma criança pronta a ser público da divulgação científica.

Supõe-se que a divulgação se justifica para esse público porque ele é curioso e, por

conseguinte, interessado por ciência. Aliás, ao longo das análises da revista CHC, verificamos

que um ponto comum entre criança e cientista é construído: o da curiosidade. A curiosidade

da criança está relacionada à sua condição de não-saber (por ser tratada como uma tábula

49

rasa) e a do cientista por ser considerada o motor da investigação. Como esses sentidos sobre

criança foram instaurados no discurso de divulgação científica para crianças?

É preciso destacar que todo enunciado é lingüisticamente descritível como uma série

de pontos de deriva (Pêcheux, 2002 [1983]). Há a possibilidade de deslizar para um outro

diferente de si mesmo. De forma a desestabilizar os sentidos unívocos fixados a respeito da

divulgação científica para crianças, propomos derivar em um ponto. Invertermos as palavras

que constituem a expressão “divulgação científica para crianças” e passamos a tratá- la como

“crianças para divulgação científica”. Ao invertê- las, efeitos de sentido outros são produzidos

na forma de enunciar. O jogo de inversão ajuda-nos desfazer uma compreensão pragmática

que imputa um sentido de divulgação científica para um público X, colocando a criança como

mero receptor e não como um sujeito que também constitui esse discurso.

Circulam, em nossa sociedade, enunciados que supostamente definem como é ser

criança, quando é ser criança, como tratar a criança, enfim, o que é ser criança. Circulam

enunciados que apontam para a criança em formação: uma “semente-de-adulto”. Na

formulação de tais discursos, a imagem produzida é da falta. Podemos sublinhar que é uma

criança falada pela insuficiência, por seu caráter incompleto em relação ao ponto almejado de

tornar-se adulto. Talvez resida aí a pretensa curiosidade da criança posta pelos divulgadores: a

de ser adulto.

Sabemos que a constituição do sujeito funda-se em sua relação com a linguagem, com

a história, com a ideologia. A criança, ao ser apresentada como um sujeito-falado, tem sua

imagem construída como se estivesse fora das determinações sócio-históricas e de sentido,

tornando-se uma evidência. Nesse movimento de produção de evidência, podemos falar em

um gesto de produção de uma categoria: a categoria criança. Devemos explicitar que

tomamos o termo categoria tal como em Haroche (1992). Inspirada nos textos de Foucault,

Haroche (idem) destaca que uma forma de poder – “governo pela individualização25” –

classifica os indivíduos em categorias. Em outros termos, “identifica-os, amarra-os, aprisiona-

os em sua identidade. Aprisionamento na identidade que é obrigatoriamente exibido por cada

um...” (Haroche, 1992: 21).

Em uma suposta identidade, a criança é representada como una, indivisível, ou melhor,

como uma criação da modernidade tomada como “uma mônada – unidade substancial ativa e

individual; presente, no limite, em todos os seres infantis da espécie humana: sempre a

mesma; sempre igual, inquebrantável, inamovível, irredutível” (Boto, 2002: 57). Essa

25 Haroche (1992) considera a individualização um mecanismo coercitivo do Estado para fins de poder.

50

condição de identidade produz a ilusão de que o mundo da criança é algo totalmente

desvinculado das relações de produção e reprodução social. Do nosso ponto de vista, a criança

não é uma categoria de conteúdo a ser preenchida, mas uma construção sócio-histórica.

Em uma perspectiva contrária ao antiespontaneísmo pedagógico, Nosella (2002)

afirma que “a criança não é um homem adulto em potencial, não é semelhante a um novelo

que já contém 'enrolada' toda a linha da vida e que, portanto, basta puxar pela ponta que tudo

se desenvolve naturalmente” (Nosella, 2002: 156). Assim como o autor, concordamos que a

criança seja um sujeito historicamente determinado. Não só tomamos a criança como um

sujeito social e histórico, mas, sobretudo, simbólico. Tomamos a criança em sua condição de

sujeito discursivo. E é essa a posição assumida na realização de nossas análises da revista

Ciência Hoje das Crianças.

Vale ressaltar que a categoria criança foi produzida nas e pelas relações postas com o

sujeito do capitalismo. Diz-nos Smolka (2002) que esse sujeito – o homo racionalis, sujeito

da razão – em um esforço de teorização sobre si mesmo, teoriza sobre a criança, ou melhor,

cria evidências. Para a autora, o homo racionalis

imerso em uma intricada trama, sujeito ao conjunto de idéias, de significações, de esquecimentos historicamente produzidos, a-sujeitado à ideologia, à linguagem, ao inconsciente. É nessa tensão que encontramos a criança como produção humana. Produção certamente orgânica, biológica. Mas não meramente (re)produção da espécie. Produção fundamentalmente simbólica e discursiva. Nomear a criança, conceituar a infância, ou teorizar sobre o desenvolvimento ... faz parte de um gesto de conhecimento tornado possível pela produção de significação característico do próprio Homo – Faber, Simbolicus, Duplex (Smolka, 2002:.123-124).

Em suma, para falar sobre divulgação científica para a categoria criança, é preciso,

primeiramente, compreender como a criança foi construída no interior da ideologia capitalista

e quais foram os efeitos produzidos por seu evidenciamento.

2.1.1 A criança

Etimologicamente, o termo criança, de acordo com Mauad (2004), tem sua origem

associada ao ato de criação. Da mesma forma que os animais têm crias, a criança é a cria da

mulher. Destacando que ‘criar’ refere-se a nutrir, alimentar, fazer crescer. Diz a autora que

somente “nas primeiras décadas do século XIX, que os dicionários assumiram o uso reservado

da palavra ‘criança’ para a espécie humana” (Mauad, 2004: 140). Podemos dizer que o uso

reservado, ou melhor, a passagem de cria animal para criança humana se deu em um período

no qual o homem torna-se sujeito e objeto do saber (Foucault (2007 [1966]).

51

Historicamente, a criança, é falada pelo adulto. Isso significa dizer que, em diferentes

conjunturas históricas, a criança é falada diferentemente na relação com o adulto. E mais,

cada conjuntura histórica delimita essa relação.

Apresentamos, em linhas gerais, o tratado pedagógico de Rousseau, cujo título é

Emílio, ou da educação. Esse tratado foi publicado do século XVIII e talvez seja o primeiro

tratado sobre a educação da criança. Nele, Rousseau versa sobre como deveria ser a educação

das crianças tomadas como seres bons 26 por natureza: “Nascemos fracos, precisamos de

força; nascemos carentes de tudo, precisamos de assistência; nascemos estúpidos, precisamos

de juízo. Tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos quando grandes nos é dado

pela educação” (Rousseau, 2004 [1762]: 9). Observamos em Rousseau o papel da educação

frente à criança. É a educação que tornará esse sujeito fraco, carente e estúpido em um

sujeito bom: um sujeito submisso às leis. Um sujeito que deve ser individualizado pelo Estado

(por meio de suas instituições, no caso, a escola).

Pode-se observar, nesse extenso tratado, que a criança é compreendida por uma

clivagem racional: o que a separa do adulto é a “idade da razão”. Para Rousseau, a criança

apreenderia a realidade à sua volta mediante imagens e sensações, sendo “as primeiras

sensações das crianças [...] puramente afetivas” (idem : 49). A criança, para Rousseau, é

inocente, sensível e tornar-se-ia um bom homem (bom sujeito? – conforme vimos em

Pêcheux) pela educação. Aliás, completa Rousseau, “na ordem natural, sendo os homens

todos iguais, sua vocação comum é a condição de homem” (ibidem : 14). Além da clivagem

cartesiana, encontramos em “Emílio”, o ideário iluminista da igualdade entre os homens;

igualdade que está na base das relações jurídicas do capitalismo. Podemos dizer que o tratado

de Rousseau foi fundado na dimensão de um Estado civil.

Em suma, em “Emílio” encontramos um determinado modo de ver, pensar, conceber a

criança. Seus pressupostos tornaram-se evidências no discurso pedagógico ocidental, no qual

sentidos sobre a criança e a educação foram naturalizados. No entanto, “Emílio” é uma das

várias textualizações da discursividade que funda a categoria criança.

Para compreendermos como determinados sentidos foram constituídos na obra de

Rousseau, faz-se necessário verificar como operou a constituição desse sujeito de direitos

civis. Para tal, recorremos a Haroche (1992) que, em seu livro Fazer dizer, querer dizer,

ocupa-se em realizar uma análise da história dos mecanismos envolvidos na passagem do

26 Parece-nos que a postura encontrada em “Emílio” foi de encontro ao movimento de moralização promovido pelos reformadores da Igreja católica no final do século XVII. As concepções difundidas pela reforma atribuíam à criança a tendência natural ao mal. Nessa conjuntura, a educação foi instituída como principal garantia de ordem pública (Vorcaro, 2004).

52

sujeito religioso – assujeitado à ideologia cristã; um sujeito marcado por uma “subordinação

ao texto e ao dogma” (Haroche, 1992: 57) – para o sujeito jurídico. Cabe dizer que essa

passagem não foi automática. Sua constituição tem uma história cujo momento crucial

localiza-se no período que vai do século X ao século XIII (cf. Haroche, 1992). Um período

marcado por transformações no sistema econômico então vigente (o sistema feudal) cuja

influência propiciou o enfraquecimento do poder da Igreja.

Se até o século XI havia uma sujeição pessoal (relação de vassalagem), nos séculos

seguintes, deu lugar, progressivamente, a uma relação centrada nas relações econômicas.

Passava-se de uma economia agrícola de subsistência a uma economia de manufatura. Com a

sedentarização do comércio (instauração do corporativismo), e a emancipação dos

camponeses (reivindicações de direitos e deveres e liberdades) – decorrentes do processo de

urbanização, começa a haver uma intervenção cada vez maior do jurídico sobre o religioso.

Foi o início do processo de “autonomização” do sujeito. Esse sujeito aparece “aliando

obrigação econômica à liberdade jurídica; o sujeito torna-se, assim, livre para se obrigar”

(Haroche, 1992: 69).

Imputa-se, no processo de constituição do sujeito jurídico, uma necessidade de clareza

da linguagem, de banir a ambigüidade, objetivando melhorar a comunicação, fazendo-se

“entender, mas não compreender” (idem : 84). No cerne da problemática da ambigüidade

colocada como um problema de língua está a inteligibilidade do texto legal, que se pretende

compreensivo. Instaura-se uma demanda pela clareza, ou melhor, desambigüização e

logicidade na relação do sujeito com a língua; uma relação que exige transparência,

objetividade, literalidade.

Voltando à discussão sobre a constituição do sujeito jurídico, Orlandi (2007a) aponta

que o discurso humanista da reforma – expressão da dominação progressiva do sistema

jurídico sobre a ordem religiosa, enfraquecida por sucessivas crises, já anunciava o

individualismo burguês do século XIX. Com esse sujeito, diz a autora, “não se trata de

questionar mas de entender para se submeter. Há dois pólos que se desenham: o da

objetividade (caracterizada pelo rigor) disjunto do pólo da subjetividade (caracterizado pela

indeterminação e o inefável)” (Orlandi, 2007a: 14).

Segundo Haroche (1992), o assujeitamento (sujeito jurídico) apóia-se no rigor, na

precisão, na transparência, na letra27, na técnica: no pólo da objetividade. Estabelece, com

esse assujeitamento, uma relação entre o direito e o saber: “o direito ao saber, à

27 Em relação à língua, pretende-se a inteligibilidade, ao menos no jurídico.

53

inteligibilidade, à curiosidade, à abertura, em resumo, todos nascidos da troca e da expansão

econômica” (Haroche, 1992: 84). O pólo da subjetividade marca o sujeito pela imprecisão,

pelo direito à indeterminação.

O século XVIII, marcado pela revolução científica, consagra o pólo da objetividade,

em detrimento ao da subjetividade. O processo de desenvolvimento científico e tecnológico

produziu um sujeito submetido às leis do Estado, leis que se impuseram entre o sujeito e o

saber, configurando-o como poder. Para Orlandi (1999[1988]), o processo de constituição do

sujeito jurídico atinge seu ápice no século XIX, século do individualismo triunfante.

O sujeito jurídico é constituído por um equívoco: é interpelado pela ideologia

capitalista de autonomia, liberdade e unicidade e é individualizado pelo Estado, o que o torna

responsável por si próprio e por seu dizer. Do ponto de vista da Análise do Discurso, é um

sujeito dividido que funciona no registro jurídico, com direitos e deveres, como senhor de sua

vontade, de suas intenções e responsável por seu dizer, ao mesmo tempo em que funciona por

uma memória de dizer à qual ele mesmo não tem acesso e é determinado pela sociedade e

pela história (cf. Orlandi, 2007a).

E como se deu a passagem da ordem religiosa à ordem jurídica em relação à criança?

Todos os acontecimentos ligados ao desenvolvimento do Direito e a laicização abalaram o

mecanismo de dominação do sujeito religioso. E, conseqüentemente, a relação que se

mantinha com a criança.

A historiografia sobre a criança indica distinções no tratamento dispensado à criança

na Idade Média e na Modernidade. Um dos trabalhos mais expoentes (e também muito

criticado) é o desenvolvido por Ariès (1981[1973]). Em suas teses sobre a evolução da

intimidade, Ariès considera que, somente no século XVII, a valorização da criança28 teve

início. Para o autor, dois fatores levaram à valorização: a emergência da vida privada (como

por exemplo, a nova configuração das moradias, com cômodos separados) e o surgimento de

escolas (na modernidade, considerado o lugar de preparação do futuro adulto). De fato, o

28 Ariès aponta também que essa valorização se deu com o surgimento de uma nova modalidade familiar: a família nuclear burguesa, trazendo as mulheres e as crianças para o domínio privado e os homens para o domínio público. Destacamos que esse é um modelo burguês de família e não do proletariado. Segundo Boto (2002), a relação mais imp ortante da família medieval dava-se com a solidariedade da linhagem. A criança era considerada um rebento do tronco da comunidade e sua sociabilidade era comunitária. Com o individualismo burguês, a família nuclearizou-se e emancipou-se dos vínculos comunitários, a criança passou a ser considerada no interior das famílias e as relações parentais sobrepuseram-se. O declínio da esfera pública e o aumento de processos de intimidade (domínio privado) no âmbito familiar não podem ser desvinculados dos ideais de igualdade, liberdade e defesa da propriedade. As novas relações parentais possibilitaram, dentre outros, a transmissão de propriedade. É possível pensar que a herança passa a ser tematizada para além da propriedade, como por exemplo, a herança genética e cultural. Sobre a última, muito em voga nos séculos XX e XXI, o dever do Estado de proporcionar educação passa a ser quase exclusivamente o da família.

54

autor enuncia vários aspectos relacionados em torno da valorização da criança: diminuição da

mortandade infantil, sobretudo, com desenvolvimento da pediatria; desenvolvimento da

tipografia (aumentando a demanda de leitores alfabetizados); e o desenvolvimento da

pedagogia (com o surgimento de novas correntes teóricas e novos métodos de ensino para

aprendizagem de leitura29).

Todas as questões apontadas por Ariès relacionam-se à ascensão da burguesia e à

constituição de um novo modo de produção. Do nosso ponto de vista, todas essas mudanças,

com o avanço do aparelho juríd ico, propiciaram a constituição do sujeito-de-direito. Tendo

como base a formação do sujeito jurídico, podemos pensar sobre o gesto de produção da

categoria criança. Um aspecto que precisa ser retomado nessa discussão são as leis para a

proteção da infância. O modo de pensar a criança (visto que ela não fala, mas é falada, e deve

ser protegida) acolhe os mecanismos de individualização impostos pelo Estado por meio de

suas instituições. No caso da criança, veremos que a instituição escolar é a requisitada para tal

fim (ao menos nos em um primeiro momento).

Anteriormente, utilizamos o temo “individualização” conforme comparece na obra de

Haroche (1992). Acreditamos que o termo na obra da referida autora seja tomado como um

processo de responsabilização do sujeito. Cabe ressaltar que a partir desse ponto, tomamos a

noção de individualização tal como definido por Orlandi (2002). Para a referida autora, a

ilusão idealista do sujeito como origem em si mesmo está assentada no desconhecimento de

um duplo movimento na compreensão da subjetividade. Em um primeiro movimento, ocorre a

interpelação do indivíduo, afetado pela língua e pela ideologia, em sujeito. Diga-se, a forma-

sujeito histórica, ou seja, o sujeito capitalista caracterizado como sujeito jurídico. Em um

segundo movimento, há individualização dessa forma-sujeito pelo Estado por meio de suas

instituições, o que resulta em um indivíduo ao mesmo tempo responsável e dono de sua

vontade. Para a autora, nesse duplo movimento “há o caráter irrecorrível do assujeitamento

[...] e a possível resistência do sujeito aos modos pelos quais o Estado o individualiza”

(Orlandi, 2002: 72). Acreditamos que uma distinção entre a definição de cada uma das autoras

em tela é a consideração da noção como um movimento da subjetividade que prevê,

sobretudo, a resistência. Em relação à nossa pesquisa, observamos que a prática da divulgação

científica é mais uma dos modos pelos quais o Estado individualiza os sujeitos.

No final do século XVII, o humanismo decorrente da reforma de Igreja instituía a

educação como a principal garantia de ordem pública. Percebemos que o individualismo

29 Ou ensino de uma leitura recomendável?

55

burguês não surgiu fora de um controle sobre o corpo - as práticas de civilidade. Com os

processos de individualização da vida, as práticas de civilidade passaram a ser realizadas pela

escola. Em um novo lugar social, a criança passou a ser educada e tornou-se aluno, como

também passou a ser objeto de intervenções (como no século seguinte, em que foi

protagonista do tratado de Rousseau). A civilidade teve importante papel no processo de

invenção da moderna categoria criança e do que foi chamado “especialização do mundo da

criança”30.

Mas a inserção da criança no aparato escolar deu-se lentamente, sobretudo, para a

classe proletária. Com a implantação da revolução industrial no final do século XVIII, a

criança tornou-se, desde a mais tenra idade, um trabalhador.

Nosella (2002) ressalta que, na fase inicial do capitalismo, o que corresponderia à fase

inicial de acumulação de capital, a criança exerceu importante função. Tamanha foi sua

importância que, pela primeira vez na história, a sociedade a teria tomada a sério mesmo que

fosse, infortunadamente, para “explorá- la como força de trabalho produtiva barata” (Nosella,

2002: 133). Entretanto, com o desenvolvimento científico e tecnológico, a mão de obra

infantil tornou-se obsoleta, pois sua maior contribuição passou a ser considerada no futuro. A

criança passa de mão de obra barata para assunto de Estado. Tal passagem não se faz fora do

jurídico.

Segundo Donzelot (apud Vorcaro, 2004), as primeiras leis sociais regulavam o tempo

de trabalho das crianças nas fábricas. A partir de 1840, várias normas protetoras da infância se

multiplicaram, culminando na primeira Declaração dos Direitos da Criança (1924).

Posteriormente, outras declarações foram promulgadas, sendo a declaração31 de 1959 a

30 A especialização do mundo da criança ocorreu paulatinamente e vários foram os aspectos envolvidos. Para Ariès (1981[1973]), a imposição de uma essência inocente à criança consolidou a mudança no tratamento da mesma. Se anteriormente fala -se sobre sexo diante das crianças, com as reformas moralizantes promovidas pelos reformadores da Igreja, no final do século XVII, os educadores objetivavam incutir um sentimento de culpa nas crianças. Aliadas à inocência, são ressaltadas, nesse período, a fragilidade e debilidade da criança. Peres (1999) sustenta que até o século XVII não havia uma separação entre jogos e brincadeiras infantis e aquelas destinadas aos adultos. Segundo a autora, com o movimento moralizante, muitos dos jogos passaram a ser considerados imorais. A preocupação era preservar a moralidade e educar as crianças. Com as restrições morais impostas, as crianças passaram a se dedicar às brincadeiras e às distrações diferentes das adotadas pelos adultos. Em relação aos contos de fada, no século XVII, aparecem as versões como, por exemplo, as compiladas por Perrault. Conta-nos Bettelheim (1991) que, em sua origem. Na Idade Média, os contos de fada eram destinados a entreter a corte. Eram contos que continham doses de sexo, violência, arrogância. Perrault higieniza, moraliza esses contos, torna-os “próprios” para as crianças. Com esse gesto de moralização, Perrault funda a literatura infantil, uma literatura destinada a incutir princípios morais (Cf. Peres, 1999). Para Ariès (1981[1973]), os adultos perderam, na segunda metade do século XVII, o interesse pelos contos de fada. Havia nesse período dois interesses pela literatura: publicações mais sérias destinado aos adultos e outras destinadas às crianças e ao povo. 31 A Declaração dos Direitos da Criança se constitui de um preâmbulo e de dez princípios – partes da textualização do discurso de direitos humanos. O preâmbulo dá sustentação à declaração, uma vez que retoma os pactos de sua elaboração. A retomada de outros discursos que a fundam é materializada pelo termo “visto”. (“VISTO que os povos das Nações Unidas”; “VISTO que as Nações Unidas”; “VISTO que a criança”; “VISTO

56

adotada pela Assembléia das Nações Unidas. Esse interesse pela criança é resumido por

Nosella (2002):

só quando a criança se tornou força de trabalho interessante para o capital, começou a ser contemplada pela legislação de forma autônoma de sua família. Foi uma legislação que, num primeiro momento, obrigou a criança a trabalhar e, mais tarde, após o desenvolvimento da grande indústria, a liberou do trabalho [...] a questão da guarda e da educação das crianças tornou-se assunto principal no debate político, na legislação social e nas reformas escolares desde o final do século XVIII praticamente até hoje (Nosella, 2002: 134).

A criança-de-direitos é uma construção do final do século XIX e, como autora

menciona acima, permanece nos dias atuais. A instância de criança-de-direitos está

relacionada às revoluções liberais tanto a Americana quanto a Francesa. O discurso dos

direitos das crianças tem seus sentidos sustentados no discurso dos direitos humanos, o qual

se funda no discurso da pretensa igualdade (que de fato, apaga as diferenças). Trata-se da

categoria-criança sendo produzida como um sujeito de direitos humanos.

Orlandi (2007b) destaca que o discurso dos direitos humanos silencia a diferença de

classes: fonte de desigualdades. Logo, “a diferença de classes precisa do discurso da

igualdade perante a lei” (Orlandi, 2007b: 305). Esse discurso da igualdade também silencia a

desigualdade entre crianças.

Devemos ressaltar que a mão de obra barata da criança não foi banida do sistema de

produção capitalista. Nas regiões mais pobres, em países periféricos, há bolsões de miséria

donde se coaduna o trabalho infantil. Então, o direito à educação e a proibição do trabalho

infantil – previstos na Declaração dos Direitos da Criança – não são iguais para todos. Os

direitos são destinados igualmente a todas as crianças para melhor excluir muitas. Essa é um

equívoco constituído na e pela conjuntura burguesa. O lugar de destaque da educação – que

supostamente dá a todos as mesmas oportunidades – e a criação de leis de proteção à criança

são produzidos para lidar com a ambigüidade instaurada pelo sistema capitalista que se

organiza e estrutura-se em torno do lucro e não da dignidade humana.

que a necessidade de tal proteção”; “Visto que a humanidade deve à criança o melhor de seus esforços”). Em seu princípio primeiro diz-se que “Todas as crianças, absolutamente sem qualquer exceção, serão credoras destes direitos, sem distinção ou discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição, quer sua ou de sua família”. Em “Todas as crianças” o efeito de sentido é o de afirmar a igualdade entre as crianças. Funciona, de forma pressuposta, o jurídico, produzindo um efeito de pré-construído: diante da declaração supõe-se que todas as crianças são iguais . Tanto o preâmbulo quanto os princípios se organizam em torno da proteção à criança, que em decorrência de sua imaturidade física e mental, inspira cuidados especiais. À criança deve ser garantida educação, saúde e diversão. O trabalho é proibido “antes de idade mínima conveniente” (Princípio 9º). Mas o que seria conveniente? Parece-nos que o “conveniente” é ditado pelas condições econômicas e políticas de cada país.

57

Se, no início do capitalismo, o pátio da fábrica foi o locus da criança, com o

desenvolvimento da indus trialização e da tecnologia, ele foi transferido para a escola. Assim

sendo, nos séculos XIX e XX, a criança ganhou um novo lugar social. Para Boto (2002), a

construção da categoria aluno foi a grande referência de compreensão da criança construída

na modernidade. De acordo com o autor, foi “a estrutura ritual do colégio contribui para a

'construção do objeto infância'; ou, mais precisamente, para a criação da categoria criança-

aluno” (Boto, 2002: 33).

As colocações de Boto (idem) apontam para a relação existente entre os processos de

escolarização e a produção da concepção de infância nas sociedades modernas. Diríamos a

concepção de infância de uma determinada classe. Pensar a criança por meio da categoria

“criança-aluno” e não pela categoria “criança-trabalhador”, por exemplo, possibilita-nos

compreender como a criança é individualizada pela escola.

No acolhimento da infância pelo Estado, esse monopolizou técnicas disciplinares e

saberes pedagógicos necessários à escolarização. A monopolização dos saberes não somente

possibilitou a delegação da educação das crianças ao Estado, como também a

diluição/circulação dos saberes na sociedade (desta forma, é possível entender que a

divulgação científica, em seus primórdios, na Europa, foi situada em relação à escola). Em

primeiro momento buscou-se a organização da turma32 e depois outras técnicas de

disciplinarização. Uma dessas técnicas foi, segundo Foucault (2006 [1981]), o ensino

coletivo:

Nas escolas do século XVIII os alunos também estavam aglomerados e o professor chamava um deles por alguns minutos, ensinava-lhe algo, mandava-o de volta, chamava outro, etc... Um ensino coletivo dado simultaneamente a todos os alunos implica uma distribuição espacial. A disciplina é, antes de tudo, a análise do espaço. É a individualização pelo espaço, a inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório. (Foucault, 2006 [1981]: 106)

Esse espaço individualizado obedece a um princípio de visibilidade que isola o sujeito

de todos os outros (cf. Haroche, 1992), passando, dessa forma, o sujeito interpelado pela

ideologia a funcionar como um indivíduo, um autômato.

Ao longo do século XIX, foram desenvolvidas várias métodos de ensino para as

crianças. Era o momento de instauração de uma pedagogia “racional”, preocupada com a

racionalização do ensino. Em um novo tratamento da infância, não só a organização do

espaço foi preponderante, mas também metodologias “renovadoras” baseadas em

32 Um dos critérios de identificação e de composição das classes foi a demarcação da idade (uma marcação mais quantificada das fases da vida).

58

investigações33 teóricas sobre a criança (análise de funções mentais e de sua fisiologia, leis de

seu desenvolvimento). As metodologias foram definidas em função de necessidades

específicas: suportar as exigências da modernidade – industrialização crescente e avanços

científicos e tecnológicos. Se, nos séculos XVI e XVII, a escola era o lugar da apreensão da

civilidade, no século XIX, ela se tornou o lugar para preparar a crianças para as novas

imposições sociais. Muitas dessas metodologias basearam-se na promessa ao divertimento, ao

lúdico (contrapondo-se ao trabalho). E essa foi uma nova forma de solidificar a categoria

criança - unívoca, inquebrantável, como afirma Boto (2002), tornando-a uma especificidade

dessa etapa da vida.

Por ser a categoria criança enunciada na tensão da relação entre adulto e não-adulto,

ela é significada pela falta, pelo o que ela ainda não é, ou seja, um vir-a-ser. Uma das

maneiras pelas quais se pretende preencher essa falta é por meio da divulgação científica –

para que se possam produzir os futuros cientistas da nação.

A categoria criança não é tomada como um sujeito responsável, mas construída

historicamente no interior do aparato jurídico, que a põe como garantia de vir-a-ser-sujeito.

Nessa garantia há uma determinação da implicação do futuro que recobre a atualidade –

sempre evanescente – da criança. A especularização, a futuralização da humanidade e a

correlação de potencialidade permitem produzir um imaginário que coloca a criança como

sendo o futuro da nação. E é para essa categoria criança futuralizada e sustentada, em um

ponto de vista pragmático, como público, que a divulgação científica oferece seus produtos,

sempre comerciáveis.

De forma a compreender a garantia jurídica de vir-a-ser-bom-sujeito atrelada à

categoria criança, consideramos relevante pensá- la por meio do ludicismo que é aí instaurado.

Cabe destacar que o termo foi inspirado no termo juridismo tal como cunhado por Lagazzi

(1988). Sucintamente, podemos dizer que o juridismo é uma definição que desvela estreiteza

das relações de poder interpessoais cotidianas. O jurídico corresponde à legislação concebida

por uma sociedade, o que configura o sistema jurídico. Já o juridismo é compreendido como

33 Smolka (2002) destaca a teoria evolucionista de Darwin como um registro das relações de herança genética e experiência adquirida, bem como na busca daquilo que diferencia o homem dos animais. Cabe ressaltar que, em uma outra condição de produção, foi um registro que também tematizava a civilidade. A Teoria de Darwin desembocou um interesse pela mente humana desde a infância até a fase adulta. É nesse contexto que se pretende colocar a criança como a repetição da história do home m, ou seja, que “a ontogênes e repete a filogênese” (Smolka, 2002:114). Vorcaro (2004) afirma que a posição evolucionista chegou a isolar as fases do desenvolvimento humano recapitulando o desenvolvimento da criança à evolução da espécie humana: “o domínio dos instintos vitais corresponderia à animalidade; à imaginação supersticiosa infantil equivaleriam as culturas primitivas; e o estado de observação reflexiva madura repetiria a racionalidade da civilização” (Vorcaro, 2004:29).

59

“intertextualidade da instância jurídica, do Direito” (Lagazzi, 1998: 46). O juridismo está

atrelado ao dizer cotidiano que implica o jurídico sem explicitá- lo, ou melhor, como a relação

dos direitos e deveres deriva para o senso comum. Isso significa que “se mantém uma certa

mobilidade (flexibilidade) entre direitos e deveres, responsabilidades, cobranças e

justificativas no cotidiano. [...]. A implicitação é o ponto de sustentação da ordem cotidiana,

porque é por onde o simbólico se mantém” (idem : 46-47).

Intentamos averiguar como a relação da criança com o jurídico é promovida, visto que

não há como não se assujeitar à forma histórica do sujeito de direito. Em outros termos, nosso

objetivo é analisar, do ponto de vista discursivo, como o jurídico instaura a relação com a

criança, produzindo para tal a categoria vir-a-ser-sujeito. Mais especificamente, procuramos

compreender como esse efeito de futuralidade e de proteção são produzidos no discurso de

divulgação científica para crianças.

É na instância do jurídico que o sujeito do capitalismo se constitui e não é fora dessa

instância que da criança também é constituída como sujeito. Entretanto, algumas observações

precisam ser apreciadas. A relação do adulto com a criança pauta-se em relações

hierarquizadas de comando-obediência (cf. Lagazzi, 1988) nas quais a voz da criança não tem

vez ou lugar. Quando falamos de obediência, referimo-nos à obediência à medicina, à

psicológica, à pedagogia que produzem discursos sobre a categoria criança. É uma relação

tutelar, uma vez que a criança é instituída juridicamente como aquele que necessita de

proteção e de preparação.

Embora não se dê vez à voz da criança, são permitidos a ela a ambigüidade (colocada

apenas como um problema de linguagem), o jogo com as palavras, as rimas, os trava- línguas,

os chistes, em suma, não ter clareza em seu dizer. Todavia, a criança deve “aprender”, via

educação (e, mais recentemente, via divulgação científica), vir a ser um sujeito ao mesmo

tempo livre e submisso, detentor de direitos e cumpridor de deveres, autônomo e responsável.

Essa, contudo, não seria tão somente uma questão de aprendizagem, mas, em termos

discursivos, podemos compreender como assujeitamento à forma-sujeito histórica.

O ludicismo, tal como estamos propondo, perpassa a relação da criança-aluno, criança-

não-trabalhador, criança-consumidor, com o jurídico, uma vez que é uma relação que não

explicita o jurídico na constituição desse vir-a-ser-sujeito. Podemos dizer que o ludicismo está

a serviço do aparato jurídico.

Como o ludicismo pode ser relacionado à divulgação científica? As inovações

científicas do século XIX levaram cada vez mais os pólos da objetividade e da subjetividade

diametralmente a regiões opostas. No entanto, eles continuam intrincados. Podemos dizer que

60

a divulgação científica para crianças instaura-se nesse imbricamento: pretende-se tratar de

temas sérios e objetivos da ciência e, ao mesmo tempo, tomar a criança como frágil, imatura,

curiosa, afetiva, etc. o que implica inseri- la nesse vir-a-ser-sujeito jurídico. Em última

instância, o discurso de divulgação científica para crianças é determinado pelo assujeitamento

da criança à forma-sujeito histórica.

Vale sublinhar que o ludicismo não tem relação com o conceito de discurso lúdico

desenvolvido por Orlandi (2003b [1983]). Esse supõe o non sense, o real da língua. Pensamos

o ludicismo no nível da constituição do discurso de divulgação científica para a criança. Dessa

forma, os processos sócio-históricos e ideológicos ali se encontram. É uma relação imaginária

– ou como aponta Orlandi (idem), o “faz de conta” que constitui a relação do jurídico com a

criança, na qual criança é falada em um espaço de previsões.

No inicio desta seção propusemos a inversão: “a criança para a divulgação científica”.

Se até agora trabalhamos a categoria ‘criança’, passamos, nas próximas seções, a analisar a

segunda parte de nossa inversão: a ‘divulgação científica’.

2.2 Vulgarizar ou divulgar ciência: uma questão

Ao longo de nossa incursão teórica, encontramos diferentes designações para a prática

de “levar ciência para o público”, seja esse infantil ou não. Antes de iniciar a análise, faz-se

necessário explicar o que entendemos por designação. Para tal, tomamos emprestada a

postulação teórica de Guimarães (2001). Para o autor, designar é um processo simbólico pelo

qual a prática de linguagem significa o mundo. Nas palavras do autor, “designação é sempre

instável, ou seja, as relações entre as palavras e o que elas designam é uma relação instável”

(Guimarães, 2001: 74).

Das designações encontradas nos textos lidos, destacamos duas: “vulgarização” e

“divulgação”. Elas inscrevem-se em diferentes materialidades e produzem efeitos de sentidos

distintos em diferentes temporalidades. Ressaltamos que a história tem um sentido particular

para a Análise de Discurso, pois está “ligada a práticas e não ao tempo em si. Ela se organiza

tendo como parâmetro as relações de poder e de sentidos, e não com a cronologia: não é o

tempo cronológico que organiza a história, mas a relação com o poder (a política)” (Orlandi,

1990: 35).

Aventamos como hipótese que a circulação da expressão “vulgarização científica”

pode ser encontrado em livros e jornais do final do século XIX até as primeiras décadas do

século XX.

61

Na década de 30 do século XX, destacamos o livro A Vulgarização do Saber de

autoria de Miguel Ozório de Almeida, especificamente, o capítulo 34 sob o mesmo título, no

qual o autor faz referência à dificuldade e à necessidade de vulgarizar a ciência. Vejamos:

SD1: As collecções de livros de vulgarização scientifica se multiplicam. As conferencias e cursos publicos sobre as questões mais arduas e difficeis destinadas a pôr ao alcance de todo o mundo noções ou conhecimentos que eram o apanagio de grupos limitados de especialistas, secundam e completam a tarefa que visam executar as edições populares. Tudo isso demonstra que o publico em geral tem sua attenção despertada para as coisas do saber e aspira participar do movimento incessante das idéas, e comprehender, pelo menos em suas linhas essenciaes, as bases dos grandes factos scientificos e a essencia das principaes leis naturaes (Almeida, 1931: 229).

Nessa seqüência, a vulgarização científica é mostrada como uma atividade em plena

produção. Atividade que vai desde as conferências35 públicas até as edições populares, e tem

como um objetivo tratar das questões mais árduas e difíceis. A multiplicação da atividade

parece indicar que o público em geral tem sua atenção despertada para as coisas do saber,

ou seja, a vulgarização atenderia um apelo do público.

Em relação à designação utilizada, observamos que à atividade de vulgarização

científica é conferido um caráter positivo.

Na década seguinte, a expressão “divulgação científica” pode ser encontrada em

jornais. Como exemplo, citamos um trecho do editorial do suplemento “Ciência para Todos”

(CpT). Vale lembrar que o “CpT” foi um suplemento de divulgação científica – com duração

de cinco anos – produzido pelo jornal A Manhã. Apresentamos um trecho:

SD2: A MANHÃ ao lançar este suplemento, pretende concorrer, na medida de suas forças, para uma obra que julga utilíssima em nosso país: a divulgação da ciência. O crescente desenvolvimento da ciência é o que explica o magnífico progresso do mundo hoje. É a ciência que rasga diariamente novos horizontes à indústria e vem proporcionar, em última análise, mais felicidade para o ser humano: a cada progresso científico se acha ligado um correspondente avanço no progresso industrial e no bem-estar da humanidade (Reis, 1948: 2 apud Esteves, 2006: 58).

Quase duas décadas depois da publicação do livro de Almeida (1931), encontramos

no suplemento do jornal A manhã a expressão divulgação científica. Essa atividade é

exaltada como utilíssima. Provavelmente, por levar aos seus leitores os progressos da

ciência, a felicidade para o ser humano, o bem-estar da humanidade.

Nas duas seqüências, circulam sentidos de uma atividade que se sustenta como

relevante para o público que é construído discursivamente como interessado pelas coisas

da ciência. Se em SD1 bastava que o público compreendesse, em linhas gerais, os fatos da

ciência e a essência das leis naturais, em SD2, para garantir a felicidade para o ser

34. Encontra-se no anexo 4 o capítulo transcrito na íntegra. 35 Sobre as Conferências da Glória realizadas no século XIX, ver o apêndice 1 de nossa tese.

62

humano, seria necessário conhecer o progresso científico ligado ao progresso industrial.

Na SD2, tudo se passa como se os novos inventos industriais e tecnológicos, ou como diz

Pêcheux, as “múltiplas urgências do cotidiano” (Pêcheux, 2002 [1983]: 32) fossem

imperiosos à felicidade do sujeito pragmático.

O período que corresponde ao final do século XX e ao início do XXI é marcado por

uma profusão de designações (popularização da ciência, compreensão pública da ciência,

alfabetização científica, entre outros). Se, no Brasil, do século XIX até os anos 30 do

século XX, cientistas e literatos utilizavam com regularidade a expressão “vulgarização

científica” para designar a atividade de “comunicação científica para leigos”, após esse

período, o termo caiu em desuso, sendo considerado pejorativo por muitos. Vejamos o

trecho a seguir:

SD3: Tal constatação torna ainda mais importante que a ciência seja popularizada sem ser vulgarizada , o que se obtém pelo incremento substancial da educação científica da população. (Mota, 2001: 20).

Acreditamos, que nesse trecho, o termo vulgarizada retoma o sentido de reles, chulo,

grosseiro. A ciência deve ser popularizada, mas não banalizada. É possível observar, nos

textos contemporâneos que fazem circular os conhecimentos científicos na sociedade, que se

interditaram, na nossa história, determinados sentidos. Ou melhor, não é mais possível falar

“vulgarização científica” tal como era possível no início do século XX, pois um sentido se

fixou (e outros foram silenciados): a vulgarização parece ser um termo que não pode estar

relacionado à ciência.

Nas seqüências analisadas, a “vulgarização científica” parece estar relacionada a uma

atividade livresca de um conhecimento não aplicável. A divulgação, já inserida no período do

desenvolvimento nacionalista industrial, é uma atividade útil para mostrar, ser uma vitrine, de

tal desenvolvimento. Por fim, a designação vulgarização é rechaçada.

Interessa-nos compreender o gesto de distinção entre vulgarização e divulgação.

Propomos analisar tal distinção a partir de dicionários de língua portuguesa. De acordo com

Auroux (1992), os dicionários são instrumentos lingüísticos, ou seja, são tecnologias de

gramaticalização – um processo que conduz à descrição e à instrumentação das línguas.

Mazière (1989), por seu turno, toma o dicionário como um discurso. Dessa forma, fizemos a

leitura do dicionário como um discurso, analisando parte do corpus auxiliar composta por

verbetes de dicionários monolíngües de língua portuguesa.

63

2.2.1 Nos dicionários

Entendendo que o funcionamento das definições é sempre instável e que elas são

criadas em determinadas condições de produção, as designações “vulgarização” e

“divulgação” científica também se dão em um processo de produção histórica. Consultamos

dicionários monolíngües de língua portuguesa, observando os verbetes divulgação e

vulgarização36. Podemos dizer que os dicionários se mostraram uma rica fonte para

compreender a distinção entre as duas designações. Antes mesmo de tentar compreender a

distinção entre “vulgarização” e “divulgação”, justificamos nosso caminho de pesquisa por

intermédio das palavras de Nunes (2006):

o dicionário é visto geralmente como um objeto de consulta que apresenta os significados das palavras com a certitude do saber de um especialista e eventualmente com a legitimidade de autores reconhecidos que abonam as definições [...]. Trata-se de um dos lugares que sustentam as evidências dos sentidos, funcionando como um instrumento de estabilização dos discursos. Por constituir nesse espaço imaginário de certitude, sustentado pela acumulação e pela repetição, o dicionário é um material interessante para se observar os modos de dizer de uma sociedade e os discursos em circulação em certas conjunturas históricas (Nunes, 2006: 11).

Interessa-nos observar o modo como o dicionário produz sentidos em certas

conjunturas. Afinal, “como qualquer discurso, o dicionário tem uma história, ele constrói e

atualiza uma memória, reproduz e desloca sentidos, inscrevendo-os no horizonte dos dizeres

historicamente constituídos” (idem : 18). Nessa perspectiva, Nunes (2006) considera o

dicionário como um espaço de memória discursiva, visto ser um trabalho de seleção e de

retomada do já-dito. Essa é também nossa posição.

O dicionário divide os sentidos, lembrando que a divisão é um processo ideológico,

porquanto, político. S. Oliveira (2006) assume que o dicionário divide o real da língua para

compor sua unidade, considerada, no caso, a língua portuguesa, língua de Estado. Logo,

buscar as distinções ou aproximações entre “divulgação” ou “vulgarização” não é uma

questão meramente lingüística, mas ideológica.

Segundo Coracini (2003), os termos divulgação e vulgarização contêm o vocábulo

vulgo. Retomando a origem latina do termo, encontramos no Dicionário Latino Vernáculo, de

Leite e Jordão (1958), três verbetes significativos, a saber: vulgare, verbo transitivo direto que

significa “divulgar, propagar, propalar, espalhar; descobrir; publicar; rebaixar, aviltar;

36 As escolhas lexicais deram-se em virtude da presença de tais termos em alguns textos. Era comum, até a década de 30 do século XX, o emprego da expressão “vulgarização científica”. A partir de então, a expressão “divulgação científica” é a mais utilizada para designar “comunicação entre cientista e público em geral”.

64

prostituir”; vulgo, advérbio que significa “vulgarmente; por toda parte, indistintamente,

abertamente, em público; comumente, a cada passo, freqüentemente”; e vulgus, que significa

“o vulgo, o povo, a plebe”.

Já o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, de Houaiss (2001), aparecem várias

acepções para o vocábulo vulgar, das quais destacamos: “relativo ou pertencente à plebe, ao

vulgo; popular; que não foge à ordem normal, não se destaca; banal, comum, corriqueiro,

ordinário, usual; de qualidade inferior; baixo, chulo, grosseiro, reles; que se sabe; notório,

sabido; a língua vernácula”. E continua mais adiante “pôr em vulgar: 1 traduzir algo de outra

língua para a língua materna de alguém: traduzir em vulgar. 2 dizer ou traduzir (algo feito ou

dito antes) em outras palavras mais simples; traduzir em vulgar”.

Retomamos nossas buscas ao século XVIII, período em que apareceram os primeiros

dicionários de língua portuguesa (cf. Nunes, 2006). Destacamos o Dicionário da Língua

Portuguesa de António de Morais Silva (1813[1786]), por ser considerado o primeiro

dicionário monolíngüe da língua portuguesa – dicionário que representa a consolidação da

língua Nacional em Portugal (cf. Nunes, 2006). Concentramos nossas análises nos verbos,

visto que os verbetes37 dos substantivos “vulgarização’ e “divulgação” remetem para o “ato”

ou “ação de”. É interessante abrirmos espaço para uma consideração: segundo Nunes (idem),

a emergência da definição “ato de”, a partir do dicionário de Morais, coloca a ação do sujeito

como origem do sentido, o que corresponde à passagem do sujeito religioso (de virtudes) ao

sujeito jurídico (responsável pelos seus atos). Temos, então, nos dicionários analisados a

marca, na materialidade lingüística, dessa passagem.

Como dizíamos anteriormente, “vulgarização” e “divulgação” têm suas definições

subordinadas a seus respectivos étimos. Cabe aqui outra observação. Devemos sublinhar o

que compreendemos por “definir”. Para tal, tomamos emprestada a consideração de Nunes

(2006):

Definir uma palavra é atribuir uma unidade imaginária a uma porção do real, unidade que falha, desvanecendo-se logo e criando o desejo de complementação, de reformulação, de reedição, numa repetição que se desdobra na medida em que a história lhe dá lugar. Além disso, definir as “palavras” e suas significações é esquecer que se está definindo (Nunes, 2006: 22).

A definição do dicionário fornece a ilusão de estabilidade, uma vez que as palavras

aparecem como se tivessem sentido em si mesmas. Devemos ressaltar que uma dada definição

é sempre filiada a uma formação discursiva. Reproduzimos, no quadro abaixo, os verbetes

(entendidos como resultantes de práticas sócio-históricas) retirados da 2a edição (1813). 37 Em anexo, transcrevemos os verbetes dos dicionários consultados. Confira o anexo 5.

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Quadro 1 - DLP

VULGARISÁR, v.at. Reduzir ao estado de plebeu, e homem vulgar. § Fazer commum, com abalimento da nobreza, graduação; v.g. vulgarizar as honras, magistrados, insignias, e graduação de nobreza; os foros de fidalgo, os habitos de Ordens. § Vulgarizar o corpo, devassalo, prostituilo “mulher que se vulgarizava ao que primeiro chegasse”.§ fig. Vulgarizar a fama, dando-a a coisas vulgares. § Traduzir em vulgar. § Publicar a todos.

DIVULGAR, v.at. Publicar, espalhar alguma notícia, nova, vulgarizá-la: divulgárão a Fe no Oriente: divulgar feitos em Historia. Goes.

Nas edições seguintes, é possível encontrar alguns acréscimos. Na edição de 1891,

tem-se “tornar alguma coisa geralmente conhecida, sabida, tornar-se geral, vulgar, espalhar-se

muito; divulgar-se”. De acordo com Vergara (2008), somente na décima edição (1945), nota-

se outro uso para o termo, constando “ato ou efeito de divulgar. Vulgarização de

conhecimentos científicos especializados, pondo-se assim ao alcance do maior número

possível de indivíduos, isto é, do vulgo; por definição” (Vergara, 2008: 327). No verbete

“vulgarizar” do quadro 1, há uma trajetória de ações: “uma idéia de perda da ‘aura’ e

deslocamento de valores, do que era antes nobre ser agora plebeu, culminando com a

corrupção máxima que seria a prostituição” (idem : 325-326).

Alguns dos sentidos atribuídos a “vulgarizar” não estão expostos no verbete de

“divulgar”. Vulgarizar é reduzir a plebeu, condição de classes inferiores. A plebe (o vulgo) é

posta em contraste com a nobreza – fazer commum com o abalimento da nobreza38. Um outro

sentido atribuído é o aspecto da prostituição do corpo. E por fim, a questão da tradução em

linguagem acessível/língua vernácula (em vulgar) que proporcionaria a publicação a todos

(nobreza e plebe?!). O aspecto da tradução é trazido como um dos sentidos possíveis –

atividade de “reformulação” de um texto original em outro código – no caso, a língua

utilizada pela plebe, o vulgar – menor/inferior – a língua vernácula.

Escrever em vernáculo, e não em latim, fez com que as palavras tivessem

determinados sentidos e não outros. Podemos conjecturar que o vernáculo foi um “lugar

politicamente significado da articulação da ciência com a religião e o poder” (Orland i, 2002:

76). A inscrição da ciência em vernáculo, em língua vulgar, apresenta um outro sentido além

daquele encontrado nos dicionários: o vulgar indica o lugar do fugidio.

38 Devemos recordar em quais condições de produção esse dicionário foi produzido. Em 1786 (ou na segunda edição em 1813), Portugal e Brasil viviam sob a égide de uma monarquia, logo a distinção entre nobreza e plebe era posta.

66

Em um dicionário oitocentista, no caso o Dicionário Contemporâneo da Língua

Portugueza, de F. J. C. Aulete, editado pela primeira vez em 1881, encontramos os mesmos

verbetes. Contudo, na edição de 1948, já é possível encontrar “Vulgarizar a sciencia”.

Vejamos o quadro abaixo:

Quadro 2 - DCLP

Vulgarizar (vul-gha-ri-zar), v.tr. tornar notório ou mui conhecido; propagar, vulgar, divulgar; pôr ao alcance , ao conhecimento de muitos ou de todos; popularizar: Vulgarizar a sciencia. ¦ Abandalhar. ¦ Traduzir em vulgar.¦ –, v. pr. Tornar-se vulgar, tornar-se mui conhecido; popularizar-se: Esta xacara é das que menos se vulgarizaram. (Garret.) ¦ Abandalhar-se: ... Não se deixando vulgarizar e ter em pouco. (Fil. Elys.). ¦ F. Vulgar+izar.

Divulgar (di-vul-ghár), v. tr. tornar público, fazer conhecido de todos ou do maior numero; apregoar, propagar, diffundir. A grandeza e a variedade de successos de seu tempo em paz e guerra estão merecendo serem divulgadas por muitas línguas e celebradas por muitas pennas. (FR. L. De Sousa)¦ –, v. pr. tornar-se público ou conhecido; propagar-se: Divulgou-se o successo na cidade (Camilo) ¦ F. lat. Divulgare

Por meio das designações, foi possível verificar que o termo “vulgarização

científica”39 aparece dicionarizado a partir da década de 40 do século XX. Novos sentidos são

atribuídos aos verbos em questão, como, por exemplo: “pôr ao alcance, ao conhecimento de

muitos ou de todos”. Embora os dois verbos sejam indicados com uma suposta relação de

sinonímia, outros sentidos são estabelecidos para cada um. Ressaltamos que entre um verbete

ou outro de cada dicionário há modos de dividir os sentidos.

No verbete “vulgarizar”, o lugar do plebeu (quadro 1) cede lugar a “todos” (quadro 2).

Vulgarizar as honras torna-se popularizar. Não há mais a distinção entre nobreza e plebe. Há

uma distância entre “plebeu” e “todos”, já que “plebeu” é constituído na relação com o

monarca, e “todos” não. Há uma indeterminação que constitui a relação do sujeito com o

jurídico. Nas diferenças lexicais de cada verbete, é possível identificar as marcas de passagem

da ordem religiosa à jurídica, uma vez que o léxico da ordem jurídica é introduzido

deslocando o léxico da ordem anterior.

Ainda no quadro 2, há uma relação que se estabelece entre o vulgar e o popular (do

povo40, do povo brasileiro?). Em “divulgar”, por seu turno, cria-se um deslizamento entre o

que é publicar (quadro 1) e o que é tornar público (quadro 2) – apregoar, propagar, difundir. 39 Vergara (2008) defende que, muito embora a expressão “vulgarização científica” só tenha parecido dicionarizada no século XX, ela já circulava desde meados do século XIX e, provavelmente, teria passado para o vocabulário da língua portuguesa a partir de livros franceses. Para a autora, nos anos 70 do século XIX (com o surgimento de publicação especializada), a expressão “vulgarização científica” começa a suplantar a expressão mais antiga de “ciência popular”. 40Orlandi (2006) faz uma leitura sintomática da palavra “povo”. Para a autora, “povo” (sujeito público) é o lugar do “irrealizado”, é o “lugar de uma declinação significativa da história” (Orlandi, 2006:10) e não uma categoria de conteúdo. Ele, o povo, é condição do movimento na história.

67

No verbete, não está presente o sentido de tradução, tampouco a expressão “divulgação

científica” é dicionarizada até então.

Como os processos históricos de significação estão sempre em movimento, os sentidos

podem ser re-significados ou de-significados – “significando pela censura e pela interdição”

(Orlandi, 2002: 47). Ao comparar os quatro verbetes, observamos alguns deslizamentos de

sentido. A expressão “vulgarização científica”, ao menos até a década de 40, está inserida em

uma rede de sentidos na qual a tradução torna-se o centro. Os termos científicos seriam

traduzidos em linguagem comum, ou seja, em uma linguagem vulgar e, desta forma, seriam

acessíveis a “todos”.

O efeito de sentido de vulgarização como tradução remete à questão da mediação: há

um primeiro momento de trabalho intelectual – de produção de conhecimento pelo cientista –

e um segundo, no qual o conhecimento será “transmitido” em um outro “código” para o

público (o povo) que, por não ser conhecedor ou ter adquirido o “código da ciência” (ter sido

iniciado), não consegue compreender os conhecimentos geridos. Como veremos adiante, a

linguagem (ou a comunicação) é considerada o ponto nodal da atividade que considera a

relação entre ciência e público.

Observamos nas seqüências recortadas e nos verbetes de dicionário, uma aproximação

e um distanciamento das duas definições. E nos interrogamos: por que um sentido pejorativo

teria sido atrelado ao termo “vulgarização científica”? Historiadores tendem a explicar o

sentido depreciativo de “vulgarização” remetendo-o a um fato histórico: a forte influência da

cultura francesa até o início do século XX cedeu lugar, no pós-guerra, a influência

estadunidense.

Não deixamos de considerar tal influência, no entanto, interrogamos sobre os gestos de

distinção entre vulgarização e divulgação no contexto brasileiro. Na Análise do Discurso,

falamos de sentidos que se confrontam nas relações contraditórias da história. Uma nova

forma de designar a “comunicação da ciência a um público leigo” foi produzida

historicamente. Em um mundo “objetivado” pela ciência, considerada o único conhecimento

“verdadeiro”, foi necessário realizar a “comunicação da ciência a um público” de forma

prestigiada/moralizada.

No Brasil, no final do século XIX e, principalmente, nas primeiras décadas do século

XX, acompanhou-se o estabelecimento de uma política médico-jurídica que difundia regras

ligadas à higiene social e a costumes ordeiros. Segundo Abreu (2004),

para muitos juristas, médicos e políticos preocupados com a reforma e moralização dos costumes populares, realizar esta tarefa era um enorme desafio, posto que

68

consideravam os populares em geral, e os negros em particular, como portadores dos supostos vícios da pobreza e da escravidão, tais como, a propensão à doença, a falta de hábitos, a tendência a ociosidade, a não preocupação com a educação dos filhos e, por extensão, a não valorização dos laços de família, do casamento e da honra feminina (Abreu, 2004: 291).

Em uma nova organização social e urbana, os populares (miscigenados, negros,

pobres) considerados inferiores (assim como os plebeus) foram lançados para as regiões

periféricas das cidades. E assim também seus supostos vícios da pobreza – inclusive o da

prostituição! No trecho citado, há um discurso moral e civilizatório da instrução e nele

perpassa a noção de urbanidade.

Retomamos, nesse trecho, a contribuição de Orlandi (1990) sobre a política do

silenciamento. Para a mesma, é pelo silenciamento que “um discurso diz para não deixar que

se digam as ‘outras’ palavras” (Orlandi, 1990: 122). O sentido de “vulgarização” entendido

como “referente ao povo”, especificamente, ao povo brasileiro (pobre, negro, prostituído),

fez-se significar neste gesto de distinção entre “vulgarização” e “divulgação” científica. Mas o

sentido de inferioridade ainda ressoa na definição de “divulgação”, visto ser a divulgação

tomada, em muitos estudos, como um texto-segundo.

As análises dos verbetes de dic ionários permitiram-nos compreender que as duas

palavras passaram por um processo de re-significação. Ou melhor, foram processos de

redivisões de sentidos atrelados a uma reforma moralizante da sociedade. Se somarmos a isso

as análises das seqüências anteriores, podemos dizer que a reforma foi em prol de um

progresso industrial e tecnológico a serviço da administração social dos sujeitos.

Além de buscar compreender a suposta necessidade imperiosa por informações

científicas e o gesto de distinção entre “vulgarização” e “divulgação”, pretendemos também

compreender outros efeitos de sentido. Uma questão importante e que está diretamente

envolvida em nossa pesquisa é que um discurso não existe isoladamente, relações com outros

discursos são estabelecidas no interior de regiões de saber. Essas relações serão foco de

nossas próximas análises.

2.2.2 Sentidos outros

Para a elaboração desta seção, retornamos os dois processos de produção da

linguagem: paráfrase e polissemia. Segundo Orlandi (1998), o que funciona no jogo dos

processos de paráfrase (retorno ao espaço do dizível) e polissemia (transferência,

69

deslizamento de sentidos) é o imaginário na constituição dos sentidos e o trabalho da

memória.

Dos dois processos, já nas leituras iniciais do corpus, depreendemos que o parafrástico

é mais recorrente e, por esse motivo, enfatizamo-lo. Isso não resulta dizer que não

consideraremos o polissêmico, visto que não há um sem o outro. A relação entre os dois

processos é contraditória, ou seja, é uma diferença necessária e constitutiva, visto que

“sujeitos e sentidos estão sempre em movimento fluindo entre paráfrase e polissemia”

(Orlandi, 1998: 19).

Mais especificamente, para fins de análise, a noção de ressonância de significação

elaborada por Serrani (1993) mostrou-se produtiva. Partindo da noção de FD como “um

espaço de reformulação-paráfrase” (Pêcheux, 1988[1975]) e de paráfrase como um processo

de produção de linguagem (Orlandi, 1984), Serrani introduz a noção de ressonância de

significação para caracterizar quando há paráfrase entre duas ou mais unidades lingüísticas.

Em outros termos,

há paráfrase quando podemos estabelecer ante as unidades envolvidas uma ressonância – interdiscursiva – de significação, que tende a construir a realidade (imaginária) de um sentido. Ressonância porque para que haja paráfrase a significação é produzida por meio de um efeito de vibração semântica mútua (Serrani, 1993: 47).

O funcionamento parafrástico não se constitui a partir de uma relação semântica

estável, mas a partir da tensão entre sentidos que se constituem historicamente. Assim sendo,

as paráfrases não decorrem, por exemplo, de constituintes de uma sentença que possam ser

diretamente observados. A repetição interdiscursiva se concretiza no intradiscurso por meio

de diferentes realizações lingüísticas.

Por meio da repetição de algumas unidades lingüísticas pudemos recortar seqüências

discursivas e organizá- las em quatro eixos temáticos41, a saber: divulgação como problema de

linguagem; divulgação como prática redentora; divulgação como despertar de vocações; e

divulgação como superação de deficiências educacionais. Esse dispositivo analítico, tomado

emprestado de Pfeiffer (2000), permite depreender posições-sujeito. O eixo enunciativo é

constituído de várias enunciações que vêm de uma mesma posição-sujeito. Nesses eixos, há

tanto concorrência de sentidos como possibilidade de deslizes de sentido.

Nosso objetivo, na constituição desses grupos, foi verificar como certos sentidos são

fixados ou excluídos, como os efeitos de sentido produzem um imaginário que se constrói

41 Ressaltamos que tais eixos resultam de nosso gesto de interpretação frente ao corpus auxiliar, o que nos permite afirmar que outros gestos podem resultar em outros eixos temáticos.

70

para significar a divulgação científica. Assumindo o risco de criar um efeito de

homogeneidade, nossas análises incidem sobre os sentidos dominantes que constituem o que é

divulgação científica.

ET1: Divulgação como problema de linguagem

SD1: divulgação supõe a tradução de uma linguagem especializada para uma leiga, visando atingir um público mais amplo (Albagli, 1996: 397). SD2: Um instrumento de comunicação que informe e propicie o diálogo entre os laboratórios e as praças públicas (Candotti, 2001: 5). SD3: Daí a necessidade da mediação para a transformação do texto científico em texto acessível ao não especialista. Essa mediação é tarefa realizada pelo divulgador [...]. Os materiais que são impressos nos meios de comunicação de massa, particularmente jornais e revistas, são obtidos de diferentes fontes, como entrevistas, documentos oficiais, artigos de revistas especializadas e depoimentos que denominaremos texto-fonte. Estes, para se tornarem acessíveis, ou seja, interpretáveis pelo público , devem ser editados. Editar significa reconstruir o texto-fonte a partir de certos critérios determinados pela linguagem jornalística (clareza, simplicidade e concisão) expressa em jornais e revista (Sousa, 2000: 87)

Em relação às condições de produção, as formulações apresentadas – tradução de

uma linguagem especializada para uma leiga; instrumento de comunicação que informe e

propicie o diálogo entre os laboratórios e as praças públicas; tornarem acessíveis, ou seja,

interpretáveis pelo público – circulam nos meios acadêmicos de diferentes áreas do saber.

São sentidos institucionalizados que sedimentam a divulgação como uma prática de tradução

e de transmissão de informações. Para efetivar a comunicação, um texto-fonte deve partir por

certos critérios determinados pela linguagem jornalística.

Nas três seqüências acima, considera-se a linguagem como instrumento para a

comunicação. Logo, a prática de propiciar o diálogo entre laboratórios e praças públicas dá-

se no plano da informação. A divulgação é vista como uma comunicação que deve adequar a

linguagem de termos específicos da Ciência em termos simples, elaborando uma tradução

que possa atingir o público não especializado, a comunidade, a praça pública. Tais

definições de divulgação científica acabam por recuperar o sentido de tradução interlingual

dicionarizada apenas no verbete do verbo vulgarizar.

Verificamos que nas SDs se constrói a ilusão de que o texto de divulgação científica

apenas reproduz, de forma mais acessível ao público, a mensagem do texto original. Entre o

especialista e o não especialista, é colocado o divulgador. Ele é o responsável pela tradução

de uma linguagem especializada para uma leiga.

Especificamente na SD3, a mediação do divulgador, seguindo critérios jornalísticos,

torna os textos científicos interpretáveis pelo público. Podemos dizer que há um espaço

polêmico quanto às maneiras de ler. A divisão social do trabalho da leitura, inscrito numa

71

relação de dominação política, impõe uma gestão administrativa dos documentos textuais.

Nas palavras de Pêcheux (1994),

a alguns, o direito de produzir leituras originais, logo 'interpretações', constituindo, ao mesmo tempo, atos políticos (sustentando ou afrontando o poder local); a outros, a tarefa subalterna de preparar e de sustentar, pelos gestos anônimos do tratamento 'literal' dos documentos, as ditas 'interpretações’ (Pêcheux, 1994: 58 – grifos nossos).

As ditas interpretações mencionadas por Pêcheux seriam então o produto de um gesto

de leitura do divulgador frente ao texto científico, que resultaria em interpretações autorizadas

para o público. Esse gesto de leitura funciona à guisa de mediar, traduzir, facilitar, exaltar

sentidos. Em outros termos, os critérios jornalísticos recortam os textos científicos de

determinada maneira e o material resultante, o texto de divulgação científica, disponibiliza

algumas “interpretações” e não outras.

Ainda nas palavras de Pêcheux, “desenvolver socialmente tais métodos de tratamento

em massa do arquivo textual, com fins estatais ou comerciais, supunha torná- los facilmente

comunicáveis, transmissíveis e reproduzíveis” (Pêcheux, 1994: 57). O divulgador promove o

que Pêcheux chama de “terapêutica da linguagem” por meio de uma língua lógica de

referentes unívocos. Essa terapêutica tende a fixar o sentido legítimo de uma palavra, de uma

expressão ou de um enunciado.

Ao restringir a divulgação científica a uma questão de linguagem, silenciam-se os

processos históricos de produção de conhecimento, silencia-se que todos são parte da

produção histórica do conhecimento. Evoca-se uma ruptura, divisão social da produção do

conhecimento, a qual só seria supostamente restabelecida com a convocação da comunicação,

da mediação. Dizer a divulgação científica como um problema de linguagem implica dividir a

sociedade entre os sábios, por conseguinte competentes, e os ignorantes. E como lembra

Authier-Revuz (1998), “entre uma elite científica, investida de poderes ligados à competência,

e uma massa privada de meios de controle; importa, pois, sendo estes males imputados à falta

de saber, remediá-los através de uma disseminação desse saber no conjunto da sociedade”

(Authier-Revuz, 1998: 108), o problema da linguagem passa a ser uma evidência.

ET2: Divulgação como prática redentora

SD1: a divulgação da ciência é uma dos grandes desafios do século XXI pois, se queremos realmente uma sociedade democrática , é preciso que todos entendam a ciência (Divulgação científica: um grande desafio para este século, 2005: 19). SD2: A divulgação da ciência é hoje instrumento necessário para consolidar a democracia e evitar que o conhecimento seja sinônimo de poder e dominação (Candotti, 2001: 5).

72

SD3: o trabalho de divulgação científica, como um instrumento de construção da democracia e da cidadania , uma vez que gera informações seguras e exatas que nos libertam e nos fazem entender o mundo ao nosso redor (Agência Fapesp, 2007)

Nas seqüências acima, a divulgação científica é vista como um instrumento

indispensável para a construção e consolidação da democracia e da cidadania. Assim sendo,

a democracia só se tornaria possível pelo entendimento da ciência por toda sociedade. O

efeito que se cria é que a ciência – neutra, a-histórica – é a condição para concretização de um

Estado democrático, no qual todos terão acesso aos bens culturais. A divulgação científica

teria o papel redentor de salvar a sociedade do obscurantismo de um regime não-democrático;

ela libertaria os cidadãos e os faria entender o mundo ao seu redor (mas o transformaria?).

Imerso na realidade “tangível”, que pode ser alcançada e melhorada pela ciência, silencia-se a

desigualdade social, ou melhor, silencia-se que “há desigualdade na distribuição do

conhecimento, não há partilha” (Orlandi, 1984: 13).

Na SD3, supõe-se que o papel da divulgação científica é o de ser mediador, de

instrumento para a construção da cidadania e, dessa forma, garantir a democracia. Em

princípio, por sermos uma República, já nascemos cidadãos (Orlandi, 2004b), logo não seria

necessário que a cidadania fosse construída. No entanto, a cidadania 42 tem funcionado como

algo a ser adquirido, criando a ilusão de algo a sempre ser perseguido e nunca alcançado: é o

“vir a ser de uma cidadania inatingível” (idem : 145).

ET3: Divulgação como despertar de vocações

SD1: Essa diffusão [de conhecimentos científicos] pode tambem exercer um papel importante no despertar de novas vocações. O contacto constante com as coisas da sciencia aguça a curiosidade e revela tendencias que poderiam de outro modo permanecer para sempre occultas (Almeida, 1931: 2) SD2: Se, com esse suplemento, concorrermos com uma parcela mínima que seja para divulgar a ciência e despertar vocações de cientistas, dar-nos-emos por amplamente recompensados em nossos esforços.” (Editorial do suplemento “Ciência para Todos”, 1948) SD3: Tantos anos depois de havermos começado, não é sem muita alegria que encontramos, hoje, professores eminentes que dizem haverem encontrado sua vocação em artigos que escrevemos (J. Reis, s.d.) SD4: Estimulados pelo fascínio de grandes teorias e de cientistas retratados na mídia, jovens são despertados para a carreira científica . Para que o grande público reconheça a amplitude do termo Ciência, uma boa matéria de divulgação científica é imprescindível (Perez e Caluzi, 2006: 57)

Nas seqüências acima, é conferida à divulgação científica o papel de despertar novas

vocações, revelar tendências, despertar, em cada jovem, o cientista que ali reside. Ou de

42 S. Oliveira (2006), em análise de dicionários de língua portuguesa produzidos no Brasil no século XX, sustenta que a palavra “cidadania” tem sua definição atrelada à palavra cidadão. Essa apresenta duas acepções: a) urbana (habitante da cidade); e b) jurídica (relação com o Estado; gozar direitos e deveres). A última acepção é derivada de “um sentido específico de cidadão – aquele que se constitui na França revolucionária do século XVIII e que significa o citoyen francês pela igualdade de direitos e deveres em relação ao Estado” (S. Oliveira, 2006:107).

73

outra forma, essas vocações permaneceriam ocultas. A divulgação funcionaria como um

chamado ao talento científico.

Representado pela forma-sujeito capitalista, o homem dos séculos XX e XXI, diga-se

o homo racionalis (cf. Smolka, 2002), teria a ciência como sua própria “essência”. Seria

“naturalmente” um homem que vive da e pela ciência. Desta forma, torna-se possível aguçar

a curiosidade científica, visto que essa lhe seria intrínseca.

A ciência estaria latente em mentes que, sem o devido chamado, ficar-se- iam perdidas.

Tal chamado – muito próximo ao chamado divino – por parte do divulgador (mediador entre o

cientista e os jovens) seria o responsável por revelar tendências para a carreira científica.

Assim sendo, cria-se a ilusão que a ciência estaria fora da prática política e das injunções

sócio-históricas.

Ressaltamos que entre as seqüências há um deslocamento do discurso vocacional ao

discurso empresarial. Porém, ambos tomam a profissão científica como foco.

ET4: Divulgação como superação de deficiências educacionais

SD1: Não podemos perder de vista nossas deficiências educacionais. A divulgação criteriosamente feita nos jornais e nas revistas serve para preencher lacunas de formação básica ou mesmo específica (J. Reis, s.d.). SD2: A divulgação científica tem um papel importante neste contexto. Na formação permanente de cada pessoa, no aumento da qualificação geral científico-tecnológica e na criação de uma cultura científica de âmbito maior da sociedade. Tem, ainda, um papel complementar ao ensino formal de ciências, reconhecidamente deficiente em nosso país (Moreira, 2004).

Nas duas seqüências, a educação formal é projetada como reconhecidamente

deficiente (por quem? quando?). Constrói-se uma imagem inferiorizada da educação em

contraste a uma imagem da divulgação científica extremamente valorizada: redentora da

sociedade. A divulgação teria o papel de complementar a educação43 formal (talvez substituí-

la?).

Tal funcionamento discursivo desloca a escola de seu lugar já legitimado de ensinar.

A divulgação científica (mídia) ocuparia o lugar de instrumento de democratização da

educação, já que propõe levar as novidades científicas e tecnológicas à sociedade.

As SDs do eixo temático 4 sustentam que a demanda por uma “educação de

qualidade”, coloca em xeque a atual educação formal. A educação estaria “a reboque” da

ciência/divulgação da ciência. A pauta desse debate remete a uma incapacidade das funções

43 Encontramos algumas determinações sócio-históricas que parecem indicar que a divulgação científica tornou-se possível com o aumento da instrução escolarizada. A redução dos níveis do analfabetismo foi imprescindível para o aumento de um mercado de leitores de divulgação científica. Portanto, a ampliação da educação formal e expansão da divulgação científica parecem caminhar juntas desde, pelo menos, o final do século XVIII. Mas esse paralelismo não ocorre sem tensão.

74

da escola, sobretudo, na “transmissão de conhecimentos” sistematizados. Dada sua suposta

incapacidade de oferecer conhecimentos científicos atualizados, a mídia assumiria esse papel

de alfabetizar cientificamente a sociedade. A divulgação científica seria, então, a tábua de

salvação da educação, ou melhor, ela teria a “tarefa de ocupar o lugar da falta”.

Com a análise de SDs, recortadas de diferentes materiais, de diferentes

temporalidades, que circulam pelos meios acadêmicos, midiáticos, administrativos (políticas

de fomento à pesquisa), depreendemos sentidos institucionalizados que constroem

imaginariamente a divulgação científica como um ato de informação. Resumidamente, a

divulgação ocorreria no plano da transmissão de informações; uma tradução do conhecimento

científico, transpondo-o ao ordinário, seria uma prática redentora, pois consolidaria a

democracia, revelaria vocações científicas e ajudaria a superar as deficiências educacionais do

nosso país. Pelas considerações tecidas, é possível dizer que a divulgação é construída como

necessária à sociedade, como um bem necessário.

2.3 Por que a grande demanda por ciência na sociedade atual?

No estágio atual do capitalismo, a constante formação de novos mercados

consumidores é uma exigência imposta pelo próprio sistema44. Tal necessidade, construída

historicamente, proporciona cada vez mais intensamente uma demanda por ciência. Isso quer

dizer que nos submetemos a determinações históricas: acreditamos não poder viver sob o

manto da ignorância e, por conseguinte, necessitamos (ou nos é posto que necessitamos?)

obter mais informações sobre novas descobertas. O conhecimento científico - tornado

mercadoria, ou melhor, “marketing científico” (Orlandi, 2004b) - é considerado um

instrumento fundamental das sociedades atuais, ou melhor, é o responsável pelo futuro da

humanidade.

Em relação a esse futuro, Orlandi (2003c) analisa-o no interior discurso dos recursos

do meio ambiente. Para a autora, esse é um discurso

arregimentado pelo processo significativo do discurso empresarial, que acaba projetando um público alvo que precisa saber certas coisas enquanto consumidores. Saber este fortemente atado à idéia de “informação”. Não são

44 Segundo Dufour (2005), a imposição de novos mercados não está desatrelada das formas de narrar. Só restariam algumas formas subsistentes das grandes narrativas. A dominante, segundo o autor, seria a que glorifica a mercadoria. “A narrativa da mercadoria apresenta os objetos como garantia de nossa felicidade e, ademais, de uma felicidade realizada aqui e agora” (Dufour, 2005:76). A atrofia da produção das grandes narrativas aflora o consumo de novos aparelhos e de produtos tecnológicos, cada vez menores e mais sofisticados. Seria uma verdadeira servidão voluntária mantida pelo mercado. No lugar das grandes narrativas, produzem-se “historietas que não param de ser tecidas e difundidas a propósito da mercadoria” (idem:78).

75

pois sujeitos simbólicos (que significam e se significam em suas histórias e formações sociais) aí enunciados mas sobretudo “usuários”, bem ou mal “informados”. Alia-se a esta característica o fato de que é um discurso de fortes características político-administrativas, embora se sustente em argumentos que procuram autorizar-se a partir de sua cientificidade (ciência econômica, física, biológica, ambientalista e muitas outras). Este discurso explora assim menos os processos e relações e mais as conseqüências e resultados. Em geral, traz ainda uma carga enorme de preâmbulos que dispõe seu consumidor ao efeito de uma grande quantidade de “informações” presumivelmente necessárias. Desliza facilmente para preconceitos (que pretende eliminar), muitas vezes para a nostalgia de um mundo idealizado e afeta o óbvio – próprio do sistema capitalista - de uma grande importância e necessidade (Orlandi, 2003c: 3).

O discurso dos recursos do meio ambiente, um espaço discursivo logicamente

estabilizado, aponta para o recobrimento da ciência, da tecnologia e da administração. De

fato, um intrincado jogo, um “patchwork heteróclito” (Pêcheux, 2002[1983]: 32) que cobre

simultaneamente o que é logicamente representável. Nesse espaço discursivo não se prevê que

o real é “estranho à univocidade lógica” (idem : 43), que há deslizamento de sentido, que o

sujeito pode resistir a suas coerções. Em suma, o que fica de fora desse discurso é o sujeito

em suas relações sociais, históricas e simbólicas.

Para compreender a discursividade que se funda na necessidade imperiosa de conhecer

ciência, analisamos a temática dos alimentos transgênicos no século XXI e da campanha de

vacinas no início do século XX.

Vejamos a seqüência a seguir:

SD1: Em 2003, o ano em que as controvérsias se tornaram particularmente intensas no Brasil em torno do tema [transgênicos], os agricultores do sul do país anunciaram que plantavam soja transgênica ilegalmente, com sementes contrabandeadas da Argentina. Segundo eles, grande parte da soja daquela safra (70%) era transgênica. Após anunciar que a proibição para a comercialização seria mantida, o governo Lula decidiu permitir sua venda 'provisoriamente': a permissão foi renovada nos anos seguintes, até que, em 2005, a venda da soja foi legalizada, com a aprovação da Lei de Biossegurança. Enquetes nacionais, no entanto, mostraram que uma parcela majoritária da sociedade brasileira era contrária aos alimentos transgênicos, com cerca de 70% das pessoas consultadas afirmando que preferiam não consumir este tipo de alimentos. Mesmo com a autorização legal, as controvérsias continuam até hoje em torno do assunto e sistematicamente são amplamente veiculadas nos meios de comunicação. Claramente, o governo brasileiro e a comunidade científica não estabeleceram um diálogo com a sociedade brasileira (Massarani, 2008: 2).

As controvérsias dos transgênicos como sua aceitação ou não pela sociedade brasileira

pautam-se em uma ausência de diálogo: o governo e a comunidade científica não teriam

esclarecido a população sobre tais alimentos modificados geneticamente, mesmo com a

aprovação da Lei de Biossegurança a qual legaliza a venda da soja transgênica.

Na problemática da ausência de comunicação, outros sentidos se calam. Questões

como a reforma agrária, agricultura de subsistência, aumento das safras dos produtos

agrícolas não fazem parte desse “gesto de argumentação” (cf. Pfeiffer, 2000). O sentido

76

legitimado é que as pessoas não comem a soja modificada por falta de conhecimento, pela

ausência de comunicação entre ciência e público – ausência de divulgação científica!

Em relação à temática da vacinação, podemos dizer que há, na atualidade, uma

aceitação, ou melhor, uma naturalização da aceitação de aplicação de vacinas em massa em

postos de saúde por todo o Brasil. Campanhas públicas lembram-nos da necessidade das

vacinas, sobretudo, de nossa responsabilidade em erradicar determinadas doenças em nosso

país. As campanhas também nos lembram de que todos os brasileiros estão esclarecidos sobre

a necessidade e importância das vacinas. Sobre esse aspecto, é interessante compreender os

sentidos que circulavam no início da vacinação contra gripe para idosos. Muitos eram

contrários à vacinação e diziam que essa era uma forma de matá-los. Nesse movimento

contrário, ressoavam sentidos outros sobre vacinação, sentidos que circulavam no início do

século passado, período de campanha da vacinação contra a varíola, e foram, paulatinamente,

re-significados, passando a ser fixados como falta de civilização, ignorância.

Voltamos à primeira década do século passado. Pavan (2006) aponta o período como

um momento decisivo para instauração da ciência brasileira, pois, nessa época, uma epidemia

atingia a população brasileira. Principalmente no Rio de Janeiro, engenheiros e politécnicos

capitaneavam transformações urbanas urgentes em virtude da necessidade de saneamento.

Cientistas do Instituto Manguinhos estavam envolvidos em torno de um problema

fundamental: a saúde pública. De forma a mobilizar a opinião pública45, formas e técnicas de

comunicação teriam sido colocadas à disposição da ciência.

Para Pavan (2006), “o combate à febre amarela provocou no Brasil o primeiro grande

momento de comunicação de massa, tendo como suporte de conteúdo, a divulgação científica.

Os cientistas abriram diálogo com a população através da imprensa” (Pavan, 2006: 73). No

entanto, deve-se destacar que a mobilização da sociedade não ocorria sem tensão. Travou-se

uma verdadeira guerra, a “guerra da vacina”46. Contudo, a “guerra” não se deu como uma

forma para a não- implementação da vacina. Pereira (2002) salienta que a voz dos

trabalhadores que gritavam nas praças contra a vacina ou se expunham diante da polícia nas

manifestações foi calada. Para o autor, é necessário, para tentar entender o sentido da revolta,

saber quem eram os homens e mulheres que se insubordinaram contra a obrigatoriedade da

vacina, e contra o que se batiam, pois 45 Para Orlandi (2004), a divulgação científica pode ser a base de uma opinião pública. Autora ainda salienta que ao tratar da opinião pública “temos os produtos – os jornais etc – da relação da opinião com o povo mas não se fala em que o povo pratica opinião” (Orlandi, 2006:23). 46 A chamada “Guerra da Vacina” ocorreu no dia 10 de novembro de 1904, na cidade do Rio de Janeiro, em virtude do projeto de regulamentação da Lei de Vacinação Obrigatória. O projeto foi publicado pelo jornal A Notícia (cf. Pereira, 2002).

77

um acontecimento de tamanhas proporções não foi, sem dúvida, motivado apenas pelo medo de injeção. Revisitá-lo significa delinear o contexto em que se deu a Revolta. É buscar na compreensão do longo processo de expropriação a que foi submetida à população carioca de baixa renda com o bota-abaixo da Reforma Pereira Passos e nas manipulações políticas das elites nacionais [...], os prováveis estopins de uma sublevação que deixou nos rostos e na cidade marcas mais profundas que as da varíola (Palma, 2006 – grifos nossos).

A “guerra da vacina” mais do que a implementação de um produto da ciência foi uma

guerra contra a expropriação. Vale lembrar as péssimas condições nas quais viviam a

população pobre carioca no início da República. Podemos verificar que a aceitação, por parte

da população, dos benefícios da ciência não é absoluta. Somos contrários a posição

apresentada por Pavan (2006). Nossa hipótese é que a mídia teria aberto espaço não só para

apresentar apenas as “benfeitorias da vacina” vista como uma “novidade científica”, mas para

publicizar a política de higienização do Estado. Nas palavras de Pfeiffer,

os grandes empreendimentos sanitaristas com buscas de higienização (o corpo sadio) tomam uma forma tal que lhes é garantido o direito à demolição e à entrada nas casas particulares, com duplo objetivo de alterar a estrutura das casas (esgoto, água encanada), e b) alterar o comportamento das pessoas de modo que elas se adequassem à novas regras de administração sanitária (as vacinas, a coleta de lixo, regras de educação de higiene pessoal. Essa higienização possibilita o isolamento sectário, as repartições, e a aparência de “casa limpa” nos centros das cidades, enquanto a sujeira é expulsa junto com uma parcela da população para outras regiões menos visíveis (Pfeiffer, 2000: 104 – grifos da autora).

As constatações de Pfeiffer (2002) nos indicam que ciência e, podemos dizer, a

divulgação científica estão atreladas à administração, às “‘técnicas’ de gestão social dos

indivíduos” (Pêcheux, 2002[1983]: 30). Na busca da universalização da verdade e sob o

manto da competência, a ciência, atrelada à administração, converte-se em espaços de poder,

de controle. A divulgação científica, por seu turno, legitima a ciência e produz o consenso:

um meio de controle.

Na atual conjuntura histórica, a divulgação científica pode ser entendida como “coisas-

a-saber” que, como Pêcheux (2002[1987]) bem coloca, “representam assim tudo o que arrisca

faltar à felicidade do ‘sujeito pragmático” (idem : 34). É um discurso que se funda na pretensa

necessidade de informação nos quais os sujeitos são enunciados como usuários, consumidores

dessas informações.

Em sendo a ciência financiada por recursos públicos através de agências próprias de

fomento, é possível afirmar que a produção de conhecimento sofra sempre a ação do Estado.

Em seu turno, o Estado capitalista, mais precisamente o neoliberal, por meio de suas

instituições, individualiza os sujeitos e, na relação de direitos e deveres, imputa- lhes

responsabilidades. De fato, todos os cidadãos (iguais perante a lei) devem saber reciclar o

78

lixo, não poluir rios e mares, economizar energia elétrica, conhecer a profilaxia e os sintomas

de doenças – e, preferencialmente, não as contrair –, em suma apreender os benefícios da

ciência por meios próprios. A responsabilidade do Estado, passada às mãos do “cidadão”,

aparece como uma questão individual.

O sujeito individualizado pelas instituições do Estado (no caso, a divulgação

científica) reconhece seus direitos e deveres e submete-se “livremente” aos novos

“irresistíveis” equipamentos tecnológicos (como se não pudéssemos viver sem um novo

modelo de celular, por exemplo). Tem seu foco atrelado à busca do corpo perfeito, ao

consumo de novos alimentos e/ou vitaminas, à manutenção de um planeta ecologicamente

correto. Seria possível dizer que a divulgação científica, em nossa sociedade, funciona como

“um guardião da ciência” e produz um efeito de convencimento. Apresenta sempre os

resultados de uma ciência destinada ao progresso. Apaga os processos históricos da produção

de conhecimento, instaurando, para tal, uma cisão entre os homens da ciência, produtores de

conhecimento, e o público em geral, os consumidores de ciência. Na textualidade, tal

separação é materializada com os termos “texto primeiro”, “origem”, “fonte” (produzido por

homens da ciência) e “texto segundo”, “reformulado” (para o público em geral).

Ao longo da tentativa de compreensão da demanda da divulgação científica em nossa

sociedade, o uso de uma palavra foi recorrente: necessidade. Não a consideramos

isoladamente como um item lexical, mas a recortamos como uma seqüência discursiva que

ressoa vários sentidos. Ao contemplar as possíveis redes de sentido às quais essa seqüência

pode se relacionar, propomos denominar: discurso da necessidade .

Podemos dizer que o discurso da necessidade mantém relações de sentido com o

discurso de divulgação científica, embora também possa ecoar em outras discursividades,

operando movimentos de inclusão e exclusão de sentidos.

Considerando as análises precedentes, perguntamos: quais necessidades podem ser

elencadas em relação à ciência?

1) Necessidade de desenvolvimento industrial e tecnológico. O Brasil viveu desde a

década de 30 do século passado a necessidade de desenvolvimento industrial e

tecnológico. Essa necessidade cresce em larga escala visando ao aumento de

produção e redução de custos.

2) Necessidade de saneamento. No âmbito da organização da sociedade urbana, há a

necessidade de usar técnicas para otimização da urbis.

3) Necessidade de financiamento de pesquisa. As primeiras agências de fomento

foram implementadas nos meados do século passado, visto que as então recém

79

criadas universidades brasileiras não poderiam obter verbas para pesquisas em

âmbito nacional. Desde então, há necessidade de investimento em políticas

públicas de saneamento, de saúde, de segurança alimentar, etc.

4) Necessidade da política. Inclusão do país entre os países de primeiro mundo no

que concerne o desenvolvimento científico e tecnológico. Há necessidade de

formar novos cientistas. Como já vimos no eixo temático 4 do presente capítulo e

veremos nas análises mostradas no capítulo 7, tal necessidade é uma questão de

relevo no discurso de divulgação científica para crianças: “despertar vocações”

para formar de cientistas no futuro.

O discurso da necessidade é também um discurso que exclui47, sobretudo, no que tange

à ciência. Do ponto de vista ideológico, exclui de suas necessidades a discussão política da

divisão de classes. Além disso, há também a exclusão da discussão sobre a distribuição de

fomentos às ciências sociais e humanas, como a divulgação dessas na mídia; com a

conseqüente valorização de algumas ciências em detrimento de outras.

Na observância do movimento de inclusão e exclusão do discurso da necessidade, tal

como compreendemo-lo, podemos dizer que é um discurso que está a serviço do Estado, que

promove políticas públicas e administra sentidos.

Dentre o que pode ser incluído e excluído do discurso da necessidade, e relacionando-

o ao discurso divulgação científica, destacamos a necessidade de informações sobre as

“últimas” descobertas científicas. Em outros termos, o discurso da divulgação científica é

justificado pelo discurso da necessidade de informação (seja para o consumo ou para assumir

responsabilidades). Diga-se, uma necessidade construída sócio-historicamente. A relação

entre os dois discursos pauta-se no imaginário do que seja a ordem das necessidades sociais

em relação à ciência.

Supostamente, o público tem necessidade de adquirir informações sobre a ciência e,

como conseqüência, eis aí a necessidade da divulgação científica. Vejamos que é uma

necessidade que é posta como se fosse do povo.

Em síntese, neste capítulo, em uma tentativa de recuperar a historicidade do discurso

de divulgação científica para crianças, observamos tratar-se de um discurso que se funda na

relação com a escola e a literatura infantil.

47 Os procedimentos de exclusão e de interdição, na ordem do discurso, referem-se, segundo Foucault (2001 [1970]) à impossibilidade de ter “o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (Foucault, 2001 [1970]: 9).

80

Propomos uma inversão no enunciado “divulgação científica para crianças”. Assim

sendo, observamos que a criança é tratada como curiosa e não-produtiva e, principalmente, é

marcada por sua condição de vir-a-ser (um sujeito em formação). Ao observar essa

determinação histórica, trabalhamos com a categoria ‘criança’, uma categoria marcada pela

futuridade. A partir dessas constatações, propomos o termo ludicismo, entendido como um

laço estabelecido na relação que se pauta entre o jurídico e a criança.

Na segunda parte da inversão, da qual tratamos da divulgação científica, analisamos

diferentes textualizações. Em busca da compreensão da distinção entre vulgarização e

divulgação, analisamos verbetes de dicionários de língua portuguesa. Observamos em tais

verbetes o deslocamento operado nas redes de memória. Além dos verbetes, de forma a

depreender sentidos, analisamos artigos, entrevistas, capítulos de livros que tratam sobre a

temática. Pudemos observar quatro eixos temáticos, a saber: divulgação como um problema

de linguagem; divulgação como prática redentora; divulgação como despertar de vocações; e

divulgação como superação de deficiências educacionais.

Interrogamos sobre a demanda da divulgação científica em nossa sociedade. Nesse

movimento, pudemos propor uma outra noção: o discurso da necessidade. Podemos dizer que

o discurso de divulgação científica é constituído pelo imaginário de informar o povo sobre

ciência. Tratar-se de uma necessidade construída historicamente.

Por meio das considerações desenvolvidas ao longo do capítulo, propomos que a

divulgação científica para crianças funcione como mais um mecanismo de individualização

do Estado. O sujeito é ao mesmo tempo determinado e responsável (ou melhor,

responsabilizado) e indeterminado, massa uniforme, e objeto de políticas públicas (cf.

Pfeiffer, 2000).

Nos próximos capítulos, pretendemos identificar se os efeitos sentidos de criança e

divulgação científica observados neste capítulo ressoam nas seções da revista Ciência Hoje

das Crianças. Antes, porém, apresentamos as contribuições teóricas de autoras que versam

sobre o discurso de divulgação científica.

81

CAPÍTULO 3: Por entre discursos: ciência, cotidiano, mídia e ensino

Por meio das definições teóricas elaboradas por Pêcheux (1988 [1975]), tomamos o

discurso de divulgação científica como efeito de sentido entre divulgador, cientista e leitor.

Essa definição possibilita-nos compreender as condições que determinam os sujeitos desse

discurso. Antes mesmo de apresentar nossas considerações a respeito do nosso tema,

consideramos relevante apresentar uma revisão bibliográfica de pesquisas sobre o discurso de

divulgação científica no âmbito dos estudos da linguagem. Para tal, reunimos as contribuições

de Authier-Revuz (1998, 1999), Zamboni (1997), Orlandi (2001b, 2004b) e Grigoletto (2005).

3.1 O discurso de divulgação científica e a encenação da ciência

Uma das formas de compreender e analisar o discurso da divulgação científica é

considerá- lo como uma reformulação do discurso da ciência. Essa é a posição teórica de

Authier-Revuz, que trata da encenação da comunicação no discurso de divulgação científica.

Destacamos os artigos “A encenação da comunicação no discurso de divulgação científica”

(1998) e “Dialogismo e divulgação científica” (1999).

Vejamos inicialmente as considerações de Authier-Revuz sobre heterogeneidade(s)

enunciativa(s). Em linhas gerais, seus estudos fundamentam-se na noção bakhtiniana de

dialogismo, em uma abordagem que postula o discurso como produto de interdiscurso. Antes

de continuarmos a pesquisa desenvolvida por Authier-Revuz acerca do discurso de divulgação

científica (DDC), retomaremos uma noção relevante: a heterogeneidade . Tal noção aponta

para o fato que todos os discursos são atravessados por outros discursos, ou melhor, que todos

os discursos são atravessados por várias formações discursivas.

Face à ilusão de homogeneidade do discurso, produzido por um “eu” que seria

supostamente a origem do sentido e de tudo que diz, Authier-Revuz (1990) propõe a noção de

heterogeneidade enunciativa. Apoia-se, para tal, no conceito de dialogismo do círculo de

Bakhtin, na problemática do discurso como produto do interdiscurso – tal como proposto por

Pêcheux – e no sujeito da psicanálise, dividido entre consciente e inconsciente.

82

Authier-Revuz (1990) estabelece uma distinção reconhecendo duas ordens de

heterogeneidade, a saber: “heterogeneidade constitutiva do discurso e heterogeneidade

mostrada no discurso [que] representam duas ordens de realidade diferentes: a dos processos

reais de constituição dum discurso e a dos processos não menos reais, de representação, num

discurso, de sua constituição” (Authier-Revuz, 1990: 32).

A heterogeneidade constitutiva dá conta da presença inevitável do outro no discurso,

ou seja, de uma “exterioridade interna ao sujeito e ao discurso, não localizável e não

representável onde estão em jogo o interdiscurso e o inconsciente” (Authier-Revuz, 1990: 32

– grifos da autora). A heterogeneidade mostrada afirma a figura de um enunciador exterior ao

discurso do sujeito, por meio de diversos modos de negociação com a heterogeneidade

constitutiva. A heterogeneidade mostrada, ou seja, a “costura aparente” que indica o alinhavo

dos discursos é o interdiscurso fazendo-se presente de forma explícita no intradiscurso.

A autora ainda identifica duas formas da heterogeneidade mostrada, a saber: a

marcada e a não marcada. As formas marcadas de heterogeneidade mostrada (discurso direto,

discurso indireto, aspas, etc.) representam uma negociação com as forças da heterogeneidade

constitutiva que, pela construção de desconhecimento desta, produzem uma representação

ilusória, porém necessária, para que o discurso possa ser mantido. As formas não marcadas de

heterogeneidade mostrada (discurso indireto livre, ironia, etc.) representam uma outra maneira

de negociação com a heterogeneidade constitutiva. Trata-se de uma forma mais arriscada,

pois joga com a diluição do outro no um.

Authier-Revuz (1998) realiza um trabalho consagrado ao estudo do discurso de

divulgação sob a ótica da heterogeneidade mostrada, buscando caracterizar o funcionamento e

a função de textos relativos à divulgação. Para tal, analisa artigos científicos de um jornal

francês (Le Monde) e de revistas especializadas.

A principal função destinada à divulgação é o estabelecimento da comunicação

ciência-público, ou seja, é colocar de forma acessível ao público os novos conhecimentos

resultantes das pesquisas científicas. A autora destaca que a divulgação está inserida em um

conjunto mais amplo que compreende outros tipos de reformulação, como a tradução, o

resumo, a resenha, os textos pedagógicos, etc. Contudo, o que a distingue das demais práticas

de reformulação é a representação do dialogismo, ou seja, ao mesmo tempo em que se faz a

divulgação científica, mostra-se esse fazer. Nas palavras da autora,

a verdadeira regularidade desses textos é o estabelecimento, através destas inumeráveis formas de heterogeneidade mostrada, de um caminho de vaivém entre esses dois discursos, de um lugar em que se realiza uma colocação em contato. (Authier-Revuz, 1999: 13 – grifos da autora).

83

Como a “língua” dos cientistas acaba por se tornar uma “língua estrangeira” para o

grande público, há, no discurso de divulgação (DDC), uma prática de reformulação de um

discurso-fonte (D1) por um discurso segundo (D2) – em função de um leitor, “receptor”

diferente daquele a quem se endereçava o discurso científico. Authier-Revuz enfatiza que, no

discurso de divulgação, o interlocutor é um dos elementos que mais marca as condições de

produção do DDC.

O discurso de divulgação científica é considerado um lugar privilegiado de

reformulação explícita do discurso. Explícita porque mostra sistematicamente toda a

maquinaria da reformulação; diferentemente, por exemplo, da atividade de tradução. Com

efeito, na tradução, é possível que seu produto substitua o texto D1 como equivalente sem, no

entanto, que se mostre o trabalho de reformulação; o que já não ocorre para o DDC, pois o seu

produto dá-se explicitamente como um trabalho de reformulação.

A enunciação do DDC se manifesta em vias de produzir em uma ancoragem temporal

marcada (amplamente identificada nos textos analisados por Authier-Revuz) e uma

designação dos interlocutores, uma vez que “o ato de enunciação de D2 e seus interlocutores,

[...] são largamente representados” (Authier-Revuz, 1998: 113). Este fenômeno de

“explicitação” é perceptível em dois níveis: no quadro da estrutura enunciativa e na

constituição do fio do discurso.

Segundo Authier-Revuz, o DDC distingue-se dos demais gêneros de reformulação

exatamente pelo quadro da estrutura enunciativa – o D1 não é apenas fonte, mas, sobretudo, o

objeto mencionado de D2. Em tais discursos, funciona uma dupla estrutura enunciativa, na

qual duas situações, dois cenários enunciativos ficam interligados: por um lado, os

interlocutores (cientistas e seus pares) e o quadro enunciativo de D1 e, por outro, os

interlocutores (divulgador e público em geral) e o quadro enunciativo de D2.

Há uma remissão explícita a um discurso primeiro, assim como no quadro global do

discurso relatado, com menção da enunciação de D1 em D2.

A dupla estrutura enunciativa, constitutiva de toda reformulação sob forma do discurso relatado, reveste-se aqui, nos dois níveis, D1 e D2, de um caráter fortemente explícito. Lá onde o discurso científico dado pela fonte da DC produz uma dupla realização: D2 mostra a enunciação do D1 que ele pretende relatar, ao mesmo tempo em que se mostra em uma atividade de relato” (Authier-Revuz,1998: 114).

Abre-se, através desta dupla realização enunciativa, lugar para uma configuração de

papéis, em uma estrutura de três lugares distintos: a Ciência, o público- leitor e o divulgador.

Segundo Authier-Revuz (1998), o primeiro lugar, o da Ciência, é ocupado por múltiplas

84

pessoas empiricamente identificadas, as quais produzem, pela autoridade atribuída, uma

garantia de seriedade da voz que “diz a verdade” na divulgação. O segundo lugar, aquele que

o texto propõe ao público- leitor ocupar, é construído por uma imagem explícita, através de

pequenas marcas, de seu destinatário. O terceiro lugar, o do divulgador, é ocupado por um

enunciador com “um estatuto de comentador-compilador”, um mediador. Resulta da

configuração desses papéis, uma estrutura ternária mediadora.

No nível do fio do discurso, o DDC representa uma ação de colocar em contato dois

discursos (o científico e o cotidiano), no próprio desenrolar da atividade por meio de um fio

heterogêneo. Por estes dois discursos estarem sistematicamente em contato em um trabalho de

reformulação, várias operações possibilitam a passagem de um a outro, sendo as principais a

justaposição, ou seja, o recurso de colocação em equivalência (equivalência metalingüística) e

o emprego de signos de distância metalingüística marcada sobre o outro.

A primeira estrutura destacada, a justaposição, apresenta numerosas formas de

colocação em equivalência – seqüências heterogêneas que justapõem elementos como sendo

equivalentes. Como raramente um vocabulário especializado recebe uma definição

homogênea, as seqüências heterogêneas que justapõem o elemento científico e o cotidiano

apontam duas propriedades: a) a ordem marcada pela passagem de um sistema a outro, ou

seja, a ordem da estrutura do par, não impõe sentido privilegiado, pois “cada língua funciona

como uma metalíngua do outro” (Authier-Revuz, 1998: 116); b) o estatuto do segundo termo

é, em geral, dispensável, ou seja, são raros os enunciados do tipo “x (termo cotidiano) é

chamado de y (termo científico)” ou “y (termo científico) equivale a x (termo cotidiano)”.

Os mecanismos mais empregados são a incisa e o aposto. Nos dois mecanismos, o

segundo elemento do par é colocado entre travessões, vírgulas, parênteses, como também é

ligado por um termo metalingüístico ou por uma justaposição simples.

A segunda estrutura, a distância metalingüística, caracteriza-se pelo emprego de signos

de distanciamento para palavras e expressões de um outro discurso, usados alternativamente,

por meio do itálico e do aspeamento. Os signos de distância metalingüística, sobretudo as

aspas, podem ocorrer paralelamente tanto nas palavras científicas quanto nas cotidianas. Tais

signos indicam que as palavras, ao mesmo tempo em que são usadas, também são mostradas

como exteriores ao discurso.

As palavras entre aspas são marcadas como pertencentes a um discurso outro; por isso, o contorno que elas traçam no discurso é revelador daquilo que o discurso tem a demarcar como “outro” em relação àquilo em que ele se constitui (Authier-Revuz, 1998: 118).

85

Os textos de DDC são marcados pela intensa passagem de um texto a outro. É este

contínuo retorno da relação interior/exterior que marca a alteridade do DDC – ora a palavra

científica é designada como um corpo estrangeiro em relação à “língua” do receptor, ora o

contrário, as palavras familiares suscitam um distanciamento da “língua científica”. Desta

forma, a maquinaria visível das operações no fio do discurso é interpretada por Authier-Revuz como

manifestações da heterogeneidade mostrada.

Há uma certa relação de simetria entre esses dois discursos que constituem o DDC,

mas que nem sempre estão em pé de igualdade. Inscrevem-se, no quadro desta dualidade,

figuras de “aproximação” ou de unificação dos dois discursos através da redução ou do

enriquecimento de um ou de outro.

O discurso DC integra, assimila aquilo que ele mesmo vem a designar como estranho: a palavra marcada como inadequada, metafórica, é retomada sem marca, passando assim ao interior do discurso, que, por isso, assume – sem distância – seu caráter aproximativo; a retomada, sem sinal de distância, de uma palavra científica é como uma imagem, no discurso, da apropriação por parte do leitor de palavras novas, ou seja, de seu acesso ao discurso científico (idem: 120).

Diante do que foi exposto sobre o trabalho de Authier-Revuz, devemos sublinhar a

questão que se coloca em nossa tese: o discurso de divulgação científica para crianças. Em

nosso corpus, avaliamos que a proposta apresentada pela autora possibilita-nos pensar, por

exemplo, como a distância entre a palavra científica e a cotidiana se dá ou qual o

funcionamento do discurso relatado em nosso corpus.

Como vimos, a reflexão de Auhier-Revuz acerca do DDC assenta-se sobre o quadro da

heterogeneidade enunciativa, uma vez que, para ela, esse discurso é o lugar privilegiado de

um dialogismo mostrado, ou seja, é “a representação que um discurso dá, em si mesmo, de

sua relação com o outro, do lugar que lhe dá explicitamente, designado na cadeia, por meio de

marcas lingüísticas, pontos de heterogeneidade” (Authier-Revuz, 1999: 11). Podemos

verificar que, nos últimos anos, artigos, livros publicados, assim como pesquisas realizadas no

âmbito de cursos de pós-graduação no Brasil apresentam outras caracterizações para o

discurso de divulgação científica. Destacamos, especialmente, os trabalhos de Zamboni

(1997), Orlandi (2001b e 2004b) e de Grigoletto (2005). De fato, as autoras buscam

caracterizar o DDC não mais pelo quadro das atividades de reformulação, mas por caminhos

outros. Devemos destacar que os estudos aqui reunidos travam diálogos, ainda que

diferenciados, com os trabalhos de Authier-Revuz (1998 e 1999).

86

3.2 A divulgação científica como um discurso específico

A tese de doutoramento48 de Zamboni (1997), intitulada “Heterogeneidade e

subjetividade no discurso da divulgação científica”, oferece uma interpretação para o discurso

de divulgação a partir dos fundamentos teóricos da Análise do Discurso de orientação

francesa. Mobilizam-se os seguintes conceitos teóricos: a noção de “subjetividade mostrada”

elaborada por Possenti e a noção de gênero tal como formulada por Bakhtin.

Em seu trabalho, a autora defende a idéia de que o discurso de divulgação científica

constitui um “gênero discursivo específico”, que está vinculado ao “campo de transmissão de

informações”. O DDC é resultado de um efetivo trabalho de formulação discursiva no qual se

revela uma ação comunicativa que parte de um “outro” discurso e dirige-se para “outro

destinatário”. O DDC visto como um trabalho de efetiva formulação de um novo discurso é

um

trabalho exercido por um sujeito enunciador ativo, não simplesmente assujeitado aos discursos prévios (mas nem por isso senhor absoluto de seu dizer), que agencia, entre os elementos disponíveis da língua, aqueles que melhor respondem ao seu preenchimento enunciativo (Zamboni, 1997: 184).

Nesse ponto, faz-se necessário abrir um parêntese para tratar a questão do

assujeitamento. Compreendemos que, ao se referir a essa questão, Zamboni coloca-a como

determinismo. De nossa posição teórica, defendemos que o assujeitamento do sujeito

discursivo é determinado historicamente – não há, portanto, como o sujeito não se assujeitar.

Há uma diferença entre determinismo (mecanicismo) e determinação histórica

(assujeitamento a uma forma histórica). Essa distinção, elaborada por Orlandi (2007c), aponta

que não há sujeito nem sentido sem assujeitamento à língua, ou seja, “o sujeito está sujeito (à

língua) para ser sujeito da (língua)” (Orlandi, 2007c, s.p.).

Voltando ao trabalho de Zamboni (1997), destacamos três pontos centrais. O primeiro

põe em tela que o funcionamento da instância enunciativa na produção do discurso de

divulgação científica não coincide, em muitos aspectos, com as condições de produção do

discurso científico, visto que aquele ocorre em um cenário de condições de produção

específicas. O segundo diz respeito ao não enquadramento do DDC no conjunto das práticas

de reformulação textual, do qual fazem parte a tradução, o resumo, a resenha, a paráfrase. O

não enquadramento se dá em virtude da posição teórica tomada, pois para a autora, o DDC é

“constitutivo de um verdadeiro trabalho de formulação” (idem : 14), não se tratando, portanto,

48 O corpus da tese é constituído por textos da área de medicina e saúde das revistas Ciência Hoje, Globo Ciência , Saúde é Vital! e o caderno Ciência da Folha de S. Paulo.

87

de reformulação – tal como defendido por Authier-Revuz. O terceiro refere-se à constituição

do DDC em um “gênero de discurso específico”. Para a autora, o resultado de trabalho de

formulação do DDC aponta para um gênero autônomo em relação ao discurso científico, que

compartilha das propriedades definidoras dos gêneros discursivos, nos moldes definidos por

Bakhtin.

Detivemo-nos, principalmente, nos segundo e terceiro pontos. Ao considerar o DDC

como uma atividade de formulação discursiva, Zamboni faz algumas ressalvas, sobretudo, aos

estudos de Authier-Revuz (1998 e 1999). Para a primeira, a enunciação do discurso de outrem

é tema recorrente nos mais diferentes “gêneros discursivos” e tipologias textuais. E justifica-

se afirmando:

a questão da ocorrência da enunciação do discurso de outrem não é um elemento caracterizador do gênero da divulgação científica, razão pela qual merece cautela a asserção de Authier. Se o discurso do ‘outro’, o cientista aí se faz presente, deve-se mais ao fato de ser o discurso de divulgação científica uma modalidade entre os demais discursos de transmissão, e menos a um traço de caracterização intrínseca e privilegiada (Zamboni, 1997: 82).

Dissociando o DDC do campo científico, postula-se sua vinculação ao campo dos

discursos de transmissão de informação. Nesse campo a divulgação científica constitui um

gênero particular de discurso. Quando “submetido a outras condições de produção, o discurso

científico deixa ser o que é. Passa a ser um outro discurso, ou uma outra formação discursiva,

que se situa em um outro lugar, diferente do lugar onde se situa o discurso científico” (idem :

89). Desta forma, o discurso científico não deixa de entrar nessa nova configuração

enunciativa, mas passa a ser concebido como mais um dos elementos constantes das

condições de produção do DDC e não mais um discurso-fonte, submetido a operações de

reformulação.

A segunda ressalva evidencia que o discurso relatado direto dos cientistas no DDC não

pertence à formação discursiva da ciência. As falas que aparecem no DDC constituiriam, em

geral, falas já divulgadas do discurso científico. Vejamos a explicação da autora para esse

tópico:

a entrevista e os depoimentos tomados dos próprios cientistas pelo divulgador já vêm configurados como discurso de DC. Quando transpostos para os textos-produtos-da-DC, revelam uma voz que não coincide com a do discurso científico, uma vez que reproduzem uma fala já vulgarizada (ibidem: 82).

88

A terceira ressalva, especificamente endereçada ao estudo de Authier-Revuz, focaliza

o fio do discurso. São duas as observações elaboradas. A primeira, de ordem ampliativa 49,

considera que as operações que buscam colocar em equivalência metalingüística as formas

terminológicas do discurso científico e as formas do discurso cotidiano não são características

exclusivas do DDC, pois, “o trabalho de ‘colocar em contato dois discursos’ é característico,

ao meu ver, do tratamento todo e qualquer discurso de especialidade ao ser transformado

num discurso de transmissão de informação (Zamboni, 1997: 96 – grifos da autora). A

segunda recai sobre a interpretação de Authier-Revuz sobre a ‘maquinaria visível” das

operações no nível do fio do discurso como manifestação da heterogeneidade mostrada. Esta

interpretação evidenciaria o olhar que privilegia a enunciação do “outro” no discurso do “eu”.

Zamboni, a partir de um referencial teórico que busca apreender o trabalho do “eu” –

subjetividade mostrada –, interpreta a maquinaria visível do trabalho de “tradução” do D1

para o D2 como realizações efetivas do sujeito.

Embora Zamboni tenha se distanciado, em muitos aspectos, dos conceitos elaborados

por Authier-Revuz, retoma suas considerações a respeito do “fio discursivo” para especificar

as funções e as formas lingüísticas das inserções lexicais na sintaxe discursiva. Em relação

aos signos de “distância metalingüística”, Zamboni destaca os mesmos apresentados por

Authier-Revuz: aspas e itálico. Nada mais é acrescentado. Já em relação à justaposição, a

autora propõe uma distinção básica para o discurso que ocupa a posição referencial. Desta

forma, distingue dois casos: nomeação e definição.

No que diz respeito à nomeação, o termo “científico” é antecipado por um segmento

discursivo em formulação não científica inserida no D2. Em geral, a inserção do termo é

acompanhada por construções metalingüísticas, tais como: chama-se de x, denomina-se x.

Para Zamboni, o fenômeno de inserção do segmento nomeador do termo científico “adquire

um estatuto autônomo, independente do fio sintático e se mostra semanticamente como uma

‘parte’ desnecessária, acessória, suprimível até” (Zamboni, 1997: 177). Embora

desnecessária, a inserção tem como objetivo discursivo legitimar a atividade de divulgação50.

Mediante essa característica, a pesquisadora designa a nomeação como uma “função

legitimadora” que aponta para o “outro-cientista”.

A definição se dá por intermédio de um processo discursivo inverso ao da nomeação:

o termo científico se insere no fio discursivo de D1 e precisa ser explicado para o leitor alvo.

49 Diz-se ampliativa em virtude da autora ter encontrado, em seu corpus, os mesmos processos de colocação em contato de dois discursos. 50 Para a autora, “a remissão constante ao discurso científico-fonte de seu dizer [do divulgador] é uma garantia de confiabilidade que adquire seu próprio dizer diante dos leitores.” (Zamboni, 1997: 177-178).

89

Por caracterizar-se, sobretudo, por essa necessidade de explicar/exp licitar, a autora

designa a definição como uma “função explicitadora”, tendo o “outro leitor” como seu alvo.

Três formas de definição encontradas em no corpus são destacadas: a) definição por

aproximação, quando o divulgador, buscando garantir a compreensibilidade de seu

destinatário, explicita o objeto científico por meio de elementos (resgatados pela experiência

de mundo) que guardam certa equivalência conceitual com aquele; b) definição por

justaposição metalingüística, quando o segmento explicitador justaposto se dá sob a inserção

de fórmulas metalingüísticas introdutórias; c) definição por conceituação, quando o termo

científico, para ser melhor compreendido, é conceituado. Destaca-se que essa conceituação –

segmento explicitador – pode estar mais próxima ao discurso científico ou do discurso leigo.

Por fim, a autora destaca os casos de aposição, pois estes tiveram grande ocorrência

nos discursos por ela analisados. Ressalta-se que esse tipo de operação pode estar situado

tanto no discurso científico quanto no leigo.

Embora concordemos que o discurso da ciência participa como um dos discursos que

constituem o discurso de divulgação científica, apresentamos dois pontos de discordância em

relação à proposta teórica da autora. O primeiro recai sobre a proposta de vincular o DDC ao

“campo da transmissão de informações”. Compreendemos o discurso como efeito de sentido

entre interlocutores, tal como exposto no início do capítulo, portanto, não podemos considerá-

lo mera transmissão de informações científicas para um público não-especializado. O segundo

ponto diz respeito à interpretação frente à “maquinaria visível” do DDC. Para Zamboni

(1997), seria uma forma de subjetividade mostrada, de efetivo trabalho do “eu”.

Consideramos, no entanto, que o trabalho do “eu” é um efeito. Afinal, o sujeito é atravessado,

determinado pelas condições de produção, pelo trabalho com a memória.

Ao longo da apresentação das pesquisas de Authier-Revuz (1998, 1999) e Zamboni

(1997) sobre o discurso de divulgação científica, identificamos ao menos duas caracterizações

para o discurso de divulgação científica. A primeira relaciona o DDC ao quadro das

reformulações e a última o identifica como resultado de um efetivo trabalho de formulação

discursiva no qual se revela um trabalho efetivo do “eu”.

Sobre esses dois aspectos, fazemos uma ressalva. Do ponto de vista discursivo, Serrani

(1993) expõe que as reformulações pertencem ao nível da formulação – nível das seqüências

lingüísticas produzidas –, à horizontalidade, ao fio do discurso. “É no nível da reformulação

que é importante também analisar o funcionamento da heterogeneidade mostrada” (Serrani,

1993: 45). Em outros termos, a reformulação se dá no nível do intradiscurso. Podemos

concluir, a partir do exposto acima, que as propostas das autoras citadas anteriormente

90

(defendendo a reformulação ou a formulação) prevêem a análise do discurso de divulgação

científica em perspectiva que trabalha o fio do discurso.

3.3 O discurso de divulgação científica e o efeito-leitor

A presente seção tem como propósito apresentar a caracterização do DDC tal como foi

conceituado por Orlandi nos artigos, a saber: “Divulgação científica e efeito- leitor: uma

política social urbana” (2001b) e “Linguagem, ciência e sociedade: o jornalismo científico”

(2004b). A proposta desenvolvida nos dois artigos salienta o deslocamento do DDC do

aspecto da reformulação para a questão do efeito- leitor51, definido como efeito produzido pelo

gesto de interpretação do autor ao textualizar, linearizar um discurso, que prende “o leitor

nessa textualidade” (Orlandi, 2004b: 133). Compreendemos que o efe ito- leitor da divulgação

científica “tem a ver com a apropriação coletiva do conhecimento, com a caracterização dessa

relação do sujeito social urbano com as novas tecnologias” (idem : 131).

Orlandi (2001b e 2004b) destaca, em ambos os artigos, a questão da produção e da

circulação da ciência nas cidades contemporâneas. A escrita científica é entendida como um

fato da linguagem humana e, independentemente de onde ela esteja, significa o espaço da

urbanidade. Neste espaço, a ciência precisa representar-se e acaba por sair de seu meio,

ocupando um lugar social e histórico no cotidiano da vida social. O discurso de divulgação

científica situa-se neste lugar em que se produz o efeito de exterioridade da ciência. Para a

autora, a divulgação científica é caracterizada por um movimento de significação que

confirma a presença pública da ciência, ou melhor, publiciza-a. É “um índice da presença da

ciência na nossa formação social” (Orlandi, 2004b: 133).

O DDC não é entendido como a soma de discursos tal qual a equação: discurso

científico mais discurso jornalístico igual a discurso de divulgação científica. O DDC é,

portanto,

uma articulação específica com efeitos particulares, que se produzem pelo seu modo mesmo de circulação, ou seja, se um conhecimento vai circular em um percurso fechado, ou se vai circular mais abertamente em vários lugares, isso já está na própria maneira como ela está significando, como ele está sendo formulado e portanto não é indiferente ao seu modo de produção (idem: 134).

Considera-se o DDC como um “jogo complexo de interpretação” – nesse jogo, o

efeito- leitor é incluído. Convém ressaltar que, para a autora, não se trata de tradução, uma vez

que a divulgação relaciona diferentes formas de discurso na mesma língua, ou melhor, não há

51 Trabalhamos essa noção especificamente no capítulo 6 desta tese.

91

uma relação entre duas línguas. São, portanto, “d iscursividades diferentes”. Dessa forma, o

jornalista/divulgador não traduz o discurso científico para o jornalístico, ele trabalha no

entremeio desses dois discursos. Conforme afirma, “o jornalista lê em um discurso e diz em

outro” (Orlandi, 2001b: 23). Entende-se que ocorre um duplo movimento de interpretação

neste jogo interpretativo complexo: uma interpretação de uma ordem de discurso que deve

produzir um lugar de interpretação em outra ordem de discurso. Nesse jogo de interpretação,

efeitos de sentidos são produzidos, ou melhor, “produz-se aí uma versão. A divulgação

científica é uma versão da ciência” (id, 2004b: 134 – grifos da autora).

A forma específica de autoria produzida pelo DDC, entendido como uma versão

(textualização jornalística do discurso científico), imputa novos gestos de interpretação, os

quais constituem um determinado efeito- leitor. Tal efeito do DDC constitui-se um fato

discursivo particular, o de produzir um deslocamento: passa-se da metalinguagem para a

terminologia científica da ciência (formulação científica, como fórmulas químicas, equações

matemáticas) para a terminologia científica (termos seguidos de explicação do tipo “isso

significa X”).

O processo discursivo, do ponto de vista da significação, apresenta três momentos

inseparáveis: o da constituição, o da formulação e o da circulação. Por conseguinte, no DDC,

os três concorrem na produção de sentidos. Os dois discursos, o científico e o jornalístico, do

ponto de vista da constituição, são diferentes e, do ponto de vista da formulação, são postos

em relação. Na relação entre a constituição e formulação, o jornalista/divulgador realiza uma

prática complexa, pois toma um discurso constituído em uma ordem e o formula em outra,

mantendo, contudo, efeitos de cientificidade. Dito de outra forma, “encena na ordem do

discurso jornalístico, através de uma certa organização textual, a ordem do discurso

científico” (Orlandi, 2005: 157).

A ciência, em seu lugar próprio, é produzida como conhecimento, quando se trata do

DDC, a ciência desloca-se para a informação. Tal deslocamento indica que ocorre a produção

de informação e não de conhecimento. Informa-se o que a ciência faz, mas não se faz ciência.

“Não é o discurso ‘da’, é o discurso ‘sobre’” (id, 2001b: 27) a ciência.

Nesse deslocamento, não há “transporte” de sentidos de um discurso a outro, como

também não há soma de sentidos, tampouco substituição. O “transporte” implicaria que, ao

passar do discurso da ciência para o discurso da divulgação científica, seria possível transmitir

informações de um discurso a outro, como se os sentidos fossem literais ou colados às

palavras. Trata-se de “transferência de sentidos”: o que significava na ordem do discurso da

ciência, desliza para produzir outros efeitos de sentido na ordem do DDC (sem que haja

92

equivalência entre eles). Há um deslizamento, o qual vai produzir outros efeitos de sentido,

efeitos metafóricos são produzidos.

Na transferência de sentido trabalha-se pois com o efeito metafórico, ou seja, há uma historicização do sentido de tal maneira que ele vai se ressignificar em um outro lugar, produzindo efeitos que trazem os sentidos que estão sendo produzidos para uma outra discursividade (Orlandi, 2004b: 138).

Destacamos a diferença teórica entre o processo de transferir e o de transportar. No

primeiro há deslizamento de sentidos, sentidos que são historicizados. Já no segundo, há a

imposição de um sentido sobre outro, uma vez que o “transporte” de um sentido de um

discurso para outro resulta em perda, caricatura (id, 2001b).

Como já foi apontado acima, o jornalista apropria-se da metalinguagem do discurso e

desloca-a para o espaço discursivo do DDC, (re)formulando o dizer da ciência

(metalinguagem da ciência), através de uma terminologia própria, de forma que o torne

acessível ao leitor. Logo, o deslocamento se dá em virtude do efeito- leitor. O DDC pode ser

considerado – pelo ponto de vista da circulação – como uma versão do texto científico, pois

o que seria numa formulação científica, pela sua metalinguagem específica, significado na direção da produção da ciência é deslocado para uma terminologia que permite que a ciência circule, que se entre assim em um “processo de transmissão” (idem: 27).

Ao retomar a noção de encenação tratada por Maingueneau (1987), Orlandi (idem)

afirma que a relação intrínseca com o discurso científico é encenada no DDC. Mas como se

dá tal encenação? O DDC, por meio da textualização jornalística, organiza os sentidos de

modo a manter um efeito de ciência. Este efeito é produzido na colocação em contato de

termos do senso-comum e da ciência. Os vários processos (descrições, sinônimos,

equivalências, etc.) deixam de forma visível, no fio do discurso, o processo de retomada do

discurso científico; parte da encenação que dá credibilidade ao DDC. A leitura de textos de

DDC é marcada por menções (do tipo “segundo x”), as quais encenam a fala do cientista para

o leitor do DDC. Fala-se do lugar do outro. Encena-se, desta forma, a ausência de buracos.

Tudo se passa como se o leitor estivesse em relação direta com a voz da ciência, na posição

daquele que ouve o próprio cientista.

A proposta de Orlandi promove o deslocamento do aspecto da reformulação, para a

questão do efeito-leitor. Qual seria a razão deste deslocamento? Devemos lembrar que o leitor

da ciência exerce uma importante função nesta prática discursiva, já que garante o efeito da

exterioridade da ciência. A ciência não está só lá onde é produzida, ela circula pelo social.

93

Consideramos, assim como Orlandi (2001b e 2004b), o DDC como um “jogo

complexo de interpretações”. O trabalho do divulgador é o resultado de um gesto de

interpretação do discurso da ciência e não apenas de tradução de um código e/ou de termos

especializados. Ao produzir o discurso de divulgação científica, o divulgador desloca os

saberes da ordem da ciência, como também recorta elementos da ordem do senso comum.

É importante sublinharmos que também concordamos que o DDC produz o efeito de

exterioridade da ciência. Entenderemos melhor essa posição se tomarmos a questão do que é

“interno” ou “externo” à atividade científica. Se a ciência, tal como Pêcheux (1988 [1975])

aponta, produz-se na sociedade e os sujeitos envolvidos em sua produção não são jamais

independentes das determinações sócio-históricas, podemos afirmar que não há um exterior à

atividade científica, mas, pelo modo como a ciência circula, cria-se um efeito de

exterioridade. E a divulgação cumpre esse papel.

3.4 O discurso de divulgação científica: um espaço discursivo intervalar52

O trabalho de Grigoletto (2005), mais especificamente, sua tese de doutorado, cujo

título é “O Discurso de Divulgação Científica: um espaço discursivo intervalar”, investiga o

funcionamento do DDC, tendo como referencial teórico os pressupostos da Análise do

Discurso. Sua investigação baseia-se nas formulações de Pêcheux, embora também traga à

discussão as contribuições de Foucault e de Bakhtin. Seu objetivo é identificar o modo como

diferentes sujeitos – o cientista, o jornalista e o leitor – constituem-se em tal discurso.

Lembramos que, segundo a autora, o objeto de estudo (o discurso de divulgação científica)

inscreve-se na ordem da ciência e da não-ciência.

Duas revistas constituem o corpus de sua tese 53, quais sejam: Ciência Hoje e

Superinteressante. Para a construção do material de análise, foram selecionadas seqüências

discursivas de edições publicadas no período de janeiro de 2002 a fevereiro de 2003.

Ressaltamos que uma importante contribuição teórica do trabalho aqui exposto é a

caracterização atribuída ao DDC, definido como um “espaço discursivo intervalar”, no qual se

entrecruzam diferentes sujeitos, diferentes ordens de saberes, diferentes vozes são

mobilizadas.

52 Título da tese de Grigoletto (2005). 53 Por meio das análises das seqüências discursivas de cada domínio (o Domínio 1 é representado pela revista Superinteressante, e o Domínio 2, pela Ciência Hoje), diferentes posições-sujeito foram depreendidas. Citamos: a posição de incorporação do discurso da ciência, a posição de aderência ao discurso científico e a posição de aderência ao discurso cotidiano. Ao longo de nossa tese, retornaremos a tais posições.

94

De forma a compreender a caracterização do DDC, Grigoletto (2005) parte de noções

já desenvolvidas na área, ou seja, põe em pauta a questão do discurso de divulgação científica

ser um discurso de reformulação ou um discurso novo 54. A autora dialoga, dentre outros, com

os trabalhos de Authier-Revuz (1998 e 1999), Zamboni (1997) e Orlandi (2001b). Do seu

ponto de vista, trata-se de um discurso que não está na ordem da ruptura, nem somente na

ordem da (re)formulação. Ele está na ordem do deslocamento, visto que se mantém o efeito de

ressonância do discurso da ciência. O DDC é entendido como

um discurso próprio, com especificidades e regularidades também próprias, e não como um discurso novo no sentido de fundador de uma nova discursividade. O que se produz, então, é uma forma de comentário. Um deslocamento ‘alhures’ (cf. Pêcheux, 1982), já que os dizeres, próprios da ciência, são deslocados para outro lugar – o jornalismo científico, a mídia. [...] o discurso de Divulgação Científica agrega tanto o novo, pela singularidade do dizer, quanto faz ressoar o velho, discursivizando o já dito lá da ordem da ciência (Grigoletto, 2005: 44).

Assim sendo, o DDC constitui-se em um novo discurso, mas não na perspectiva de

Zamboni (1997), que o considera um trabalho efetivo de formulação. Por sua vez, Grigoletto

(2005) prefere considerá- lo na ordem do deslocamento. Fala-se em deslocamento, pois o

conhecimento que chega ao grande público está destituído das condições históricas e

ideológicas do processo de produção do conhecimento científico. O DDC, em sua

constituição, opera um trabalho de deslocamento, (re)formulando ou repetindo o dizer da

ordem da ciência, sem que haja, no entanto, ruptura com o saber que é próprio da ciência. Ele

funciona como um mediador do discurso científico e do cotidiano.

Contudo, a cons tituição do DDC na ordem do deslocamento põe em relação a estes

dois discursos (o científico e o cotidiano) um terceiro: o discurso da mídia. Afirma-se que a

mídia opera sentidos e atua na constituição dos discursos por ela veiculado. Visto isso “é a

mídia, em última instância, quem determina o que da ciência deve ser divulgado ao grande

público, ou seja, o que é relevante para se transformar em notícia e ‘vender’” (Grigoletto,

2005: 258). Diz a autora que na constituição do DDC diferentes formas de discurso, as quais

representam diferentes ordens de saberes, estão presentes.

O DDC tem suas fronteiras delineadas no entremeio da ciência, mídia e leitor, integra

um espaço discursivo próprio. Trata-se de um espaço intervalar, que não é homogêneo,

tampouco livre de contradições. Com fronteira porosa, instável, o DDC constitui-se numa

zona de tensão entre a voz da ciência e do senso comum. Tal fronteira abriga intervalos que

permitem o trabalho da alteridade.

54 Nesse ponto, a autora parece contrastar as caracterizações apresentadas por Authier-Revuz (1998 e 1999) e por Zamboni (1997).

95

Grigoletto (idem) não considera a atividade do DDC como um trabalho de colocação

de termos em equivalência no fio do discurso. Ela fala em “(re)atualização do discurso da

ciência. Assim, ao comentar o discurso científico, o jornalista (re)atualiza-o em outra

ordem, a do senso comum, através de um gesto de interpretação”(Grigoletto, 2005: 39 –

grifos da autora).

Afirma-se que o trabalho do jornalista científico é o resultado de um gesto de

interpretação55 do discurso da ciência e não apenas de tradução de um código e/ou de termos

especializados. Ao produzir o discurso de divulgação científica, o jornalista desloca os

saberes da ordem da ciência, como também recorta elementos da ordem do senso comum.

Assim sendo, o jornalista inscreve seu dizer no intervalo que há entre a ordem da ciência, da

mídia e do leitor. Ao interpretar diferentes vozes no DDC, ao produzir um comentário, o

jornalista representa mais uma voz nesse discurso, ele posiciona-se como mais uma voz que

ressoa no DDC, e ao fazê-lo “produz um gesto de interpretação da ciência” (ibidem : 39).

Como já apresentado na seção 3.1, Authier-Revuz (1999) considera que a barreira

existente entre cientistas e divulgação científica seria uma questão de comunicação. Esse é um

ponto de distanciamento entre as duas autoras, visto que Grigoletto (2005) acredita não se

tratar única e exclusivamente de uma questão de comunicação, pois defende que também

“Antes de ser uma questão de comunicação é uma questão de conhecimento e de

linguagem que envolve, por sua vez, outras questões como discurso, sujeito-autor, efeito-

leitor, sentido” (Grigoletto, 2005: 47- grifos da autora).

Em relação ao trabalho de Zamboni (1997), Grigoletto considera pertinente a crítica

endereçada aos estudos que tomam o DDC como um mero produto de reformulação – em

particular, os de Authier-Revuz –, mas considera contraditório, a partir de uma filiação em

Análise do Discurso, afirmar que o DDC possa ser definido como um discurso de transmissão

de informação. Citamos a autora:

Dentro do quadro teórico da AD, está evidente que não podemos considerar o discurso enquanto transmissão de informações, como se os sentidos fossem transferidos do locutor para o interlocutor diretamente, via discurso. Nisso justamente, é que consiste a crítica da AD em relação à teoria da comunicação (ibidem: 49).

Embora Grigoletto tenha se aproximado em diversos pontos de Orlandi (2001b),

também se afastou em outros. Listamos alguns pontos de afastamento ou retomada, além da

ampliação de definições. Vejamos quais são eles.

55 Neste aspecto, a autora se aproxima de Orlandi (2001b).

96

Orlandi (idem), como já foi comentado na seção 3.3, afirma que a divulgação

científica é uma relação estabelecida entre duas formas de discurso – o científico e o

jornalístico – em uma mesma língua. Grigoletto, a partir das análises das revistas, inclui uma

terceira forma, o discurso do cotidiano, que representa o senso-comum e, portanto, o leitor do

discurso de divulgação científica.

Um outro ponto refere-se ao deslocamento do DDC das práticas de reformulação. As

duas autoras consideram o DDC fora, ou parcialmente fora, de tais práticas. No entanto, para

Orlandi (2001b), o deslocamento do discurso científico para o discurso de divulgação

científica passa pelo efeito- leitor; para Grigoletto, o deslocamento passa também por outras

noções.

Grigoletto, por sua vez, não pressupõe que o jornalista leia o discurso científico e

(re)diga no discurso jornalístico. Considera que o jornalista muitas das vezes “lê” uma

reformulação do discurso científico produzida pelo próprio cientista, a qual já pode apresentar

marcas de divulgação.

Um outro tema de afastamento entre as duas autoras refere-se à transferência.

Grigoletto não concorda que se trate de “transferência de produção de um efeito metafórico e

sim de um efeito de ressonância de significação, produzido por uma relação parafrástica”

(Grigoletto, 2005: 53). A autora justifica seu ponto de vista atribuindo à transferência a idéia

de transmissão de informação.

Em sua tese, após essas retomadas teóricas, o discurso de divulgação científica é

definido como “uma forma de relação parafrástica, inscrita num espaço discursivo intervalar,

que opera com deslocamentos, sob a forma de comentário, tanto no nível da repetição quanto

no nível da (re)formulação. Assim, o discurso da ciência vai ressoar sempre, seja via

intradiscurso ou interdiscurso” (Grigoletto, 2005: 54).

As fronteiras porosas, esburacadas da formação discursiva na qual o DDC se inscreve,

permitem a instalação de intervalos semânticos entre as diferentes ordens. O elemento

regulador das fronteiras é o olhar que a mídia lança sobre a concepção de ciência e, desta

forma, denominou-a de “FD do discurso midiático da Divulgação Científica”, já que a mídia

é a grande reguladora, ou melhor, determina o que da ciência julga relevante para ser

transformado em notícia.

Por meio da análise do modo de funcionamento dos diferentes sujeitos envolvidos na

constituição do discurso de divulgação científica, Grigoletto (2005) mostra que o lugar

discursivo não corresponde, necessariamente, à posição-sujeito. Assim sendo, o lugar

discursivo não é tomado como lugar social do sujeito que, ao se subjetivar, ocuparia uma

97

determinada posição no discurso. A noção de lugar discursivo é definida como “um espaço de

configuração no interior do discurso e é da ordem da sua constituição” (Grigoletto, 2005:

134). A partir dessa noção, considera-se que, no discurso de divulgação científica, existiriam

minimamente três lugares discursivos, a saber: o lugar do cientista, o lugar do jornalista e o

lugar do leitor.

Dos quatro trabalhos trazidos, pudemos observar uma distinção teórica. Tanto Authier-

Revuz (1998 e 1999) quanto Zamboni (1997), respeitadas as devidas distinções, consideram o

discurso de divulgação científica tendo como base o fio do discurso. As propostas de Orlandi

(2001b e 2004b) e Grigoletto (2005) teriam em comum o fato de que ambas as autoras não

toma o DDC como um trabalho de reformulação. Elas consideram que esse discurso é

resultante de um gesto de interpretação do jornalista frente ao discurso da ciência.

Especificamente Grigoletto (idem) ressalta que o jornalista recorta saberes de diferentes

ordens (da ciência, da mídia e do senso comum).

Para nossa pesquisa, retomamos, em especial, as propostas teóricas das duas últimas

autoras, das quais destacamos o enfoque da noção de efeito- leitor na formulação do DDC e da

definição de discurso de divulgação científica como um espaço discursivo intervalar.

3.5 O discurso de divulgação científica para crianças

Ao longo do capítulo, apresentamos distintas posturas teóricas sobre o discurso de

divulgação científica. No entanto, para nosso trabalho, cabe ainda pensar o efeito- leitor

produzido no discurso de divulgação científica para crianças. Para a realização desta

empreitada, mobilizamos algumas noções como as de marca, de propriedade, de tipologia,

assim como as contribuições de Orlandi (2001b e 2004) e de Grigoletto (2005) apontadas nas

seções anteriores.

Contestamos a ilusão de que o discurso carrega informações de um sujeito que quer

transparecer suas intenções. Em relação ao discurso de divulgação científica, podemos afirmar

que não há retransmissão de uma mensagem, ou melhor, de um “discurso fonte” (científico)

em um “discurso segundo” (divulgação científica); tampouco o divulgador seria um

intermediário capaz de eliminar os problemas de “código” ou de equacionar os problemas na

comunicação. O que há é produção de discurso: produção de efeitos de sentido entre

interlocutores. Ou melhor, efeito de sentidos entre os sujeitos que constituem o DDC para

crianças.

98

Com o propósito de definir o que compreendemos por discurso de divulgação

científica para crianças, observamos, em nosso material de análise, como as marcas se

estabelecem no funcionamento discursivo. Devemos dizer que o funcionamento é “atividade

estruturante de um discurso determinado” (Orlandi: 2003b [1983]). Para compreender o

funcionamento do discurso de divulgação científica para crianças (assim como qualquer

discurso), é preciso relacionar as marcas às propriedades desse discurso. Em outros termos,

as marcas lingüísticas são consideradas sistematicidades que funcionam como pistas para

depreender o modo de funcionamento de um discurso. Para melhor compreensão dos dois

termos, cabe ainda estabelecer a diferença entre marca e propriedade de um discurso. Segundo

Orlandi (2003b [1983]), a marca diz respeito à organização do discurso, e a propriedade está

relacionada às condições de produção do discurso. Logo, as marcas lingüísticas não são

suficientes para definir o funcionamento discursivo, faz-se necessário ligá- las às propriedades,

pois, essas sim, exprimem a relação entre o lingüístico e o ideológico.

Salientamos que as marcas podem constituir variados materiais lingüísticos (elementos

fonológicos, morfológicos, sintáticos), todos concorrendo para a criação de efeitos de sentido.

As marcas por si só não têm uma relação direta, mecânica com os processos discursivos.

Cabe-nos, em nosso gesto de análise, depreender as regularidades das marcas no discurso do

DDC para crianças.

Podemos dizer que não há uma marca exclusiva desse discurso. Verificamos que, por

exemplo, as marcas de pessoa também o são em outros discursos – por exemplo, nos

discursos presidenciais analisados por Indursky (1997); as perguntas que simulam diálogo –

por exemplo, comparecem no discurso pedagógico analisado por Orlandi (2003b [1983]); as

mesmas marcas têm funcionamento distinto em cada discurso. O compartilhamento de marcas

se explica pelo fato de os discursos se sustentarem mutuamente. Em outros termos, há

relações de cruzamento entre os discursos.

As principais marcas observadas em nosso corpus foram: marcas de pessoa

(pronomes, desinências número-pessoal); perguntas retóricas; rébus; sinais discursivos de

pontuação (? ... ! -); advérbios de intensidade, tempo, lugar; discurso relatado; adjetivos,

imperativo. Tais marcas produzem efeitos de sentido distintos: o uso de NÓS, analisado no

capítulo 4, por exemplo, pode produzir tanto o efeito de aproximação do divulgador ao leitor,

quanto ao “cidadão da humanidade”. Ou o uso do hífen na separação intersilábica múltip la,

analisado no referido capítulo, que parece indicar uma abertura para a interpretação do leitor.

Podemos dizer que, a regularidade das marcas em relação às condições de produção do

DDC para crianças, ou seja, em observância aos sujeitos que o constituem, ao referente

99

discursivo, às imagens projetadas pelo mecanismo de antecipação, verificamos algumas

propriedades: a não-reversibilidade entre os interlocutores e a condução dos sentidos.

Vejamos que se trata de um discurso que se pretende mostrar heterogêneo para o seu leitor,

dessa forma, trabalha no entremeio de várias formas de discurso.

Antes da realização das análises, tínhamos como hipótese a possibilidade de pensar o

funcionamento do discurso de divulgação científica para crianças como primordialmente do

tipo lúdico, tipologia desenvolvida por Orlandi (2003b [1983]) e por nós apresentada no

capítulo 1. Em nossas análises, verificamos que as brincadeiras, as rimas, o rébus podem ou

não funcionar com uma polissemia aberta, uma vez que um dos efe itos de sentido que se

constrói é o da verdade científica. Podemos dizer que o parágrafo inicial dos artigos grandes,

os editoriais, as cartas dos leitores e as demais seções da revista encenam uma representação

anedótica dos processos de produção de conhecimento científico. Essa encenação, contudo,

não abala o lugar de seriedade do discurso científico.

Por uma tendência ao controle da polissemia e à não-reversibilidade, podemos dizer

que há uma dominância do discurso autoritário, com isso não estamos negando que as demais

tipologias compareçam. Na CHC, também há espaço para o discurso lúdico. Os poemas e

poesias – marcados por uma polissemia aberta – são publicados na contracapa da revista. Um

espaço que trabalha a disjunção lógica: é um estar dentro-fora. O discurso lúdico comparece

de modo lateral, enviesado – parece ser o domingo do pensamento (Pêcheux, 2002 [1983]) do

discurso de divulgação científica para crianças.

De acordo com as propriedades listadas e a dominância do discurso autoritário,

podemos dizer que, no DDC para crianças, há uma tendência à manutenção dos sent idos

hegemônicos de ciência (a ciência régia, tal como Pêcheux postula), a saber: de neutralidade,

objetividade e verdade.

Observamos tanto em Orlandi (2001b e 2004b) quanto em Grigoletto (2005) que, do

ponto de vista discursivo, não é possível falar de um “discurso segundo”, uma vez que não há

mediação sem deslocamentos das posições-sujeito, assim como da própria constituição dos

sentidos – lembrando que “a constituição do sentido é contemporânea da constituição do

sujeito” (Indursky, 2008: 31). No discurso de divulgação científica, as posições-sujeito, as

condições de produção, a tensão entre paráfrase e polissemia, o trabalho com a memória são

distintos dos daqueles do discurso da ciência. E, na transferência de saberes entre as ordens

que compõem o DDC para crianças, efeitos metafóricos são produzidos, sendo um deles a

representação anedótica.

100

Ao definir o efeito-leitor do DDC, Orlandi (2001b e 2004b) opera um deslocamento

no interior do quadro teórico já construído sobre esse discurso, distanciando-se da noção de

reformulação antes proposta por Authier-Revuz (1999). Tal deslocamento nos possibilita

pensar o leitor (a criança e o professor) como preponderante nas condições de produção do

discurso que nos propusemos analisar.

Partindo das considerações de Grigoletto (2005), podemos compreender que o DDC

pode ser definido como um espaço discursivo intervalar, no qual a mídia estabelece o quê e de

que modo a ciência será divulgada. Podemos dizer que o discurso de divulgação científica se

materializa no espaço discursivo jornalístico; este, por sua vez, funda-se nas ilusões de

objetividade, neutralidade e transparência (cf. Mariani, 1998). Dessa forma, não é a posição

do cientista que movimenta o dizer, mas sim a posição do divulgador que o faz.

Acrescentamos aqui que o leitor da revista Ciência Hoje das Crianças é constitutivo

deste discurso, um leitor que é referenciado, desde o título da revista, como criança. Desta

forma, seria lícito afirmar que tal discurso apresenta processos discursivos distintos daque les

trazidos pelas autoras postas em tela nas seções anteriores.

O modo de falar sobre ciência, no discurso analisado, evoca uma memória do sobre

científico regulado por método, rigor de descrição, objetividade. No DDC para crianças, é a

mídia que administra os sentidos, produzindo efeitos de neutralidade, homogeneidade e

informatividade. No entanto, no DDC esses dois funcionamentos, da mídia e da ciência,

recobrem-se. Devemos ressaltar que esse discurso é produzido na tensão entre objetividade,

neutralidade tanto da ciência quanto da mídia, ao mesmo tempo em que joga com a suposta

subjetividade do discurso cotidiano infantil. Parece-nos que esse discurso sobre a criança é

atravessado por um ludicismo que, tal como o definimos no capítulo 2, implica as relações

estabelecidas com o jurídico, dissimulando, pela brincadeira, pelo jogo, o próprio jurídico.

Além desta questão, como apontamos, é também característico do ludicismo uma projeção do

futuro da criança, o vir-a-ser-sujeito.

Necessidades se impõem neste discurso. A primeira refere-se à necessidade de

obtenção de informações científicas e a segunda, de formação dos futuros cientistas. Cabe

destacar que ambas as necessidades são determinadas historicamente.

Dito isto, podemos definir o DDC para crianças como um espaço discursivo intervalar,

constituído, ao menos, por quatro discursos: da ciência, do cotidiano, da mídia e do ensino.

Esse discurso, ao colocar em relação o cientista, o divulgador e o leitor (criança ou professor),

suspende a suposta unidade do discurso científico e aciona mecanismos de aliança, de crítica,

de absorção, de silenciamento junto aos demais discursos que o constituem.

101

Tal como Orlandi (2001b e 2004b), consideramos o DDC uma versão, uma

textualização possível a qual é produzida pelo gesto de interpretação do divulgador e também

pelo efeito- leitor produzido pelo mesmo gesto, ou melhor, o divulgador recorta o dito da

ciência e da não-ciência e, nesse gesto de interpretação, ele produz um efeito-leitor. É na

textualização que se põe em jogo a função-autor e o efeito- leitor. Interessa-nos observar o

efeito- leitor produzido na textualização do DDC para crianças. Ressaltamos que não há como

pré-conceber um efeito- leitor que seria anterior ao próprio discurso.

Neste capítulo, apresentamos as reflexões de Authier-Revuz (1998 e 1999), Zamboni

(1997), Orlandi (2001b e 2004b) e Grigoletto (2005) sobre o discurso de divulgação

científica. A primeira autora, ao tratar da encenação da ciência em uma abordagem dialógica

do discurso, trabalha com a concepção de discurso de divulgação científica atrelado a uma

prática de reformulação, em que a heterogeneidade mostrada é o resultado de um trabalho do

sujeito com o quadro enunciativo do D1 e do D2. A segunda define o discurso de divulgação

científica como um trabalho de formulação do discurso, postulando sua vinculação ao campo

de transmissão de conhecimento. Para a terceira, o discurso de divulgação científica resulta de

um jogo complexo de interpretação do jornalista, no qual o efeito-leitor é preponderante, visto

ser ele que institui o discurso e o caracteriza (Orlandi, 2004b: 151) Por fim, a quarta e última,

enfoca a caracterização do discurso de divulgação como um espaço discursivo intervalar, no

qual o jornalista recorta saberes de três ordens (ciência, mídia e senso-comum) e reatualiza-os

no DDC. Trabalhamos as contribuições de cada uma das autoras, fazendo contrapontos,

apontando aproximações e afastamentos. Esse movimento teórico foi importante para

pensarmos o nosso tema de pesquisa. Dessa forma, podemos defini- lo como um espaço

discursivo intervalar no qual o efeito- leitor caracteriza o discurso de divulgação científica

para crianças. Neste capítulo, falamos na constituição de um DDC para crianças, mas cabe

uma questão: qual formação discursiva delineia esse discurso? Tentaremos, por meio das

análises das seções da revista, respondê- la.

Nos próximos capítulos, apresentamos as análises realizadas das seções da revista

Ciência Hoje das Crianças.

102

CAPÍTULO 4: O editorial da revista e o divulgador

O presente capítulo tem como objetivo analisar o editorial56 da revista Ciência Hoje

das Crianças (CHC). Justificamos sua análise visto que o editorial convoca os leitores da

revista. Trata-se de um texto que se entrecruza aos demais textos que compõem a CHC. No

editorial, é possível verificar como o divulgador é construído, além de observar as relações

que ele estabelece com o leitor.

No primeiro tópico do nosso capítulo descrevemos os editoriais da revista, assim como

as condições que propiciaram o seu surgimento. Em seguida, trazemos à baila uma reflexão

sobre jornalismo opinativo e informativo. Além dessas considerações, analisamos as posições

do divulgador dado o lugar que ele ocupa em relação à posição daquele para quem se dirige: o

leitor. Para tal, observamos as marcas de pessoa e os sinais discursivos de pontuação. Por fim,

analisamos dois editoriais que se configuram como cartas enigmáticas.

4.1 Eis que surge o editorial da revista Ciência Hoje das Crianças

O primeiro editorial da revista foi publicado no exemplar de número 8 (julho de 1988)

dois anos após o lançamento do seu primeiro número. No número 8, a CHC ainda era um

encarte da revista Ciência Hoje, ou seja, não era vendida separadamente. Foi o único a ser

intitulado “Editorial” e que dá início a um lugar enunciativo e a uma prática discursiva.

Esse primeiro editorial é composto por um único parágrafo. Nele, são trazidos dados

sobre o aumento do número de páginas, a instauração de novas seções, como também a

funcionalidade da revista. A equipe editorial é apresentada com fotos e pela descrição das

atividades realizadas por cada integrante. Abaixo, transcrevemos o primeiro editorial57.

Editorial

A Ciência Hoje das crianças agora ficou maior: são 16 páginas, mais o cartaz. Foi criada uma seção de cartas para vocês mandarem suas sugestões, seus desenhos, suas histórias e fazerem suas perguntas também. Há mais jogos, brincadeiras, histórias de ciências, de bicho, de gente, para vocês lerem em casa ou levarem para a escola (CHC – Editorial – nº8, jul., 1988).

56 Trabalhamos especificamente com os editoriais publicados entre os anos de 1988 e 2006, totalizando 160 editoriais. 57 Uma cópia do primeiro editorial encontra-se no anexo 6.

103

Pode-se ler, nesse editorial, um indicativo de que a revista-encarte apresenta boa

vendagem, uma vez que ela ficou maior e houve a criação de uma nova seção. Observa-se a

inclusão do leitor com a seção de cartas e uma interpelação ao leitor: vocês mandarem, vocês

lerem.

A revista de número 9, embora não apresente o título “Editorial”, traz uma carta

enigmática, cujo título é “Aos leitores de CHC”, e o índice da revista, na mesma página do

editorial. Os números que seguiram – em configuração de encarte – não apresentaram

propriamente um editorial. São compostos pelo índice, pelo Correio 58 e, algumas vezes, por

jogos. Dois anos depois, em decorrência de sua independência editorial (a CHC deixou de ser

um encarte e passou a ser uma revista propriamente dita), notamos uma mudança na

diagramação do editorial. O número 16, de setembro de 1990, ganhou um novo layout: o

corpo do texto do editorial, configurado como uma carta enigmática, é centralizado e, ao seu

redor, é diagramado o índice da revista, com o título das suas seções e as páginas

correspondentes. A seção de cartas (anteriormente na seção “Correio”) passou a ser publicada

na última página da revista.

Durante os quatros números publicados no ano de 1990, o editorial não segue uma

linha precisa: ora fala da finalidade da revista, ora das suas seções, ora de assuntos da

atualidade. Mas, sobretudo, sinaliza para que os leitores enviem cartas. Observamos que, a

partir do número 20, passa-se a enfatizar o conteúdo de cada seção da revista, como se fosse

uma carta de apresentação da mesma. Em relação à localização e diagramação do texto,

podemos dizer que o editorial da revista foi – e ainda é – publicado no centro ou no lado

esquerdo da primeira página.

Nos editoriais da CHC, em geral, há uma introdução a respeito do tema do artigo

principal da revista, um comentário das demais seções e uma despedida, ofertando a todos

uma boa leitura/diversão. Foram essas pistas de organização textual (introdução, comentário e

despedida) que permitiram designar os textos que aparecem na primeira página da revista

como editoriais. Como já dissemos anteriormente, somente o primeiro (publicado na revista

de número 8) apresenta tal designação.

Das três pistas textuais, gostaríamos de destacar a despedida, visto promover um fecho

para editorial. Vale ressaltar o que compreendemos como fecho. Para tal, citamos Gallo

(1995):

58 A seção “Correio” será comentada no capítulo sobre carta de leitores.

104

A assunção de autoria pelo sujeito, ou seja, a elaboração da Função-Autor consiste, em última análise, na assunção da “construção” de um “sentido” e de um “fecho” organizadores de todo texto. Esse “fecho”, apesar de ser um entre tantos outros possíveis , produzirá, para o texto, um efeito de sentido único, como se não houvesse outro possível. Ou seja, esse “fecho” torna-se “fim” por um efeito ideológico produzido pela “instituição” onde o texto se inscreve: o efeito que faz parecer “único” o que é “múltiplo”; “transparente” o que é “ambíguo” (Gallo, 1995: 58).

Considerando o fecho como organizador do texto, analisamos as despedidas. Vejamos

algumas seqüências:

SD1: Boa leitura. (CHC - Editorial - nº66, jan/fev.1997) SD2: Boa leitura e divirta-se com o conto, a poesia e o bate–papo. (CHC - Editorial - nº96, out.1999). SD3: Leia e divirta-se! (CHC - Editorial - nº108, nov.2000) SD4: Agora aproveite! (CHC - Editorial - nº133, mar.2003)

O fecho do editorial, necessário e arbitrário, promove um efeito de unidade e

coerência. Porém, também funciona como elemento de abertura para a leitura da revista.

Podemos falar, então, de um “fecho-abertura” funcionando nos editoriais. Expliquemos

melhor: é um fecho que promove um efeito de sentido de acabamento ao editorial e,

paralelamente, abre para as demais textualizações.

4.2 Entre a opinião e a informação

Em trabalhos sobre editoriais, e aqui citamos os de D. Guimarães (1992) e Gomes

(2007), encontra-se a distinção entre “jornalismo informativo” e “jornalismo opinativo”,

sendo considerados os editoriais derivados do último. Para além da disjunção entre

informativo ou opinativo, nossas considerações buscam compreender algumas das filiações de

sentidos que produzem o modo de dizer a divulgação científica para crianças. Devemos

considerar, sobretudo, que “o que é dito nos jornais depende fortemente das possibilidades

enunciativas específicas de cada formação social em cada período histórico” (Mariani, 1998:

62). Podemos estender a consideração de Mariani para as revistas da CHC.

De forma a tentar compreender o percurso de naturalização da disjunção entre

jornalismo opinativo e jornalismo informativo, retornamos à “Declaração dos Direitos do

Homem”. A partir do fim do século XVIII, com a instauração de direitos iguais (diga-se,

direitos burgueses), ocorreu uma naturalização do sentido de cidadania. Como nos lembra

Pfeiffer (2000: 167), “tomamos com a revolução burguesa a universalização do sentido de

cidadania – todos são cidadãos e este todo é universal e não específico”. Foram os ideais da

Revolução Francesa (1789) que colocaram em ação os princípios da liberdade de imprensa

utilizados por jornalistas do mundo todo durante o século XIX. O artigo 11° da Declaração

105

dos Direitos do Homem e do Cidadão juramenta que “A livre comunicação das idéias e das

opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar,

escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos

previstos na lei”. A instauração do direito de todo cidadão à “livre comunicação” passa a ser

de todos, ao menos na letra da lei. A responsabilidade do dizer recai sobre o sujeito, assim

como cabe a ele responder por eventuais abusos perante a lei. Trata-se do sujeito-jurídico

instituído pelo Estado capitalista, tal como apontado por Haroche (1992), um sujeito detentor

de direitos, mas também de deveres, como visto no capítulo 2. Mariani (1998), ao

discursivizar a institucionalização da imprensa, mostra-nos ter sido essa fundada na ordem

jurídica. Vejamos o que a autora diz:

no período em que ocorre a legitimação da imprensa como instituição [...] é também o momento em que se está formalizando tanto uma imagem do sujeito jurídico ocidental, que conquistou seus direitos, e é dotado de vontades e responsabilidades, quanto está firmando concepção predominante de linguagem verbal como instrumento de comunicação (Mariani, 1998: 73-74).

Mariani (idem) fala da forma histórica do sujeito capitalista, sujeito que funciona no

registro jurídico, isto é, de direitos e deveres, como dono de sua vontade, origem de suas

intenções, responsável pelo que diz e também da concomitância da institucionalização da

imprensa. Posto isto, a noção de informação está vinculada às leis que constituem a pretensa

liberdade presente nessa instituição. Mariani (1998) postula que o mito da informação está

fundado no mito de comunicação lingüística, entendido como o resultado do “domínio” da

linguagem referencial.

Se o jornalismo pauta-se no imaginário de objetividade e neutralidade e, portanto,

informatividade da linguagem referencial, como se representa a questão da opinião? Para

Mariani, “não se trata apenas da antiga discussão das diferenças entre um jornalismo mais

opinativo opondo-se a um mais informativo” (Mariani, 1998: 65), mas a opinião é

representada como uma questão da “ordem do funcionamento da língua” (idem). O

funcionamento está relacionado com a imagem que se faz da própria língua: transparente,

unívoca.

O jornalismo, colocado sob a disjunção “informativo” ou “opinativo”, funda-se como

organizador dos acontecimentos cotidianos. Em termos discursivos, o que há são gestos de

interpretação que organizam e ordenam tais acontecimentos como informativos ou opinativos.

Mariani (1998) diz que “no discurso jornalístico mascara-se um apagamento da interpretação

em nome de fatos que falam por si” (Mariani, 1998: 62). Em outros termos, dissimula a

função-autor e o gesto de interpretação. A suposição de leitura literal e dos fatos que falam

106

por si, a partir da suposição de uma linguagem transparente, suporte de sentido literal, é que

propicia esse apagamento interpretativo, inerente à linguagem como constitutiva do sujeito.

Aferrar-se à língua como sendo ela o repositório dos sentidos literais e unívocos acaba por

criar a ilusão de que o que se diz é uma informação e não uma opinião.

Na discussão que trazemos aqui, não consideramos a classificação do editorial como

opinativo ou como informativo, visto ser essa uma classificação pragmática que divide e

ordena os sentidos no interior do discurso jornalístico. Uma classificação que permite opinar

em alguns textos, enquanto em outros não, como se em apenas alguns o sujeito-autor

interpretasse. A própria localização destacada do editorial, em jornais e revistas, está

consubstanciada no imaginário de que informação e opinião são pólos estanques. Em suma, é

uma classificação que não pode ser apartada da configuração do sujeito-jurídico que opõe

objetividade e subjetividade (cf. Haroche, 1992).

Consideramos relevante dizer que tomamos o editorial como um sítio de significância

(Orlandi, 2003ª [1993], 2004ª [1996]) – uma região de sentidos – que estabelece relações

intertextuais59 com as demais seções da revista, não só com os artigos que apresenta, mas,

sobretudo com a seção de cartas.

4.3 O lugar do sujeito nos editoriais da revista Ciência Hoje das Crianças

Reconhecendo o discurso de divulgação científica como um processo no qual

funcionam as formações imaginárias, não tomamos o divulgador como um intermediário entre

ciência e público, embora seja essa a ilusão que constitua o discurso de divulgação científica.

Consideramo-lo em sua posição no discurso.

Do quadro das formações imaginárias, tal como formulado por Pêcheux, podemos

depreender, nos editoriais, ao menos três imagens, a saber: do divulgador, do leitor e do

cientista. Contudo, neste capítulo, focalizamos nossas análises na posição do divulgador, dado

o lugar que ocupa ao considerar a posição do leitor.

Na próxima seção, verificamos quais as representações que o divulgador assume no

editorial da revista CHC.

59 Para Maingueneau (1997) a intertextualidade diz respeito aos tipos de relações que um texto estabelece com outros. Essas relações são definidas no nexo que uma formação discursiva (FD) mantém com outras. O autor distingue dois aspectos da intertextualidade: interna e externa. Na intertextualidade interna, o discurso se define por sua relação com discursos do mesmo campo discursivo. Na intertextualidade externa, o discurso define certa relação com outros campos. Lembra o autor que nenhum campo existe isoladamente, havendo intensa circulação.

107

4.3.1 O divulgador: quem sou eu para falar-lhe assim?

Ao proceder ao exame das marcas lingüísticas indicativas das formações imaginárias,

das várias maneiras pelas quais o sujeito pode encontrar-se representado discursivamente,

destacamos as marcas de pessoalidade. É importante frisar que as marcas não são

transparentes, tampouco mantém relação direta com o discurso. Elas são opacas, funcionando

como pistas para chegar-se ao complexo/disperso sujeito divulgador, estando essa posição

imbricada na instância das formações imaginárias.

Em reflexões que buscavam as marcas do homem na língua, Benveniste (1966)

introduziu a noção de sujeito como uma propriedade da linguagem. Nesta perspectiva, a

linguagem é mais do que instrumento de comunicação, pois é na linguagem e pela linguagem

que o homem se constitui como sujeito. Devemos ressaltar que as considerações de

Benveniste devem ser entendidas no interior de uma perspectiva enunciativa adstrita a um

sujeito que pensa ser origem de seu dizer.

Nos estudos de Benveniste, os pronomes pessoais tiveram grande destaque. Segundo o

autor, eles têm a faculdade de referirem-se a qualquer sujeito e de identificá- los

particularmente. É no exercício da língua que se identificam as pessoas do discurso. Em

outros termos, as línguas põem à disposição do locutor formas vazias que serão preenchidas

no exercício do discurso.

Nesse quadro teórico, a subjetividade é a capacidade do locutor se propor como

sujeito, é ego que diz ego. A manifestação da subjetividade só adquire importância na

primeira pessoa, pois é o lugar no qual se enuncia o sujeito, referindo-se a si próprio. No

entanto, a subjetividade só pode ser experimentada por uma oposição: só existe a noção de um

eu se houver um tu interlocutor. Ou como diz Benveniste:

a linguagem só é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como eu no seu discurso. Por isso, eu propõe outra pessoa, aquele que, sendo embora exterior a “mim”, torna-se o meu eco – ao qual digo tu e que me diz tu. A polaridade das pessoas é na linguagem a condição fundamental, cujo processo de comunicação, de que partimos, é uma conseqüência totalmente pragmática (Benveniste, 1966: 286 – grifos do autor).

A categoria de pessoa é discutida por Benveniste no interior da situação enunciativa.

Somente podem ser denominados como pessoa os participantes de um ato de enunciação. O

autor fala de uma correlação de personalidade, na qual somente duas instâncias podem ser

incorporadas: um eu que fala para um tu que ouve. No entanto, o ego sempre terá “uma

posição de transcendência quanto ao tu” (Benveniste, 1966: 254). Por outro lado, há a

108

oposição entre as duas primeiras pessoas e a terceira. O pronome ele, por remeter a um fora, a

um objeto, não é inserido na categoria de pessoa. O autor também fala de uma correlação de

subjetividade, que opõe o eu (com qualidades de interioridade ao enunciado e de

transcendência) e o tu (proposto pelo eu). Resumidamente, o eu configura a pessoa subjetiva,

o tu a pessoa não-subjetiva e as duas juntas se opõem a ele, não-pessoa.

Na perspectiva de Benveniste, a subjetividade está restrita à relação do ego com a

língua, ou melhor, à apropriação da língua pelo o locutor. Mariani (1998), considerando a

contribuição de Benveniste aos estudos da linguagem, aponta sua importância, como também

sua restrição teórica. Nos dizeres da autora,

se, por um lado, as reflexões de Benveniste produziram uma reviravolta nos estudos lingüísticos, já que re-introduziram o locutor no estudo da língua, deslocando, deste modo, a noção usual de comunicação verbal, por outro lado, essas mesmas reflexões não deram espaço para que se pensasse em um “eu” enunciativo histórico, assujeitado às formas sócio-institucionais de dizer. Deste modo, a significação em Benveniste fica reduzida ao vínculo que o “ego discursivo” estabelece com a língua (Mariani, 1998: 88).

Para Pêcheux (1997 [1969]), o espaço subjetivo da enunciação é, de fato, um espaço

imaginário que assegura ao sujeito deslocamentos no interior do reformulável. Assim sendo,

ele propõe retirar a problemática da enunciação do centro idealista, na qual as teorias da

enunciação se encontravam. Para Pêcheux, definir a enunciação como relação do sujeito com

seu enunciado reincide na ilusão do sujeito identificar-se à fonte do sentido. Do ponto de vista

discursivo, Pêcheux propõe o conceito de enunciação, afirmando ser esse um processo que

consiste em

uma série de determinações sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco que têm por características colocar o “dito” e em conseqüência rejeitar o “não-dito” [...] Desse modo se acha, pois, desenhado num espaço vazio o campo de “tudo o que seria possível ao sujeito dizer (mas que não diz)” ou o campo de “tudo a que se opõe o que o sujeito disse” (Pêcheux, 1997[1969]: 175-176).

Podemos dizer que a enunciação é tomada como um processo que se relaciona com o

interdiscurso, ou seja, é determinada historicamente e sua manifestação está em relação às

formações discursivas (ao que pode e não pode ser dito). Por tal relação ser heterogênea, o

sujeito encontra-se representado de diferentes formas, visto que se relacionada de modo

diferenciado com a formação discursiva que o determina.

Nos editoriais analisados, identificamos que o divulgador inscreve-se por meio de duas

pessoas discursivas: a) 1ª pessoa do plural – “nosso”, “nossa”, “a gente” e desinência número

pessoal; e b) 3ª pessoa do singular – “A Ciência Hoje das Crianças”, “a revista”, “nesta

edição”, “neste número”, “a nau ciência hoje das crianças”, “nossa galeria de bichos

109

ameaçados”, “os cientistas”. Considerando as marcas destacadas, perguntamos: quais efeitos

de sentidos são produzidos ao utilizar uma ou outra forma de representação? Quais são os

referentes discursivos que correspondem a cada uma das formas?

Trataremos, inicialmente, do uso da primeira pessoa do plural.

Nós, quem?

Segundo Benveniste (1966), o nós não seria a soma de eu ao “não-eu”, mas um eu

ampliado. Lembremo-nos de que, nessa perspectiva, o eu é uma pessoa estrita e seu caráter

subjetivo e único impossibilita a pluralização. Para Benveniste, o nós

é algo diferente de uma junção de elementos definíveis; a predominância de “eu” é aí muito forte, a tal ponto que, em certas condições, esse plural pode substituir o singular. A razão está em que “nós” não é um “eu” quantificado ou multiplicado, é um “eu” dilatado além da pessoa estrita, ao mesmo tempo acrescido e de contorno vagos (Benveniste, 1966: 258 – grifos do autor).

O nós, então, não pode ser concebido com a multiplicação de “eu”, mas como a junção

de um eu a um não-eu, amplificado e difuso. O fator de ilimitação do plural suscita a inscrição

de outros enunciadores a seu dizer, o que pode resultar em um “Nós- inclusivo” (eu + tu) ou

um “Nós-exclusivo” (eu + ele). No primeiro caso, ocorre a junção de pessoas entre as quais

existe a correlação de subjetividade; no último, pode-se dizer que o enunciador se inscreve

por uma pessoa amplificada exclusiva, uma vez que faz a junção das formas que se opõem

como pessoa e não-pessoa.

Do ponto de vista discursivo, Indursky (1997) considera que a forma pela qual o

sujeito relaciona-se com a formação discursiva que o domina ocorre de modos diferenciados,

e que podem ser verificados nas diferentes maneiras nas quais o sujeito se encontra

representado. Uma dessas formas é o NÓS, marca que a autora propõe analisar em uma

perspectiva discursiva.

Em seu estudo sobre o discurso presidencial, Indursky (idem) postula o NÓS como

uma não-pessoa discursiva, dado que NÓS designa conjuntos lexicalmente não nomeados, ou

melhor, configura a associação do sujeito enunciador a outros sujeitos não nomeados, não

especificados lingüisticamente. Cabe ressaltar que a ausência de textualização do referente

instaura ambigüidade.

Não devemos confundir o conceito de não-pessoa, tal como definido por Benveniste, e

o de não-pessoa discursiva, postulado por Indursky. A autora considera que “na interlocução

discursiva, a não-pessoa discursiva corresponde ao referente lexicalmente não-especificado

ao qual eu se associa para construir nós” (Indursky, 1997: 67 – grifos da autora). A

110

ambigüidade do dizer do sujeito decorreria da possibilidade de, ao enunciar o nós, associar-se

a distintos referentes sem especificá-los lexicalmente. Desta forma, o “nós constrói um

referencial discursivo muito difuso que permite a instauração não só da indeterminação como

também da ambigüidade que decorre do fato de uma mesma forma poder apresentar referentes

tão diversos60” (Indursky, 1997:75). E, conseqüentemente, são vários os efeitos de sentido

possíveis.

Retornando ao nosso corpus, recortamos seqüências que contêm marcas de não-pessoa

discursiva. Abaixo, elaboramos um quadro dos referentes discursivos de NÓS depreendidos

do editorial da revista CHC.

Quadro 3 - Referentes discursivos: não-pessoa discursiva

Referente discursivo Seqüência discursiva NÓS 1 A equipe da revista Estamos comemorando! NÓS 2 O divulgador e os leitores vamos visitar um museu NÓS 3 Seres biológicos um reflexo do que sentimos NÓS 4 A humanidade cada dia em nosso planeta

Apresentamos, a seguir, quatro blocos de seqüências discursivas, cada qual

correspondendo a um tipo de NÓS organizado na tabela acima. Por meio de nosso trabalho de

análise, observamos, nas seqüências recortadas, pistas que nos possibilitaram balizar a

construção discursiva de referência. Sob o manto da ilusão da homogeneidade de um NÓS

único, diversos referentes estavam imbricados na dispersão do discurso. Por fim,

identificamos um jogo entre o NÓS e a projeção imaginária que se faz do lugar social do

sujeito-divulgador.

• NÓS 1 – a equipe da revista

SD1: Estamos comemorando! A Ciência Hoje das Crianças ganhou o Prêmio José Reis de Divulgação Científica de 1991. [...] Mas vamos falar deste número. Nele você vai aprender a fazer papel em casa. (CHC – Editorial – n°27 – abr./maio/jun., 1992). SD2: Preparamos uma matéria para você desbancar aquele seu amigo metido que insiste em dizer que tem sangue azul. (CHC – Editorial – n°67 – mar., 1997). SD3: aproveitamos para falar como se produzem estes fenômenos de que tanta gente tem medo (CHC – Editorial – n°37 – abril, 1994). SD4: Neste número vamos falar também dos parasitas. Eles são muito espertos e folgados. (CHC – Editorial – n°42 – out., 1994).

60 Indursky (1997), ao analisar os discursos presidenciais, estabelece dois conjuntos de construções de referências para o nós. O primeiro representa a esfera do espaço público individual; o segundo, a esfera do espaço público compartilhado.

111

SD4: Claro que não esquecemos a bicharada! Este mês, apresentamos aos nossos leitores o peixe -boi, um gigante aquático muito dócil e inofensivo (CHC – Editorial – n°107 – out., 2002). SD5: Nesta edição, apresentaremos a você os mamíferos do Cerrado - animais muito importantes para o equilíbrio ecológico, mas que se encontram ameaçados de extinção com a crescente destruição do único lugar que escolheram para viver [...] Como sabemos que a sua curiosidade vai além, não deixe de conferir a história dos diferentes tipos sanguíneos [...] (CHC – Editorial – n°164 - nov., 2005).

Antes de iniciarmos a apreciação das análises, destacamos que, das quatro

representações, o NÓS 1 é o mais recorrente no corpus.

Se considerarmos o editorial da revista número 8 como um gesto inaugural para a

autonomia da revista, temos nele a representação de sua equipe. Em NÓS 1, o referente

discursivo remete à equipe da revista. Vejamos, por exemplo, na SD1 e SD2 temos: NÓS (a

equipe da revista) estamos comemorando, ou preparamos uma matéria para você (leitor).

Em termos sintáticos, a primeira pessoa do plural cumpre a posição de sujeito gramatical e,

portanto, funciona como o agente dos verbos.

Em SD2 e SD5, o divulgador, em posição de equipe da revista, antecipa a imagem de

um leitor curioso (sua curiosidade). Pelo mecanismo da antecipação, o divulgador apresenta-

se como conhecedor das necessidades do leitor (como sabemos que sua curiosidade vai

além) e das ações a serem realizadas por leitor (para você desbancar).

Uma observação sobre os verbos deve ser registrada: eles indicam o conhecimento do

divulgador e sua condição de “transmiti- lo” aos leitores (vamos falar como se produzem,

apresentamos a você). Podemos falar de uma agentividade, mas não de produção de

conhecimento, de ciência.

O divulgador aproxima-se e direciona seu dizer ao leitor, como também se apropria da

voz do cientista. Depreendemos, na posição-sujeito de equipe da revista, a imagem de um

sujeito que se outorga conhecedor do leitor e porta-voz do cientista.

• NÓS 2 – o divulgador e os leitores

SD1: De lá, passaremos em Minas Gerais para ver os artistas que moram no Vale do Jequitinhonha, uma região muito pobre que vive de fazer arte. Cansou de viajar? (CHC – Editorial – n°70 – jun., 1997). SD2: Só tome cuidado para não sair falando pelos cotovelos, porque vamos visitar um museu dedicado à Independência do Brasil. (CHC – Editorial – n°112 - abril, 2001). SD3: Juntos, vamos ver fósseis que não são de dinossauros, mas de morcegos; voltar à Grécia Antiga para descobrir a origem dos labirintos; plantar batatas em garrafas e até descobrir que a orca, ora, ora, não é uma baleia. (CHC – Editorial – n°170 – jul., 2006).

Em NÓS 2, ocorre a inserção do leitor por meio de lexicalização de um dos integrantes

do par eu+tu. Por exemplo, na SD3 o adjetivo juntos indica que o leitor foi convocado a

participar da cena (ver os fósseis de morcegos), ou em SD2 pelo uso do imperativo do verbo

112

tomar (tome cuidado), ou em SD1 pela pergunta endereçada ao leitor (Cansou de viajar?). A

responsabilidade do dizer é posta também nas mãos do leitor, como em uma co-participação

de produção.

Nesse bloco de seqüências, a posição-sujeito configura-se por uma aproximação com o

leitor. O divulgador mostra-se compartilhando seu dizer com o leitor, um efeito produzido

pela referência pretendida com a totalidade de o NÓS. A imagem depreendida é daquele que

agrega, que se organiza na direção da união com o outro.

A utilização de um NÓS 2, que inclui o leitor, sugere diminuir a assimetria entre o

autor e o leitor, produzindo um efeito de aproximação, como se o discurso se tornasse

informal, se aproximasse do público ao qual a revista é dirigida. Cria-se uma suposta simetria

entre os interlocutores e desses com o referente discursivo. No entanto, não podemos falar de

tipologia de discurso lúdico ou polêmico, visto que os sentidos não estão abertos para o

diferente, mas para o mesmo. O divulgador dá as diretrizes de sentido.

• NÓS 3 – seres biológicos

SD1: Leia também sobre a tal de Anomalia Magnética Brasileira e sobre a vida de caranguejo que talvez tenhamos que levar. (CHC – Editorial – n°27 – abr./maio/jun., 1992). SD2: Este mês, vamos desvendar os mistérios dessas imagens que se passam na cabeça da gente sempre que estamos dormindo. (CHC – Editorial – n°70 – jun., 1997). SD3: A revista traz também outras surpresas, como a explicação do que são as ondas sonoras e como elas chegam aos nossos ouvidos. (CHC – Editorial – n°105 – ago., 2000). SD4: Para cantarolar, tagarelar e, até mesmo, dar um berro, você precisa da sua voz. Nesta edição de Ciência Hoje das Crianças, você confere como a voz é produzida, como se modifica ao longo da vida e como pode ser um reflexo do que sentimos. (CHC – Editorial – n°112 - abril, 2001).

Em NÓS 3, a referência se dá pelo uso de verbos na 1ª pessoa do plural e pelo

pronome possessivo. O sujeito se representa como um enunciador universal, ou seja, como se

pudesse ser todos e qualquer um. Discursivamente, a universalização é construída pela

inserção do divulgador à condição biológica, ou melhor, um compartilhamento biológico que

pretende unir todos os homens. As ações (dormir) e as sensações (sentir) são comuns a todos

os seres humanos, assim como seus órgãos (ouvidos). Dessa forma, o sujeito associa-se a

qualquer outro vivente que apresente o mesmo traço biológico. O NÓS 3 corresponde à

junção de NÓS e todos os outros seres humanos, em um efeito de compartilhamento

específico, como seres vivos. Nas seqüências 1 a 4, o social, o cultural e a historicidade estão

silenciados nesse NÓS. Podemos falar em uma posição-sujeito de identificação biológica.

• NÓS 4 – a humanidade

SD1: Antes que essa conversa dê água na boca, vamos até o sul da Bahia descobrir o que está acontecendo com o cacau, a matéria -prima dos nossos bombons. (CHC – Editorial – n°72 – ago., 1997).

113

SD2: E, na Galeria, apresentamos uma das mais antigas aves do nosso território - o mutum-do-sudeste. (CHC – Editorial – n°92 – jun., 1999). SD3: Nesta edição, você também vai ver como é preocupante a poluição que aumenta a cada dia em nosso planeta! CHC – Editorial – n°93 – jul., 1999). SD4: Além de descrever a corrida espacial, que foi o combustível para se chegar ao nosso satélite natural [...] (CHC – Editorial – n°98 – jul., 1999). SD5: Pense bem, pois há provas de que o nosso litoral foi habitado por um povo ainda mais antigo, os sambaquieiros. (CHC – Editorial – n°101 – abril, 2000).

Observando a materialidade lingüística, o uso de NÓS 4 é atualizado na forma de um

pronome possessivo. Não identificamos o referente discursivo funcionando como um sujeito

gramatical. Acumulam-se sujeitos difusos, não na posição de agentes, mas de possuidores de

referentes externos (bombons, território, planeta, satélite natural, litoral). Podemos dizer que

os pronomes possessivos funcionam como termos que apontam para referentes externos.

Constrói-se, imaginariamente, o sentimento de pertença a uma mesma região, um mesmo

país, planeta, satélite (universo?!) – a um mesmo espaço que une todos (e qualquer um).

NÓS 4 associa o divulgador a sujeitos de distintas regiões, países, que têm em comum

a posse de um espaço. Produz-se um efeito de abrangência: a equipe, os leitores, todos os

seres humanos, enfim, toda a humanidade. A abrangência de o NÓS 4 situa-se em espaço

geográfico: sul da Bahia/nossos bombons; nosso litoral; nosso território; nosso planeta; nosso

satélite natural. Mas esse espaço seria comum a todos indiscriminadamente? Observamos uma

escala de grandeza: ao falar sobre bombons, um estado brasileiro é citado, mas ao tematizar

sobre a poluição, utiliza-se nosso planeta. E assim todos são “responsabilizados” pela

diminuição da poluição, apagando a ação de grandes indústrias, por exemplo. Podemos

indagar: o espaço é significado em relação ao que é considerado mais relevante do ponto de

vista científico? Ou do ponto de vista político? Afinal, a lua pode ser nosso satélite natural,

mas a corrida espacial deu-se, por muito tempo, entre duas potências mundiais: uma

capitalista e outra comunista. A instância da divisão espacial parece ser discursivizada.

Considerando as seqüências inseridas no eixo parafrástico “a humanidade”, fazemos

um retorno a uma questão do cidadão trabalhada no capítulo2. Destacamos, nas análises de S.

Oliveira (2006), um deslocamento operado nos sentidos de cidadão na acepção jurídica.

Trata-se do cidadão do mundo, cidadão do universo que sustenta a possibilidade do cidadão

“esquecer o seu vínculo com o Estado em nome dos interesses da humanidade” (S. Oliveira,

2006: 113). A autora aponta esse deslocamento com um indício da passagem do direito de

Estado para uma ética universal. Essa ética, segundo a autora, toma corpo na tradição

naturalista “rememorada na universalidade da Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão de 1789” (idem : 112). Uma memória que se atua liza nas seqüências analisadas.

114

Na posição-sujeito representada pela forma lingüística NÓS 4, a humanidade é

responsabilizada pela conservação de recursos naturais; uma responsabilidade do Estado que

passa a ser quase que exclusivamente do cidadão. Essa parece ser uma preocupação de alguns

filósofos contemporâneos. Especificamente, Dufour (2005) destaca que uma das narrativas

que produzem o sujeito na contemporaneidade é a narrativa ecológica61. Segundo o autor, a

força dessa narrativa centra-se na “predição apocalítica (sic) que traz consigo” (idem : 70), ou

seja, a inexistência de recursos naturais significaria a própria inexistência do sujeito.

Podemos observar que a narrativa ecológica, inserida na ética universal, produz efeitos

no editorial da revista CHC. E é desse lugar de “cidadão da humanidade”, em um sentido

planetário, apartado das relações sociais, que o divulgador ergue fronteiras em seu dizer, do

que pode e deve ser dito para seu leitor. Podemos depreender mais uma posição: cidadão da

humanidade.

Ao longo da seção, depreendemos quatro referentes discursivos, a saber: de equipe da

revista, de aproximação com o leitor, de identificação biológica e de cidadão da humanidade.

Vale destacar que são referentes que se apresentam de forma intrincada. Podemos afirmar

tratar-se de um sujeito que se outorga conhecedor das necessidades do leitor – daquilo que ele

necessita saber sobre a ciência. O divulgador aproxima-se do leitor e apropria-se da voz do

cientista. Nesse movimento, torna-se aquele que detém condições de transformar

conhecimento científico em informações jornalísticas. Salientamos que esse movimento é

trabalhado pelo recobrimento das ciências humanas e sociais pelo das ciências exatas e

naturais, no qual a “narrativa ecológica” ganha relevo.

ELE, de quem se fala ou quem fala?

Além do uso de NÓS, o sujeito inscreve-se utilizando a 3ª pessoa do singular. Diga-se,

em termos quantitativos, de extenso uso em nosso corpus. Para Benveniste, como já foi

comentado, seria a não-pessoa, visto que estaria fora da enunciação. No entanto,

consideramos que a 3ª pessoa, atualizada pelos itens lexicais revista, Ciência Hoje das

Crianças, nesta edição, etc., desempenha o papel de quarta pessoa discursiva (Indursky,

1997). Nos termos postos por Indursky, a quarta pessoa discursiva (um efeito-sujeito) ocorre

quando a 3ª pessoa é usada no lugar do eu, simulando um apagamento do sujeito, ou melhor,

simulando sua ausência na materialidade lingüística. Desta forma, “a substituição de eu ou

61 Para Dufour (2005), a narrativa ecológica seria mais digna de crédito do que as antigas profecias religiosas, visto que seria suscetível de captar massas prontas a temer. Ela “é a referência diante da qual as outras não têm mais curso já que as engloba” (Dufour, 2005:70).

115

nós por ele ou se simula o não-preenchimento da forma-sujeito, sendo esta mais uma das

formas com que o sujeito do discurso relaciona-se com a forma-sujeito que o constitui em seu

sujeito de seu discurso” (Indursky, 1997: 78 – grifos da autora). Cada uma das representações

(A Ciência Hoje das Crianças, a revista, nesta edição, neste número, a nau ciência hoje das

crianças, nossa galeria de bichos ameaçados) constrói referências discursivas distintas e

produz efeitos de sentidos diferentes, como veremos mais adiante.

Cumpre destacar que na forma de representação da quarta pessoa discursiva, o sujeito

apresenta-se como outro, simulando, ao mesmo tempo, seu apagamento e o esvaziamento da

forma-sujeito. Segundo Indursky (1997), esse esvaziamento produz efeitos de indeterminação

do sujeito, de estancamento de reversibilidade com o outro e de “movimento dêitico

discursivo”, que consiste em colocar em evidência a forma construída como vazia. A

investigação de Indursky (idem) aponta para duas modalidades da quarta-pessoa discursiva,

são elas: a pronominal e a lexical. Em nossas análises, destacaremos a última, entendida como

a modalidade que mais fortemente marca o efeito de não preenchimento da forma-sujeito.

Elaboramos uma tabela com os referentes discursivos que funcionam como quarta pessoa

discursiva.

Quadro 4 - Referentes discursivos: quarta-pessoa discursiva

Referente discursivo Seqüência discursiva ELE 1 A revista CHC elaborou uma receita especial ELE 2 As mascotes Os (sic) mascotes da revista resolveram

conversar sobre o assunto

As seqüências que se seguem podem ser tomadas como exemplares de atualização da

quarta-pessoa discursiva em nosso corpus. Dois blocos foram organizados. No primeiro, o

referente discursivo é a revista, edição, equipe, CHC; e, no segundo, as mascotes.

• Ele 1 – a revista

SD1: Ciência Hoje das Crianças ensina como se começam os estudos sobre as plantas (CHC – Editorial – n°26 – março, 1992). SD2: Esta edição traz também um assumo bem "quente": o uso de animais nos laboratórios de pesquisas. (CHC – Editorial – n°49 – jul., 1995). SD3: CHC elaborou uma receita especial, que mistura doce com ciência (CHC – Editorial – n°53 – nov., 1995). SD4: Esta edição também atende a pedidos de muitos, mas muitos leitores mesmo! (CHC – Editorial – nº81 – jun., 1998). SD5: A CHC chegou trazendo a resposta! (CHC – Editorial – n°143 – jan./fev., 2004).

116

Os itens lexicais esta edição, CHC, a equipe de Ciência Hoje das Crianças, em

posição de agentes das ações, produzem a impessoalização do discurso. Há a simulação de

renúncia do dizer do sujeito, como se a revista falasse por si só. O uso de tais itens lexicais

indica um afastamento da interlocução e, por conseguinte, o papel do divulgador é visto a

distância. Podemos dizer que a revista passa a “assumir o papel” do divulgador. E mais: o do

próprio professor.

Destacamos especialmente a SD1. Nela depreendemos a imagem da revista como

aquela que ensina os estudos sobre as plantas ao seu leitor. O divulgador posiciona-se como

revista e a ela que se imputa a responsabilidade de divulgar, ensinar e atender aos pedidos dos

leitores, criando uma imagem de revista que está voltada às necessidades de seu público.

Neste ponto, podemos observar o entrecruzamento do editorial com a seção de cartas (seção a

ser analisada no capítulo 6). Tudo se passa como se bastasse que o leitor enviasse seu pedido

e a revista realizá- lo- ia. Seria o pedido uma necessidade do leitor ou uma necessidade

construída pela revista?

• Ele 2 – as mascotes

SD1: Rex preparou uma festa diferente. Nada de bolo e refrigerante. Ele resolveu atender aos pedidos da galera e contar a história da revista. (CHC – Editorial – n°64 – nov., 1996). SD2: Imagine que a Diná aprontou um experimento só para dar um susto no Rex. (CHC – Editorial – n°84 – set., 1998). SD3: nossos (sic) mascotes colocaram a prancha de surfe debaixo do braço e foram procurar a pororoca (CHC – Editorial – n°88 – jan./fev., 1999). SD4: os nossos (sic) mascotes resolveram colocar em prática um fenômeno da física chamado reflexões múltiplas. (CHC – Editorial – n°106 – set., 2000). SD5: É tempo de racionamento de energia elétrica e os (sic) mascotes da revista resolveram conversar sobre o assunto. (CHC – Editorial – nº 117 – set., 2001). SD6: Em seguida, aproveite a companhia dos nossos (sic) mascotes numa adorável investigação sobre tem-pe-ra-tu-ra. (CHC – Editorial – nº 148 – maio, 2004).

Assim como nas seqüências do bloco anterior (Rex preparou, Ele resolveu atender,

Esta edição traz; CHC elaborou; a equipe de Ciência Hoje das Crianças preparou; A CHC

chegou), o sujeito dá lugar à referência externa, os mascotes, que é incorporada ao discurso.

Ao fazê- lo, cessa a reversibilidade desse discurso, constituindo um discurso que tende ao

autoritário. De acordo com a definição de discurso autoritário, a posição-sujeito de inserção

da voz das mascotes anula a possibilidade da reversibilidade, muito embora sua ilusão (de

reversibilidade) sustente esse discurso. O divulgador esvazia sua posição simulando a fala das

mascotes da revista.

Nas seqüências acima, as mascotes conversam sobre um assunto, resolvem colocar

um fenômeno em prática, procuram a pororoca. Vejamos que, na posição das mascotes de

117

revista, os pedidos dos leitores, tal como as seqüências que compõem o bloco ELE 1, também

são atendidos.

Nas análises dos editoriais, verificamos que a coexistência de variadas modalidades de

NÓS e a concentração na representação do sujeito em quarta pessoa discursiva apontam para

um sujeito fragmentado que assume diferentes posições-sujeito.

Aventamos comparar nossas análises ao que Pêcheux define como “mito continuísta

empírico-subjetivista” (Pêcheux, 1988 [1975]: 127). Embora Pêcheux apresente outras

categorias lógico-gramaticais de referência, tal mito recobre a pretensão do sujeito concreto

individual em situação de efetuar o apagamento progressivo da situação, de forma a levá- lo

diretamente ao sujeito universal, aquele que está “situado em toda parte e em lugar nenhum, e

que pensa por meio de conceitos” (idem). Em NÓS 1, o sujeito de referente singular assume a

posição daquele que traz, apresenta, prepara uma informação na “medida certa” para seu

leitor. Identificamos nesse uso de o NÓS a posição de equipe da revista que se alinha a um

discurso da ciência, ou melhor, apropria-se desse discurso como se fosse seu porta-voz. Em

NÓS 2, constata-se o resultado da associação do sujeito com outro sujeito, o leitor. A posição-

sujeito é, portanto, aquela de inclusão do leitor. Já em NÓS 3, observa-se a inserção do

divulgador na condição de ser biológico, o que o equipara a todo e qualquer ser humano. Em

NÓS 4, o sujeito associa-se a diferentes espaços, espaços que são divisões hierarquizadas,

pertencentes a todos e a ninguém. É a posição-sujeito do cidadão da humanidade. Em ELE 1 e

ELE 2, o sujeito refugia-se no referente e, ao simular apontar para um outro, torna sua posição

opaca. O efeito que se produz é de exterioridade.

Quadro 5 - Síntese dos referentes discursivos: não-pessoa discursiva e quarta-pessoa

discursiva

Referente discursivo Seqüência discursiva NÓS 1 A equipe da revista Estamos comemorando! NÓS 2 O divulgador e os leitores vamos visitar um museu NÓS 3 Seres biológicos um reflexo do que sentimos NÓS 4 A humanidade Cada dia em nosso planeta ELE 1 A revista CHC elaborou uma receita especial ELE 2 As mascotes Os (sic) mascotes da revista resolveram

conversar sobre o assunto

Além dessas pistas lexicais, outras pistas podem ser depreendidas. Destacamos os sinais

de pontuação, em especial o uso dos pontos de interrogação e de exclamação, das reticências e

118

do hífen. Salientamos que os sinais discursivos de pontuação funcionam concomitantemente,

somente por uma questão metodológica os analisamos separadamente. Na próxima seção,

verificaremos o funcionamento de tais sinais no material ora analisado.

4.4 Pontuação: lugar de interpretação

A pontuação, do nosso ponto de vista, não é tratada como sinais tipográficos, mas

como sinais discursivos que determinam o funcionamento em uma textualização, no caso, nos

editoriais da CHC. Fundamentamos a presente seção com as reflexões de Orlandi (2005), em

seu artigo “Ponto final: interdiscurso, incompletude, textualização”, e as de Grantham62

(2009), em seu livro Da releitura à escritura: um estudo pelo viés da pontuação.

Antes de realizarmos nossas análises, fizemos uma breve incursão nos meandros da

história da pontuação63. Justificamos essa retomada visto que não consideramos a pontuação

como um produto. Perseguimos, em sua historicidade, seu processo de naturalização como

objeto, ou melhor, como conjunto de sinais que desempenham uma função na escrita.

Relacionar a pontuação às noções desenvolvidas no quadro teórico da Análise do Discurso

(leitura, interpretação, texto, e autor), permitiu-nos desnaturalizar os sentidos fixados sobre os

sinais de pontuação, assim como compreendê- los como sinais discursivos que funcionam

tanto como mecanismos de textualização quanto de disciplinarização de sentidos.

Verificamos que o tema “pontuação” não recebeu um tratamento suficiente nem em

gramáticas normativas tampouco em trabalhos teóricos outros. Para Rocha (1997), há pouco a

se dizer sobre pontuação na literatura corrente sobre linguagem escrita e sistemas escritos,

tanto em um ponto de vista histórico quanto teórico. Tal concepção também é compartilhada

por Lourenceau (1980) e Tournier (1980) em relação aos estudos sobre pontuação na França.

Em artigo dedicado à história das idéias sobre a pontuação, Tounier (idem) constata que “a

pontuação não suscita mais do que um interesse muito marginal. Ela representa um domínio

cujo conjunto foi regido por uma grande confusão”64 (Tournier, 1980: 28 - tradução nossa).

Ressaltamos que os trabalhos consultados sobre a história da pontuação procuram

examinar o desenvolvimento do sistema de pontuação na escrita ocidental a partir de uma

62 O livro de Grantham (2009) resulta da publicação de sua tese de doutorado realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Cu mpre destacar que sua tese recebeu o prêmio ANPOLL 2006. 63 Dentre as obras consultadas, destacamos o exemplar de número 45 da revista francesa “Langue Française”, uma publicação resultante de um encontro, de fato, de uma mesa redonda internacional que ocorreu em 1978, na França, para discutir a questão da pontuação por diversos especialistas. Destacamos também os trabalhos de autores como: Dacanal (1987), Rocha (1997), Chacon (1997, 1998), Dahlet (1998 e 2006). 64.“La pontuation n’a suscite qu’un intérêt três marginal. Elle represente un domaine où semble avoir régné la plus grande confusion” (Tournier, 1980: 28).

119

distinção: a escrita é entendida como o processo de elaboração e a leitura como decodificação.

São trabalhos que acentuam a trajetória da pontuação implicada com a da própria escrita.

Dessa forma, a apropriação da pontuação pelo sujeito passa a ser uma técnica, derivada do

conhecimento lingüístico, utilizada para apreender um sentido já dado no texto escrito.

Segundo Rocha (1997), por séculos, a escrita caracterizou-se por não apresentar

indicadores de segmentação ou marcas gráficas de pontuação, cabendo ao leitor realizar, no

ato da leitura, a separação. A origem da pontuação remontaria aos textos sagrados, feitos para

serem recitados. Na Grécia Antiga65, “a pontuação [...] não era posta na composição, mas

atribuída pelo leitor/orador na interpretação do texto, para evitar ambigüidades” (Rocha,

1997: 86). Em relação aos romanos, é possível falar que eles se destacaram dos demais povos

por já conhecerem a leitura silenciosa. No entanto, reforça Rocha (1997) que “na prática,

contudo, eles utilizavam a leitura oral e usavam simultaneamente a scriptio continua e a

forma segmentada” (idem : 87). A autora salienta que os sinais de pontuação tinham a função

de assinalar os lugares em que se poderia respirar ao longo da leitura em voz alta – quase que

exclusivamente a única forma de leitura na Antigüidade.

A concepção de leitura na qual Rocha (idem) detém-se é a da leitura decodificadora.

Discordando da autora, contrapomos tal perspectiva com a nossa. Afinal, para nós analistas, a

leitura é uma aferição de uma textualização no meio de tantas outras (cf. Orlandi, 2005). A

leitura, assim como a escrita, é um processo de significação, no qual o leitor atribui sentidos

ao texto. Por considerar a leitura como a configuração de uma discursividade instaurada em

um modo de significação, Orlandi (2005) distanc ia-se sobremaneira de trabalhos que versam

sobre a história da pontuação, tais como os de Tournier, Rocha e Lourenceau, por exemplo.

Orlandi (2005), em uma nota do artigo anteriormente referido, afirma que, em tais trabalhos, a

origem da pontuação é explicada pela colocação de sinais à margem do texto de forma a

orientar a leitura em voz alta. Para Orlandi (2005), nesses trabalhos, haveria uma confusão

entre leitura e oralidade, pois que “continua-se no registro da escrita. Ler em voz alta, nessas

condições, não é oralidade, mas trabalho de interpretação” (Orlandi, 2005: 126). A pontuação

serviria não para orientar a leitura, mas para controlar a interpretação dessas leituras.

Devemos destacar que em nossa orientação teórica não há um recobrimento da noção

de leitura e de interpretação. Orlandi (2004a [1996]) esclarece-nos que a noção de

interpretação é mais ampla do que a de leitura, sendo esta uma função daquela. A autora

afirma que “sendo uma função enunciativa da interpretação, a leitura tem sua especificidade

65 Os gregos usaram vários sistemas para pontuar. E foi com eles que a pontuação ensaiou os primeiros passos no terreno gramatical (cf. Rocha, 1997).

120

que se deve ao fato de ter uma formalidade, uma inserção mais direta no social com suas

normas e sua forma histórica” (Orlandi, 2004a [1996]: 88).

Voltando à história da pontuação, Lourenceau (1980) afirma que, durante a Idade

Média e a Renascença nenhum tratado sobre pontuação foi desenvolvido. Os gramáticos

silenciavam-se frente à pontuação. Conta-nos Lorenceau (idem) que esse silêncio foi

interrompido no século XVIII, quando se elaborou um verdadeiro sistema de pontuação que

se tornou a base da pontuação moderna. Se, no século XVI, o número de sinais de pontuação

ainda era reduzido, foi somente no século XIX que tal sistema expandiu-se

significativamente. Lorenceau (idem) sustenta que o aumento dos sinais de pontuação

empregados deu-se em decorrência do aumento do número de leitores, conseqüência do

desenvolvimento da imprensa (leia-se tipografia). Teria sido uma forma, segundo o autor, de

facilitar a leitura visual. Outra mudança apontada: “foi abandonada, no século XIX, uma

concepção oral da pontuação para adotar uma concepção puramente gramatical e sintática”66

(Lorenceau, 1980: 51 - tradução nossa). Para Rocha, o surgimento da imprensa foi um marco

decisivo na história da pontuação, pois

a passagem do manuscrito para a imprensa constitui uma revolução tecnológica sem precedentes na história da humanidade. A descoberta da composição e da impressão com caracteres móveis provocou a estandartização do texto escrito e a massificação da leitura visual. E com elas veio a imposição do uso de signos de pontuação de domínio público. O advento da imprensa trouxe consigo caracteres e marcas inequívocas de pontuação, fazendo aparecer, de forma explícita, uma série de funções até então ao arbítrio dos escribas e pedagogos. Agora não era mais possível ignorar a segmentação, pois que havia uma marca de espaço programada no aparato para imprimir o texto. Assim também os signos de pontuação empregados passaram a ser cunhados em metal, não deixando dúvidas quanto à sua necessidade. Outros recursos gráficos de apresentação e formato também vieram a compor o arsenal utilizado no ato de imprimir em prensa ou em prelo, dando maior legibilidade ao texto (Rocha, 1997: 91-92).

Lorenceau (1980) e Rocha (1997) consideram que, com o desenvolvimento da

tipografia, fez-se necessário uma homogeneização dos sinais de pontuação. Parece-nos que o

controle que se realizara outrora com a leitura oral tornou-se de outra ordem. Com as

mudanças no sistema de produção e aumento da população alfabetizada, o controle da

interpretação de leituras passou a ser realizado também pela pontuação – segmentando a

sintaxe da frase. Tudo parece indicar uma disciplinarização67, em termos foucaultianos, dos

66.“On a donc abondonné au XIXe siècle une conception orale de la ponctuation pour adopter une conception purement grammaticale et syntaxique” (Lorenceau, 1980: 51). 67 Tomamos disciplinarização no escopo das definições de Foucault (1987[1975]). Para o autor, “a disciplina faz ‘funcionar’ um poder relacional que se auto-sustenta por seus próprios mecanismos” (Foucault,1987[1975]: 148). Poderia a pontuação funcionar como um desses mecanismos?

121

sentidos por meio de marcas gráficas. Poderíamos falar em uma política do dizer

implementada pela imprensa?

No século XX, a pontuação é, segundo Gruaz (1980), marcada pela normatização,

resultado da estandardização da escola que teria como meta “estabelecer a unidade nacional”

e da valorização da eloqüência. Retomamos Foucault (1987) que, ao comentar sobre as

instituições disciplinares (sendo a escola uma delas), ressalta a penalidade perpétua como

aquela que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes de tais instituições ao

comparar, diferenciar, hierarquizar, homogeneizar, excluir ou, em uma única palavra,

normalizar. Teria sido a pontuação normalizada pela escola (ou outra instituição) para

funcionar como um mecanismo de vigília dos sentidos? Uma questão a se pensar68.

Do que foi exposto sobre a história da pontuação, podemos dizer que há, grosso modo,

duas principais orientações: pontuação com a função prosódica (atendendo às pausas para

respirar); e a pontuação com função semântica (respondendo à necessidade de clareza e de

lógica). Podemos dizer que os sentidos postos para a pontuação foram construídos ora sob o

controle da “leitura oralizada”, ora sob o da “leitura silenciosa”; ambos, no entanto, apagando

o gesto de interpretação do leitor.

As duas concepções arroladas ao longo da história da pontuação ainda vigoram nos

estudos sobre o tema. Por exemplo, Dacanal (1987) sustenta que a pontuação está inscrita no

âmbito de um sistema geral de escrita. A pontuação, por ser de natureza rudimentar e referir-

se somente à língua escrita, não estaria ligada a pausas para respirar, à entonação, aos sinais

de intensidade ou ao estilo do escritor. Ela estaria ligada intrinsecamente à lógica da língua

como instrumento de transmissão de informações. Seu objetivo seria o de servir apenas e

exclusivamente como elemento auxiliar na indicação dos componentes sintático-semânticos

da frase para que a estrutura lógica da mesma fosse explicitada da maneira mais rigorosa

possível, visando a atingir a perfeita univocidade da informação que se pretende transmitir.

Na perspectiva adotada pelo autor,

todo sistema de pontuação , seja ele de que tipo for, tem por finalidade única e exclusiva fornecer elementos que permitam ao leitor captar e estabelecer da

68 De forma a exemplificar o que estamos considerando como disciplinarização exercida pelos sinais de pontuação, trazemos uma brincadeira que circula em e-mails e em sites da internet. Pede-se para o internauta pontuar a frase “Maria quando corre sua mãe disse ela pega a toalha” utilizando alguns sinais de pontuação. Veja que se brinca com a homofonia do item sua – que tanto pode ser o pronome adjetivo possessivo como o verbo suar, conjugado na terceira pessoa do singular no presente do indicativo. Dependendo da pontuação realizada, este item será definido em uma categoria ou em outra, e um sintagma ou outro será organizado. Voltamos à definição de língua entendida como “sistema sintático passível de jogo” (Pêcheux, 1994: 63). Nesse jogo, a pontuação é a possibilidade de o sujeito recortar a linearidade lingüís tica, produzindo determinados efeitos de sentido.

122

maneira mais rigorosa possível o sentido do texto. Em outras palavras, um sistema de pontuação tem por objetivo últ imo servir - como elemento auxiliar, sempre é bom repetir - para que não haja solução de continuidade, ou dissociação, entre o sentido ou conteúdo que o texto deve expressar, na visão de quem o produz, e o sentido que o mesmo fornece, na perspectiva de quem o lê (Dacanal, 1987: 14 – grifos nossos).

A postura teórica adota por Dacanal difere sobremaneira da nossa. Bastaria ao leitor

captar os sentidos postos no texto, tomado como um receptáculo de conteúdos, para que

tivesse condições de estabelecer o sentido do texto. E o papel da pontuação seria o de

fornecer ao leitor elementos para apreensão de mais rigorosa possível o sentido do texto.

Em nossa perspectiva, que é a discursiva, a pontuação está relaciona à textualização,

ou seja, na linearização da dispersão das posições-sujeito e dos sentidos no discurso. Dessa

forma, a pontuação é um dos mecanismos que promovem a ilusão de coesão, coerência,

abertura e fechamento de um texto bem como a ilusão de um sujeito que se põe como

responsável pelo dizer. Para melhor compreendermos esse mecanismo, traremos, na próxima

seção, as contribuições de trabalhos já desenvolvidos sobre pontuação na perspectiva teórica

da Análise do Discurso.

4.4.1 Pontuação e textualização

Orlandi (2005) trabalha a pontuação como um fato de discurso, considerando-a como

lugar no qual o sujeito interpreta. Em sua análise, destaca dois modos de pontuação, a saber:

(i) na frase (, _); e (ii) para além da frase (. : ...). O primeiro caso abre um espaço em relação

ao interdiscurso, e o segundo, trabalha os limites do impossível em relação a um fora

inacessível.

Para Orlandi (2005), a pontuação suplanta os limites da sintaxe, questão que lhe

permite recusar a noção de frase canônica. A autora propõe deslocar o estudo da pontuação do

domínio da gramática para o domínio do discurso. Assim sendo, considera as marcas da

pontuação como manifestações da incompletude da linguagem que fazem intervir o sujeito e o

sentido.

A autora pauta sua reflexão a partir das noções de discurso e texto. Para Orland i

(2005), a pontuação atesta um duplo trabalho no simbólico: ela seria marca (sinal diacrítico) e

índice de textualização do discurso, ou melhor, um “vestígio de textualização”. Pela

pontuação é possível identificar como um sujeito articula-se a um discurso, em qual formação

discursiva ele se inscreve, comprometendo-se com determinadas filiações de sentidos.

123

A pontuação é entendida como um mecanismo de ajuste na relação discurso/texto, na

qual se manifesta o processo de subjetivação. É importante lembrar que entre o discurso e o

texto há um espaço difuso, uma “decalagem, distância não preenchida” (Orlandi, 2005: 113).

Na instância do imaginário, o sujeito posiciona-se em função-autor que começa, progride e

termina seu texto; é origem de seu dizer, assim como sabe pontuar, ou como diz a autora “o

sujeito trapaceia com a incompletude” (idem : 126). O texto, sob a ilusão da unidade no

interior da incompletude e da dispersão, só pode ser construído desta forma por estar na

instância do imaginário. Em outros termos, a função de textualizar é imaginária, visto que

constrói uma unidade onde só há dispersão.

Como um dos mecanismos de colocação do discurso em texto, a pontuação produz

legibilidade. Para Orlandi, “a pontuação fabrica a normalidade semântica do mundo, a

organização do texto, a aparência de uma relação unívoca entre

pensamento/mundo/linguagem, um sentido para um sujeito” (Orlandi, 2005: 117). De fato, a

autora refere-se ao sujeito pragmático, como aquele que

vive em um mundo semanticamente normal, tem necessidade de administrar essa relação com a incompletude da linguagem: ele tem necessidade de um enunciado que acaba, de um texto com começo, meio, progressão e fim; faz também parte dessa necessidade que o sujeito possa colocar um ponto final, vírgulas, reticências. Um sujeito “semanticamente” normal, que fala (escreve) “normalmente”, “sabe” lidar com a pontuação (Orlandi, 2005: 114).

Como já apresentado em vários outros artigos, Orlandi salienta a incompletude da

linguagem. O que significa dizer que não podemos esgotar os sentidos, uma vez que estes são

trajetos simbólicos e históricos não terminados. Por seu turno, a pontuação é um dos

mecanismos que administra a relação do sujeito à incompletude da linguagem, fazendo

intervir tanto o sujeito como o sent ido.

A língua funciona no equívoco e, ao tentar administrá- lo, a pontuação consiste em um

gesto de interpretação, uma vez que marca divisões de sentidos, separa formações discursivas

de forma a distribuir diferentes posições-sujeito na superfície textual. Dessa forma, Orlandi

considera a pontuação como o lugar em que o sujeito trabalha seus pontos de subjetivação.

Para a autora,

na pontuação, gesto técnico em um processo menos técnico de subjetivação, há confronto de gestos de interpretação, expressão do confronto do simbólico com o político, vestígio de outras formulações possíveis, conformação da política do dizer (idem: 123).

Orlandi (idem) destaca que o sujeito responsável, constituído pelo imaginário

pragmático, que pensa ser completo (capaz de unidade, progressão, fechamento) e reger suas

124

intenções, é impelido a fazer o bom uso da língua e praticar em boa medida a língua

(especificamente, a pontuação) no texto. Ao mesmo tempo, cabe a esse sujeito ajustar a

contradição que o constitui - ele é sujeito à incompletude – na superfície textual. A função-

autor dimensiona, ajusta o discurso no texto e um dos seus mecanismos – gesto técnico – é a

pontuação.

4.4.2 Pontuação: sinais discursivos

Gratham (2009), em um trabalho de análise de reescrituras examinadas pela

perspectiva da pontuação, observa o funcionamento de dois sinais específicos: interrogação e

reticências69, denominados sinais discursivos. A autora não os define como marcas, uma vez

que materializariam, para os leitores, um espaço possível de interpretação. Efetivamente, os

textos que não fazem uso de tais sinais também apresentam marcados os espaços para

interpretação, mas não seriam, segundo Gratham, encontrados diretamente pelo leitor.

Para pensar o ponto de interrogação a partir de uma perspectiva da Análise do

Discurso, Grantham (2009) toma a interrogação como um espaço de significação que introduz

uma “injunção à resposta”. Para a autora, a interrogação representa um excesso, pois o

sujeito-autor, em sua ilusão de estar na origem do dizer, acreditar que a interrogação é um

lugar que fica vago para que o leitor o preencha. Ressalta que não é qualquer sentido que pode

preencher uma lacuna, pois os sentidos são determinados historicamente. Para Grantham, “o

discurso é carregado de pistas que vão construindo os sentidos, que indicam a posição-sujeito

assumida por aquele que se imagina (ilusão!) a origem daquele dizer” (Grantham, 2009 143).

Tomando como base a conceito de silêncio elaborado por Orlandi70 (1993), Grantham

pode afirmar que a interrogação também é um sinal de incompletude do discurso, uma vez

que inscreve um espaço lacunar. A partir do trabalho de Grantham, pode-se observar que a

interrogação remete a um trabalho do sujeito-autor e a resposta, a um trabalho do sujeito-

leitor. Segundo a autora,

trata-se, portanto, de um espaço que o sujeito-autor delimita com clareza, o que revela sua ilusão de que o leitor assume a interpretação apenas quando convidado . Nos demais casos, ilusoriamente, o autor acredita que o espaço de preenchimento dos sentidos lhe pertença com exclusividade, já que tudo já está dito e ao leitor cabe

69 Grantham trabalha o funcionamento discursivo dos pontos de interrogação e exclamação na reescritura de textos literários, que continham esses sinais discursivos, realizadas por alunos de graduação em Letras. 70 Orlandi (2007d [1992]), em trabalho sobre o silêncio (entendido não como vazio, mas como garantia de movimento de sentidos), formula duas formas do silêncio: a) o silêncio fundante; e b) a política do silenciamento. O primeiro indica que todo processo de significação tem relação com o silêncio. O segundo, que o sujeito ao dizer, não diz outros sentidos.

125

apenas "ler", isto é, "decodificar". Esta é a grande ilusão do sujeito-autor: a de controlar os sentidos do texto que produz (Grantham, 2009: 142 – grifos nossos).

A pontuação, observado o funcionamento do ponto de interrogação, joga coma a

ilusão do sujeito-autor ser a origem do seu dizer. Caberia unicamente a ele o espaço de

preenchimento dos sentidos e ao sujeito- leitor caberia a interpretação somente quando

convidado, no caso, a responder a uma indagação. O sujeito-autor esquece que o sujeito- leitor

produz gestos de interpretação mesmo quando não é “convidado” a interpretar.

Para pensar discursivamente as reticências, Grantham sustenta seu dizer na formulação

teórica de Orlandi. Voltando ao seu trabalho, ressaltamos que a autora considera as reticências

como

signos de silêncio, presença de uma ausência anunciada. Um acréscimo radical que abre para tudo, para qualquer coisa. Não é o vazio: elas marcam o lugar de um acréscimo possível, mesmo necessário, livrado à memória, aberto ao efeito-leitor. Presenças que aludem a uma ausência apenas delineada. Evocação, ausência, buraco, falta mostrada pela relação com uma completude impossível mas imaginariamente referível (Orlandi, 2005: 121).

As reticências não são lugares vazios de significação, mas indicam um acréscimo

possível. São marcas de incompletude em uma tessitura que ilusoriamente teria um

fechamento. Ao promover a quebra no fio do discurso, as reticências apontam para um ponto

de abertura para o sujeito- leitor. Sublinhamos que em qualquer texto, com ou sem reticências,

há buracos, ou melhor, pontos de ancoragem passíveis de interpretação do sujeito- leitor.

Voltando às considerações de Grantham (2009), constatamos que a autora salienta, na

análise de seu corpus, que as reticências expressam um silêncio criado por um sujeito-autor e

que significa para um sujeito- leitor. As reticências, pensadas como uma forma de silêncio no

discurso, não precisam ser “traduzidas” em palavras. Quando a autora refere-se ao silêncio,

não está considerando um silêncio absoluto, no qual caberia qualquer sentido. As reticências

são um silêncio que fala, e com esse não-dizer-dizendo que o sujeito- leitor relaciona-se.

As reticências expressam uma “presença-ausência”, fato que leva Grantham a

considerá- las “guias de sentidos”, uma vez que “mesmo não estando dito, há um sentido que

já está lá, sendo dito” (Grantham, 2009: 121), ou seja, na presença-ausência há uma memória

que retorna sobre os sentidos já produzidos. As reticências são sinais de incompletude e,

portanto, um espaço de relação do sujeito com essa incompletude e o silêncio (entendido

como constitutivo da linguagem). No entanto, a autora ressalta que elas não são vazias de

significação, ao contrário, indicam um excesso: “lacunas repletas de significação” (idem :

130). Falar em excesso de significação não resulta que se afirme tratar de indeterminação

126

discursiva. Para a autora, as reticências não abrem espaço para todas as direções. O sujeito-

autor, em um gesto de textualização, aponta para uma direção: “isto que vocês já sabem e eu

não preciso repetir” (idem : 144).

Por meio das análises realizadas, Grantham pode compreender que o emprego das

reticências acaba por desobrigar o sujeito-autor a expor-se e possibilita- lhe não dizer, dizendo.

Desta forma, as reticências abrem para o dizer do outro, do sujeito- leitor. Assim como o ponto

de interrogação, as reticências também são consideradas como um espaço lacunar carregado

de significação. Em se cons iderando os interlocutores como elementos constitutivos do

discurso, a autora concebe as reticências como “o lugar onde esses dois sujeitos se encontram,

nos dois extremos desse processo: o primeiro – o sujeito-autor – na produção do texto e sobre

elipses; o segundo – o sujeito- leitor – na produção da leitura e sobre incisas” (idem : 134).

As reticências apontam para um sujeito- leitor, um lugar possível de entrada no

discurso, um espaço propício à interpretação. Elas sinalizam a incompletude do dizer e

“convidam” o sujeito- leitor a interagir com essa incompletude. Em outras palavras: as

reticências são um espaço discursivo de produção de sentidos

É possível afirmar que os dois trabalhos – Orlandi (2005) e Grantham (2009) –

apresentam muitos pontos de contato. Podemos citar ao menos dois. Ambos apontam o

mecanismo de pontuação de forma a tratar a incompletude da linguagem (o dizer não se

esgota) em contrapartida ao ilusório fechamento do texto e da unidade do sujeito. Outra

questão é que esse mecanismo marca, no texto, um lugar de interpretação para o sujeito- leitor,

um lugar dentre vários outros.

As contribuições ora apresentadas são basilares para a realização de análises que se

seguem. Destacamos que, assim como Grantham (2009), consideramos os sinais de pontuação

como sinais discursivos que abrem um espaço de interpretação, ao mesmo tempo em que

pretendem controlar sentidos.

4.4.3 A pontuação nos editoriais da Ciência Hoje das Crianças

Como já falamos no capítulo 1, a peculiaridade do tratamento dispensado ao corpus,

submete-nos a um constante batimento entre teoria e análise. Esse batimento mobiliza a

especificidade de cada corpus. Nos editoriais da CHC, encontramos regularidades no

funcionamento dos sinais discursivos de interrogação, exclamação, reticências e hífen. Dessas

regularidades, depreendemos três modos de pontuação: a) (? ! ...) da frase, considerando o

127

lugar de interpretação do sujeito-autor; b) (? ...) para além da frase, considerando o lugar de

interpretação do leitor; e c) (-) da palavra que aponta para a relação com o leitor.

Em nosso corpus, podemos verificar dois funcionamentos do sinal discursivo de

interrogação No primeiro, remete-se ao trabalho tanto do autor quanto do leitor: ao autor

cabe perguntar e ao leitor, responder. Vejamos algumas seqüências abaixo:

SD1: Cabelos e unhas não param nunca de crescer. Por que isso acontece? E por que será que os machucados se regeneram tão rapidamente? (CHC – Editorial – n°29 - out./nov./dez., 1992). SD2: que tal montar um foguete bem brasileiro? Enquanto isso, os pesquisadores estão construindo um foguete de verdade, parecido com o seu de papel (CHC – Editorial – n°53 - nov., 1995).

Há, nas seqüências 1 e 2, uma injunção estabelecida pela interrogação. Não há

respostas materializadas na linearidade textual, mas o leitor, em um gesto de interpretação,

pode preencher a lacuna deixada pelo sujeito-autor com vários sentidos, determinados

historicamente.

No entanto, observamos que há também outro funcionamento do ponto de

interrogação. Se nas seqüências 1 e 2 não há materialmente uma resposta, nas demais

seqüências, de forma bastante recorrente, o trabalho do leitor de dar resposta estaria mais

reduzido. Vejamos:

SD3: Pensa que acabou? Claro que não! (CHC – Editorial – n°65 - dez., 1995) SD4: Que tal tentar descobrir como as plantas bebem água? Gostou da idéia? Então, corra para ler a matéria que preparamos sobre este assunto (CHC – Editorial – n°59 - jun., 1996) SD5: Quem é que carrega a casa nas costas e não reclama, é usada para fabricar pentes e armações de óculos e dos ovos que coloca saem filhotinhos encantadores? A resposta está na Galeria (CHC – Editorial – n°63 - out., 1996)

Embora a interrogação abra para a interpretação do leitor, tal abertura parece ser

reduzida com a colocação de “respostas” dadas pelo autor em uma simulação de diálogo.

Expliquemos melhor. Neste suposto diálogo, o autor lança uma pergunta, que por sua

injunção, caberia uma resposta do leitor e, em um terceiro momento, o autor, em resposta à

resposta não-materializada do leitor, retoma o “controle” do dizer. Como podemos perceber,

trata-se de simulacro de diálogo, construído sobre a ilusão da reversibilidade dos

interlocutores.

Nas “respostas do autor” – se podemos assim chamá-las – há um destaque ao novo, ou

seja, aquilo que ainda será apresentado. As respostas do autor, em nossa opinião,

funcionariam como um anúncio do que o leitor encontrará nas próximas páginas da revista,

como se fosse um sumário/índice presente na linearidade do texto.

128

Observando especialmente a SD4, como todo um conjunto de SDs semelhantes,

podemos identificar que o espaço que é dado ao leitor é sempre de uma resposta que

corresponde à antecipação do autor. É por meio do ponto de interrogação, entendido aqui

como pista, que nos é possível compreender o gesto de interpretação do autor. Imerso na

ilusão de unicidade e de origem do dizer, o autor constrói a imagem de um leitor que teria

uma identificação perfeita com seu dizer.

Assim sendo, a resposta “Então, corra para ler a matéria sobre esse assunto”, em SD 4

parece concordar com uma resposta imaginária do leitor: “sim, gostei da idéia”. Há um

enunciado construído sob uma resposta não-materializada, imaginada, que aponta para um

sentido já- lá, posto no interdiscurso. O que seria a voz do leitor é, de fato, silenciada pelo

autor e um sentido ali se imputa. Em outros termos, no espaço de interpretação que seria do

leitor, ecoa um sentido já administrado pelo autor. Verificamos a política do silêncio

produzindo efeitos de sentido.

Em relação às reticências, podemos identificar dois funcionamentos. O primeiro

aponta para a abertura do dizer do outro. Uma abertura já direcionada para determinados

sentidos.

A seqüência abaixo configura como última frase do texto do editorial da revista de

número 57. Nesse fecho (cf. Gallo, 1995), há uma abertura que convida ao leitor interpretá- la.

Eis o lugar do “acréscimo possível” (Orlandi, 2005), marca de incompletude, de abertura, para

algumas direções de sentido.

SD6: No final, é possível que você nem ache tão nojento assim... (CHC – Editorial – n°57 - abril, 1996).

Na seqüência 6, o leitor é convocado a interpretar, a produzir sentidos. Há uma

manifestação da incompletude de dizer do autor que deve ser preenchido pelo leitor. Tal

preenchimento não corresponde a um dizer específico, mas segue determinada direção em

virtude do trabalho da memória. Além desse funcionamento, observamos, em nosso corpus,

que as reticências não funcionam tão somente como excesso, mas como controle de sentidos.

Vejamos as seqüências a seguir:

SD7: Tanta coisa para fazer, e vem aquele sono danado. Por mais que você resista, acaba se rendendo e .... dorme! CHC traz um artigo sobre esse complicado mecanismo (CHC – Editorial – n°53 - nov., 1995) SD8: Geralmente isso acontece quando estamos na praia e aparece aquela onda de surpresa ... É cabelo para um lado, maiô para o outro, um horror! (CHC – Editorial – n°55 - jan./fev., 1996) SD9: Em seguida, prepare-se para viajar ... A primeira parada será uma aventura e tanto na Amazônia para refazermos o roteiro de uma expedição realizada no final do século 18. (CHC – Editorial – n°142 - dez., 2003)

129

Podemos dizer que as reticências funcionam como uma ruptura na linearidade textual,

o que possibilita uma quebra no fio discursivo, sugerindo o desdobramento do sujeito. A

suspensão do discurso do sujeito-autor abre para a interpretação do leitor. No entanto, essa

suspensão é anulada quando o autor, ao retomar o dizer, “traduz” o silêncio das reticências em

palavras. Neste gesto, o sujeito retoma, pela injunção à responsabilidade do dizer, a posição

de autor (imbuído da ilusão de completude).

Consideramos que há um movimento, como uma “elipse às avessas” – entendendo por

elipse a possibilidade da ambigüidade. A lacuna – excesso de significação – proporcionada

pelas reticências é “reduzida” pelo gesto de interpretação do autor, uma vez que este acredita

que o espaço de preenchimento lhe pertença exclusivamente. As reticências acabam

funcionando como uma “diretriz de sentidos” dada pelo autor. Aqui se põe uma diferença

entre a postulação teórica de Grantham e a observação de nossas análises. Para a autora em

questão, as reticências são “guias de sentidos” possíveis, construídos a partir das pistas

deixadas pelo sujeito-autor. De outra forma, falamos em “diretrizes de sentidos”, visto que

algo da lacuna é parcialmente preenchido na materialidade lingüística.

Em direção à análise do terceiro sinal de pontuação, consultamos algumas gramáticas

da língua portuguesa. Nelas, o sinal de exclamação é relacionado à interjeição, ao vocativo, ao

imperativo, à intensidade ou entonação, ou seja, à função prosódica. Pretendemos deslocar,

em uma perspectiva discursiva, esses sentidos já cristalizados pelos instrumentos de

gramaticalização.

Do ponto de vista discursivo, podemos observar dois funcionamentos do ponto de

exclamação em nosso corpus. O primeiro refere-se ao ponto de exclamação como uma força

de interpelação. Para promover esse deslocamento, retomamos Althusser, em seus Aparelhos

Ideológicos do Estado. Consideramos a interpelação um ritua l ideológico e, nas palavras do

próprio autor, a ideologia “

“age” ou “funciona” de tal forma que ela “recruta” sujeito dentre os indivíduos (ela recruta a todos) [...] através desta operação muito precisa que chamamos interpelação , que pode ser entendida como o tipo mais banal de interpelação policial (ou não) cotidiana: “ei, você aí!” (Althusser, 1985[1972]: 96 – grifos do autor).

É dessa força da interpelação que deriva um dos funcionamentos do sinal discursivo

de exclamação. Vejamos algumas seqüências discursivas:

SD10: Ei, você aí! Já parou para pensar como e do que é feito o chão que você está pisando? (CHC – Editorial – n°59 - jun., 1996) SD11: Alô, alô, terráqueos leitores da Ciência Hoje das Crianças! (CHC – Editorial – n°77 - jun., 1998)

130

Longe de ser somente uma aproximação da escrita a uma expressão oral, a qual a

entonação parece veicular um valor exclamativo em “ei, você aí!” ou de função fática em

“alô, alô terráqueos leitores da Ciência Hoje das Crianças!”, observamos que o sina l de

exclamação funciona como um mecanismo de identificação. Encena-se um chamado, no qual

o leitor é convocado a filiar-se à mesma rede de dizeres do autor. O autor funda-se sobre a

imagem daquele que pode conclamar o leitor para uma tomada de posição.

O segundo funcionamento refere-se à ordem do absurdo: extrapola o meramente

lingüístico e aponta para o real71 da significação.

SD12: Não se esqueça de colocar na mala armaduras, espadas e escudos. De repente, teremos que lutar junto com os senhores feudais e até participar das Cruzadas! (CHC – Editorial – n°44 - dez., 1994) SD13: Cuidado! Você está caindo num abismo em grande velocidade e o chão está cada vez mais próximo, mais próximo e ... calma, era só um sonho! (CHC – Editorial – n°70 - jun., 1997) SD14: Pra começar, estamos comemorando o centenário de um artista gráfico que conseguia fazer as maiores loucuras em seus trabalhos - Maurits Cornelis Escher. Imagine que ele conseguiu fazer um desenho no qual teto é parede que também é chão! (CHC – Editorial – n°86 - nov., 1998)

O sinal de exclamação, que se insere na instância imaginária da organização do texto,

ao adotar o humor, aponta para um fora, para um riso, para o absurdo. Afinal, como teto,

parede e chão podem ser iguais? Ou ainda lutar com senhores feudais? O humor possibilita

subverter a ordem de um “mundo semanticamente estabilizado”. O ponto de exclamação, nas

seqüências 12 a 14, indica um riso, a brincadeira. Indica, sobretudo, “a ressignificação do

choque dos dois mundos em um confronto estratégico em um mundo só” (Pfeiffer, 2000: 63).

Parece ser esse um dos pontos possíveis da interpelação ideológica, como também o de seu

esgarçamento. Afinal, todo ritual está sujeito à falha.

Em relação ao último sinal discursivo, encontramos algumas regularidades do uso do

hífen na organização da língua, são elas: unidades que combinam verbo e pronomes

enclíticos; palavras compostas; e separação intersilábica múltipla. Em nosso corpus,

encontramos essas regularidades da língua. Interessa-nos, contudo, para fins de análise,

observar o funcionamento do hífen em separação intersilábica múltipla. Para tal, recortamos

seqüências discursivas que contêm o hífen múltiplo. Vejamos algumas:

SD15: Vamos explicar a você que bicho é d-e-m-o-c-r-a -c-i-a e dar dicas incríveis no Bate-Papo (CHC – Editorial – n°64 - nov., 1996)

71 Em relação à noção de real, em seu livro O discurso: estrutura ou acontecimento , Pêcheux (2001 [1983]) apresenta um desdobramento da acepção lacaniana. O real é entendido como “pontos de impossível”, uma vez que “a gente se depara com ele, dá de encontro com ele, o encontra” (Pêcheux, 2001 [1983]: 29). O autor fala de o “real” em vários sentidos, que são desdobrados em o real da língua, o real do sujeito e o real da história. Em tais desdobramentos estão presentes a incompletude e não-estabilidade lógica. Nas palavras de Pêcheux, “um real constitutivamente estranho à univocidade lógica, e um saber que não se transmite, não se aprende, não se ensina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos”(idem: 43).

131

SD16: Vire algumas páginas e prepare-se para encontrar um bicho meio molenga, que pode ser muito útil na agricultura: a mi-nho-ca! (CHC – Editorial – n°66 – jan./fev., 1996) SD17: Nesse, a gente pode mexe r à vontade: é um museu in-te-ra-ti-vo, lá em São Paulo (CHC – Editorial – n°70 – jun., 1997) SD18: Em seguida, aproveite a companhia dos nossos (sic) mascotes numa adorável investigação sobre tem-pe-ra-tu-ra. (CHC – Editorial – n°146 – maio, 2004)

Ao representar d-e-m-o-c-r-a-c-i-a, mi-nho-ca, in-te-ra-ti-vo, tem-pe-ra-tu-ra, o gesto

de interpretação do sujeito-autor aventa a hipótese de as palavras estarem sendo pronunciadas

sílaba por sílaba, com ênfase, como se o leitor estivesse ouvindo a voz do sujeito-autor como

em um suposto diálogo.

O uso do hífen na separação intersilábica abre espaço para a imagem projetada do

leitor: uma criança que só entende palavras quando pronunciadas paulatinamente. Cria-se a

ilusão da necessidade de se falar pausadamente para a criança, como a única forma de

compreensão de palavras “desconhecidas”.

Parece-nos que o sujeito-autor, ao utilizar os hífens múltiplos para destacar as sílabas

ou letras das palavras, supõe causar um estranhamento por parte do leitor, seja esse

estranhamento originário de humor, surpresa, espanto. No bloco de seqüências, propomos

tomar o hífen em um modo de pontuação na palavra, que abre em seu interior, um espaço em

relação ao outro leitor.

Vejamos detalhadamente as seqüências 15 e 16. Na seqüência 15, a única que

apresenta os hífens múltiplos para separar letra por letra, há apresentação de um novo bicho: a

d-e-m-o-c-r-a-c-i-a. Seria um “bicho-papão”? Cumpre-nos dizer que é o bicho que re-nasce

com o período pós-ditadura militar no Brasil. Ao tomar o termo pelo viés das narrativas

infantis, mas de certa forma, como veremos mais adiante, relacionado ao discurso da biologia,

produz-se um apagamento do político. A direção de sentidos configurada para outro domínio

do saber – afinal, ao dizer bicho o sujeito não diz “regime de governo” – é uma construção

feita pela posição-sujeito que se identifica com o saber das ciências naturais re-significado

pelas narrativas infantis. Podemos dizer que as Ciências Sociais e Humanas parecem ser

significadas pelas Ciências da Natureza.

Na seqüência 16, temos novamente o termo bicho relacionado, desta vez, à mi-nho-ca.

Vejamos que é um bicho meio molenga e útil na agricultura. Um bicho que, por suas

características físicas, pode causar algum estranhamento ou, simplesmente, por ser um

invertebrado que crianças urbanas não têm contato. Tanto na SD15 quanto na SD16, o termo

bicho comparece para apresentar aos leitores a d-e-m-o-c-r-a-c-i-a e a mi-nho-ca,

respectivamente. Ao analisar a paráfrase existente entre bicho democracia e bicho minhoca,

132

podemos observar que há um deslizamento: o discurso das Ciências Naturais sobrepõe o das

Ciências Humanas e Sociais. Veremos mais atentamente essa questão no capítulo 7.

Sabemos que a linearização do discurso na superfície textual não se faz fora de

injunções ideológicas. Dessa forma, o mecanismo de pontuação é um gesto de interpretação

que marca a divisão de sentidos e dos sujeitos (Orlandi, 2005).

Tomamos a pontuação como um vestígio de textualização. Dessa forma, consideramos

que os sinais discursivos permitem observar como o autor articula o texto dos editoriais da

revista com o discurso de divulgação científica para crianças. É um sujeito filiado a um

domínio de saber que fixa o sentido de criança como aquela que brinca com palavras, exclama

suas emoções, pergunta sobre referentes à sua volta. Esse sujeito, ao remeter seu texto à

criança, produz determinados efeitos de pontuação no texto: intensidade, entonação, dúvida.

4.5 Editorial ou carta enigmática?

Na parte inicial do presente capítulo, comentamos sobre editoriais que se configuram

na forma de uma carta enigmática. Interrogamo-nos pelo funcionamento de tais “enigmas”. É

interessante registrar que, dos quase 160 editoriais analisados, somente dois configuram-se

como enigmas, são eles: o 2º editorial e o 16º (marco do início da fase “independente” da

revista). Sabemos que todo discurso abriga o mesmo e o diferente. Se for possível falar,

mesmo que ilusoriamente em homogeneidade, os dois editoriais assinalam, em sua estrutura

organizacional, o que há de mais marcadamente heterogêneo em relação aos demais

editoriais.

133

Fig. 1 – Editorial – CHC – nº 9 Fig. 2 – Editorial – CHC – nº 1672

O editorial, tal como se apresenta, pode ser cons iderado um rébus. Mas o que seria um

rébus? Em consultas a verbetes de dicionários, encontramos:

A) rébus - n substantivo masculino /enigma figurado que consiste em exprimir palavras ou frases por meio de figuras e sinais, cujos nomes produzem quase os mesmos sons que as palavras ou frases representam// et. fr. rébus (1512) 'equívoco, palavra tomada em outro sentido que não o natural', do lat. rebus, abl. pl. de res 'coisa, matéria'; ver re- (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa , 2001). B) rébus - [Do fr. rébus.]S. m. 2 n. 1. O ideograma no estágio em que deixa de significar diretamente o objeto que representa para indicar o fonograma correspondente ao nome desse objeto (Dicionário Aurélio, 1999). C) rébus - sm. 'o ideograma no estágio em que deixa de significar diretamente o objeto que representa para indicar o fonograma correspondente ao nome desse objeto' XX. Do fr. rébus, deriv. do latim rebus (ablativo pl de res) (Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa , 1987).

Nos dois últimos dic ionários, há um sentido comum para rébus atrelado à fase arcaica

da evolução da escrita. No dicionário Houaiss, há também a remissão ao enigma, ao equívoco.

É o sentido de rébus como equívoco, uma palavra tomada por outra, que nos interessa

observar.

Do ponto de vista lingüístico, Kato (2002), ao comentar sobre o aparecimento e

evolução da escrita, refere-se ao rébus como uma técnica de representação de palavras ou

sílabas por pictogramas. Neste caso, utilizam-se apenas os sons dos nomes dos objetos

72 Para melhor visualização dos dois editoriais, reproduzimo -los no anexo 7.

134

representados. Para explicar a passagem do modelo ideográfico ao silabário, a autora retoma

um conhecimento mais “cotidiano” do termo.

Para se entender de que forma passamos do sistema logográfico-silábico para o sistema silábico, é importante examinar antes o fenômeno conhecido como rébus, que é a representação de palavras ou sílabas por pictogramas, utilizando-se apenas os sons dos nomes dos objetos representados. Usa-se muito da técnica do rébus em

jogos de palavras. Tomemos, por exemplo, o pictograma para representar

'cara' e o pictograma para representar 'vela'. Se compusermos com eles a palavra caravela, estaremos usando apenas as propriedades fonéticas e não as semânticas. [...] Não é fácil tentar representar palavras dessa maneira. Mas foi esse o caminho encontrado pelo homem para descobrir a escrita silábica (Kato, 2002: 15).

Também sobre o ponto de vista da lingüística, Massini-Cagliari (1999), em um artigo

sobre a evolução da escrita, considera o rébus como uma escrita pictográfica-fonográfica. A

autora explica que “embora o nome rebus (sic!) não seja familiar, as brincadeiras com este

tipo de escrita podem ser encontradas em muitos livrinhos infantis e suplementos infantis de

jornais, principalmente em ‘cartas enigmáticas’” (Massini-Cagliari,1999: 25- grifos da

autora). A partir das colocações de Massini-Cagliari, seria possível dizer que o rébus é uma

forma atrelada ao mundo infantil?

Não foi somente a lingüística que se debruçou sobre o tema em tela. O tratamento

dispensado ao rébus já ocorrera anteriormente na psicanálise73. Talvez a maior referência ao

rébus encontre-se no livro A interpretação dos sonhos, de Freud. A relação estabelecida entre

rébus e sonho está na elaboração que transforma os “pensamentos oníricos” em um “roteiro

pictográfico” e este é colocado em palavras quando se relata um sonho 74. O sonho relembrado

surge como conteúdo manifesto – produto do relato. Já o conteúdo latente só é desvendado

por meio de trabalho de interpretação. Freud chega a apontar a impossibilidade de solucionar

o enigma do sonho.

Em um estudo sobre a letra e a escrita na psicanálise, Rego (2005), sustentando suas

constatações na obra freudiana, promove uma interpretação para o rébus. Para a autora, sua

base é “fonetizar um signo de palavra deslocando-a da significação como palavra” (Rego,

2005: 81). De forma a alcançar tal definição, a autora busca, em um dicionário da língua

portuguesa, as acepções do termo. São encontradas duas: a primeira descreve o procedimento

73 Em “Função e campo da fala e da linguagem” e em “A instância da letra no inconsciente”, Lacan (1998) retoma a obra de Freud para frisar que as imagens dos sonhos só devem ser retidas pelo seu valor significante. 74 Na referida obra, o sonho é entendido como a realização de um desejo, desejo este recalcado. Os sonhos apresentam dois mecanismos de trabalho: o deslocamento (a possibilidade do desejo se realizar por substitutos) e a condensação.

135

no qual o rébus é sopesado como a origem de fonetização do pictograma 75; a segunda incorre

na definição mais usual do termo – jogo de palavras, charada, enigma a ser decifrado. Muito

embora as lingüistas Kato (2002) e Massini-Cagliari (2000) refiram-se à primeira acepção, de

certa forma, acabam tomando o termo mais cotidiano para explicar o conceito. Mais um caso

de divulgação.

Voltando ao trabalho de Rego (2005), que não se furta em enfatizar a importância do

rébus para a psicanálise, é possível constatar que tal mecanismo não é apenas fundante da

teoria psicanalítica sobre a interpretação do sonho, mas, da interpretação de qualquer

formação do inconsciente. Sua justificativa repousa na operação principal da interpretação:

“causar a exposição de uma outra cadeia” (Rego, 2005: 128) composta por significantes.

Diz-nos Rego (idem) que os enigmas de figuras, que podem ser encontrados em gibis,

almanaques, palavras cruzadas, ou melhor, “livros de entretenimento” de uma forma geral,

são considerados como “falsos enigmas”, pois estão destinados a uma “decifração plena”. Os

“verdadeiros enigmas” (como os sonhos) não podem ser completamente interpretados. A

diversão impressa pelos “falsos enigmas” é garantida exatamente pela possibilidade de

decifração plena, ou seja, eles podem ser totalmente solucionados. Devemos destacar que

decifrar corresponde à leitura decodificação – que se difere da concepção de leitura no interior

da Análise do Discurso.

Em relação aos dois editoriais, observamos que são tecidos com fragmentos de

palavras, com desenhos, números e sinais de notação matemática. É a recombinação das

partes que proporciona a decifração do enigma. E aí se instauraria a satisfação do leitor: des-

cobrir 76 o que lhe fora oferecido como encoberto – superar o enigma. Há um

desmantelamento da linearidade, e o sujeito- leitor é convocado a redefini- la.

O editorial-carta-enigmática é construído pelo sujeito-autor como uma charada, e o

lugar construído para o leitor é o de um decifrador, diga-se decifrador de um texto já

produzido para ser “totalmente decifrado”, de forma que o leitor chegue a uma pré-

determinada linearidade lingüística. Nesse jogo de linguagem, a relação se dá, em um

primeiro momento, entre significantes. Significantes que são segmentados, recombinados e

encaixados em uma operação de subtrair e acrescentar partes. Vale destacar que é uma

atividade que opera com uma linguagem pretensamente precisa, a da matemática. A lua, em

75 Rego considera essa passagem como um “momento crucial da escrita onde o figurativo se despede de seu significado e passa a ser usado como significante sonoro. Sua primeira ocorrência teria sido na escrita sumeriana; neste caso, um pictograma foi usado foneticamente para escrever um nome próprio” (Rego, 2005:100). 76 O des-cobrir pressupõe um modelo de ciência segundo o qual o mundo está posto e cabe à ciência desvendá-lo tão somente.

136

uma “simples” operação de subtração do l e de adição do s, passa a ser sua, a sua revista

Ciência Hoje das Crianças.

Nessa perspectiva, a decifração do editorial ocorreria pelas substituições de partes que,

depois das operações realizadas, tornar-se-ia um todo; transformar-se-ia em UM – um texto

coeso e coerente, aos moldes do sujeito pragmático. Neste movimento de redefinição da

cadeia significante, é concedida ao leitor a função-autor. Cabe a ele encontrar a chave que

decifrará a charada, o enigma. E aqui língua é tomada como um código, pois se supõe que um

único sentido deve preenchê- lo.

Tudo passa como se o sujeito-autor do rébus acreditasse que a matematização da

segmentação e da recombinação dos significantes levasse a uma única possibilidade

sintagmática e, por conseguinte, uma única leitura possível. No entanto, lembramos que “a

língua no ponto de vista da AD é inatingível, nela se apresentam pontos de resistência à

univocidade lógica, resistência às tendências de domesticação dos sentidos” (Mariani, 2007:

66). Com a intervenção de Mariani queremos defender que, embora seja possível solucionar o

enigma dos editoriais, não é possível assegurar que sua compreensão seja homogênea, pois

todo e qualquer texto está sempre exposto ao equívoco da língua. Ressaltamos que o

deciframento do rébus como se tivesse sentido único é parte do funcionamento do discurso da

divulgação científica.

Buscando dar um tratamento discursivo ao editorial-rébus, podemos pensar o texto

produzido por este mecanismo como uma metáfora, ou melhor, como um efeito metafórico,

entendido como “fenômeno semântico produzido por uma substituição contextual para

lembrar que esse ‘deslizamento de sentido’ entre x e y é constitutivo do ‘sentido’ designado

por x e y” (Pêcheux, 1997 [1969]: 96). Pensar o rébus como um efeito metafórico é considerar

a possibilidade de deslocamento de sentido; é pensar que a substituição de uma palavra por

outra, na superfície lingüística, supõe um deslizamento de sentido, pois “falar sobre metáfora,

então, é falar sobre deslocamento e sobre sentido. Os sentidos só existem nas relações de

metáfora” (Mariani, 2007: 69). Cabe salientar que há uma historicidade que trabalha o efeito

metafórico. Só há deslizamento de sentidos porque os sujeitos significam dentro de uma

memória; há um trabalho da historicidade: sentidos produzidos, deslocados, re-significados77

(cf. Orlandi, 2004a).

77 Uma passagem ocorrida durante a testagem do editorial número 9 merece ser relatada. Quase ao final da atividade, uma aluna levantou-se e perguntou à professora: “Esses bonecos são do ‘Criança Esperança’?”. Há aí o trabalho da memória; há historicidade. A criança re-significa em outro lugar, ou melhor, sentidos são produzidos para outra discursividade para além daquela da revista.

137

Pensamos em uma hipótese para o formato de rébus nesses dois editoriais. Mas como

essa hipótese não foi suficiente para compreendermos as relações de deslizamento de

sentidos, também realizamos testagens com leitores78.Vejamos:

Quadro 6: Testagem do editorial da revista Ciência Hoje das Crianças nº 9

78 Realizamos duas testagens em turmas de terceiro ano do Ensino Fundamental. Cada qual foi realizada em uma instituição escolar: uma escola municipal e outra federal, ambas situadas no município do Rio de Janeiro. A testagem 1 encontra-se organizada no anexo 8 e a testagem 2, no anexo 9.

A ciência pode ser um labirinto, quando vista de cima. [caminho] Saindo do lado sul da cidade, podemos chegar ao lado norte por vários caminhos. [arte] [nordeste] Um problema, uma soma , podem ser um labirinto. [uma multiplicação] [uma conta] [uma a mais] [uma soma] [uma 18+17] [caminho] Temos um ponto de partida , e devemos percorrer caminhos até chegar a algum resultado. [uma bolinha de partida] [10 de partida] [círculo] [a televisão] Descubra os labirintos deste número de Ciência Hoje das Crianças. [pessoas] [nome] [nono] [caminhos e labirintos] [quadrado e bola] Um abraço [Uma mão] [Um aperto] [A forte]

138

Quadro 7: Testagem do editorial da revista Ciência Hoje das Crianças nº 16

No editorial-rébus, as operações matemáticas não são garantia de reconstrução de uma

linearidade difusa/dispersa. O rébus é feito “à moda” da linguagem lógica, como se fosse

possível uma relação direta entre palavras e coisas no mundo. Ao ser transformado de

linguagem lógica à linguagem natural, o editorial passa da suposta transparência para ser

tomado como um texto em sua opacidade. Nessa transformação, há sempre um resto

enigmático ou “o umbigo do sonho”, como aponta Freud (1976). Um espaço lacunar, no qual

há sempre um resto que propicia que outros sentidos sejam produzidos.

De forma a compreender o editorial-rébus, levamos ao máximo a proposta pecheutiana

de “uma palavra por outra” – no nosso caso, partes por outras –, que mais do que uma

definição restritiva de metáfora é o ponto de racha, de quebra do ritual ideológico que se dá

no lapso ou no ato falho. Todos os leitores compreendem os editoriais igualmente? Ou

melhor, todos “des-cobrem o que está encoberto”? Por meio das respostas obtidas pelas

testagens, parece-nos que não.

Há algo da ordem do imprevisível, do irrealizável – o real da língua – que se impõe à

matematização do rébus em qualquer ponto de sua cadeia significante e acaba por produzir

sentidos no interior do sem-sentido. Afinal, “a emergência de um dizer outro pode dar-se por

via de associações de sentido e/ou de forma e/ou de som, fazendo o sujeito falar (ou escrever,

ou ler, ou ouvir, ou compreender) aquilo que não esperava falar (ou escrever, ou ler, ou ouvir

ou compreender)” (Mariani, 2007: 68). Ou como expõe Pêcheux:

A Ciência Hoje das Crianças já pode ser encontrada todo mês nas bancas. [japonês] Enquanto seu pai lê a revista dele, você lê a sua. [resombrancelha] [reolhar] Com 32 páginas, a revista tem mais artigos científicos, histórias, jogos e experiências para [8+24] [33] você ler, brincar e aprender em casa e na escola, tudo feito por pesquisadores e artistas [passo em passo] [arte da visão] brasileiros. Se você tem perguntas, idéias, palpites para nos dar, escreva-nos. Sugestões serão bem vindas [lado ondas]

139

as resistências: não entender ou entender errado; não “escutar” as ordens; não repetir as litanias ou repeti-las de modo errôneo, falar quando se exige silêncio; falar sua língua como uma língua estrangeira que se domina mal; mudar, desviar, alterar o sentido das palavras e das frases; tomar os enunciados ao pé da letra; deslocar as regras na sintaxe e desestruturar o léxico jogando com as palavras... (Pêcheux, 1990: 17).

É exatamente na desestruturação do léxico que o rébus joga. Na acepção

dicionarizada, ele é definido como um jogo de palavras opaco que precisa de uma chave para

sua decifração; nos editoriais, é presumido como um jogo contido, controlado pelo autor.

Mas, como qualquer texto, o editorial-rébus tem pontos de ancoramento que abrem para

interpretações.

Com o rébus – “brincadeira” com a cadeia significante – sentidos desfazem-se e novas

relações entre sons e sentidos são realizadas. Podemos dizer que o rébus marca,

paralelamente, um corte na linearidade da cadeia significante e abre para outras. É um

mecanismo que joga com a incompletude da linguagem. Enfim, o rébus materializa a

possibilidade da palavra ser sempre outra.

Gostaríamos de retornar a um ponto. Por que somente dois editoriais foram

produzidos dessa forma? Ou melhor, por que outros editoriais não foram produzidos como

rébus? Não há uma resposta, mas podemos conjecturar. Provavelmente, porque deixavam

pungente uma das assunções sobre as quais o discurso de divulgação científica se constrói, a

saber, a ilusão de que há uma univocidade de sentidos possível nos enunciados científicos,

visto que a ciência é tomada como a “constatação” ou a “descoberta” da verdade. Ilusão

incompatível com a abertura proporcionada pelo rébus, pois sua interpretação se dá nas

bordas e nos limites do sem sentido. O sentido desliza entre a palavra, partes de palavras e o

pictograma, numa tentativa de regular suas derivas incontornáveis. A busca pelo ideal de

completude, de evidência e de transparência talvez tenha rechaçado a configuração do

editorial como rébus79.

Retomando as considerações tecidas neste capítulo, destacamos as principais. Após a

análise das seqüências discursivas, definimos o editorial como um espaço de produção de

sentidos sobre a revista e suas seções. Deslocamos sua caracterização da oposição entre

opinativo e informativo. É um editorial que apresenta a revista e suas seções, porquanto, rede

de dizeres que a constitui, ao mesmo tempo em que cria um efeito de convite. O editorial

79 Na revista, o rébus reaparece no interior da temática sobre história da escrita (CHC , nº48, maio/junho de 1995).

140

organiza dizeres: apresenta a pauta da revista e mantém relação com o que estaria

aparentemente fora: o leitor com seus pedidos.

Podemos dizer que “redes de significantes” (Pêcheux, 1988 [1975]) são constituídas,

nas quais o leitor pode ser preso e, nessa captura, “recebe” como evidente o(s) sentido(s) do

que lê. Os sentidos fixados em tais redes ecoam nas demais seções da revista.

A desconstrução da superfície lingüística das seqüências, ao longo do capítulo,

permitiu-nos analisar a dispersão do sujeito em suas diferentes posições, representada pela

não-pessoa discursiva (NÓS) ou pela quarta-pessoa discursiva.

No editorial, os sinais discursivos de pontuação – um mecanismo de textualização –

separam os sentidos e os sujeitos. Tais sinais propiciam que se estabeleça a ilusão de

completude, uma vez que organizam a linearidade textual e, ao mesmo tempo, são

manifestação da incompletude do dizer. Em nossas análises, pudemos averiguar que uma

mesma marca tipográfica (? ... ! - :) pode funcionar diferentemente em cada discursividade.

No editorial da revista CHC, a pontuação produz efeitos de exaltação, alegria, riso,

configurados em um texto pretensamente dialogado com perguntas e respostas. Na

exclamação, não só se cria um consenso sobre o que se surpreender com a ciência, mas

também com o modo como a revista divulga a ciência. Diga-se um modo que se sustenta em

uma concepção empirista de ciência que apaga o político e o social.

Como enigma, editorial-rébus, sentidos desfazem-se e novas relações entre sons e

sentidos são realizadas. O editorial-rébus parece comprometer a veracidade da ciência, visto

que há sempre algo que sobeja. Talvez por isso tenham sido descartados. O lúdico parece

vazar do editorial da revista.

Em relação à tipologia definida por Orlandi (2003b [1983]), é possível dizer que no

editorial da CHC há tendência ao estancamento da polissemia e à não-reversibilidade.

A análise das seqüências dos editoriais nos indica a imagem de uma revista que

acredita na comunicação aberta com seus leitores; uma revista que não só divulga a ciência,

mas que também ensina ciência aos leitores. Essa imagem sustenta-se no imaginário que se

constrói na contemporaneidade de ser a forma correta de se falar sobre ciência para crianças.

141

CAPÍTULO 5: As imagens produzidas: o leitor e o cientista

Partindo do título do capítulo, teremos como objetivo trabalhar as imagens do leitor e

do cientista construídas pelo divulgador. Para tal, realizaremos análises de algumas

seqüências discursivas recortadas de artigos grandes da revista, das experiências e do encarte

“Dicas do Professor”. Registramos que nossos recortes foram orientados pelo ensejo de

identificar imagens discursivas da posição do outro: leitor (criança e professor) e cientista.

Mobilizamos, fundamentalmente, as noções de formações imaginárias e de efeito-leitor.

5.1 O leitor da Ciência Hoje das Crianças

Segundo Mariani (1998), “a instituição jornalística não funciona sem leitores, e se ela

busca atraí- los como consumidores; há que se considerar que todo jornal noticia para

segmentos determinados da sociedade, produzindo para uma imagem de leitor suposta a tal

segmento” (Mariani, 1998: 57). Podemos afirmar que a revista CHC só funciona por seus

leitores: crianças de um determinado segmento da sociedade, crianças-assinantes, crianças de

escolas públicas e particulares, em suma, crianças- leitoras – potenciais cientistas no futuro. É

uma revista para crianças, mas pressupõe o olhar do adulto: o do pai (compra as revistas no

jornaleiro, faz a assinatura da revista) e do professor (trabalha com a revista na escola).

Na perspectiva teórica tomada neste trabalho, o leitor ocupa papel central em todo e

qualquer discurso. Em relação ao discurso de divulgação científica, tal especificidade torna-se

mais pungente, visto que esse circula no social, ou seja, publiciza a ciência (cf. Orlandi,

2001b).

Como o leitor é construído discursivamente? Não é possível falar do lugar de quem

quer que seja, embora seja possível, pelo mecanismo de antecipação, projetar-se

imaginariamente no lugar em que o outro o espera escutar. O imaginário “guia” o sujeito-

autor que constitui, na textualidade, um leitor virtual que lhe corresponde (Orlandi, 2005). Em

outros termos, a constituição do leitor só se dá na relação com a linguagem e com o autor – no

caso do DDC, o jornalista-divulgador – que ao textualizar o seu dizer, projeta uma imagem do

leitor.

142

A posição projetada discursivamente pelo autor, como salienta Orlandi (1999), produz

um leitor virtual – leitor que faz parte da constituição do texto e é projetado por meio de

formações imaginárias. Por sua vez, o leitor efetivo – aquele que efetivamente lê o texto – ao

produzir um gesto de interpretação, relaciona-se com o leitor virtual. Com efeito, ao ler

qualquer texto, o leitor efetivo interage com o leitor virtual ali construído.

A produção do efeito- leitor se dá a partir dos diferentes gestos de interpretação

produzidos pelo leitor e da relação da materialidade textual com a discursividade. Todavia, a

construção deste efeito80 não ocorre apenas pelos gestos de interpretação de quem o produziu,

mas também pela resistência material da textualidade e pela memória de quem lê. Em outros

termos, constata-se que a construção discursiva do efeito-leitor não se constitui

exclusivamente por uma estratégia do sujeito-autor, mas “pela memória e pela virtualidade da

posição leitor inscrita no texto, porquanto esse traz em si um leitor idealizado, imaginado pelo

autor, e também pelo leitor efetivo com sua memória” (Orlandi, 2005: 67).

No espaço constituído pela relação entre discurso e texto, há uma abertura, uma

distância que não é preenchida. Nessa incompletude, jogam diferentes gestos de interpretação,

possibilitando diferentes leituras. São, portanto, potencialmente vários os efeitos- leitor

produzidos a partir de um texto. A função-autor (ilusão de centralidade, unidade de sentidos)

e o efeito- leitor (unidade imaginária de sentido lido) são funções do sujeito, as quais atestam

que a unidade de construção do discurso é imaginária, existindo efeitos de sentidos dispersos,

descontínuos.

Nas seções a seguir, analisaremos as imagens do leitor da CHC que lhe são produzidas

pelo divulgador. De forma a depreender essas imagens discursivas do leitor, consideraremos

os chamados artigos grandes81, as experiências e, em seguida, o encarte “Dicas do Professor”.

5.2 Análise dos artigos

Em relação à diagramação, os artigos grandes apresentam um parágrafo introdutório, o

corpo do artigo, boxes explicativos, tabelas, fotos e ilustrações. Uma margem é produzida

como se o sujeito tentasse “cercar’ um certo assunto por vários caminhos, na tentativa de

tamponar brechas. Muitas vezes, no corpo do artigo, há remissões a outro espaço enuncia tivo.

Poderíamos falar de um “convite” a um movimento de projeção. O autor imbuído da ilusão de

80 Segundo Orlandi (1999), a noção de efeito supõe a interlocução na construção dos sentidos. 81 Para melhor visualizar a organização gráfica dos artigos, ver anexo 10.

143

administração da leitura, aponta para fora. No entanto, esse movimento não é feito sem um

“monitoramento”.

Em geral, há cerca de dois a três artigos grandes nas revistas da CHC. Um apresenta

menor número de estratégias de interlocução com o autor, estando mais próximo ao discurso

científico. E outros são apresentados em forma de histórias infantis narradas por animais,

crianças em viagens fantásticas, ou por uma simulação de diálogo entre crianças e adultos

(mãe, avó, etc.). Consideramos os artigos grandes uma versão, uma textualização dentro das

várias possíveis.

Observamos que todos os artigos são assinados ou pelo cientista, ou pelo jornalista da

equipe da CHC, ou pelos dois, cientista e jornalista, e há a indicação do vínculo institucional

de cada um. O nome próprio do pesquisador e seu vínculo conferem efeito de autoridade. A

relação que o divulgador instaura com o leitor é de “confiabilidade” (Cf. Foucault, 1982) ao

texto. O nome próprio 82 do pesquisador e sua institucionalização produzem um efeito de

legitimação. A escrita da divulgação científica, tomada pela mídia como um simulacro, ganha

respaldo ao evidenciar o produtor do texto e a instituição a qual está vinculado.

Na textualização da divulgação científica – especificamente nos artigos grandes da

revista CHC –, o nome próprio ganha contornos de legitimação, valoração do dizer.

Deslocando-nos, de certa forma, da proposta foucaultiana, consideramos a valorização do

nome próprio, em nosso corpus, como um efeito produzido pela função-autor, função que,

como já vimos no capítulo 1, instaura-se com seu duplo: o efeito- leitor.

Na busca de compreender a construção desse outro no discurso de divulgação

científica, procedemos à des-superficialização lingüística do material bruto (artigos grandes),

encontramos determinadas regularidades e recortamos seqüências discursivas dos artigos

(parágrafo inicial, corpo dos artigos e boxes) e das experiências.

5.2.1 Para que serve o parágrafo inicial?

Os artigos grandes da revista são iniciados com um parágrafo que tem diagramação

diferenciada do restante do texto. Segundo Encarnação (2001) e Sousa (2000), o parágrafo

inicial é contextualizado, quer dizer, tem como objetivo promover um elo com a temática do

artigo. Afirmam as autoras que os enunciados de tais parágrafos estão relacionados às

82 Na obra de Foucault (1982 [1969]), o nome do autor e o nome próprio possuem características distintas, assim como provocam efeitos diferentes. Sobre o nome próprio, Foucault (idem) destaca que seu principal efeito é “manifestar a instauração de certo conjunto de discursos e referir-se ao estatuto desses discursos no interior de uma sociedade e de uma cultura” (Foucault, 1982 [1969]): 46).

144

atividades cotidianas dos leitores. Para Sousa (2000), não só o parágrafo inicial, mas também

o título, o subtítulo e a figuras devem “captar a atenção do leitor”. Segundo a referida autora,

o título e os subtítulos do artigo devem romper com a linguagem científica, e a abertura dos

textos deve captar o interesse da criança, uma vez que o tema abordado não é necessariamente

de interesse dela. Para tanto, Sousa (2000) ressalta que

questões são levantadas, estimulando sua curiosidade e, conseqüentemente, a leitura. O discurso expresso nesta parte é retórico , isto é, quer convencer a criança a realizar a leitura. Outra forma de incentivar a leitura é a colocação, no primeiro parágrafo de uma frase que chame a atenção e mobilize a criança. Muitas vezes, isso se repete ao longo do texto. Abre-se um diálogo com a criança, que permite urna explicação que leva em conta "o leitor criança ideal" [...]. A abertura e a introdução da matéria, constituintes do sumário, seguem o padrão jornalístico, no qual o leitor é o foco e em que se apresenta o assunto considerado mais relevante (Sousa, 2000: 23 - grifos nossos)

A suposta estratégia de “chamar a atenção do leitor” visa estimular a curiosidade,

incentivar a leitura, frase de efeito para mobilizar a criança. Sousa (idem) ainda fala de um

discurso retórico para convencer a criança a realizar a leitura.

Para compreendermos discursivamente a questão da retórica, retomamos as

considerações de Pfeiffer (2000)83. Nos sentidos produzidos no interior da própria

narratividade sobre retórica, ela seria entendida ora como opinião desqualificada, oposta à

verdade racional – ocupando, portanto, o lugar da não objetividade –, ora como persuasão

demagógica sustentada por interesses pessoais. Seria duplamente desqualificada, pela falta de

objetividade científica ou pela falta de moral. Parece-nos que Sousa retoma o sentido de

persuasão. Mas funcionaria a retórica como uma questão de intenções (convencer a criança) e

finalidades (realizar leitura)? De nossa perspectiva teórica, dizemos que não. Orlandi (2002)

propõe considerar a retórica como construção historicamente determinada de formas de

discurso, distanciando-se da concepção pragmática que a considera como um conjunto de

formas de argumentação84.

Devemos ressaltar que não consideramos a estratégia de “chamar a atenção da

criança” (cf. Sousa, 2000), mas um gesto de argumentação construído pelo divulgador.

Entendemos por gesto de argumentação o modo como “o conjunto de enunciados possíveis de

83 Em sua tese de doutoramento, Pfeiffer teve como objetivo, dentre outros aspectos, “compreender o processo discursivo que vai construindo o lugar da retórica no campo discursivo da opinião em oposição à verdade (científica/racional)” (Pfeiffer, 2000:116). A autora buscou sentidos no interior da própria narratividade sobre a retórica. Em outras palavras, sua análise insidiu sobre aquilo que foi estabelecido como consensual, ou melhor, sentidos dominantes sobre retórica. 84 Do ponto de vista discursivo, a argumentação só pode ser considerada no processo histórico. São distinções instituídas pelas relações entre formações discursivas distintas, porquanto, diferenças ideológicas que fundam determinada argumentação.

145

serem ditos é determinado, em um processo histórico- ideológico, pelo interdiscurso (Pfeiffer,

2000: 83). Tais gestos fundamentam-se no funcionamento do interdiscurso. Vale ressaltar que

Pfeiffer (idem) estabelece uma diferença teórica entre práticas argumentativas do nível da

formulação e do nível da constituição. O sujeito pragmático – intencional – produz sua

argumentação no nível da formulação; trata-se, contudo, de um gesto de descarte e tomada de

enunciados imersos em formações discursivas. Encena-se, no fio discursivo, uma ilusória

liberdade de argumentação do sujeito pragmático.

Iniciamos nossas análises com um artigo sobre combustão publicado no número 7 da

revista. Vejamos a seqüência abaixo:

SD1:“Porque (sic) a panela de ferro não pega fogo e o bombril, que é de ferro, pega? (CHC – Apagar o fogo – n°7, jun., 1988).

No artigo sobre combustão, o primeiro parágrafo é formado pela pergunta posta em

negrito. Encena-se, com a pergunta, um suposto diálogo entre o leitor e o divulgador. Simula-

se uma pergunta feita pelo leitor e o artigo segue apresentando as informações sobre

combustão como se o divulgador a estivesse respondendo. Vejamos as demais seqüências:

SD2: Não sei se você já reparou que criança e rede são coisas que se atraem. Criança que tem rede em casa não pára de balançar. E criança que não tem, quando vê uma, fica doida. A rede vale a emoção de uma viagem aérea, espacial, com a vantagem do retorno certo. (Rede de dormir - CHC, n°29- out./nov./dez., 1992) SD3: Em mercearias e supermercados, podemos encontrar esponjas artificiais. Algumas servem para lavar louça; outras, para remover a sujeira da gente na hora do banho. Qualquer que seja a finalidade, as esponjas das quais estamos falando não são feitas de náilon e imitam estranhos seres que vivem embaixo d’água: as esponjas naturais. (Bicho ou planta? – CHC, n° 103- jun. 2000) SD4: O chute do craque mandando a bola para o gol faz a alegria dos torcedores. O efeito que a bola ganha com a cortada é de deixar o time adversário sem reação. O quique da bola e a cesta marcada de longe às vezes levam o próprio atleta a duvidar do que foi capaz de fazer. E aquela bola salva em cima da linha e devolvida numa raquetada firme, não merece os aplausos do público? Os atletas famosos no futebol, no vôlei, no basquete e no tênis têm em comum uma especial habilidade com a bola. Para realizarem jogadas espetaculares eles se valem da física, muitas vezes, sem saber. Quer ver só? (Bola rolando, ciência em campo – CHC, n° 109- dez. de 2000) SD5: Hoje quanta coisa mudou! Quando o médico nos manda tirar uma radiografia nem ficamos surpresos ao ver a chapa. Tampouco nos preocupamos em saber o que eles são. Você, por exemplo, já se fez essa pergunta? Não? Então, prepare-se ... (Raios X!- CHC , n°145- abril de 2004)

Nas seqüências acima, as atividades cotidianas são trazidas como uma forma de

aproximar o divulgador ao leitor: balançar na rede, ter nojo de bicho, ir ao mercado, lavar

louça, tomar banho.

Na SD2, o leitor é interpelado pelo pronome você. Observamos que há uma distância

entre o leitor e a criança (você já reparou que criança). O leitor não seria a criança? A quem

se refere o pronome você?

146

Há várias maneiras pelas quais o outro pode ser representado, ou melhor, como o

sujeito do discurso pode dirigir-se ao outro. Na SD2, identificamos o pronome você.

Consideramos que VOCÊ marca o outro não nomeado, a quem o discurso se destina. Essa

forma de representar o outro será recorrente no corpus em questão. A marca VOCÊ em SD2,

constrói um referente difuso, sem especificação lexical, acaba por ocasionar ambigüidade no

dizer do sujeito. E cabe perguntar: VOCÊ representaria o leitor criança ou um leitor outro?

Em SD3, o referente discursivo “as esponjas naturais” – “estranhos seres que vivem

em baixo d’água” – são comparadas às esponjas de náilon, comuns no cotidiano das crianças.

Na comparação, cria-se um efeito de mistério em relação a tais seres. Em relação à interação

entre os interlocutores, há uma aproximação entre o divulgador e o leitor (remover a sujeira

da gente).

Em SD4, o mundo dos esportes é chamado a comprovar os fenômenos físicos. As

atividades com bola realizadas por atletas de diferentes modalidades (tênis, futebol, vôlei,

basquete) só são possíveis graças aos fenômenos físicos. Desta forma, a física sai do

laboratório e vai às quadras de esportes para mostrar que até os atletas valem-se dela, mesmo

sem, muitas vezes, conhecê- la. Os leitores são convidados, por meio da pergunta “Quer ver

só?” a constatar que a física está presente nas ações do homem, ou melhor, o homem vale-se

dela.

Já em SD5, o divulgador aproxima o seu dizer ao das crianças. O uso da primeira

pessoa do plural – identificada tanto no pronome pessoal do caso oblíquo (nos) como na

desinência número pessoal (ficamos, preocupamos) – parece promover um movimento de

inclusão do leitor, produzindo, sobretudo, um efeito de envolvimento: divulgador e a criança

são colocados lado a lado. No entanto, esse envolvimento torna-se, ao longo da seqüência, um

direcionamento, pois, ao utilizar um advérbio de negação (tampouco), o divulgador assume

que a criança não demonstrará surpresa ou curiosidade a respeito da radiografia, talvez por ser

esta uma atividade comum na contemporaneidade.

O divulgador, no questionamento que segue, simula um diálogo com o possível leitor,

interpelando-o pelo uso do pronome (você). No diálogo simulado, antecipa a resposta do seu

leitor com uma pergunta negativa (Não?), como se a criança não pudesse interrogar sobre a

descoberta dos raios X. Em seguida, um conselho, de fato, um conselho com “sabor” de

expectativa (prepare-se) é dado pelo divulgador. A imagem de leitor produzida é daquele que

deverá estar pronto para receber o conhecimento que lhe falta; um sujeito que não sabe, como

também não teve curiosidade por saber; contudo, terá oportunidade de aprender com a ajuda

do divulgador.

147

Nos parágrafos introdutórios, não há simetria entre os discursos, o saber cotidiano

precede o saber científico. O parágrafo inicial pode ser considerado um relato, ou uma

narrativa com características ficcionais, na qual há a encenação de uma atividade cotidiana

mais próxima do leitor. Tais parágrafos funcionam como um convite. Cria-se, então, um

efeito de sedução: seduz-se o leitor a iniciar a leitura do artigo de divulgação científica.

Esse efeito de sedução é resultante do gesto de argumentação do divulgador que, no

nível da formulação, formula os enunciados que podem e devem ser ditos à criança, ou

melhor, a uma imagem de criança constituída historicamente.

5.2.2 O corpo do texto

No corpo dos textos, as marcas mais recorrentes também são o uso do pronome você,

o uso da primeira pessoa do plural85, o questionamento – simulando um diálogo – e o

imperativo. O efeito que se produz é de um leitor que precisa ser direcionado frente ao

conhecimento científico. Vejamos as seqüências a seguir:

SD7: E por que a gente vê? Porque as coisas são iluminadas. Sim, iluminadas pela luz que nos é enviada pela estrela que é o carro-chefe de nosso sistema planetário, o Sol. A luz é emitida por corpos em altíssima temperatura, chamados corpos incandescentes. (O jeito que a luz caminha - CHC – nº 35, jan./fev. 1994) SD 8: Pode ser que algum dia eu o encontre, amigo leitor, e como você participou de nosso sonho e sua imagem está armazenada em minha memória, eu pergunte: - Será que já nos vimos antes? Como é mesmo que sua imagem foi parar em minha memória? (CHC – Viajando pela memória - nº45 – jan./fev., 1995) SD 9: Sendo que, desta vez, elas não estão de olho em um torrão de açúcar ou em uma folha bem verdinha: querem é carregar você e levá-lo a descobrir todos os seus segredos! Topa acompanhar esses insetos e conhecer os bastidores do seu castelo? (O mundo curioso das formigas - CHC, n°154- janeiro/fevereiro de 2005)

Nas seqüências acima, a estratégia discursiva para interagir com o leitor também está

centrada nas interrogações. Podemos retornar à análise do ponto de interrogação. Nas

seqüências 8 e 9, identificamos o mesmo funcionamento do ponto de interrogação tal como

aquele depreendido no capítulo 4, funcionamento este em que a interrogação, considerada um

espaço lacunar (cf. Grantham, 2009), remete ao trabalho do sujeito-autor, e a resposta, a um

trabalho do sujeito- leitor. Já na SD7, há um outro funcionamento do ponto de interrogação.

Assim como observado no capítulo sobre os editoriais da revista, nessa seqüência, produz-se

um simulacro da voz do leitor. A resposta (Porque as coisas são iluminadas) não é um

85 Encontrar, em número reduzido, a utilização da primeira pessoa do singular, fato distinto do encontrado nos editoriais.

148

trabalho do sujeito leitor, mas a voz do próprio divulgador que antecipa uma resposta a sua

pergunta. Com esse gesto, ele busca uma unidade de dizeres em seu texto.

O leitor é interpelado pelo vocativo amigo leitor e pelo pronome você. Em SD8, o

leitor é convidado a conhecer o mundo dos insetos, no caso, formigas e seu formigueiro. O

convite em linguagem coloquial (Topa acompanhar) torna-se um movimento para aproximar

o leitor e produz, dessa maneira, um efe ito de sedução. O jogo parafrástico entre descobrir

segredos e os bastidores do seu castelo indica uma transferência de sentidos: do mundo

biológico dos formigueiros, o leitor é convidado, como se fosse personagem de um conto de

fadas, a conhecer o interior de um castelo onde os segredos sobre insetos são guardados. Há

alternância do espaço biológico para o mítico: o discurso da ciência é transferido da área

biológica para o cotidiano infantil do conto de fadas. O divulgador conduz o leitor a uma

comparação de forma a associar o distante mundo da ciência ao mundo da criança. Com isso,

o divulgador antecipa ao leitor uma imagem daquele que somente “entende” o discurso

científico quando relacionadas a contos de fadas. Os fatos da ciência são encenados com

características ficcionais. Vejamos outras seqüências:

SD10: O candiru leva menos de um minuto para ficar com o tubo digestivo repleto de sangue. Ou, se você preferir, com “a barriguinha cheia”. Então, ele abandona o peixe que lhe proporcionou a refeição. Na natureza, quando não está se alimentando, ele costuma se enterrar no lodo do fundo do rio, provavelmente para escapar de predadores. Hábitos semelhantes aos daquele famoso vampiro que, reza a lenda, mora na Transilvânia e também vive escondido, porém, em um caixão ... (O peixe-vampiro – CHC - n°151- outubro de 2004) SD11: Alguns dos peixes que são vítimas do candiru sabem se defender dos seus ataques. Um deles é o tambaqui, que pode medir mais de um metro. Mas não pense que ele apela para alhos, cruzes ou estacas no coração, como os caçadores de vampiros. A sua estratégia é muito mais simples: tentar, a todo custo, impedir a entrada do candiru. Mas como fazer isso, se esse peixe é pequeno, fino e escorregadio, um verdadeiro mestre na arte de se enfiar em frestas? O tambaqui, que não é bobo, força uma estrutura [...]. (O peixe-vampiro - CHC, n°151- outubro de 2004)

Em SD10, o divulgador explica a digestão do candiru. Para tal, faz uso de uma

comparação: o termo científico (tubo digestivo) é comparado à expressão cotidiana

(“barriguinha cheia”). Observa-se que a conjunção ou produz uma pretensa equivalência

entre o discurso científico e o cotidiano 86. É interessante notar que o divulgador acaba por

responsabilizar o leitor por esse dizer que se apresenta como um discurso relatado em

modalidade direta, como se fosse a voz do leitor. Antecipa-se a imagem de um leitor que

“prefere” (se você preferir) utilizar expressões infantilizadas. Por meio da estratégia de

interpelação do leitor (uso do pronome você), o divulgador cria um efeito de isenção: não se

responsabiliza pela utilização da expressão cotidiana. Seria, portanto, uma fala do leitor. 86 Pode-se dizer que a expressão “barriguinha cheia”, de uso familiar (mais especificamente materno), é empregada para indicar que a criança comeu toda sua refeição.

149

Dessa forma, a passagem de um discurso a outro estaria, ilusoriamente, a cargo deste último e

não do gesto de argumentação do sujeito-divulgador.

Novamente identificamos a alternância dos espaços biológico e ficciona l. Desta vez,

há a inclusão de um cenário de “filme de terror”. O hábito do peixe é comparado ao do

lendário Conde Drácula, uma vez que os dois vivem escondidos. No entanto, cada qual

pertencendo a um mundo: o candiru enterrado no lodo do fundo do rio e o Drácula escondido

em um caixão. O efeito que se produz é um paralelismo entre o mundo biológico e o mundo

da ficção.

No entanto, a conjunção porém indica a oposição entre o esconderijo dos dois.

Ressaltamos que essa marca assinala a oposição entre duas ordens mobilizadas, a saber: a da

ciência e a do cotidiano.

Na SD11, após uma rápida exposição sobre peixes que se defendem do candiru, o

divulgador inclui a participação do leitor. Essa participação se dá pelo mecanismo de

antecipação, pois o divulgador constrói a imagem de leitor como aquele que, inserido em um

mundo ficcional, pensa que a defesa do tambaqui é a mesma utilizada por caçadores de

vampiros.

A utilização da conjunção adversativa mas e do imperativo negativo não pense indica

a refutação de um suposto pensamento. Em outros termos, o divulgador assume qual é o

pensamento do leitor (apela para alhos, cruzes ou estacas no coração, como os caçadores de

vampiros) e recusa-o, rejeita-o. Se do ponto de vista lingüístico a conjunção indica um

contraste, uma oposição, do ponto de vista discursivo a coordenativa “mas” aponta para a

presença de outros discursos não autorizados.

Antes de continuar nossa análise é preciso observar que a conjunção mas aponta para

um confronto entre as ordens da ciência e do cotidiano e que o advérbio não nega uma delas.

Cumpre destacar que não se trata de uma negação polêmica, tal como pensada na teoria

enunciativa desenvolvida por Ducrot (1987), uma vez que, do ponto de vista enunciativo,

estipula-se que, em um mesmo enunciado, pontos de vista antagônicos de dois enunciadores

sejam expressos. Assim, do enunciado negativo, manifesta-se o afirmativo implícito. De

forma a deslocar essa noção para a perspectiva discursiva, Indursky (1990) propõe a noção

negação polêmica discursiva. Para a autora, dá-se, através dessa negação, o “confronto entre

duas redes antagônicas e o enunciado negativo refuta a que se lhe opõe ideologicamente”

(Indursky, 1990: 121).

No domínio de saber no qual o divulgador se inscreve, é legítimo não pensar que o

peixe apele para alhos, cruzes, etc. Supõe-se que o fato de acreditar em crendices deva ser

150

coligido na posição do leitor. Assim, a conjunção adversativa e o advérbio de negação

funcionam, na seqüência, como forma de legitimar o discurso da ciência e desconsiderar o

discurso do cotidiano.

Um outro movimento ocorre na seqüência: há a simulação de um diálogo. O

divulgador dirige-se diretamente ao leitor com um questionamento: “Mas como fazer isso, se

esse peixe é pequeno, fino e escorregadio, um verdadeiro mestre na arte de se enfiar em

frestas?”. Por meio dessa pergunta, o leitor é interpelado a sair do mundo ficcional e

encontrar, com o auxílio do divulgador, a resposta que deve ser legitimada.

A pergunta supostamente abriria uma direção para a construção do referente

discursivo “tambaqui”. Dois aspectos merecem destaque. Em relação à produção dos

sentidos, a resposta dada pelo divulgador não abre espaço para a interpretação do leitor. Como

o referente discursivo está oculto pelo dizer do divulgador, a polissemia é contida. Em relação

à interação entre os interlocutores, não é construído um espaço para a resposta do leitor.

Explicando melhor, o simulacro de diálogo estanca a possibilidade de reversibilidade.

A partir da análise dessas seqüências discursivas, foi possível constatar que a

construção do efeito- leitor é recorrente. O divulgador estabelece “contato” com seu leitor,

principalmente, por meio da interpelação (você) e pela simulação de diálogo. Convida-o a

participar, a ler. No entanto, a direção dos sentidos é promovida de forma orientada pelo

divulgador, como em uma visita guiada pelos corredores de um museu. O divulgador projeta-

se, ao menos nessas seqüências, como um administrador de sentidos (cuidando, ilusoriamente,

para que os sentidos não venham a deslizar e produzir efeitos outros), e o leitor é projetado

como aquele que pode ser administrado. Podemos dizer, retomando Pêcheux, que não se cria,

nos artigos grandes, “um espaço polêmico das maneiras de ler” (Pêcheux, 1994: 57).

O divulgador posic iona-se, representado por NÓS 287, próximo ao leitor, contudo,

constata-se uma assimetria. O divulgador sustenta a imagem de mediador do saber e projeta a

imagem de um leitor que, por viver cercado pelo mundo-de-faz-de-conta, precisa ter sua

curiosidade aguçada para aprimorar seus conhecimentos científicos.

Retornando às considerações de Sousa (2000) e Encarnação (2001), as autoras

estipulam a “adaptação da linguagem” como uma das etapas da produção editorial da revista.

Tal adaptação corresponderia a passar do texto-fonte (ciência) ao texto-segundo (cotidiano),

utilizando-se, para tal, analogias e comparações. Essa postura assenta-se na concepção

pragmática da transparência da linguagem, que remete uma palavra a um sentido literal. O uso

87 Em Nós 2, como analisado no capítulo 4, o movimento de inclusão do leitor produz um efeito de aproximação.

151

de figuras de linguagem (por exemplo, o uso de analogias) é requerido, por ser o sentido de

uma palavra considerado de difícil compreensão por parte dos leitores. Assim sendo,

antecipa-se uma imagem do leitor que carrega uma falta a ser (desde sempre) preenchida por

informações veiculadas pela divulgação científica.

A seguir apresentamos mais duas seqüências:

SD12: Preveni-la é abrir uma espécie de caderneta de poupança para o futuro, para que o solo e a água continuem a ser o que sempre foram: recursos naturais renováveis (CHC – O controle da erosão – nº 25 – dez., 1991/jan.,1992) SD13: Algumas pessoas perguntam como se pode ter certeza de que a teoria está certa, já que, em geral, não podemos perceber as mudanças nas estrelas. Felizmente, podemos observar muitas estrelas, com várias idades. É como se um extraterrestre visitasse a Terra por um dia apenas: ele não poderia ver as pessoas crescendo, já que em um dia não crescemos muito, mas poderia observar que existem bebês, crianças, adolescentes, adultos e velhos. Com um pouco de imaginação , ele poderia entender como é a vida dos seres humanos (CHC – O futuro do Sol- nº 46 – mar., 1995)

Em SD12, o divulgador compara a prevenção da erosão a uma caderneta de

poupança, a qual terá seus rendimentos no futuro, rendimentos que se referem à manutenção

de recursos no futuro. Podemos dizer que o “uso de analogias” participa do processo de

evidências do sentido como sendo literal e da linguagem como sendo transparente. O

divulgador acredita ter controle sobre o que diz e dos sentidos que cada palavra poderia

evocar. Podemos dizer que as analogias marcam, no fio do discurso, a passagem de uma

ordem de discurso a outra. Não se trata de tradução, mas de efeito de tradução. É a “costura

visível” entre os discursos da ciência, do cotidiano, da mídia e do ensino; uma “costura”

constitutiva da textualização do DDC.

Já em SD13, compara-se a incerteza de algumas pessoas sobre a teoria à visita de um

extraterrestre. Há a colocação da imaginação como um componente da construção da teoria.

Em uma paráfrase teríamos:

Com um pouco de imaginação, ele [extraterrestre] poderia entender como é a vida dos

seres humanos.

Com um pouco de imaginação, ele [cientista] poderia entender como é a vida [das

estrelas].

Teríamos aí uma falha no ritual de identificação da ciência em seus patamares de

objetividade e veracidade? A imaginação também seria um elemento na constituição das

teorias? Parece-nos que é uma falha que toca a “presença do irracional na ciência” (Japiassu,

1991: 189).

Voltando às analogias, ao que nos parece, elas não funcionam como comparação entre

as duas ordens do saber; há uma hiância na equiparação das duas, algo que é da ordem da

152

impossível. Poderíamos dizer que funcionam sob o modo do faz-de-conta (Orlandi, 1990).

Nesse modo, que é imaginário, o sujeito-divulgador, por estar sob o efeito da ilusão subjetiva

e referencial, já tem uma posição discursiva determinada para si e para o outro e é afetado

pelos sentidos cristalizados.

Ao longo das análises, identificamos um movimento que marca o lugar do divulgador

e o do leitor. De fato, pudemos observar que são as posições que se entrecruzam nas

seqüências. Também observando essa continua movimentação entre a ordem da ciência e a

ordem do cotidiano.

É importante ressaltar que Grigoletto (2007) definiu, em seu corpus, posições-sujeito

que funcionam de forma imbricada. São posições depreendidas a partir da inscrição do

jornalista no lugar discursivo de jornalista científico. Em uma delas, a posição de

incorporação do discurso científico, o divulgador enuncia como se fosse o cientista, apagando

as marcas desse discurso. De acordo com a autora, “o discurso-outro, nesse caso o da ciência,

é diluído, incorporado ao discurso-um – o discurso de divulgação científica, e as fronteiras

entre a ciência e a mídia deixam de ser demarcadas pelo sujeito do discurso. Eis o fenômeno

da simulação” (Grigoletto, 2007: 132). Sob a condição de porta-voz da cientista, surge o

simulacro dessa voz.

Grigoletto (2007) propõe outra posição: a de aderência ao discurso cotidiano. Essa

posição não é marcada pelo total apagamento do discurso do cotidiano, ou seja, “restam

sempre alguns vestígios do discurso-outro, o qual, de alguma maneira, está marcado no fio do

discurso” (idem: 132). O efeito que se produz, segundo Grigoletto, é de aproximação com o

leitor.

Podemos falar de uma aproximação da imagem de um leitor que parece viver em um

mundo de fantasia e imaginação, onde está cercado de seres místicos, extraterrestres, heróis e

fadas.

Em nosso corpus, há marcadamente o imbricamento de posições, visto ocorrer o

movimento de ir e vir entre uma e outra ordem. Nos artigos longos, há proposições

introduzidas pelas formas lingüísticas “todo mundo sabe que” ou “todo mundo

conhece/aprendeu/ouviu falar”. A seguir apresentamos algumas seqüências:

SD14: Todo mundo conhece a famosa lei da gravidade: “todos os corpos da superfície terrestre são atraídos para o centro da Terra” (CHC – Erosão – n°15, dez., 1989). SD15: Já falamos de atmosfera. Todo mundo sabe o que é: o meio gasoso que existe em torno da gente, em torno de nosso planeta. (CHC – Buraco na camada de ozônio – nº28, jul./ ago./ set., 1992) SD16: Todo mundo sabe que a chuva se produz pela formação de gotas nas nuvens (CHC – Chuva ácida – out./nov./dez., 1992)

153

SD17: Como todo mundo já aprendeu, o morcego é um mamífero que, como os outros, tem o corpo coberto de pêlos e amamenta seus filhotes. (CHC – Morcegos na cidade – jul.- out., 1993) SD18: Todo mundo já ouviu falar em vampiros. Realmente há morcegos que se alimentam do sangue de outros ma míferos. (CHC – Morcegos na cidade – jul.- out., 1993)

Nas seqüências acima, aquilo que é conhecido por todos: a famosa lei da gravidade;

meio gasoso que existe em torno da gente; a chuva é produzida pela formação de gotas nas

nuvens; o morcego é um mamífero, sustenta o próprio discurso da ciência.

Pêcheux (1988 [1975]), ao referir-se ao interdiscurso, reporta-nos aos “conteúdos de

pensamento” de um “Sujeito (universal) da Ideologia”, o qual equivale, pelo funcionamento

ideológico, ao que é pressuposto como sendo conhecido e aceito por todos. Por isso que “todo

mundo sabe que”, pois “a ideologia fornece as evidências pelas quais ‘todo mundo sabe’ o

que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc” (idem : 167). O

sujeito reduplicado pelo funcionamento ideológico insere-se na formação discursiva com a

qual se identifica.

A fundamental característica do funcionamento do pré-construído (idem: 102) é a

separação entre o pensamento e o objeto do pensamento, com a pré-existência deste último. O

pré-construído corresponde ao sempre-já da interpelação ideológica, que impõe a realidade e

seu sentido sob forma da universalidade. Pêcheux apresenta essa forma de funcionamento do

interdiscurso e aquilo a que ele remete, ao afirmar que

o pré-construído, tal como o redefinimos, remete simultaneamente “àquilo que todo mundo sabe”, isto é, aos conteúdos de pensamento do “sujeito universal” suporte da identificação e àquilo que todo mundo, em uma “situação” dada, pode ser e entender, sob a forma das evidências do “contexto situacional”. (Pêcheux, 1988 [1975]: 171).

O dizer materializa-se na tensão entre o já-dito do interdiscurso, como o que significa

antes em outro lugar e retorna pelo efeito do discurso transverso, re- inscrevendo o dizer no

intradiscurso (eixo da formulação). O indício do interdiscurso no intradiscurso não serve para

indicar sua determinação, pois, de fato, reforça o processo de esquecimento em que a

ideologia “simula o interdiscurso no intradiscurso, de modo que o interdiscurso aparece como

o puro ‘já-dito’ do intradiscurso” (idem : 167). O sujeito se esquece das determinações

históricas, ou melhor, de seu assujeitamento ideológico e, em conseqüência, de seu

assujeitamento à língua.

O retorno do saber no pensamento, ao qual podemos ligar o efeito de sustentação

próprio do discurso da ciência, aponta igualmente para a possibilidade de simular um

pensamento. Nesse retorno, as rupturas científicas são deixadas de lado, como se o

conhecimento fosse universal e, em conseqüência, verdadeiro. Em “todo mundo conhece/já

154

sabe”, é preciso interrogar: “todo mundo” quem? Os cientistas, os divulgadores, os leitores? A

generalização de “todo mundo” produz um efeito de indeterminação e apagamento de

diferenças sociais e culturais.

Podemos dizer que a posição, enunciada a partir do lugar do divulgador, que se

relaciona com o retorno do pensamento, é uma posição de ancoragem no discurso científico.

Diferentemente da posição de incorporação do discurso científico, não se apaga a voz do

cientista, não simula ser porta-voz do cientista, o divulgador ancora-se na universalização e na

generalização de um conhecimento supostamente reconhecido, sabido por todos.

Tal posição de ancoragem produz um efeito de universalidade do pensamento

científico, no qual o leitor “recebe como evidente” (Pêcheux, 1988 [1975]: 157) as leis, a

atmosfera, que o morcego é mamífero, etc.

5.2.3 Os boxes

De forma geral, os boxes são a parte do artigo em que o divulgador introduz

ilustrações, gráficos, comentários com diagramação diferenciada do restante do texto. Assim

como a pontuação, podemos dizer que o boxe é um mecanismo de organização textual da

dispersão do discurso e dos sujeitos.

Observamos que, na revista CHC, a primeira vez em que se utiliza um boxe é um

“artigo grande” da revista de número 7 (junho de 1988). Inicialmente, havia um ou dois boxes

ao final do texto, posteriormente, os boxes foram configurados em quase toda extensão dos

artigos. Se no artigo “Apagar o fogo” (CHC-nº7), somente um boxe, intitulado “Extintor de

incêndio”, aparece no final do artigo, no número 19, de dezembro de 1990, vários boxes

configuram o artigo “Veículos submarinos”.

Nunes (2001), em seu artigo “Discurso de divulgação: a descoberta entre ciência e

não-ciência”, constata que os boxes são “espaços que se abrem na diagramação do texto para

se introduzirem comentários gráficos, ilustrações” (Nunes, 2001: 38). Os boxes ao

“produzirem um desligamento da linearidade do texto e apresentam propriedades enunciativas

específicas” (idem). No material analisado pelo autor, encontra-se nos boxes certa

“objetividade” da ciência. Seria como se “uma voz anônima, que não a do divulgador, falasse

diretamente, provocando nos leitores a satisfação do contato efetivo com a ciência, sem

mediação alguma” (ibidem : 39).

155

Acreditamos que o desligamento que ocorre no fio do discurso dos artigos grandes da

revista é um efeito da textualização do discurso de divulgação científica. Tal efeito indica um

fora, um outro espaço de enunciação.

Observamos, em nosso corpus, uma tendência ao desligamento da linearidade. Mas

como esse desligamento funciona? Quais efeitos de sentido ele produz?

Nas seqüências recortadas do corpo dos artigos “Pedaços do mar” e ‘Raios X!”, assim

como na SD1 (recortada do artigo “Veículos Submarinos”, o divulgador aponta para um fora,

ou melhor, abre, por meio ao recurso dos parênteses, para um outro espaço de enunciação.

SD1: Seis anos depois o filho dele, Jacques, chegou a 10906 metros de profundidade no oceano Pacífico (veja mais adiante como o batiscafo subia e descia, usando as leis físicas). (Veículos submarinos- CHC, n° 19 – dez., 1990) SD2: Delas vem grande parte do sal usado na comida (veja o boxe “Da lagoa apara a panela”) (Pedaços de mar- CHC , n° 59 – jun., 1996) SD3: Hoje, os raios X estão presentes em aeroportos, indústrias, laboratórios de pesquisa (leia Raios X, ao trabalho!)... Mas, sem dúvida, sua aplicação mais conhecida é na medicina. Então, vamos descobrir como, usando-os, dá para fotografar os ossos?! (Raios X!- CHC , n°145- abril, 2004)

A leitura dos boxes é indicada pelo verbo ver ou ler conjugado no imperativo. Em

SD1, o leitor deverá ver mais adiante o mecanismo de descida e subida do batiscafo que só

ocorre pelas leis da física. Tudo se passa como se as leis da física (ou a produção do sal) não

pudessem ser inseridas no corpo do texto, mas em um espaço especializado. Em SD3, o verbo

no modo imperativo (leia) busca direcionar o movimento da leitura. O leitor deverá ler, para

melhor entendimento daquele trecho, o boxe intitulado Raios X, ao Trabalho! O

questionamento (vamos descobrir como, usando-os, dá para fotografar os ossos?) acaba por

produzir um efeito de convite: maneira de convidar o leitor a participar de uma descoberta. A

imagem de leitor que se produz é daquele que precisa ser direcionado frente ao conhecimento

científico, ou seja, aquele que tem sua aprendizagem guiada.

Ao trabalhar o desligamento da linearidade que aponta para os boxes, voltamos à

questão: como eles funcionam? Vejamos seqüências recortadas dos boxes dos artigos grandes.

SD7: Para sustentar o peso de seu corpo, as esponjas produzem duas estruturas que funcionam como esqueleto. Uma delas é a espongina , substância elástica e resistente. A outra é mais dura e chama-se espícula. (Bicho ou planta? - CHC – n° 103, ) SD8: Em primeiro lugar, para atingir grandes profundidades, o batiscafo deve ser capaz de resistir às altas pressões aí encontradas. A pressão exercida sobre um objeto mergulhado em um líquido é proporcional à profundidade em que ele se encontra e à densidade do líquido . Quer dizer: quanto mais no fundo o objeto estiver, maior é a pressão que ele recebe. (Veículos submarinos- CHC, n° 19 – dez., 1990) SD9: Os raios X são, em geral, usados na análise de materiais [...]. Na ciência, estão presentes em vários campos, até mesmo no cotidiano dos radioastrônomos. Como as estrelas emitem raios X, esses profissionais os analisam para definir, por exemplo, a idade desses astros. (Raios X!- CHC, n°145- abril, 2004)

156

Nas seqüências acima, depreendemos a posição-sujeito definida por Grigoletto (2005,

2007) como “posição de identificação com o saber da ciência”. Como já vimos no capítulo 3,

nessa posição, o sujeito-divulgador simula, ao mesmo tempo, seu apagamento e o

esvaziamento da forma-sujeito, pois ele cede seu lugar a um a referência externa. Nas SDs 7 a

9, há uma estrutura sintática próxima ao modo de organização do discurso científico: a) a

ênfase recai no objeto da pesquisa e não no pesquisador (as esponjas produzem; Os raios X

são; as estrelas emitem); b) estrutura que descreve um fenômeno científico (A pressão

exercida sobre um objeto mergulhado em um líquido é proporcional à profundidade em

que ele se encontra e à densidade do líquido); uso de expressões científicas (espongina;

espícula). Não há, no entanto, comparações entre a expressão científica com a ficção ou

contos de fadas, tal como vimos nos corpo dos artigos grandes.

Na seqüência 7, ocorreria uma representação mais próxima do discurso da ciência.

Podemos dizer que o uso dos os nomes científicos das estruturas produzidas pelas esponjas –

espongina e espícula – cria a ilusão de que o próprio cientista estaria falando naquele

quadro88, produzindo um efeito de “objetividade da ciência” (Nunes, 2001: 38). Já em SD8 e

SD9, o desligamento da linearidade aponta para outras regiões de significação. O artigo longo

aborda o tema dos raios X levando em consideração seu uso médico, mas no boxe o leitor

poderá encontrar outros usos, outras regiões de significação.

Observamos, nas seqüências acima, pistas de heterogeneidade mostrada marcada no

fio do discurso. Levando-se em consideração a proposta teórica de Authier-Revuz (1998),

haveria uma justaposição entre os dois discursos, o científico e o cotidiano. As duas estariam

ligadas por um termo metalingüístico (quer dizer ou por exemplo) que as colocaria em

equivalência. Podemos dizer que, do ponto de vista discursivo, os chamados termos

metalingüísticos são formas de inscrição do discurso outro, mas que não têm um valor em si.

Na seqüência 8, a expressão quer dizer marca a passagem do discurso da ciência ao do

cotidiano. Vale destacar que esse é um gesto de interpretação do divulgador.

Compreendemos o boxe como um mecanismo de textualização que tende a instituir e,

ao mesmo tempo, limitar um espaço enunciativo outro. Podemos dizer que o boxe instaura

uma tensão, uma vez que é um mecanismo de agrupamento e que também revela a dispersão

do discurso e do sujeito.

Como sintoma da abertura existente na textualização, o boxe des-centraliza o texto. Ou

melhor, margeia com comentários a suposta unidade do texto. Tomando emprestado de

88 Nos quadros dos boxes, as cores de fundo e das letras são diferentes daquela do restante do artigo.

157

Foucault a definição de comentário como “dizer enfim o que estava articulado

silenciosamente no texto primeiro” (Foucault, 2001 [1971]: 24 – grifos do autor), podemos

dizer que, nos boxes, o sujeito divulgador apropria-se da voz do cientista e, portanto, coloca-

se em outra posição. Nos boxes, o sujeito-divulgador não reafirma o que foi dito, por mera

repetição, mas comenta o que foi não dito.

Verificamos que o desligamento da linearidade também ocorre em relação aos artigos

anteriores dos exemplares precedentes, ou seja, não se aponta apenas para boxes, mas para

textos publicados em números anteriores da revista.

SD4: Do mesmo modo que as algas de água doce, que você conheceu na Ciência Hoje das Crianças número 11, as algas marinhas são muito úteis para o homem. (Algas do mar – CHC – n°16, set., 1990). SD5: Quando esse “exército” detecta algo estranho no corpo, produz “superarmas”, chamadas anticorpos, que ficam no sangue e são capazes de nos defender dos vírus e bactérias e de outros causadores de doenças (Para saber mais sobre o sistema imunológico, leia Ciência Hoje das Crianças nº 17) (Pesquisando a AIDS - CHC – n°, 48, maio/jun., 1995). SD6: Foi assim que o convidei para uma viagem ao mundo do cérebro, que é um órgão que fica dentro de nossa cabeça (se você quiser saber mais sobre o cérebro, leia Ciência Hoje das Crianças nº19). (Viajando pela memória – CHC – n°45, set., 1995).

Aquilo que já foi editado na CHC e pode ser retomado pelos leitores. Um movimento

de retorno ao já-apresentado e que pode ser recuperado, por qualquer motivo: ou porque o

leitor já conheceu em um número anterior ou por ainda não saber e assim poder saber mais.

O funcionamento desse desligamento para uma edição anterior projeta um leitor que, por já

ter conhecido pela CHC ou por ainda não saber, pode encontrar na revista um ponto de

ancoragem para rememorações ou para nova “aprendizagem”. Além disso, podemos dizer que

projeta a imagem de uma revista que pode ser colecionada, montada como uma enciclopédia.

Embora possamos encontrar partes de revista destinadas à sugestão de experiências89,

observamos que os boxes também são espaços destinados para esse fim. As experiências são

utilizadas como metodologia para o ensino de ciências naturais, físicas e biológicas. No

campo da metodologia de ensino de ciências, as experiências têm como objetivo transformar

o conhecimento cotidiano da criança em conhecimento científico. Além disso, buscam

desenvolver habilidades como: observação; manipulação de materiais; levantamento de

hipóteses/problemas; reconhecimento de causa de um fenômeno; e a comunicação dos

89 Ao longo dos vinte anos de publicação da revista, encontramos experiências no interior de alguns artigos grandes, principalmente nos boxes, ou em seção específica intitulada “Experiências”. Em geral, seguem uma mesma estrutura: há um parágrafo introdutório; lista de material necessário; orientação passo a passo das etapas; explicação da solução ou pedido que o leitor envie, por escrito, a explicação da solução (quando, pretensamente, o entendimento da solução não depende de uma “explicação científica”). As experiências podem ser produzidas como pequenas histórias, contadas por crianças, animais, ou podem simular um diálogo entre criança e adulto/professor. Em algumas, a supervisão de um adulto é requerida.

158

resultados e/ou os processos de soluções adotadas. Observamos que a realização das

experiências segue os passos da técnica experimental inspiradas pelo rigor científico

(organização, sistematização e registro formal). Na revista, elas também são tematizadas

nesses domínios.

Nos boxes, as experiências utilizam materiais palpáveis e baseiam-se em conceitos

científicos. Têm como ponto de partida aquilo que se considera como conhecimento

cotidiano. Em geral, um problema prático é posto e sua solução é previamente definida. De

fato, nas experiências, ocorre uma ilustração de conceitos científicos aos moldes de uma

descrição empírica. Nesses casos, não há produção de ciência, mas demonstração de ciência,

ou melhor, de imagem do que se supõe que seja ciência para o divulgador.

SD10: Na física, tanto líquidos como a água, como gases tipo o ar são considerados fluidos. Uma propriedade curiosa dos fluidos é que, quando a velocidade aumenta, a pressão diminui. Em vez de usar palavras, podemos fazer um experimento para explicar melhor esse fenômeno. Então, recorte duas tirinhas de papel e coloque-as uma de cada lado da boca, como mostra a figura. (Bola rolando, ciência em campo – CHC – n° 109, dez., 2000) SD11: Quer acompanhar Quer acompanhar o dia-a-dia das formigas? Saber quando elas estão mais ativas, como cavam túneis, o que comem? Então, não perca tempo: faça já um formigueiro! Você vai precisar de: um pote de vidro de tamanho médio e boca larga; terra ou areia; elástico; uma tela de plástico retirada de alguma peneira fora de uso; uma pinça; formigas, claro! Pegue o pote de vidro e o encha até a metade com terra ou areia. Então, saia em busca das formigas. [...] A seguir, transfira-as diretamente para o pote de vidro, Então, vede a sua boca com a tela da peneira e prenda com o elástico, para evitar que as formigas escapem. Em poucos dias, você poderá observar túneis feitos na terra ou na areia, a limpeza do formigueiro, as formigas; se comunicando, se alimentando... (O mundo curioso das formigas – CHC – n° 154, jan./fev., 2005)

Na seqüência 10, o fenômeno físico não será explicado no boxe. Ao leitor são

mostrados os passos (recorte, coloque), que deverão ser seguidos, para a realização de um

experimento científico. Encena-se uma testagem em um laboratório. Deduz-se que, a partir

desse experimento, caso seja realizado, o leitor entenderá o fenômeno físico. A expressão

“Em vez de usar palavras” marca um determinado sentido de linguagem90. Por sê-la

considerada “incerta”, “imprecisa”, torna-se necessária a “observação empírica dos dados”,

pois somente o olhar rigoroso da ciência sobre o objeto de investigação poderá equacionar

certos desvios da linguagem, as ambigüidades. Seria, portanto, uma forma de “livrar das

formulações equívocas e não-unívocas” (Orlandi, 2002: 306) da linguagem natural. Olvida-se,

no entanto, que a experiência se realiza com e pela linguagem, uma vez que não há um fora da

linguagem. Salientamos que a experiência só terá sentido (ou não) para o leitor na e pela

linguagem.

90 Podemos depreender o intento fregeano de construir uma linguagem logicamente perfeita. Para Frege (1978), o objeto em si é inatingível pela linguagem natural, visto ser marcada pela imprecisão, imperfeição. Fato que dificultaria a expressão do conhecimento, ou me lhor, impediria de se chegar à verdade.

159

Na SD11, a experiência, construção de um formigueiro, é realizada para encenar a

observação in loco. Assim como os biólogos observam a vida dos animais, o mesmo deverá

ser feito pelos leitores, porém em um ambiente “controlado”. Podemos dizer que as

experiências publicadas são fundadas no “mito empirista” – mito que produz o efeito de

cientificidade da observação.

Pêcheux (1988 [1975]) referindo-se aos domínios de algumas ciências, diz que

esses domínios exibem, com uma particular “evidência” , o mecanismo da “identificação do objeto”, que, simultaneamente é uma identificação perceptiva (eu vejo esta coisa , que vejo = eu vejo o que vejo) e uma identificação inteligível (sabe-se o que essa coisa é o X que ..., que corresponde a “sabe-se o que se sabe). Essa dupla tautologia – eu vejo o que vejo/sabe-se o que se sabe – é, poderíamos dizer, o fundamento aparente da identificação da “coisa” e também do sujeito que a vê, que fala dela ou que pensa nela (Pêcheux, 1988 [1975]: 101).

O efeito produzido pela “identificação do objeto” é o da realidade do pensamento no

sujeito: o leitor vê o formigueiro e sabe o que é o formigueiro; vê o fenômeno e sabe o

fenômeno. Essa “evidência” produz um efeito de transparência da percepção (vejo o que

vejo), do sujeito (eu vejo, eu sei) e da linguagem (isto é formigueiro; isto é um fenômeno).

Se é possível afirmar que os boxes trazem uma determinada legitimidade ao texto de

divulgação científica – em outros termos, a encenação da voz do cientista produz um efeito de

autoridade; também é possível dizer que os boxes, em nosso corpus, por trazerem

experimentos, abrem para uma “demonstração de ciência”, na qual o leitor encena a posição

de cientista.

Após a análise dos artigos grandes, passamos a uma breve análise de um material que

é destinado especificamente ao professor. Trata-se das “Dicas do Professor”.

5.3 A revista e sua inserção na escola

Nossa inquietação acerca do leitor da revista CHC surgiu com as cartas de leitores que

tinham o professor como autor. Em outras seções da revista também pudemos observar a

inserção do professor. Listamos, por exemplo, um questionário que tinha por objetivo

configurar o perfil do leitor – destinado tanto para criança quanto para o professor – e outro

destinado exclusivamente para o professor. Outro exemplo é a contracapa que apresenta a

seguinte chamada “Responde, professor” e a promoção “Alô, professor!”. 91 E perguntamos:

qual é a imagem de professor suposta como leitor da revista? Para responder a questão,

analisamos dois encartes intitulados “Dicas do Professor”. Ressaltamos que tais encartes são

91 Ver anexo 11.

160

inseridos no interior da revista, constando apenas nas distribuídas pelo Ministério da

Educação. Os exemplares adquiridos em bancas ou por assinaturas não os contêm.

Em termos de formatação, o encarte92 é composto por quatro páginas. Na primeira, há

o editorial e as seções sobre a temática desenvolvida. Nos encartes que compõem nosso

corpus, as seções são: “Lixo: lugar certo e lugar errado”; “Quem vive de lixo”; “Adubo

orgânico” (referentes ao número 97); e “Livros”; “Biblioteca” (referentes ao número 98). Na

segunda página de cada encarte, há uma breve introdução endereçada ao professor, sugerindo

atividades e indicando os materiais utilizados (registrando dentre outros, a própria CHC). Nas

páginas seguintes (3 e 4), desenvolvem-se os temas de cada encarte. Na última, além da seção

específica, há um lembrete (em geral, funcionando como uma recomendação a ser seguida).

Por fim, na página 4, um quadro finaliza o encarte, contendo indicação sobre os PCNs

(Parâmetros Curriculares Nacionais). Para nossas análises, recortamos seqüências discursivas

oriundas do editorial, da seção intitulada “Professor” e do quadro final.

5.3.1 A didatização da mídia ou a midiatização da escola?

Iniciamos nossa análise da relação da revista com a escola pela seguinte trecho:

sendo a única revista brasileira de divulgação científica direcionada ao público infanto-juvenil, era natural que a Ciência Hoje das Crianças despertasse o interesse de educadores, encontrando espaço para servir como instrumento de apoio para professores e alunos (Encarnação, 2001: 111 – grifos nossos).

Ao ler esse trecho, compreendemos que despertar o interesse de educadores só pode

ser considerado um atitude natural se não considerarmos as condições sócio-históricas93 que

produzem esse efeito de obviedade. A revista serviria como um instrumento didático?

92 Conferir o anexo 12. 93 Encontramos, em outros textos, o mesmo efeito de obviedade frente à utilização de material de divulgação científica como instrumento de apoio para professores e alunos. É o caso de “Ciência para Todos”, um suplemento de divulgação científica produzido pelo jornal “A Manhã” na década de 40 do século passado. O suplemento durou cinco anos e suas seções não apresentavam freqüência regular. Esteves, Massarani e Moreira (2006) sugerem que uma das motivações para a viabilização do suplemento “Ciência para Todos” (CpT) deu-se em função do comprometimento de seus membros com o ensino e a divulgação da ciência. O objetivo dos colaboradores do CpT era buscar a renovação dos métodos de ensino e um grande intercâmbio de técnicas didáticas. As seções que se dirigiam aos professores eram: Cinema Educativo, Orientação Bibliográfica, No laboratório e na aula, Ciência na escola primária, Como ensinar ciência. Pode-se dizer que “para os professores, o suplemento funcionava como fonte de atualização e como um auxílio para preparação das aulas; para os alunos, como material complementar de função paradidática. A orientação didática do CpT foi uma de suas características mais marcantes. Em diversos artigos voltados para professores, o suplemento trazia sugestões para incrementar as aulas, discutia os currículos escolares, propunha atividade extraclasse e promovia iniciativas para estimular o interesse dos jovens pelas ciências. O suplemento parecia assumir uma missão educativa que em muitos casos transcendia a esfera do ensino formal” (Esteves, Massarani e Moreira, 2006: 81 – grifos nossos). De acordo com o que foi enunciado por Esteves, Massarani e Moreira, é possível conjeturar que o

161

Segundo Mariani (1998), o discurso jornalístico, atuando na institucionalização social

dos sentidos, busca promover consenso sobre o que seria verdade de um evento. Para tanto,

assume um caráter didático, ou melhor, didatiza as informações, explicando-as em forma de

causa/conseqüência, operando definições. Parece haver, no discurso de divulgação científica,

uma expansão desse caráter didático94.

Orlandi (2004b), ao analisar o funcionamento da ciência na sociedade, constata que o

leitor de divulgação científica “sabe que x é”, mas “não sabe x”. Trata-se do efeito de

informação científica, no qual o discurso do senso comum e o da ciência são colocados em

contato. Segundo a autora, há, nessa representação, uma didatização do discurso da ciência.

Citamos:

Por variados procedimentos vai aparecer o termo científico ao lado de descrições, sinônimos, perífrases e equivalências e etc., deixando à vista o processo pelo qual o discurso científico se apresenta como uma retomada. Essa didatização é parte da encenação que dá eficácia e credibilidade a este discurso (Orlandi, 2004b: 143).

Ocorrem, portanto, dois movimentos, a saber: a “didatização da mídia” e

“midiatização da escola”. O primeiro caracteriza-se por ocorrer fora da escola, o segundo é

considerado a midiatização do discurso científico na escola, visto como um lugar de

divulgação e não de produção de conhecimento. As terminologias são usadas excessivamente

para produzir o efeito de cientificidade.

Pfeiffer (2001) discute como a mídia produz o discurso de divulgação científica e o

modo pelo qual ela é tomada como lugar de suprimento de instrumentos pedagógicos. Para a

autora, “a mídia ocupa, de um lado, um lugar de substituição do livro didático dentro da sala

de aula e, de outro, o lugar da própria escola, tendo como missão o fornecimento de um

conhecimento à distância” (Pfeiffer, 2001: 41 – grifos da autora). Uma prática que, como está

instituída atualmente, esvazia o lugar político do professor.

Embora acreditemos que o uso “pedagógico” da mídia impressa seja anterior à década

de 80, Pfeiffer (idem) defende que desde esse período a mídia, principalmente a impressa,

vem sendo marcada, em seu funcionamento, pelo uso escolar, que pode ser caracterizado de suplemento “CpT”, na década de 40, assumia uma missão educativa. Teria ele assumido a função de material didático ou do próprio papel da escola? De fato, sem uma análise prévia, não podemos afirmar essa ou aquela posição, mas temos, ao menos, pistas para considerar que a CHC não desperta naturalmente o interesse de educadores. A publicação de “Dicas do Professor” não parece ser um fato isolado na tentativa de estabelecer uma “relação” da mídia com o ensino, especialmente, com o ensino fundamental. Há uma historicidade que produz sentidos; uma memória do que é ensinar ciências. Por este prisma, podemos questionar as determinações da mídia sobre a circulação dos conhecimentos científicos. 94 Para Moirand (2000), as formas de encenação do saber na mídia parecem responder a uma representação estereotipada da didatização. A autora ainda destaca que a necessidade da formação, tão imperiosa na atualidade, “torna-se um percurso obrigatório em um período de crise de emprego de que a escola é considerada em parte responsável (opinião que, aliás, a mídia difunde não sem complacência)” (Moirand, 2000: 21).

162

duas formas: como instrumento didático diário (semelhante ao uso do livro didático) e como

base para formulação de questões de exames admissionais em universidades e escolas

técnicas. Para a referida autora, os textos jornalísticos, em sua superfície textual, apresentam-

se como defensores da educação de qualidade, ao mesmo tempo em que, ilusoriamente,

teriam a função de resgatar a falida educação brasileira. Como isso seria possível?

Tratando o ensino e o conhecimento como um produto a ser eficazmente transportado do lugar que o produz para seu alvo: os brasileiros leigos. Fecha-se o circuito. O conhecimento é linearizado e imobilizado. Não circula, não historiciza. Isto é, não é colocado no lugar de produção de conhecimento, mas no de transmissão/divulgação de um bloco acabado e exterior ao sujeito (Pfeiffer, 2003: 36).

Ao apresentar um conhecimento de forma didatizada, a mídia estaria transmitindo

conhecimentos para alunos e professores, promovendo a reciclagem para os últimos que, por

suas condições de trabalho (baixos salários, número extenso de aulas, número excessivo de

alunos em sala de aula, etc.), não teriam como realizar cursos de formação continuada. O

lugar que se atribui ao professor é aquele do não-detentor do saber, do não avançado, que não

pesquisa ou não acompanha os resultados das mesmas. É o lugar da reciclagem, ou seja, “um

lugar de rememoração daquilo que ele deveria saber e, no instante mesmo em que rememora,

é lembrado de que não sabe, mas deveria saber” (idem : 39-40).

Como professores e escola não estariam capacitados para levar a todos os brasileiros

um ensino com êxito, a mídia seria um “agente de democratização da educação” – informando

todas as instâncias que compõem/constituem o processo ensino-aprendizagem. Configura-se

um funcionamento no campo discursivo da mídia que, segundo Pfeiffer (2001),

pode ser observado em processos discursivos que deslocam a escola de sua legitimidade de ensinar, desautorizando-a, a partir do ato denunciativo que “esclarece” à população que os professores são despreparados, os alunos não aprendem e a escola não tem condições estruturais para atender seu público; ao mesmo tempo em que traz, ao domínio da população, de forma “democrática” e com “maior abrangência”, todas as últimas novidades em termos tecnológico (Pfeiffer, 2001: 42-43).

Sob o prisma pragmático, a divulgação científica seria a tábua de salvação da

educação, o lugar de suprimento de instrumentos pedagógicos. Distanciando-se desse prisma,

afirma Pfeiffer (2003) que a mídia mostra-se como se fosse sua a tarefa de ocupar o lugar da

falta. Teria a revista CHC a mesma tarefa?

De forma a realizar as análises do encarte, devemos considerar que sua publicação está

atrelada à presença da revista na escola, ou melhor, a escola é um elemento das condições de

163

produção desse discurso. A seguir apresentaremos análises que realizamos de três partes do

encarte: o editorial, introdução ao tema do encarte e o encarte e os PCNs.

O Editorial do encarte “Dicas do Professor”

Antes mesmo de iniciar a análise do editorial, como também das demais partes do

encarte, achamos relevante iniciar nossas análises pelo título. Nunes (2003a) considera que os

títulos em textos de divulgação científica funcionam como recortes de regiões de sentidos. O

autor ressalta que, do ponto de vista lingüístico, os títulos apresentam uma grande variação,

pois podem ser formulados através de um nome comum ou próprio, um sintagma, uma frase

ou uma construção de discurso relatado. Em relação à construção do sujeito, o autor apresenta

três configurações depreendidas em seu corpus: a) ausência do sujeito da ciência; b) o sujeito

enquanto objeto de estudo ou paciente; e c) a imagem do cientista.

Embora seja parte integrante de uma revista de divulgação científica, o encarte ora

analisado parece funcionar como um manual didático. O título “Dicas do professor” produz

um direcionamento de sentidos e, ao fazê-lo, silencia outros. Desta forma, não comparecem,

no título, nem o cientista ou mesmo a criança.

No título em pauta, destacamos o adjunto adnominal do professor que, do ponto de

vista sintático, seria um sintagma preposicional de função adjetiva. Tal sintagma acrescentaria

à construção ou uma noção de referência (dicas próprias de professor) ou uma noção de

finalidade (dicas para o professor). Sabemos que, do ponto de vista discursivo, o lingüístico é

a base material para os processos discursivos, que, por sua vez, são constituídos pelas relações

sócio-históricas e determinados ideologicamente. Em outros termos, os sentidos não estão

colados às palavras.

Logo abaixo do título, temos a seqüência:

“Não pode ser vendido separadamente

Parte integrante da Ciência Hoje das Crianças n°...”

Insere-se o encarte como parte integrante da revista, proibindo (pelo uso da negação)

sua venda separadamente. Tal enunciado acaba por constituir o encarte como uma seção da

revista95. Embora a revista possa ser vendida “separadamente” em jornaleiros ou por

assinatura, para o encarte, o contrário não é permitido. Dessa forma, poderíamos construir a

seguinte paráfrase:

95 Em termos gráficos, observamos que o uso de desenhos segue o mesmo padrão da revista. Em outros termos, mesmo sendo para o professor, os desenhos são infantis. Poderia se falar em infantilização do professor?

164

“(O manual) Não pode ser vendido separadamente Parte integrante d(o material paradidático)”

Entendemos que, a partir dessa paráfrase, a revista (ou material paradidático) pode ser

vendida separadamente para o leitor (criança/aluno), enquanto o material do professor

(constituído de encarte/manual e revista/material paradidático) só pode ser vendido em

conjunto. Devemos lembrar que o aluno das escolas públicas tem acesso à revista e ao

encarte. A quem se destina o encarte? Somente ao professor? Caso seja ao professor, cumpre-

nos investigar qual imagem de professor é construída e em que posição discursiva o professor

é colocado.

No editorial96, o professor é interpelado como interlocutor (observado no vocativo

“Caro professor”). O recorte discursivo aqui operado obedece a um reconhecimento de verbos

e locuções verbais – ponto da materialidade lingüística que permite identificar os agentes e

pacientes das ações propostas pelo editorial. Inicialmente, a revista oferece as “dicas” ao

professor, que deve recebê- las e implementá- las em sua sala de aula. Em seguida, o professor

é interpelado a ser o agente das “Dicas”, pois deve enviar depoimentos sobre o

desenvolvimento de atividades propostas, como também sugestões e conteúdos a serem

tematizados pela revista. Não podemos nos esquecer de que as sugestões do professor

passarão pelo crivo da revista, ou melhor, pelo gesto argumentativo (indicações de atividades

e conteúdos aqui tematizados”- Dicas do Professor nos 97 e 98). Podemos, portanto, dividir

o editorial, em relação às ações atribuídas à revista e ao professor, em dois momentos97.

Vejamos o quadro a seguir:

Quadro 8 - Ações atribuídas à revista e ao professor:

1o momento CHC VOCÊ (professor)

trazer sugestões receber sugestões para saber usar a CHC fornecer elementos para enriquecer a

prática pedagógica ter a prática pedagógica enriquecida

dar sugestões

adotar/explorar as sugestões dadas

2o momento CHC VOCÊ (professor) contar com a colaboração do

professor escrever sobre o desenvolvimento e utilização das atividades propostas e enviar sugestões

96 No capítulo anterior, definimos o editorial como um sítio de significância. 97 Vale destacar que esses momentos não são estanques, de fato, eles se recobrem. Nessa seqüência, é possível dizer que o NÓS abrange tanto o sujeito-divulgador quanto o sujeito-professor. Como já comentado no capítulo anterior, para Indursky (1997), o NÓS tem amplitude referencial, pois o “locutor pode associar-se a referentes variados, sem especificá-los lingüisticamente, daí decorrendo a ambigüidade de seu dizer” (Indursky, 1997:66).

165

Em um primeiro momento, podemos interpretar o adjunto “Dicas do professor” ora

como “dicas para o professor”, ora “dicas de professores”. Os sentidos, como nos lembra

Pêcheux (2002), não são logicamente estáveis, ou melhor, não estão organizados sob a lógica

disjuntiva, mas se estabelecem na contradição.

Em suma, ponderamos que no encarte “Dicas do professor” (por nós considerado um

manual didático), o professor é interpelado como leitor das dicas apresentadas e como autor

das dicas a serem por ele enviadas à revista. As “Dicas” seriam também do professor, como se

ele fosse um cooperador das atividades ali propostas.

Introdução ao tema do encarte

Na página 2, em um quadro que aparece no topo, há um trecho introdutório que

designamos de Introdução ao tema do encarte, embora o lexema “professor” apareça em

destaque, no início do parágrafo, grafado com fonte maior e espaço diferenciado. Ao observar

a materialidade lingüística, destacamos as marcas de pessoa discursiva. Identificamos que o

divulgador ora se apresenta utilizando a desinência de primeira pessoa do plural98 (Nestas

Dicas estamos sugerindo, Todos sabemos como a leitura), ora pela designação da própria

revista (Ciência Hoje das Crianças). O interlocutor, no caso o professor, é interpelado pelo

pronome você/vocês.

Nas seqüências discursivas abaixo, podemos verificar como o leitor-professor é

interpelado.

SD1: uma série de atividades de reciclagem para você fazer com sua turma (Dicas do Professor, CHC n° 97, 1999). SD2: Você mesmo pode estimular as atividades de leitura de seus alunos (Dicas do Professor, CHC n° 98, 1999). SD3: Se você t iver oportunidade, consulte-os. (Dicas do Professor, CHC n° 97, 1999).

Nas seqüências acima, o professor – interpelado pelo pronome você – é produzido

como o segundo pólo da interlocução discursiva. Como já expusemos na análise dos artigos

grandes, é uma representação que é identificável (ou não) por meio de pistas lingüísticas.

Observamos que o professor é incumbido a realizar a atividade proposta com sua

turma, é autorizado a desenvolver atividades, a estimular a leitura e convidado a consultar

um artigo sobre lixo publicado na CHC número 14. Nessas seqüências, a atividade a ser

98 Embora não seja nosso objetivo analisar a posição do sujeito-divulgador no encarte, achamos condizente, com as constatações já apresentadas na presente tese, fazer breves considerações. O sujeito-divulgador é colocado na posição de produtor do encarte, sendo representado por NÓS1 (a equipe da revista) e na posição de aliança como com o professor, representado por NÓS5 (divulgador e professor). Uma outra posição é a de dar voz ao referente revista, representado por ELE 1.

166

realizada destina-se ao professor, embora este não esteja materialmente representado.

Podemos dizer que você está em relação à turma (com sua turma, seus alunos). Produz-se a

imagem daquele que é guiado a fazer atividades (e não de produzi- las), ou melhor, um

implementador de atividades, como também daquele que, por não ter tempo disponível,

poderá ou não consultar a revista. Em sendo a CHC uma revista de divulgação científica

destinada a crianças, qual o motivo que levaria um professor a consultá- la?

Apesar de o pronome você aparecer em várias seqüências, ao longo da materialidade

textual, também o encontramos em sua forma plural, quer seja, vocês. Vejamos as seqüências

que se seguem:

SD4: É muito importante, antes de realizar as atividades, que vocês pensem sobre aquilo que acabou sendo um problema para as grandes cidades (Dicas do Professor, CHC n° 97, 1999). SD5: vocês poderão conhecer mais sobre o Proler pelo site (Dicas do Professor, CHC n° 98, 1999). SD6: uma ocasião para vocês analisarem também o lixo produzido na escola e na casa dos estudantes (Dicas do Professor, CHC n° 97, 1999).

Constatamos que a mudança lingüística estabelecida entre singular/plural, mais do que

acrescentar idéia de quantidade, produz outros sentidos. Na interlocução discursiva, o outro

não é dado a priori. O outro pode ser representado pela junção do tu com referentes diversos.

Em um artigo grande, por exemplo, o pronome vocês pode ser representado pelo referente

discursivo leitores, por exemplo, em: “Vocês já devem ter visto os raios de Sol atravessando

uma nuvem, como eles todos caminham em linha reta – O jeito que a luz caminha” (CHC – nº

35, jan./fev., 1994). Como podemos observar, a interlocução discursiva é regida pela

opacidade e pela indefinição.

Diferentemente da seqüência recortada do artigo grande, nas seqüências 4 a 6, retoma-

se uma atividade conjunta: professor e sua turma. O professor não é chamado apenas para

implementar as “dicas”, mas, sobretudo, para realizar as atividades com seus alunos, dessa

forma o pronome vocês seria a soma professor mais alunos.

Uma outra marca lingüística muito recorrente é o imperativo, o qual encontramos em

todas as sugestões, como por exemplo: faça com a turma algumas atividades tendo como

tema ‘o lixo’; divida a turma em grupos e peça-lhes que leiam o artigo em voz alta. O uso

do imperativo, comuns em instruções de uso, funciona, nas “Dicas do Professor”, como um

“saber- fazer”. O professor precisa saber, ser instruído, receber sugestões de atividades, para

poder saber- fazer com sua turma.

167

O encarte e os PCNs99

Ao final, após várias sugestões de atividades (conforme cada tema do encarte), há um

quadro que apresenta o seguinte enunciado:

“Uma contribuição para melhor compreensão dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a partir da experiência da Ciência Hoje das Crianças. Dê também a sua dica”

A ambigüidade presente no título do encarte também pode ser encontrada no trecho

acima. Afinal, a contribuição para o entendimento dos PCNs seria decorrente da experiência

do divulgador ou da experiência do professor? Parece possível, após as análises, interpretar o

adjunto “Dicas do professor” como, fundamentalmente, dicas para o professor.

Vale lembrar que a política do MEC para avaliação de livros didáticos estabelece que

os livros devam estar de acordo com os PCNs. A revista, por ser distribuída gratuitamente

pelo MEC a várias escolas públicas como material paradidático, mantém um certo vínculo

com esse órgão público (seu maior comprador). Tal vínculo acaba por transformar o encarte

em um instrumento de implementação da política pedagógica do MEC e, de certa forma,

endossá-la.

As “Dicas do Professor” estão inseridas em uma revista de divulgação científica para

crianças. Entendemos que, embora a revista seja considerada de divulgação científica, as

“Dicas do Professor” parecem aproximar-se ao discurso pedagógico, no que diz respeito às

instruções de uso, modos de usar comuns em manuais pedagógicos para professores. Pode-se

dizer que as “Dicas do professor” são endereçadas para um professor imaginariamente

construído como um interlocutor que precisa receber um material de instrução, um manual

que indique atividades passo a passo, um manual que ensine seu fazer. Dessa forma, podemos

dizer que professor é colocado na posição de aluno. Cabe ressaltar que, ao professor em

posição de aluno, é vetado o lugar de produtor de conhecimento. A imagem do professor é a

de despreparado que precisa receber um manual que lhe diga como trabalhar com um

determinado material paradidático, a CHC.

Se com a análise do título e subtítulo do encarte considerávamos que as dicas eram

para e do professor, ao final da análise das seções dos encartes compreendemos que as dicas

são apenas para o professor.

99 Os PCNs foram implementados pelo MEC em 1999. Os PCNs têm como objetivo oferecer parâmetros ao ensino fundamental. Encarnação (2001), ao tratar da relação entre os PCNs e a revista, salienta que “o caráter multidisciplinar da revista já a colocava em consonância com os campos do conhecimento contemplados pelos PCN” (Encarnação, 2001:112).

168

Por fim, observamos que a revista apresenta um funcionamento da mesma ordem do

livro didático. De acordo com Pfeiffer (2003), é possível observar um mesmo processo

discursivo fundando o modo de se trabalhar com o texto de divulgação na sala de aula e o

modo de se trabalhar com o livro didático. Tal paralelismo, em nosso corpus, pode ser

identificado nas sugestões de atividades aos professores.

5.4 E o cientista?

Como já tivemos oportunidade de afirmar, o discurso de divulgação científica abriga

diferentes sujeitos e diferentes ordens de saberes. Além do divulgador e do leitor, colocados

em diferentes posições, abriga-se o cientista. Este sujeito, assim como os anteriores, já ocupa

um lugar social, historicamente e ideologicamente determinado.

Para Henry (1992), a noção de “sujeito da ciência” resulta de um desdobramento da

forma-sujeito e deve ser considerada como um efeito ideológico particular. Tal

desdobramento, segundo Henry (idem), constitutivo do “sujeito da ciência”, é ligado às

formas específicas da reprodução, qualificação e divisão do trabalho.

Henry (idem) salienta que tais evidências são produzidas pela determinação da própria

prática científica – “do tipo de provas admitidas, das formas de exposição e da argumentação

consideradas como rigorosas” (Henry, 1992:137). Em outros termos, há a submissão do

sujeito à prática científica, pautada em “uma concepção ainda abstrata, idealista, de

objetividade da verdade científica” (idem : 126). Deixam-se de lado, na produção de

conhecimento, as condições materiais em sua relação com a necessidade histórica.

O “sujeito da ciência”, embora histórico e assujeitado à ideologia e à língua, é tomado

como uma categoria que se pretende universal e produtora de evidências de verdade e

objetividade científicas. Cons ideramos que tais evidências e a pretensão de universalidade são

apenas efeitos.

5.4.1 O cientista e a Ciência Hoje das Crianças

Podemos depreender imagens do cientista (em diferentes partes dos artigos grandes,

ou seja, no parágrafo introdutório, no corpo dos artigos e nos boxes). O cientista é

representado por itens lexicais, como: cientistas, pesquisadores, pessoas muito curiosas. A

seguir, apresentaremos algumas seqüências

169

SD1: Mas como a gente sabe disso tudo? Como se chegou a entender a linguagem das abelhas? Isso foi possível graças à pessoas muito curiosas, que são os pesquisadores. Eles se dispõem a usar grande parte do seu tempo para ficar observando as coisas da natureza . (CHC – A dança das abelhas – nº30 – jan./fev./mar., 1993) SD2: Os pesquisadores estão sempre buscando outras informações sobre os anfíbios, entre elas: como se reproduzem e em que época do ano; variação do número da sua população; relação deles com outras espécies; seus predadores. (CHC – Sapos???Eeeeca!!!! – nº57 – abr., 1996)

Nas seqüências 1 e 2, a imagem de cientista construída é a do cientista desinteressado

– livre de coerções institucionais e “desassujeitado” (como se fosse possível) – que dedica

grande parte do seu tempo para observação de dados empíricos como, por exemplo, em SD1

(se dispõem a usar grande parte do seu tempo para ficar observando as coisas da natureza).

É também a do pesquisador curioso que está sempre buscando informações que serão

coletadas pela observação das coisas da natureza (Os pesquisadores estão sempre buscando

outras informações sobre os anfíbios).

Imprimi-se, na construção do conhecimento, uma questão sócio-histórica e social e

não uma vontade de sujeitos, ou melhor, como expõe Henry (1992), não seria “por uma sede

de conhecimento, que seria própria do Homem, [que] este seria levado a produzir todos os

conhecimentos científicos que lhe é materialmente possível produzir numa certa conjuntura”

(Henry, 1992:134-135). Muito pelo contrário, o que ocorre é que “são produzidos apenas

conhecimentos científicos necessários que são prática e concretamente necessários numa certa

conjuntura e essa necessidade histórica não tem nada de universal” (idem : 135).

Nas seqüências 1 e 2, a atividade do cientista é tida como aquela da observação de

fatos. Assim como Henry (1992), a evidência da atividade do cientista x como produtora de

conhecimentos científicos é também descartada por Pêcheux, uma vez que tal formulação

idealista perde a referência ao modo de produção que as implica. Em outros termos,

a produção histórica de um conhecimento científico dado não poderia ser pensada como uma “inovação nas mentalidades”, uma “criação da imaginação humana”, um “desarranjo dos hábitos do pensamento”, etc (cf. T. S. Kühn), mas como o feito (e a parte) de um processo histórico determinado, em última instância, pela própria produção econômica (Pêcheux, 1988[1975]: 190).

A construção de uma visão positivista de cientista (re)cria o mito da “neutralidade

científica”. Não é o homem solitário, neutro, imparcial e objetivo que produz conhecimentos

científicos, são os homens em sociedade e na história que os produzem. A ciência é uma

atividade sócio-histórica. Para Pêcheux (idem), a objetividade científica é indissociável de

uma “tomada de posição, para a qual não há jamais equivalência entre as várias formulações,

e que não espera jamais que a ‘experiência’ sirva para exibir a boa problemática” (idem : 197).

170

Um outro aspecto, em relação ao cientista deve ser mencionado. No discurso de

divulgação científica para crianças, a voz do cientista (pouco recorrente) também comparece,

ao menos nos artigos grandes, muito especificamente. De forma a analisar como essa voz é

inserida, recortamos seqüências em que há na materialidade discursiva marcas da presença da

voz do cientista.

Retornando às considerações de Grigoletto (2007), podemos notar que além das

posições de incorporação do discurso científico e de aderência ao discurso do cotidiano, a

autora dedica-se à depreensão de outra posição no discurso de divulgação científica: a de

aderência ao discurso científico posição imbricada com a posição de aderência ao discurso

do cotidiano. O imbricamento dessas duas posições é, segundo a autora, construído a partir da

inscrição do jornalista no lugar discursivo do jornalista científico. Para a autora “na posição

de aderência ao discurso científico, o sujeito recorta o discurso-outro e o inscreve no fio do

discurso, pelo viés do lugar discursivo, de maneira própria” (Grigoletto, 2007:133). Assim, o

divulgador, recorta o discurso do cientista e o inscreve no fio de discurso de divulgação

científica. E faz o mesmo com o discurso cotidiano. Especificamente, em relação à posição de

aderência ao discurso, o divulgador marca o discurso do outro, produzindo transferência.

Grigoletto (idem) leva em conta que a diferença entre as duas posições reside no modo

como o jornalista aproxima-se mais do leitor ou do cientista. Nas palavras da autora,

“enquanto, na posição de aderência ao discurso científico, o jornalista produz um efeito de

transferência do dizer do cientista, na posição de aderência ao discurso do cotidiano, o

jornalista produz um efeito de aproximação do leitor” (idem : 133).

Ao levar em consideração o modo como divulgador adere à voz do cientista,

recortamos as seguintes seqüências:

SD4: Segundo alguns estudiosos desse tipo de anfíbio, as cobras-cegas têm uma dieta muito sofisticada: comem insetos e vermes da terra (CHC – Nem cobra, nem minhoca– nº 27– abril, maio, jun. 1992) SD5: De acordo com os pesquisadores, talvez essas plantas tenham tornado mais difícil o acesso a seus produtos para não correr o risco de que seus frutos e néctar fossem desperdiçados com animais oportunista (CHC – Parceiros da natureza – nº106 – set., 2000) SD6: Para os cientistas, saber disso é importante porque indica que o clima da Terra era diferente no passado (CHC – Morcegos de outros tempos – nº170 – jul., 2006)

Nas seqüências acima, a fala dos cientistas é apresentada em forma de discurso

relatado com modalização em “discurso segundo” (Segundo alguns estudiosos; De acordo

com os pesquisadores; Para os cientistas). Nessa modalidade de discurso relatado100, há a

100 Para Authier-Revuz (1998), um enunciado com modalização em discurso segundo, por referir a outro discurso, caracteriza-se como “segundo” por ser dependente desse outro discurso.

171

inserção do discurso outro que, mesmo indicando imprecisão da origem da informação,

atribuiu caráter de legitimidade ao discurso.

Podemos dizer que, com o gesto de inserir a voz do cientista por meio da modalidade

em discurso segundo, o divulgador erigiu uma divisória entre os dois discursos. A modalidade

em discurso segundo, em uma perspectiva discursiva, funciona como demarcador de

fronteiras entre as ordens da ciência e da mídia. Nessas seqüências, o divulgador adere à voz

do cientista e o efeito que se produz é o de legitimidade de um saber.

5.4.2 O Cientista e o não-cientista

Ao analisar a posição do cientista, acabamos por depreender uma posição antagônica,

a de não-cientista. Diferente do leitor (criança ou professor), essa posição é desqualificada,

ridicularizada. De forma a compreender o antagonismo construído entre as duas posições,

retomamos as pesquisas de Indursky (1997) e Mariani (1998).

Indursky (1997), ao trabalhar as marcas de pessoa tal como já apresentado no capítulo

4, propõe a definição de pessoas discursivas. Em sua análise, a autora examinou diferentes

formas de representação do outro. Vale destacar que o sujeito, enquanto mediador, ao assumir

a voz do outro, produz um “simulacro da voz do outro” (Indursky, 1997:130). No material

analisado por Indursky (idem), o outro antagônico é representado lexicalmente, com um alto

grau de generalização, ou gramaticalmente, por meio de duas modalidades: a indefinição e a

indeterminação, sendo necessário identificá- lo por meio de pistas lingüísticas presentes na

materialidade discursiva.

Embora nosso corpus seja bastante diferente daquele de Indursky (idem), também

identificamos a representação de o outro antagônico. A representação lexical é dotada de

referência, mas carregada de vagueza. Vejamos algumas seqüências:

SD1: Como as cobras e as aranhas, os lagartos aparecem em algumas histórias populares como grandes vilões. Você já deve ter ouvido algumas delas. Mas não é bem assim. (CHC – Lagarto não é lagarta –, n°24, out./nov., 1991) SD2: Para muita gente, os índios são todos iguais. Mas isso não é verdade [...] O homem que vive na cidade pode passar toda a vida sem distinguir a diferença. (CHC – 1993: Ano internacional do índio –, n°30, jan./fev./mar., 1993) SD3: Diz o povo que eles são cegos, mas não é isso . O que acontece é que se orientam também pelo sonar, formado pela emissão de sons de alta freqüência, inaudíveis pelo homem. (CHC – Morcegos na cidade – jul.- out., 1993) SD4: Atraído pela correria veio também o seu Juca, que foi logo apanhando um pau para matar a cobra. "Saiam de perto, a coral é muito braba!" - gritava ele, pronto para lascar o pau no lombo da cobra. Mas as crianças não deixaram. Já sabiam como é difícil reconhecer se uma coral é "verdadeira" ou "falsa". Além disso, a cobra estava longe de casa e era uma caçadora de ratos. Por que matar? (CHC – E jibóia engole boi, sô? – nº 35, jan./fev., 1994)

172

SD5: Os medos e crendices em relação às corujas não têm qualquer fundamento científico. (CHC – Quem tem medo de coruja? –, n°45, jan./fev., 1995)

O outro antagônico é representado de forma lexical: histórias populares, muita gente,

o povo, seu Juca, homens, medos e crendices, termos generalizantes. Até mesmo seu Juca,

aparentemente um nome próprio, designa o homem do campo, humilde, sem instrução – o

Jeca-Tatu dos almanaques do Biotônico Fontoura – que mata a coral porque ela é muito

braba! Constrói-se o outro antagônico desprovido de qualificação, sem fundamentação

científica. Um sujeito desacreditado, pois seu conhecimento está embasado em histórias

populares, medos e crendices.

Uma outra forma de analisar o outro antagônico é proporcionada por Mariani (1998).

A autora, ao analisar as formações imaginárias que sustentam o discurso jornalístico e as do

campo dos leitores, verifica que jornais e leitores partilham de um ponto de vista semelhante

com relação ao referente “comunismo”. Para tratar do “inimigo”, Mariani (idem) traz as

reflexões de Badiou (1995) e verifica que jornais e leitores situam-se no campo do Mesmo,

campo este marcado por uma moralidade da “ética dos direitos do homem”. Vejamos o que

autora diz:

entendemos que o discurso jornalístico, em seu relato cotidiano, se encontra atravessado por uma memória desses Direitos Humanos, por um já-dito sobre o Bem que se constitui em um já-ouvido no campo dos leitores, o que engendra um efeito de reconhecimento, ou consenso intersubjetivo [...]. Estar no campo do Mesmo é estar partilhando, simbolicamente, os valores do Bem. Ou melhor, é considerar ‘evidentes’ e ‘naturais’ os sentidos que se alinham na sustentação/legitimidade do sujeito de direito ou dessa ética dos direitos do homem (Mariani, 1998:83).

Mariani (idem) aponta que o Bem é tratado no campo do Mesmo, e o Mal, no campo

do outro – imagem de qualquer ameaça. Trazemos o dizer de Badiou ao afirmar que “é mais

fácil construir um consenso sobre o errado do que sobre o certo” (Badiou, 1995:24). O Bem é

a verdade científica que liberta o seu Juca, o homem humilde, do povo, do campo de medos e

crendices.

Nas seqüências 1 a 6, a construção da distinção entre o campo do Mesmo e do outro é

marcado, sobretudo, pela negação (Mas não é bem assim; Mas isso não é verdade; mas não

é isso; Mas as crianças não deixaram; não têm). A negação polêmica discursiva acaba por

desqualificar o saber popular para afirmar, legitimar o da ciência, que representa, pelo seu

valor de verdade, o Bem.

173

É interessante observar que em SD4, a criança é colocada na posição de cientistas (Já

sabiam). Ela é construída pelo divulgador como um “cientista-mirim”101, um bom-sujeito.

Nos artigos grandes, a posição do cientista é construída em relação às posições do

divulgador e do leitor. Contudo, verificamos que também é construída pela relação com a

posição antagônica de não-cientista. A partir dessas duas posições, identificamos duas as

ordens antagônicas: representando o BEM (ciência) e a outra desqualificada, o MAL

(conhecimento popular).

5.4.3 Cientista e criança – o lugar do Mesmo

Pelo mecanismo do consenso intersubjetivo 102, como já apontado por Mariani, a

revista tem um compromisso com a defesa do Bem – constrói a imagem de divulgador, de

leitor e de cientista compromissados com o Bem: não matar os animais, cuidar do planeta, das

questões ecológicas, dos índios, do progresso. Sujeitos da eterna busca de respostas que

desfaçam medos e crendices. Nas seqüências abaixo, pretendemos depreender a imagem do

leitor e do cientista inseridos no campo do Mesmo.

SD1: As crianças ficaram supercontentes, pois a experiência foi como perguntar à cobrinha : “Você usa as escamas ventais durante a locomoção?” E a cobra, com seu comportamento, respondeu: “Sim, principalmente sobre superfícies ásperas, como o solo e os ramos”. A partir da observação de que as cobras têm escamas diferentes no ventre, as crianças imaginaram que essas escamas fossem usadas na locomoção. E, com um teste simples, provaram a hipótese. Sentiram-se como cientistas, planejando outras observações, descobrindo mais fatos, tendo novas idéias. (CHC – Quem tem medo de cobra? –, n°26, mar., 1992) SD2: As crianças ficaram chateadas; queriam ver o que ia acontecer. Pelo menos havia mais questões a pesquisar: "Como a cobra fica sem piscar? Por que o ratinho ficou parado, olhando a cobra, em vez de fugir?" Para trabalhar na primeira pergunta tinham a dica da dormideira: "Perguntem às próprias cobras..." Se examinassem uma cobra, mesmo morta e guardada em álcool, talvez surgisse alguma resposta. Não foi assim que imaginaram que as escamas da barriga das cobras são usadas na locomoção? Para examinar cobras sem perigo, as crianças foram ao museu. Lá, duas pesquisadoras mostraram algumas cobras mortas preparadas para estudos. Logo na primeira, Maísa reparou que os olhos estavam abertos, e não fechados como os de um lagarto no vidro ao lado. Aí estava parte da resposta: as crianças perceberam que o olho da cobra é coberto por uma escama transparente, não tem pálpebras móveis como as nossas. E claro que ela não pode piscar e fica parecendo que tem um olhar fixo ou "hipnótico". E o camundongo, por que ficou parado em vez de fugir, quando viu a cobra perto dele? (Será que você descobre uma resposta científica, ou acha mesmo que a cobra é capaz de hipnotizar o bichinho? Se quiser, pode escrever para cá.) (CHC – E jibóia engole boi, sô? – nº 35, jan./fev., 1994) SD3: Estava ameaçando chover, mas mesmo assim os irmãos Tiago e Zezinho saíram de casa. Era domingo e eles não podiam perder a oportunidade de dar um passeio juntos. Durante a semana,

101 O termo é encontrado no editorial da revista CHC número 81 (junho de 1998): “Aproveitando que você já está com ares de cientista mirim, incluímos aqui algumas experiências para provar que a ciência pode estar bem debaixo do seu nariz!”. 102 Em seu livro Semântica e Discurso (1988 [1975]), Pêcheux define o “consenso intersubjetivo”. É no interior de uma formação discursiva que o sujeito se reconhece e reconhece o outro, e aí se acha a condição do consenso. É por essa evidência de que ego é sujeito e que ele e o sentido adquirem unidade. No entanto, o sujeito não se percebe em um processo de identificação com uma formação discursiva.

174

Tiago, o irmão mais velho, passa o dia todo na faculdade, onde estuda biologia, e quase não tem tempo de brincar com Zezinho, o caçula. Zezinho é um garoto muito inteligente, que não tem medo de fazer perguntas, e é por isso que o Tiago gosta tanto dele. Assim, os dois ignoraram as nuvens no céu e foram ao Jardim Botânico. (CHC – A água & as plantas –, n°60, jul., 1996)

A maneira de obter dados por mera observação, por exemplo, a resposta da cobra à

pergunta das crianças, ocorre como se fosse natural, porquanto, indistinta às determinações

históricas. Voltamos à concepção mecânica de descrição como uma possibilidade de

descriminar e classificar, pois produz um efeito de determinação entre palavras e coisas

observáveis. É uma maneira de conceber a relação de pesquisa com os “dados”, em que as

respostas emanam do objeto observado (cobra, com seu comportamento, respondeu ou Aí

estava parte da resposta). Do nosso ponto de vista, o comportamento da cobra, por exemplo,

não diz. São pontos de deriva, plenos de interpretação, que são preenchidos, sob forma de

determinação, pelo discurso da ciência.

A imagem de criança curiosa, que quer encontrar respostas para determinadas questões

é construída nos artigos. A curiosidade parece ser o laço que une cientistas e crianças. Dessa

forma, ser cientista seria: agir como um cientista; encontrar nos dados as respostas para aquilo

que procura; é testar hipóteses, planejar observações, descobrir fatos, ter novas idéias, não

ter medo de fazer novas perguntas. Estes são pontos de estabilização que produzem um

paralelo entre o cientista e a criança (cientista-mirim) “como, simultaneamente, aquilo que

lhe[s] é dado a ver, compreender, fazer, temer, esperar, etc.” (Pêcheux, 1988[1975]: 161). Por

esta estabilização projeta-se a imagem de uma criança já-identificada, já-cientista-mirim, que

compartilha os sentidos para ciência e para cientista, imputando a necessidade de formar

novos cientistas do futuro.

A curiosidade da criança, uma das formulações possíveis que caracteriza o vir a ser-

sujeito, não é tão somente um paralelismo com a curiosidade do cientista, mas é o ponto no

qual se encontra a condição de futuridade, de vir-a-ser “sujeito da ciência”.

Brevemente, resumimos algumas considerações deste capítulo. Nos artigos grandes,

depreendemos as posições de leitor e de cientista mirim. O leitor é representado por itens

lexicais e pelo pronome VOCÊ. Além dessas marcas, pudemos observar o efeito- leitor de

divulgação científica para crianças por de meio de perguntas e respostas dadas pelo

divulgador – marcas que produzem um efeito de diálogo, ou melhor, criam um simulacro de

diálogo. Observamos, também, a alternância entre as ordens da ciência e do cotidiano,

marcada lingüisticamente por conjunções, explicações, comparações e negações. A imagem

produzida desse leitor é de um sujeito que vive em um conto de fadas, no mundo da ficção. É

também um leitor curioso, mas, contraditoriamente, deve receber informações prontas sobre

175

determinadas áreas do conhecimento. As imagens produzem a “evidência” da falta contínua

do saber. Além da posição de sujeito- leitor, há ainda a posição de cientista-mirim que encena

experiências científicas já testadas e que segue os passos e a metodologia das Ciências

Naturais e Exatas.

Nos encartes “Dicas do professor”, o efeito- leitor produzido é o do professor. Ele é

representado pelo item lexical professor e pelos pronomes VOCÊ (professor-aluno) e VOCÊS

(professor e aluno). Duas posições são depreendidas, a saber: a posição professor-aluno que

recebe dicas do encarte da revista; e a posição professor que trabalha as dicas com sua turma.

Podemos dizer que em “Dicas do professor” constrói-se a imagem de um professor que

necessita de um manual que o ensine a trabalhar com a revista, que o ensine seu saber- fazer.

Podemos dizer que o leitor (criança e professor), tal como é construído, é desprovido

de capacidade de reversibilidade e de ter acesso ao referente discursivo, visto serem os

sentidos imputados pelo sujeito-divulgador. Ao sujeito- leitor não é aberto o espaço de

significação. O lugar de onde ele pode ser construído é atravessado pela dominância ao

discurso autoritário.

Por fim, cabe-nos falar do sujeito-cientista. Sua voz é trazida de forma a legitimar,

mesmo que de forma indeterminada, o discurso de divulgação científica. O divulgador adere à

voz do cientista, recorta-a e a insere em seu discurso. O efeito produzido é o de legitimação

do dizer. Uma imagem depreendida do cientista é a do pesquisador desinteressado (livre de

coerções) e curioso, sempre em busca de novas respostas para os dados observáveis. Eis um

paralelo construído entre o cientista e o leitor-criança: a curiosidade. Por fim, podemos falar

do outro contrário que, em posição antagônica de não-cientista, é desqualificado, visto seu

saber ser rechaçado.

Antes de passarmos para o próximo capítulo, faz-se necessário realizar uma reflexão.

Chegamos ao ponto de nosso trabalho que podemos responder a questão posta em tela

no capítulo 3. Afinal, há uma formação discursiva do discurso de divulgação científica para

crianças? Sabemos que os sentidos são determinados pela formação discursiva no qual o

sujeito insere-se, mas como é possível, então, delinear as fronteiras porosas de uma formação

discursiva? Ou ainda, especificamente, em relação ao nosso corpus, como delinear a formação

discursiva na qual se insere o discurso de divulgação científica para crianças?

Vale destacar que para se chegar a uma formação discursiva, é necessário trabalhar as

condições de produção de um discurso em relação à tensão entre os processos de paráfrase e

de polissemia e em relação ao interdiscurso – aquilo que fala antes, em outro lugar e que torna

possível todo dizer. Ou seja, indicar como se dá, no níve l da formulação, o funcionamento do

176

discurso em relação às filiações de sentido, às articulações de aliança ou de antagonismo entre

as ordens que constituem o discurso em jogo.

Para que seu dizer faça sentido, é preciso que o sujeito inscreva-se em uma formação

discursiva. Retornando ao que foi exposto no capítulo 1 desta tese, a formação discursiva é o

lugar de constituição de sentidos, matriz de sentidos. Suas fronteiras esburacadas permitem

que outras formações discursivas a perpassem. Disso resulta dizer que não são regiões de

sentido fechadas; a permeabilidade de suas fronteiras possibilita formar, em seu interior, não

só estabilidade, mas também contradição, antagonismo – que novos sentidos se constituam.

A formação discursiva também é o lugar no qual sujeito se subjetiva, ou melhor, é filiando-se

a uma formação discursiva que delineia o que pode e deve ser dito sobre ciência para criança

que o divulgador se subjetiva e seus dizeres fazem sentido.

Ao longo das análises dos capítulos 4 e 5, observamos que há uma tomada de

posição103 do divulgador que re-atualiza saberes de distintas ordens, que reorganiza a

memória de dizeres da ciência, da criança, do ensino e da própria mídia. Nesse sentido,

buscamos retomar como, em uma tomada de posição do divulgador, pode ser observado o

modo de caracterizar uma formação discursiva.

Vimos, nos capítulos precedentes, que a divulgação científica é significada no interior

da problemática da comunicação entre ciência e público. Nas análises da revista, verificamos

que a divulgação também é concebida pelo imaginário da comunicação. Daí o sentido

depreendido do divulgador como aquele que pode mediar os dois discursos (da ciência e do

cotidiano), promovendo aproximações e afastamentos ora com o leitor, ora com o cientista.

Outro sentido também foi depreendido, o de ensinar – cabendo ao divulgador ensinar seus

leitores-aprendizes.

A representação da criança, como uma categoria de vir-a-ser-adulto, é construída

pautando-se no imaginário da “especialização do mundo infantil”, tomado como o mundo da

fantasia, da ficção. Nesse imaginário, absorve-se o sentido de aluno e passa-se a representar a

criança como aluno que é significado pela falta: aquele que não sabe, mas aprenderá com o

divulgador.

A ênfase na criação individual do cientista apaga a complexa relação de poder que

intervêm no processo de produção de conhecimento. O sentido de produção de ciência, uma

ciência produtora de verdades, é marcado pela curiosidade do cientista, que passa a ser o

103 Pêcheux (1988 [1997]) elucida que “tomada de posição não deve ser compreendida como um ato original do sujeito do discurso, mas um efeito-sujeito em relação à forma-sujeito” (Pêcheux (1988 [1997]).

177

motor para o desenvolvimento da ciência e, consequentemente, faz avançar cientifica e

tecnologicamente a sociedade.

A curiosidade da criança, construída como um paralelismo da do cientista, é absorvida

pela condição de futuridade do vir-a-ser-cientista, uma forma de manutenção das relações de

identificação com a formação discursiva que abriga esse discurso. Um sentido para ensino

também é produzido no interior dessa FD, como o da ordem da falta que a revista vem

preencher, tanto para leitor-criança, quanto para leitor-professor. Por fim, destacamos que, no

interior dessa FD, também se abriga o antagônico. Sendo ele rechaçado pelo sujeito-

divulgador, marcando sua condição de não-ciência.

Observamos, em nossa análise que o divulgador se identifica com uma determinada

formação discursiva, que se relaciona com diferentes discursos e inscreve seu dizer no fio do

discurso. Podemos falar, então, que o sujeito-divulgador inscreve-se em uma FD, a qual

denominamos de Formação Discursiva do Discurso de Divulgação Científica para

Crianças – uma formação discursiva que se inscreve no entremeio do discurso da ciência, da

mídia, do cotidiano e do ens ino. É importante ressaltar que, ao mesmo tempo, esse sujeito

identifica-se com tal FD, constitui-se como sujeito-divulgador e constrói sentidos para o

discurso de divulgação científica para crianças.

Como já tivemos oportunidade de falar no capítulo 3, o sujeito-divulgador movimenta-

se (aproximando-se ou não) entre os saberes da ciência, da mídia, do cotidiano e do ensino. É

o divulgador que regula, sob o olhar da mídia, não só o que da ordem da ciência deve ser

divulgado, mas também o modo como o conhecimento científico deve ser divulgado para a

criança. A FD do discurso de divulgação científica para crianças é atravessada por vários

dizeres, de várias ordens, mas, sobretudo, é atravessada pelos dizeres sobre a criança em

nossa sociedade. É atravessado pelo ludicismo.

178

CAPÍTULO 6: Quando o leitor é autor

Neste capítulo, buscamos analisar a seção “Cartas” da revista Ciência Hoje das

Crianças. Nosso principal objetivo é analisar as posições ocupadas pelo leitor em cartas

enviadas à revista. A principal noção mobilizada é a de função-autor, visto ser a seção de

cartas um possível espaço dado à voz do leitor.

6.1 Por falar em cartas de leitores

Ao dizer cartas de leitores deixamos de dizer: cartas administrativas, cartas de

comércio, cartas de navegação, cartas de Sesmaria, cartas de... É o adjunto que definiria um

determinado tipo de carta104? E lhe daria outros sentidos? No Dicionário Houaiss de Língua

Portuguesa, encontramos nove tipos de cartas, mas a carta de leitores não é mencionada. Não

seria essa também um tipo de carta105? Qual é, então, o sentido de “cartas de leitores”?

No decorrer da prática institucional da imprensa, as cartas (ou trechos delas) foram

introduzidas no interior de periódicos106. Com qual finalidade? Para efetivar a comunicação

entre o público e o periódico? As cartas de leitores inseridas em periódicos brasileiros podem

ser datadas desde o início do século XIX. Eram publicadas na seção “Correspondência” de

vários jornais oitocentistas. Como podemos observar, a carta dos leitores é uma prática

institucionalizada na imprensa há pelo menos dois séculos, no entanto, a expressão ainda não

foi dicionarizada. Mas nem por isso deixa de significar, de ressoar determinados sentidos e

silenciar outros.

Nesta seção, apresentaremos um conjunto de visões diversas sobre esta temática.

Buscamos pesquisas cujo objeto de análise fosse a carta de leitores. Não só cotejamos alguns

104 Na Antigüidade, sobretudo no período helênico, a carta era tida como uma conversa escrita, tendo como principal característica o caráter dialogal. Dois tipos de cartas existiam: a pública, que servia aos negócios, e a privada, de cunho familiar e íntimo. Ambas as cartas encenavam o encontro de dois sujeitos: quem as escrevia e quem as lia (cf. Tin, 2005). 105 Pessoa (2002) destaca que vários documentos de natureza distinta são escritos sob a forma de cartas (carta de alforria, carta de aviso, carta de crédito, etc.). O autor completa, em uma nota, dizendo que “curiosamente a palavra cartório ainda guarda o radical carta no sentido de documentos” (Pessoa, 2002: 203). 106 Hypólito da Costa, produtor/editor do periódico “O Correio Brasiliense” – produzido em Londres, no início do século XIX, afirmava receber várias cartas de leitores brasileiros (cf. Oliveira, 1997 e 1998), mas não as publicava.

179

estudos a fim de demonstrar a relevância do tema, como também nos valemos de tais

pesquisas na tentativa de estabelecer um diálogo: o que é dito sobre carta de leitores. É

importante ressaltar que muitos desses são trabalhos de orientações teóricas distintas da nossa.

As diferentes pesquisas consultadas fundam-se sobre algumas distinções: cartas pessoais X

cartas não-pessoais; destinatário específico X destinatário genérico; existência de

cumprimento X existência de título, dentre outros.

Em um estudo sobre cartas à redação de jornais do século XX, Melo (1999), em tese

de doutorado que aborda os gêneros discursivos, considera que a carta é empregada em

situação em que há ausência de contato imediato entre emissor e destinatário. Seu corpus é

constituído por 293 cartas publicadas nos jornais OESP, FSP, JB, e O Globo107. Para a autora,

a carta à redação não pode ser tratada como uma carta qualquer, uma vez que configura “um

tipo específico de interação verbal, aquela que se estabelece entre leitor e o jornal” (Melo,

1999: 14). A especificidade residiria no caráter público de tais cartas, pois, enquanto as cartas

pessoais têm caráter privado, as de leitor são de cunho público.

Podemos apresentar, resumidamente, as constatações de Melo (idem). Para a autora, as

cartas de leitores, diferentemente das cartas pessoais, têm caráter público, visto que circulam

no contexto jornalístico em seções específicas, e destinam-se a um público bastante

indeterminado. Segundo a autora, a estrutura básica da carta de leitores apresenta seção de

contato, núcleo da carta e seção de despedida. Não seria esta uma estrutura próxima àquela

das cartas pessoais?

Parece-nos que sim. Há uma tensão entre público e privado. Acreditamos que não se

trata da carta de leitor ser uma ou outra, mas de constituir-se no entremeio dessa tensão.

Gostaríamos de voltar à questão do público leitor, tal como apresentada por Melo

(1999). Os leitores são tomados como sujeitos empíricos, porquanto a autora toma a relação

entre presença e ausência físicas fundamental na produção de cartas. Por outro lado, tendo

como base a definição de discurso como efeito de sentido entre interlocutores, consideramos

que há um jogo de imagens que constitui esse discurso, conforme apontamos no capítulo 1.

Quando o leitor do jornal/revista, em posição de autor, formula uma carta, antecipa a imagem

de seu leitor – imagem esta já construída pelo jornal/ revista. Em outros termos, o leitor da

carta de leitores (assim como das outras seções da revista) é um leitor construído e sustentado

pelas representações imaginárias do jornal.

107 Seu corpus foi composto exclusivamente por cartas que dizem respeito às grandes discussões de caráter nacional postas no centro do debate público pela própria imprensa brasileira.

180

Destaca-se que o espaço reservado às cartas à redação é sempre reduzido. Além das

cartas, esse espaço é utilizado para correções, alterações e complementações feitas pelo jornal,

como também para o direito de resposta108, procedimentos que implicam perda do espaço

reservado para o leitor.

E perguntamos: por que o espaço dado ao leitor é reduzido? A redução do espaço

operado pela mídia é utilizada como justificativa dada para efetuar os cortes. É uma

justificativa tautológica. Poderíamos pensar que talvez a relevância da voz do leitor para a

mídia também seja reduzida. Observamos que, o espaço que se pretende ofertar ao leitor,

funciona como uma dobra, uma protuberância no discurso do jornal/revista que volta para ele

próprio. Em nossas análises da CHC, trataremos mais enfaticamente desse funcionamento das

cartas de leitores.

Quanto ao trabalho de Melo (1999), a autora interroga-se sobre o que faz que uma

carta mereça ser publicada no meio de tantas outras com um espaço reduzido. Nem todas as

cartas são publicadas. Elas passam por um processo de seleção e são, em geral, editadas antes

da publicação. O jornal modifica as cartas recebidas, visto que corta trechos, introduz um

título por sua escolha, acrescenta comentários e respostas a uma pergunta ou a uma queixa ou

a uma sugestão do leitor. Tudo feito segundo “certas regras” (Melo, 199: 23) postas por cada

jornal. Também concordamos que o sujeito sofre interdições no seu dizer. É o jornal que

seleciona as cartas a serem publicadas e reformula-as, corta-as, de acordo com determinado

gesto de argumentação.

Para nós, analistas do discurso, o controle se dá na ordem do discurso e não no

conteúdo. Em seu funcionamento ideológico, as palavras apresentam-se como transparentes

como possíveis de serem atravessadas de forma a atingir seus “conteúdos”. Pomos em causa o

efeito ideológico que produz a ilusão de referencialidade. De maneira a criticar esse

“conteudismo”, Orlandi (2004a [1996]) faz distinção entre forma abstrata (que perpetua a

divisão entre forma e conteúdo) e a forma material, que é histórica, porquanto opaca e

108 O direito de resposta é um dispositivo legal, isto é, um caso explicitamente previsto por lei. E de acordo com a letra da lei, qualquer um pode recorrer a tal dispositivo quando se sentir injustiçado ao ser citado nas páginas de um jornal. A resposta pode ser publicada no espaço destinado às cartas de leitores ou em outra parte do jornal e/ou revista. Fraga (2005) identifica em sua pesquisa o germe do direito de resposta. Ou melhor, a partir de uma demanda específica (período de grandes rebeliões) em que não havia ainda um direito constituído (a lei da imprensa é promulgada, no Brasil, em 1967), os jornais concediam uma possibilidade de resposta por parte do injuriado, um contrato implícito que funciona como um instrumento do juridismo . O que nos interessa nesta contextualização do direito de resposta é a relação entre o jurídico e o juridismo (Lagazzi, 1988). Nos jornais oitocentistas, a conceder uma resposta, possibilitava dirimir situações conflitantes por um não dito, pelo implícito. Afinal, todos deveriam ter os mesmos “direitos e deveres”, intertextualidade feita com a “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”, aprovada em 26 de agosto de 1789 pela Assembléia Nacional Constituinte na França.

181

passível de ser afetada pelo equívoco. Em nossas análises das cartas de leitores da revista

CHC, não consideramos a forma abstrata, mas a forma material, visto que para nós o que

importa é a língua na história.

Melo (1999) defende que o leitor tem uma parcela de “responsabilidade” na escolha

das cartas, uma vez que deve “convencer o jornal de que é a sua carta, no meio de tantas

outras, que merece ser publicada” (Melo, 1999: 28). O leitor deve fazer com que o jornal

preserve seu texto de forma que “suas opiniões cheguem aos demais leitores da forma mais

fiel possível” (idem). Assim sendo, o sujeito não só é responsável pelo seu dizer, como

também é responsabilizado pela seleção do jornal. Cabe a ele conhecer certas regras e

convencer o jornal a publicar sua carta.

Na perspectiva assumida por Melo (idem), postula-se um sujeito que deve utilizar

linguagem clara, concisa, objetiva, ou melhor, transparente, pois, dessa forma, as opiniões

chegariam aos demais leitores de forma mais fiel possível. E aí os efeitos de sentido

constitutivos do discurso jornalístico (ilusões de neutralidade, objetividade, imparcialidade)

reaparecem como ideais para a escrita de cartas de leitores. Cabe ainda perguntar: fiel a quê?

Fiel ao sentido unívoco posto pelo jornal/revista. Fiel aos gestos de argumentação, ou

seja, práticas de descarte e tomada de enunciados imersos em formações discursivas. Melo

(1999), ao que tudo indica, pretende oferecer ao sujeito pragmático o segredo da carta

publicável. Poderíamos dizer que a autora propõe ensinar regras (lingüísticas?) que

orientariam o sujeito em posição de remetente a produzir cartas enviadas à redação. Do nosso

ponto de vista, não se trata de aprender regras, mas de identificar-se ou não com saberes de

uma formação discursiva, no caso, a formação discursiva em que se inscreve o jornal/revista.

Consideramos que as cartas estão sujeitas a dispositivos de silenciamento: desde cortes

de trechos até abreviações ou substituição de nomes. Esses cortes efetuados fundamentam-se

nos gestos de argumentação (Pfeiffer, 2000) de cada jornal e/ou revista. Afinal, não é tudo

que pode ou deve ser publicado no espaço das cartas.

Passos (2003), que se filia a um arcabouço teórico da lingüística textual, analisa cartas

de leitor das revistas Nova Escola e Educação. De seu ponto de vista, a carta do leitor

diferencia-se dos demais tipos por ser uma “carta aberta” dirigida a um destinatário

indeterminado, e por poder ser lida publicamente. O autor da carta utilizaria estratégias para

dar ao seu leitor a impressão de proximidade entre ambos. Desta forma, a carta de leitores é,

para a referida autora,

uma carta aberta dirigida a destinatários desconhecidos. Ela é veiculada através dos meios de comunicação escrita, de circulação ampla ou restrita, tem caráter público,

182

cumprindo importante função social na medida em que possibilita o intercâmbio de informações, idéias, opiniões entre diferentes pessoas de um determinado grupo. Nestas cartas, encontramos o português escrito no padrão formal, atual, da forma como é concebido pela comunidade usuária (Passos, 2003: 81 – itálico da autora e grifos nossos).

Lemos, na citação acima, que a função social da carta de leitores inserida em jornais

está em consonância com a própria “função social” do jornal: intercâmbio de informações.

As cartas reforçam o imaginário da imprensa como aquela responsável por informar e

esclarecer a população. Em relação ao português escrito no padrão formal, atual da forma

como é concebido pela comunidade usuária, resta-nos interrogar: qual a forma padrão da

mídia? Concebido por quem? À qual comunidade usuária a autora se refere? A forma padrão

seria aquela referente à gramática normativa? Ou ao manual de redação? À língua ensinada na

escola? Não teríamos uma resposta precisa. No entanto, podemos afirmar tratar-se de uma

língua imaginária, com regras e fórmulas definidas (cf. Orlandi e T. Souza, 1987).

Em seu estudo, Passos (2003) verifica que a estrutura de tais cartas sofre um

rompimento em relação a alguns elementos estruturais da carta pessoal: “as cartas veiculadas

nos meios de comunicação aparecem sem data, e o local [...] é colocado na parte inferior,

enquanto o vocativo desaparece, surgindo em seu lugar ou um espaço em branco ou o assunto

abordado no corpo do texto” (Passos, 2003: 85). O espaço destinado à localização espacial

aparece após a assinatura do remetente. A data, por sua vez, é determinada pela edição da

revista. O vocativo desaparece, surgindo em seu lugar um título atribuído pela revista. No

final do texto, apresenta-se o nome do remetente e, em alguns casos, a função exercida pelo

mesmo, o que acaba por tornar a carta semelhante à “correspondência institucional como o

ofício e a carta comercial” (idem : 86).

Nesse ponto, ressaltamos mais uma vez, a tensão existente entra as ordens do público e

do privado. Portanto, não se trata de classificar as cartas dos leitores como sendo pessoais

(ordem do privado) ou comerciais (ordem do público), mas de considerar a tensão que as

constitui e que produz determinados efeitos.

Cecílio e Ritter (2008), em uma perspectiva discursiva, analisaram cartas de leitores

veiculadas nas revistas Ciência Hoje das Crianças e Veja. As cartas de leitores são, para as

autoras, cartas que circulam no contexto jornalístico em seções específicas. São utilizadas em

situação de ausência de contato imediato entre o leitor da revista e a equipe da redação.

Reforçam os laços sociais entre leitores e a revista, uma vez que vendo suas cartas publicadas

e respondidas, os leitores sentem-se valorizados e, consequentemente, a revista mantém o

183

público leitor. Constitui-se “uma estratégia de marketing positiva para a própria revista”

(Cecílio e Ritter, 2008: 97).

As autoras defendem que as cartas são produzidas em co-autoria, visto que passam por

edições em razão do espaço físico, como também por um direcionamento argumentativo. Em

outros termos, “tanto o leitor quanto os editores constroem o discurso de acordo com a

apreciação valorativa que fazem sobre a revista e sobre o tema” (idem : 96).

Acreditamos que qualquer texto – apresentando-se como uma unidade fechada,

embora não o seja – produz diferentes posições-sujeito. Há, em sua pretensa origem, um

sujeito que se individualiza em posição-autor. No caso específico da carta de leitores, a

função-autor é exercida tanto pelo leitor (como veremos mais adiante em nossas análises)

quanto pelo divulgador. Mas a relação não é direta quanto possa parecer.

Devemos observar, então, como os processos de constituição, formulação e circulação

dos sentidos ocorrem nas cartas de leitores. A constituição trabalha com a memória (os já-

ditos que possibilitam nosso dizer) e os efeitos de sentido produzidos a partir de uma posição-

sujeito, que no caso da seção (posição- leitor-criança ou posição- leitor-professor, por

exemplo). No nível da circulação, a carta pessoal funda-se no âmbito do privado. Entretanto,

ao ser endereçada a um jornal ou a uma revista e, portanto, circular em outro espaço

discursivo, a carta é feita pública. A formulação, como já vimos, refere-se à produção.

Quando o divulgador suprime trechos e acrescenta títulos, ele produz uma versão – uma

formulação em relação a outras possíveis – e também se individualiza em posição-autor de

carta de leitores. Vale destacar que cada versão relaciona de modo específico as suas

condições de produção com a memória discursiva. Assim sendo, não nos parece possível falar

em co-autoria.

Uma característica apontada no trabalho de Cecílio e Ritter (2008) é a incorporação de

títulos às cartas. Estes, por não aparecerem em cartas pessoais, são considerados uma

especificidade das cartas de leitores. O título das cartas – atribuídos pela revista – parece ter

como função sintetizar as opiniões expressas, ou ainda uma forma de sumarizar os assuntos

expostos nas cartas selecionadas.

Em geral, os títulos das cartas de leitores da CHC, destacados em fonte maior e em

negrito, têm, de acordo com as autoras, a função de sumarizar os assuntos expostos nas cartas.

Já na revista Veja, um título é atribuído a um bloco de cartas que são, em geral, organizadas

por assunto, pela reportagem à qual se referem ou ainda por tratarem de assuntos de uma

mesma seção. Os títulos serviriam, segundo as autoras, para que o leitor visualizasse

rapidamente o assunto tratado e decidisse sobre a efetivação ou não da leitura.

184

Para além da função pragmática de sintetizar ou sumarizar, consideramos que os

títulos são produções dos editores em posição de autor que funcionam discursivamente numa

tentativa de controlar sentidos, ou seja, demarcadores do que pode e deve ser dito ao longo da

produção de cartas. Trata-se de um mecanismo de uniformização.

As autoras apresentam algumas distinções entre as cartas de leitores das duas revistas

e destacam que, na revista Ciência Hoje das Crianças, as cartas assemelham-se à carta de

cunho pessoal, não só por apresentarem saudação, apresentação do remetente, assunto e

despedida, mas especialmente por manterem alto grau de proximidade entre revista e leitor.

Afirma-se que “a intenção da escrita das cartas pelos leitores parece ser a de interagir e

manter correspondência com a revista e outros leitores e isso reforça a idéia de aproximação

da carta do leitor com a carta pessoal” (Cecílio e Ritter, 2008: 105). Por parte da revista, a

aproximação dar-se-ia pela resposta do editor, mantendo a interação, ou melhor, “fazendo

com que um dos objetivos da escrita de carta seja atingido: a correspondência” (idem : 103).

Por parte do leitor, pelo uso de informalidade e afetividade (períodos curtos e menos

elaborados – o que mostraria a “linguagem espontânea das crianças” (ibidem) – recursos de

pontuação como exclamações e interrogações, tom de polidez, escolha lexical de avaliação

positiva, produção com o sufixo –inho e uso de intensificadores. Esses usos, para as autoras,

são uma forma de sedução do remetente da carta para ver seu texto publicado na revista.

Gostaríamos de ressaltar alguns pontos. O primeiro é que para a AD o leitor não é um

sujeito de intenções. Seu “ângulo de manobra” seria o de produzir formulações daquelas

possíveis em uma formação discursiva. O segundo ponto refere-se à saudação. Vejamos

alguns exemplos retirados das cartas da CHC : “Olá, gente da Ciência!”; “Oi, CHC!”; “Oi,

galera da redação da CHC”; “Olá, pessoal!”; “Olá, amigos da CHC!”; Oi, pessoal!”. As

interjeições “oi” e “olá”, tradicionalmente, determinadas como uma forma de expressar

cumprimento, apresentam-se, na materialidade discursiva, como uma marca da identificação.

O sujeito- leitor enuncia “oi” ou “olá” por reconhecer a si próprio e ao outro (consenso

subjetivo), sujeito-divulgador (representado por: gente da Ciência; galera da redação, pessoal,

etc.) como sujeitos interessados por ciência. Ou melhor, o leitor, em função-autor, identifica-

se com esse lugar que fora construído para ele no interior da divulgação científica.

Em relação à revista Veja, as autoras afirmam haver uma “hierarquia criada pelos

editores da revista” (Cecílio e Ritter, 2008:100), que segue a seguinte ordenação: as duas

primeiras cartas fazem referência à reportagem lida e tecem elogios à revista pela reportagem;

as demais tecem críticas e comentários; a última apresenta a opinião de especialista na área do

tema tratado. As cartas com críticas enviadas à revista Veja são escritas em tom de

185

questionamento, não apresentam marcas de afetividade e não têm características de carta

pessoal.

Para as autoras, o que diferenciaria as cartas das duas revistas seria o público-alvo,

fato que exerce mudança de objetivos, de nível de linguagem, de organização estrutural e de

propósitos diferenciados.

De maneira crítica frente à posição das autoras, construímos nossa posição a partir da

colocação de Pêcheux (2002 [1983]) que nos lembra que ninguém pode estar seguro de saber

o que se fala; os sujeitos estão inscritos em filiações de sentidos, e “isto acontece tanto nos

segredos da esfera familiar ‘privada’ quanto no nível ‘público’ das instituições” (Pêcheux,

2002 [1983]: 55).

Ressaltamos que o que difere as cartas é a imagem de leitor construída em cada

revista. Isso implica dizer que a imagem do leitor é resultante de um jogo de projeções, pois a

imagem que o leitor faz de si, ao se posicionar em função-autor, é dominada pela imagem

desse leitor já construída pelo jogo das representações imaginárias. Dessa forma, podemos

dizer que as distinções estão atreladas às imagens construídas, no interior de cada revista, de

um leitor-criança ou leitor-adulto.

Nas cartas da CHC, a aproximação posta em relação a uma carta pessoal (pelo formato

e pela resposta do editor) configura um efeito de pessoalidade, pautado no que é considerado

a subjetividade da criança (com uso de diminutivo, expressões valorativas e resposta do

editor). Comparar as cartas dos leitores da CHC a cartas pessoais é colocar a criança no lugar

daquele que não tem condições para questionar e que só envia relatos, depoimentos –

supostamente enunciados do âmbito privado. Por sua vez, marcadas pelo comentário e

questionamento, as cartas enviadas à revista Veja apontam para um leitor-adulto que possui

determinado conhecimento. O efeito produzido é o de seriedade, daquilo que pode tornar-se

público. Essa distinção entre as cartas é marcada por um ilusório antagonismo: a subjetividade

da criança, por um lado, e o objetivismo do adulto, por outro. Como já vimos no capítulo 2,

uma maneira do jurídico relacionar-se com a criança por meio do ludicismo.

Outra questão trazida pelas autoras é a da auto-referenciação. Cecílio e Ritter (2008)

consideram que, por meio das cartas de leitor, as revistas se auto-referenciam, uma vez que

selecionam textos que elogiam e/ou fazem referência a matérias publicadas. Em outros

termos, a revista seleciona as cartas enviadas à redação, titula-as, editora-as.

Também concordamos que, mesmo publicando cartas assinadas por leitores, a revista

consegue legitimar seu dizer, ou seja, imprimir sua presença em um espaço tido como do

leitor. No entanto, não se trata de auto-referenciação, como se as cartas fossem um reflexo

186

direto da revista. Do nosso ponto de vista, o leitor identifica-se com a formação discursiva que

constitui a revista e tende a absorver o já-dito, ou seja, o que já foi dito na e pela revista.

Consideramos que se produz, nas cartas de leitores, um efeito de propaganda. Voltaremos a

essa questão em nossas análises.

Foram vários os aspectos apontados pelas pesquisas de Melo (1999), Passos (2003) e

Cecílio e Ritter (2008). Resumidamente, podemos concluir que um fato comum reuniu todas

as pesquisas citadas: a carta de leitores é considerada, do ponto de vista pragmático, como um

elemento que possibilita o estabelecimento da comunicação entre leitor, jornal e público.

Outro aspecto abordado foi a questão da cisão entre cartas pessoais e públicas. O

posicionamento das diferentes autoras oscila entre considerar se a carta de leitor publicada nos

jornais e revistas mantém uma forma que a assemelha à carta pessoal ou não. Para qual,

diferentes justificativas foram atribuídas. Vale salientar que a tensão existente entre público e

privado constitui a carta do leitor.

Nos trabalhos citados, percebemos que a prática da escrita epistolar está fundada na

relação entre remetente e destinatário. Do nosso ponto de vista, deslocamos a análise das

cartas de um domínio de perspectiva comunicativa para o discursivo, considerando não mais

os dois pólos enunciativos (remetente e destinatário), mas posições-sujeito que comparecem

no discurso das cartas. Devemos atribuir a P. Souza (1997) a elaboração teórica desse

deslocamento, o que será feito na próxima seção.

Observamos ainda que o imaginário que circula sobre a carta de leitores, inserida no

discurso jornalístico, promove a imagem de um sujeito centrado, autônomo que pode exercer

controle até mesmo na seleção e reformulação de sua carta enviada à redação de um jornal

e/ou revista.

Nesta primeira parte do capítulo, contrapomos os trabalhos de Melo, Passos, Cecílio e

Ritter à nossa perspectiva teórica. Esse movimento de aproximação e distanciamento nos

auxiliou a pensar discursivamente as cartas de leitores da CHC. Auxiliou-nos, sobretudo, a

construir um dispositivo analítico.

De forma a analisar as cartas de leitores da CHC, partimos de sentidos hegemônicos

que circulam em nossa sociedade, ou melhor, previamente estabelecidos e socialmente

instituídos do que são cartas de leitores e de quais são seus fins. Cabe ressaltar que o espaço

atribuído à publicação de cartas de leitores na revista não é construído fora dessas

determinações históricas. Para fundamentar nossas análises, recorremos aos trabalhos de

quatro autores que se inserem em nossa perspectiva teórica. Delinear suas contribuições será o

foco de nossas próximas páginas.

187

6.2. Seção de cartas e Análise do Discurso

De acordo com as pesquisas apresentadas na seção anterior, a carta de leitores é

entendida como uma forma de comunicação. Nessa perspectiva, a prática epistolar, inserida

no discurso jornalístico, teria como função estabelecer o contato entre o periódico e os

leitores, como também a comunicação entre leitores. O espaço construído para publicação de

cartas de leitores seria o de sua participação no processo de produção/construção do discurso

jornalístico.

As cartas funcionariam apenas para ratificar a comunicação entre leitores ou entre

leitores e revista/cientista? Se não, qual o funcionamento discursivo das cartas de leitores (ou

trechos destas) inseridas na revistas CHC? Para responder as questões, trazemos à baila outros

elementos para discussão. Mobilizamos as contribuições de P. Souza (1997), sobre cartas e as

de Mariani (2006), Grigoletto, (2005) e Soares (2006), sobre cartas de leitores.

P. Souza (1997) analisa, sob o enfoque discursivo, cartas enviadas ao Somos – Grupo

de Afirmação Homossexual, principal organização que atuou em São Paulo e no Rio de

Janeiro, entre 1978 e 1984, na luta pela liberação e afirmação da homossexualidade. Seu

corpus é composto por cartas pessoais de não militantes, ou seja, sujeitos que não tinham

ligação com o ativismo político. Trata-se de um corpus composto por “relatos de experiências

da gestão de um segredo em um certo setor individual e coletivo da vida” (P. Souza, 1997:

49). De acordo com Souza, os sujeitos que enviaram suas cartas ao Somos, recorreram à

escrita epistolar como uma forma de confidência, ou seja, confidenciar ao grupo um segredo,

comparecendo, dessa forma, o jogo entre o privado e público.

Embora o trabalho ora citado não verse sobre cartas de leitores, suas contribuições são

de grande relevância para nossa tese, uma vez que trabalha discursivamente o embate entre

público e privado em cartas pessoais. Foi possível identificar, com as análises das cartas

enviadas ao grupo Somos, que os princípios que regem o processo de elaboração e abertura de

si como sujeito da homossexualidade fundam-se em um âmbito ao mesmo tempo público e

privado.

Outra importante contribuição de P. Souza é o deslocamento operado na distinção

entre destinatário e remetente. “A detenção do jogo de efeito de sentido encontra-se nos dois

interlocutores que, ao jogar, efetuam cruzamentos discursivos marcando a especificidade de

suas posições” (P. Souza, 1997:54). E complementa dizendo: “o interlocutor, na posição de

destinatário, está posto no mesmo espaço discursivo do remetente” (idem), ou seja, nessa

posição, o interlocutor não está ausente, ele também constitui o discurso das cartas.

188

Com o objetivo de comparar colunas de consultório psicanalítico109 publicado em

jornais cariocas e discutir a questão da subjetividade, Mariani (2006) propõe que as cartas

enviadas para essas colunas a um só tempo configuram a posição do sujeito enquanto autor da

carta enviada e a posição de leitor do jornal e de outras cartas.

Para Mariani (idem), as cartas de leitores, que trazem questões de cunho emocional

para serem respondidas e elucidadas pelo responsável da coluna de consultório, no plano

imaginário,

estabelecem um elo comunicativo na acepção mais tradicional. Da parte do leitor-missivista há, em termos pragmáticos, uma intenção: ele quer ser compreendido, precisa/pede conselhos, quer escrever com clareza e espera, ou supõe, ter alcançado uma transparência na linguagem utilizada (Mariani, 2006: 39-40 – grifos nossos).

O leitor depreendido nas cartas é tido como uma individualidade bio-psico-social,

submisso ao “império da razão e da consciência”. Um sujeito identificável, senhor de suas

vontades e capaz de controlar seu dizer. Só um “caminho” deve ser trilhado por esse leitor-

missivista: “assujeitar-se aos processos normativizadores de individualização promovidos

pelo Estado, institucionalizados jurídica e pedagogicamente e difundidos pela mídia como

lugar de divulgação de sentidos logicamente estabilizados” (idem : 23). Na individualização do

sujeito pelo Estado, a mídia, regulada e também reguladora das instituições, dá diretrizes a

serem realizadas na sociedade: o que ler, o que perguntar, o que responder. Mariani (2006)

afirma que há uma padronização nos modos de organização dessa agenda, isto é, “uma

homogeneização histórica do sujeito” (ibidem : 21).

As cartas enviadas e publicadas nos jornais, em sua maioria, ratificam o imaginário do

discurso jornalístico: o que se publica é um retrato do que acontece. Construiu-se

historicamente, na relação entre jornais e leitores, uma ideologia utilitarista, pela qual pessoas

têm necessidade de saber os fatos. O papel da imprensa seria o de informar os fatos mais

relevantes ocorridos para a população em um determinado período. O discurso produzido pela

imprensa é uma prática discursiva que atua na construção e reprodução dos sentidos.

Na relação entre jornais e leitores está presente a concepção imaginária de relevância –

só é importante porque é publicado nos jornais ou só foi publicado porque é importante. O

efeito que é criado é o de veracidade. Paradoxalmente, nas colunas de consultório a

“higienização de informação” (Mariani, 2006: 34) encontra-se afetada, uma vez que se

configura um relato pessoal, narrado em 1ª pessoa de modo subjetivo. A princípio, seria

possível considerar essas colunas como uma falha no ritual ideologicamente construído pela 109 As colunas analisadas foram: No Divã do Mascarenhas (de 1983 a 1991), no Última Hora; Conversando na varanda (de 1998 a 2001), no Jornal do Brasil; Vida Íntima (de 1998 a 2002), em O Globo.

189

informatividade jornalística, pois as cartas poderiam representar um lugar de produção de

sentido outro. A falha seria, portanto, provocada pela irrupção da subjetividade, pessoalidade

das cartas. Feitas as análises, Mariani (2006) adverte que as colunas, tal como atualmente

inseridas no discurso jornalístico, constituem-se em espaços marcados e autorizados pelo

discurso jornalístico, portanto não ameaçam o ritual, posto que são falhas autorizadas. As

cartas reforçam a ilusão de neutralidade e de veracidade do discurso jornalístico.

A uniformização temática das cartas funciona de modo a apagar a diferenças

subjetivas. O que acaba por reforçar para o missivista uma individualização que não é outra

senão a submissão a construtos modelizados socialmente, cabendo aos leitores “a submissão

aos efeitos ideológicos da dominância imaginária dos sentidos” (Mariani, 2006: 42).

Soares (2006), em sua tese de doutorado, analisou cartas de leitores publicadas nas

seções “Com a Palavra (revista Isto é), “Cartas” (revista Veja) e “Desabafa – solte o verbo”

(revista Superinteressante), no período de 1987 a 1991. Para Soares (idem), a seção de cartas

é uma atividade controlada e editada pelas revistas, mas, sobretudo, são construções que

partem de “outra proposta diante da informação” (Soares, 2006: 196 – grifos do autor). Elas

tecem comentários110 sobre as notícias veiculadas pelas revistas e fazem considerações sobre

o discurso jornalístico. Contudo, de forma alguma essa outra proposta apaga o efeito do

discurso jornalístico de ser o responsável pela transmissão objetiva de informações.

As cartas publicadas nos jornais e revistas reiteram o imaginário do que venha a ser o

texto jornalístico, sobretudo, em relação à veracidade (as informações, postas como retrato da

realidade, são absorvidas como verdade). Em outros termos, há a construção de um efeito de

verdade na seção de cartas presente no imaginário dos leitores.

O autor interroga se seria possível deslocar o que se convencionou chamar de

impessoalidade do discurso jornalístico passando à subjetividade na carta de leitores. Após as

análises realizadas, Soares afirma que o espaço das cartas, que se pretende mediador entre o

público e o privado, é uma ilusão de subjetividade. Justifica-se essa ilusão: a) por ser um

espaço construído pela própria revista; b) por a revista determinar o espaço que pode ser

ocupado por ele (o leitor); e c) por essa ocupação ser regulada (não são publicadas todas as

cartas que chegam à redação e nem todo o texto é aproveitado).

Como último trabalho a ser mobilizado, Grigoletto (2005) analisa seqüências das

“Cartas dos Leitores” das revistas Superinteressante e Ciência Hoje. Em suas análises,

considera que o leitor constitui o discurso de divulgação científica não só por meio do efeito-

110 O conceito de comentário utilizado por Soares é aquele definido por Foucault em “A ordem do discurso” (2001 [1971]).

190

leitor, mas também por sua inscrição na função-autor. Para a autora, a seção de “Carta de

Leitores” faz parte do DDC, que por ser intervalar torna possível ao sujeito- leitor inscrever-se

em tal espaço.

As cartas analisadas por Grigoletto (2005) não fazem parte das matérias que tratam de

ciência, elas trazem comentários sobre as matérias, como também são o único espaço em que

a voz do leitor assume a função de autoria dentro da constituição desse discurso. Nessa

posição, o leitor “não mais projetado, discursivamente, enquanto efeito, mas sim projeta

imagens e efeitos em seu dizer” (Grigoletto, 2005: 250). Em nosso caso, as cartas não

comentam as matérias. De fato, os leitores emitem juízos de valor (sempre positivos) sobre a

revista ou partes da revista.

No capítulo anterior, observamos que o funcionamento do sujeito- leitor – uma posição

tomada pelo sujeito de discurso – pode ser depreendido por meio das antecipações de imagens

que o divulgador projeta do leitor, como também pela construção do efeito- leitor. Grigoletto

(idem), ao analisar as cartas de leitores, aponta que o funcionamento do leitor também pode

dar-se pela depreensão das posições-sujeito ocupadas pelo leitor. Devemos lembrar que o

sujeito-leitor é disperso e ocupa uma posição de incompletude tal qual o sujeito-autor. Nas

palavras de Grigoletto, “autor e leitor são lugares distintos de um mesmo processo – a escrita”

(Grigoletto, 2005: 223). Em outros termos, “o sujeito- leitor do DDC passa, então da posição

de leitor virtual à posição de leitor real, assumindo a função-autor” (idem : 227).

Resumidamente, o leitor assume a função de autor e ocupa a posição-sujeito de interpretante,

posição em que é o

o leitor real que está autorizado pela função-autoria, a produzir gestos de interpretação próprios do texto que leu, já que está assumindo a responsabilidade pelo seu dizer. É evidente, no entanto, que tais gestos não estão destituídos de condições sócio-históricas e ideológica específicas, nas quais estão inseridas as determinações, as relações de poder, sobretudo, da mídia (ibidem: 248).

O leitor produz determinados gestos de interpretação ao ler as matérias de divulgação

científica e outros ao produzir cartas enviadas/endereçadas às redações das revistas. Como

Grigoletto ressalta acima, tais gestos são sócio-historicamente determinados, sobretudo, pela

mídia – instituição regulada e reguladora pelo/do Estado. Por meio da distinção das funções

do leitor nas duas revistas de divulgação científica, a autora propõe duas posições para o

leitor: a de interpretante e a de interpretado. A primeira estaria relacionada ao leitor virtual e a

segunda, ao leitor real que se assume como autor ao produzir as cartas dos leitores.

As reflexões de P. Souza, Mariani, Soares e Grigole tto foram basilares em nossa

formulação teórica. Por meio do trabalho de P. Souza, como já apontamos, pudemos

191

compreender que a tensão entre público e privado constitui a carta de leitores. A contribuição

de Mariani possibilitou-nos pensar que cartas funcionam como um espaço de manutenção de

sentidos, uma vez que sofrem no imaginário do discurso jornalístico. Com a pesquisa de

Soares, assim como Mariani, pudemos pensar a ilusão de subjetividade produzida nas cartas.

Por fim Grigoletto, ao tomar as cartas no interior do discurso de divulgação científica - um

discurso intervalar – permitiu-nos analisar o leitor em posição de autor.

6.3 As cartas de leitores da Ciência Hoje das Crianças

As primeiras cartas de leitores foram publicadas no nº 6 e, até o nº 16, em seção

intitulada Correio. Posteriormente, a seção passou a chamar-se Cartas. As modificações na

seção não correspondem somente à alteração de seu nome, mas também de sua estrutura

gráfica e de localização da revista. Se nos números iniciais a seção situava-se na contracapa

ou nas primeiras páginas da revista, após o nº 16, passou a figurar na última página.

São cartas enviadas por leitores variados: assinantes, alunos de escolas públicas e

particulares, crianças de diferentes regiões, mães, professores. Em relação aos últimos, é

possível verificar a presença de professores do ensino básico (de zonas metropolitanas e

rurais) até o final da década de 1990. Fato que se apaga no início do século XXI.

As cartas publicadas mantêm uma diagramação específica: em seu topo, recebem um

título e, no final, a resposta da revista. Além do espaço aberto à publicação de material

enviado pelos leitores, a seção também é utilizada para publicar respostas de jogos, erratas e

resultados de concursos promovidos pela revista.

Alguns poucos leitores relatam que a iniciativa de escrever para a revista surgiu como

uma sugestão de um professor (tal como em projetos de correspondência) ou em proposta de

um livro didático111. Para outros, escrever para a revista serve como uma forma de fazer

amigos; ou ainda como uma promoção de um clube de ciências recém-criado.

Observamos que as cartas publicadas, a partir de 1995, tendem a uma mesma forma

(ou modelo?), como se seguissem um script, sendo que nem sempre todas as informações são

contempladas. E quais seriam as informações? Dados de identificação (nome, idade,

localização); se gosta ou não da revista; como conheceu a revista; se é assinante ou não; qual

a seção/tema/matéria/número que mais gostou; enviar sugestões; autorizar ou não publicação

de endereço/e-mail. Podemos dizer que as cartas funcionam como um “suporte para

111 Ressaltamos que trabalhar a carta em projetos pedagógicos é uma questão antiga. Pessoa (2002) relata que a preocupação em ensinar a redigir cartas remonta ao século XVIII.

192

normatização” (Mariani, 2006: 43), ou seja, produz a ilusão de consenso do que é possível

escrever para a revista CHC. Em outros termos, ao selecionar as cartas, editá- las e publicá- las,

a revista produz um sentido de modelo de carta publicável.

Retornando à descrição, observamos que poucas cartas são marcadas, no fio do

discurso, como sendo reformuladas. Vejamos alguns exemplos: “A professora Maria [...]

escreveu contando” (CHC n 25-Dez., 1991); “A escola Recrearte [...] inspirada em nossa

revista fez uma pesquisa” (CHC n35-Jan./Fev., 1994). Esses trechos indicam que a revista, ao

escolher as cartas que serão publicadas e reformuladas, como também ao proceder a recortes

de trechos das cartas – representados graficamente por colchetes e reticências – efetua gestos

de administração de sentidos. Segundo Grigoletto (2005), as marcas gráficas demonstram uma

maneira de homogeneizar sentidos, são marcas da intervenção da revista. Algo do texto do

leitor foi silenciado. Contudo, esse gesto de administração de sentidos, não impede que os

sentidos deslizem, embora a revista tenha a ilusão de controlar os sentidos ali postos.

Na revista CHC, além das cartas de leitores, há outros espaços consagrados ao leitor

na posição de função-autor. Cumpre destacar que não são inserções esporádicas. Em algumas

o leitor é interpelado a participar de concursos112. A título de exemplificação, listamos: o

concurso “Batizando a abelhinha” (edição número 65 de dezembro de 1996) e o concurso

comemorativo de vinte anos da revista “Sabe quem escreveu? Fui eu!” (edições de 166 a 176,

de março a dezembro de 2006), relatos de experiências científicas realizadas, relatos de ex-

leitoras publicados em uma seção intitulada “Eu li a CHC quando criança!”, uma seção

especial que foi editada no número 175 – edição comemorativa de 20 anos da revista – de

dezembro de 2006. Há também a publicação de artigos produzidos pelos leitores, como: o

artigo “Os pequenos trabalhadores do Brasil”113 editado no número 93 (julho de 1999).

112 Sousa (2000) lembra-nos do desafio “Onde está Rex?” no número 17 e de outros concursos, tais como: nome da namorada do Rex, número 47; quadrinhos, número 73; poesias, número 86. Podemos ainda citar o concurso “Nas asas da imaginação”, sobre Santos Dumont, no número 172. 113O artigo “Os pequenos trabalhadores do Brasil” foi escrito por três alunos do Colégio de Aplicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro sob supervisão do Departamento de Atividades Pedagógicas e Educacionais da instituição. Ao final do artigo, seus autores foram apresentados, assim como objetivo e interesse pelo tema. Os alunos participavam, desde 1998, do programa de Iniciação Científica Júnior da universidade, no projeto “A imagem da cidadania: trabalho infantil realizado no campo”. Uma das realizações do projeto foi uma exposição montada na 51ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Devemos salientar que o artigo, produzido por alunos bolsistas, resultou de um projeto de pesquisa de Iniciação Científica Júnior. Tal condição marca que não é qualquer artigo que pode configurar nas páginas da revista. É um artigo “autorizado”. Destacamos que esse artigo da revista, o único que versa sobre o trabalho infantil foi produzido pelo leitor.

193

6.4. Analisando as cartas

Nosso material bruto corresponde às cartas publicadas a partir do nº 6 até o nº 175

(dezembro de 2006 – edição comemorativa de vinte anos da revista). Contamos com um total

de 169 revistas, com uma média de 5 a 6 cartas por edição114. Não foi possível – tampouco era

nosso objetivo – analisar cada uma das cartas. Nosso critério de análise não se baseia em

dados estatísticos, mas sim nos processos de significação. Porquanto, adotamos um critério de

agrupamento de seqüências recortadas definido em torno de eixos temáticos.

Analisamos apenas o formato da carta tal como editado pela revista. Isso não significa

dizer que desconsideramos a edição feita pela equipe da mesma. Cabe aqui lembrar que

“interessa ao analista de discurso construir um dispositivo analítico de forma a compreender o

gesto de interpretação ali colocado. Mesmo que esse gesto resulte de um amálgama (leitor-

missivista + editor)” (Mariani, 2006: 40). Nosso dispositivo analítico considera as cartas

como uma textualização possível dentre outras, que se constitui no intervalo produzido pela

tensão entre carta pessoal e carta pública.

Dividimos nossas análises em cinco blocos. No primeiro, buscamos compreender

como se dá a construção da seção no interior da revista. Na segunda, interessa-nos identificar

a representação, nas cartas, do leitor em posição de função-autor. No terceiro, pretendemos

compreender os efeitos de sentido produzidos pelo leitor em função-autor ao referir-se à

revista. No quarto, tratamos da questão da higienização lingüística nas cartas. E por fim, no

último bloco, tomamos as críticas da revista como objeto de análise.

Como a seção é construída? A seção de cartas do leitor foi construída paulatinamente. Desde o nº1 (lembrando que

a revista iniciou no nº0), o leitor é interpelado a escrever para a revista. Abaixo, retiramos um

trecho da revista CHC.

114 Uma cópia da seção de Cartas da revista Ciência Hoje das Crianças encontra-se no anexo 13.

194

CHC – n° 1, março, 1987

No segundo exemplar publicado, o número 1, em simulação de um diálogo ent re duas

crianças, encontra-se um convite para escrever para a revista Ciência Hoje. Destacamos que

nesse número a CHC era um encarte. Abaixo transcrevemos o diálogo:

_ O que é isso? _ É o cartaz do encarte infantil da revista Ciência Hoje. Agora de dois em dois meses, a Ciência Hoje vai trazer uma revista também para as crianças. A gente compra a revista grande e vem a pequena dentro. O encarte tem jogos, história de ciência, de bicho, do sol... _ E a gente também pode escrever para Ciência Hoje fazendo perguntas e dando sugestões de assuntos para serem publicados. A revista fica na [...].

Podemos dizer que esse é o momento inaugural da seção de cartas, de convocação do

leitor a escrever para Ciência Hoje. A primeira resposta ao leitor é publicada no nº5.

Vejamos:

195

CHC – n° 5, jan./fev., 1998

A carta do leitor é apenas mencionada, pois o foco recai sobre a resposta ao leitor.

Quem responde é a professora Miriam Giambiagi. Sem outra designação atribuída, além da de

professora, o nome próprio, como já comentamos no capítulo 5, funciona como valorização

do dizer, um lugar de autoridade. Destacamos que no final da resposta da professora, uma

pequena nota “(PS) da Ciência Hoje das crianças” aparece como um adendo, um comentário,

elaborado pelo sujeito-divulgador. Observamos que, no título da revista, a designação criança

é grafada em letra inicial minúscula. Somando-se a isso o fato de a carta do leitor não ter sido

publicada, parece-nos que se constrói um lugar anexo para a criança.

Nesse primeiro momento, a posição do cientista é a dominante em relação às demais.

E, depois de 20 anos de publicação, algo mudou? A mudança das designações Resposta ao

leitor, Correio e Cartas indica a relação estabelecida entre os três sujeitos que compõem o

discurso de divulgação científica para crianças. Se na primeira havia dominância na voz do

cientista, nas demais, essa relação é reduzida até desaparecer. Cria-se uma correspondência

entre divulgador e leitor, sem intervenção da autoridade do cientista. Aqui cabe uma

inquietação: a voz do leitor ganharia relevo?

196

De forma, a responder a questão, recortamos seqüências da seção de cartas e de outras

seções da revista.

SD1: Foi criada uma seção de cartas para vocês mandarem suas sugestões, seus desenhos, histórias, fazerem perguntas também (Editorial – CHC n°8, jul., 1988 ) . SD2: Nosso leitor Rodrigo Camargo A. de Souza escreveu-nos fazendo o seguinte pedido: “Gostaria que vocês falassem sobre a fermentação da cerveja e do pão”. Quem responde é o professor Oswaldo Frota-Pessoa. (É fazendo que se entende – CHC nº 12, mar./abr., 1989). SD3: Maria do Rosário Almeida Braga, que estuda as algas na ilha do Cardoso, responde à carta de Neide Lopes (ES), que perguntava como é fazer pesquisa, na Ciência Hoje das Crianças n° 28 (Cartas – CHC n° 30, Jan./Fev., 1993). SD4: Gostaria de agradecer, pois, na CHC n°49, o endereço do meu Clube de Ciências saiu na Seção de Cartas e, hoje, o Clube já tem 24 sócios. Peço que publiquem novamente o endereço, para que o Clube continue recebendo cartas de crianças de todo o país (Cartas – CHC n°62, set., 1996). SD5: Nós gostaríamos que a revista criasse um espaço para que os leitores pudessem se corresponder com outras crianças. A Seção de Cartas é um espaço legal para vocês se corresponderem com outros leitores. Estamos publicando o endereço da escola e torcendo para que vocês recebam muitas cartas (Cartas – CHC n 77, Jan./Fev., 1998).

Nas seqüências acima, os leitores são interpelados a escrever para a revista (vocês

mandarem suas sugestões, fazerem perguntas, escreveu-nos fazendo o seguinte pedido).

Quem as responde são os pesquisadores/professores (Quem responde é; responde à carta) e o

editor (torcendo para que vocês recebam muitas cartas). Cria-se também um espaço para os

leitores se comunicarem com outros leitores (revista criasse um espaço para que os leitores

pudessem se corresponder com outras crianças; peço que publiquem novamente). O efeito

produzido é que, na seção de cartas, a linguagem é um meio de comunicação entre leitor e

cientista; leitor e divulgador; e leitor entre si. Esse funcionamento alimenta o imaginário de

um elo, ou melhor, de uma comunicação direta e transparente entre leitor e revista.

Como o leitor é representado?

Na observância da materialidade discursiva, verificamos que as principais são as

marcas de pessoa. Em geral, o leitor apresenta-se: a) em primeira pessoa do singular (pela

marca EU, ou pelo possessivo, e pela desinência de primeira pessoa do singular): b) em

primeira pessoa do plural NÓS; c) ou por designações (alunos, estudantes, crianças, irmãos,

professores, adolescentes, pré-adolescentes, escola, educandário).

Em um primeiro momento, procedemos à análise de uma única carta recortada do

corpus. A marca de pessoa que comparece é o NÓS, o qual apresenta três referentes

discursivos distintos: alunos, alunos e professora, professora de ciência.

Transcrevemos a carta abaixo.

197

Somos alunos da 5ª série do Educandário Jesus Menino e nos consideramos felizardos por estarmos pesquisando, descobrindo e aprendendo coisas maravilhosas que esta revista oferece.

Junto à professora de Ciências;·que nos incentivou a leitura da revista, já fizemos um trabalho sobre o desequilíbrio ecológico e toda a nossa pesquisa foi baseada nos textos sobre chuva ácida, efeito estufa e buraco na camada de ozônio.

Foi um sucesso! Continuaremos o nosso projeto de incentivo à leitura e sempre teremos, com certeza, a revista como subsídio.

Parabéns à equipe organizadora. Recadinho para todos os amiguinhos que gostam de·ciências: vale

a pena ler a CHC, ela é uma revista de alto valor educativo.

Alunos da [5 série “A” e “B” do Educandário·Jesus Menino, Currais

Novos/RN.

Nessa carta, o leitor representado por NÓS lexicamente nomeado por alunos da 5ª

série do Educandário Jesus Menino assume a função-autor da carta. Podemos dizer que

se trata de NÓS-inclusivo1. Contudo, incluir o referente lexicalizado não significa desfazer a

opacidade. A seguir, é colocado na posição de aprendiz frente à revista: NÓS-inclusivo 1

(alunos) aprendemos coisas maravilhosas com a revista. Em seguida, há o NÓS-inclusivo 1

(nos incentivou )115 e o NÓS-inclusivo 2 que representa tanto os alunos quanto a professora

(junto à professora de ciências) em fizemos um trabalho sobre o desequilíbrio ecológico.

É possível verificar um deslocamento na posição de função-autor: é representado por NÓS

não-pessoa discursiva que designa conjuntos lexicalmente não nomeados. Se o NÓS 5

representa os alunos e a professora (continuaremos com o nosso projeto de incentivo à

leitura) é possível dizer que o projeto é conjunto entre alunos e professora. No entanto,

assume-se a posição de professor (continuaremos com o nosso projeto de incentivo à

leitura), o NÓS6 parece indicar a voz da professora que incentivou os alunos e, como tal,

permanecerá tendo a revista – de alto valor educativo – como subsídio para sua prática

pedagógica.

O funcionamento da primeira pessoa do plural, como já tivemos oportunidade de

salientar, produz ambigüidade no discurso de divulgação científica. Em um segundo momento

de análise, recortamos seqüências que apresentam as marcas de pessoa anteriormente citadas.

115 Designamos por “NÓS-inclusivo” a forma ‘nós’ que se apresenta lexicalmente nomeada. Em relação ao NÓS não-pessoa discursiva, sua numeração respeita àquela das forma já depreendidas no capítulo 4 de nossa tese. Vale destacar que no referido capítulo foram numeradas quatro representações.

198

SD1: Acho essa revista genial e mágica! Suas reportagens são muito legais e me dão muita informação. (CHC nº54, Dez., 1995). SD2: quero dizer que está revista é o máximo. Aprendemos muito com ela. As matérias são interessantíssimas. (CHC nº60, Jul., 1996). SD3: É muito difícil aceitar que revista tão importante para o nosso desenvolvimento científico corra o risco de não ser mais publicada. (CHC nº 24, Out./Nov., 1991) SD4: As crianças e os adultos ficam sabendo sobre muitos assuntos, pois as informações são buscadas com amor e carinho para os leitores, deixando todo mundo alegre. (CHC nº141, Nov., 2003)

Nas seqüências 1 a 4, o sujeito- leitor projeta-se como aquele apto a receber as

informações que a revista lhe oferece; sua posição é de aprendiz. Afinal, a revista busca as

informações com amor e carinho para transmiti- las às crianças e aos adultos que não as

possui. Toda essa grande busca da revista se dá em prol do nosso desenvolvimento científico.

O leitor, em função-autor, é representado em 1ª pessoa do singular (me), não-pessoa

discursiva (aprendemos, nosso) e em quarta-pessoa discursiva (ele, crianças e adultos).

Contudo, a marca mais recorrente, em nosso corpus, é o uso da 1ª pessoa do singular.

Podemos dizer que uso da primeira pessoa do singular produz um efeito de relato pessoal.

Além das marcas de pessoa, verificamos que expressões temporais e preposições

incidem como um marco: antes e depois da CHC. Vejamos:

SD5: Olá! Sou uma grande fã dessa revista, tanto que tenho todos os exemplares já publicados desde o nº zero. Acompanhando vocês durante todo esse tempo, percebo que a cada exemplar publicado a revista está melhor (CHC nº 37, Abr., 1994) SD6: Conhecia a CHC mexendo em umas revistas velhas lá em casa. Descobri que, antes mesmo de nascer (eu tenho 10 anos), meus pais assinaram a CH. Entre os exemplares encontrei as primeiras CHC! Hoje sou assinante, mas guardo as revistas antigas como todo carinho, porque, graças a elas, eu conheci essa maravilha que é a CHC! (CHC nº 88, Jan./fev., 1999) SD7: Todo mundo fala que ciência é difícil, mas é porque está por fora e, é claro, não conhece a CHC. Desde que conheci a revista, comecei a adorar ciências. (CHC nº108, Nov., 2000) SD8: Conheci a revista por intermédio de minha mãe, que é professora, e, desde então, nunca mais desgrudei dela. (CHC nº120, Dez., 2001) SD9: Depois que comecei a ler a CHC , todos dizem que fiquei mais esperta e muito legal. (CHC nº168, Maio, 2006)

Há um tempo anterior à CHC, que se identifica como sendo o do não-conhecimento,

no qual a ciência é difícil, e há um tempo posterior à CHC, que pode ser longo ou não (há

pouco tempo ou antes mesmo de nascer). Esse é projetado como sendo o tempo dos leitores

da CHC : leitores que colecionam, guardam as revistas antigas, ainda encartadas à Ciência

Hoje, adoram ciências, lêem, aprendem as tarefas escolares mais facilmente, tornam-se mais

espertos e legais, são grudados na revista – seus verdadeiros fãs.

Nosso gesto de interpretação frente à seção de cartas, ao considerá- las um espaço de

propaganda, talvez possa encontrar uma relação com uma análise da forma histórica do leitor

brasileiro na atualidade realizada por Nunes (2003b). O autor nos fala do livro como um bem

de consumo e, como tal, está sujeito às influências e às regulamentações do mercado, aos

199

meios de circulação das mercadorias e às estratégias do comércio. Em nosso caso, tomamos

suas considerações referindo-nos à revista. Nunes (idem) nos lembra que, observadas as

condições de produção e circulação dos livros (e podemos dizer revistas), a prática de

organização de leitura e a prática da organização do trabalho da leitura, “a forma leitor na

atualidade tem a ver com o agenciamento dos setores econômicos em geral” (Nunes, 2003b:

36).

Podemos dizer que a CHC não está fora do “agenciamento desses setores

econômicos”. Por exemplo, após o convênio realizado com o MEC, verificamos que a

presença de cartas de professores foi, paulatinamente, desaparecendo da seção. Em

contrapartida, surge uma outra posição para o leitor. Além da representação das marcas de

pessoa e dos itens lexicais (criança, aluno, adulto, adolescente), destacamos a posição de

assinante.

SD10: Olá, gente da Ciência! Há um mês comecei a ler a CHC/Que pena que eu não sou assinante da CHC. As revistas que eu leio são da minha escola, o único problema é que não tem os últimos exemplares. Mas, mesmo assim, eu levo todos os dias umas quatro revistas para casa. (CHC nº 48, Maio/Jun., 1995) SD11: Estamos terminando de estudar os morcegos, e a professora, assinante da revista, trouxe o número 32. (CHC nº 35, Jan./Fev., 1994) SD12: Sou assinante da revista há dois anos e gostei de todas! (CHC nº 60, Jul., 1996) SD13: Oi, CHC! Sou a Talita. Estou adorando assinar a revista. (CHC nº 79, Abr., 1998) SD14: Oi, galera da redação da CHC. Estamos escrevendo para dizer que nossa escola curte muito as reportagens de vocês, somos assinantes e devoramos suas publicações. (CHC nº 84, Set., 1998) SD15: Estamos escrevendo para dizer o quanto estamos felizes porque o nosso colégio fez a assinatura desta revista tão divertida e legal. (CHC nº 93, Jul., 1999). SD16: Sou André Luiz, tenho 6 anos e ainda não sei ler muito bem e minha mãe lê a CHC para mim. Em breve, pedirei para a minha mãe assinar a revista (CHC nº 93, Jul., 1999). SD17: Quero agradecer o espaço que vocês dão aos assinantes e aos leitores (CHC nº123, abril, 2002).

Ser assinante116 da revista é posto como algo positivo seja para crianças, para

professores ou para escolas. Em SD10, o leitor lê a revista na escola, mas não é assinante

(Que pena que eu não sou assinante da CHC.). Ou seria um leitor por não ser assinante? Na

SD17, a separação entre leitor e assinante parece se afirmar. Verificamos uma distinção entre

a posição de assinante e a de leitor (vocês dão aos assinantes e aos leitores). Seria o assinante

um não- leitor. Sua condição de não-apenas- leitor divide os sentidos de leitores da CHC; há os

leitores e, para além, os assinantes? Essa separação produz uma necessidade: não basta ser

leitor da revista; o leitor necessita também ser assinante. Um movimento que, ligado a

agenciamentos econômicos, é posto de forma a garantir o mercado consumidor da revista.

116 Na parte interna da revista, são encontradas fichas para sua assinatura. A revista atribuiu uma vantagem à assinatura: o assinante receberá a revista em casa. Para visualização de algumas dessas fichas, reproduzimo -las no anexo14.

200

A criança (ao menos algumas) pode ser representada pelo assinante, mas é a família

(pai, mãe, etc.) que é responsabilizada por sua compra. A criança é consumidora, mas por

estar fora do sistema de produção, não pode ser quem compra a revista. E essa é, do nosso

ponto de vista, uma das formas do jurídico relacionar-se com o vir-a-ser-adulto. Eis mais um

laço do ludicismo.

Das utilidades da revista ao efeito propaganda

Recortamos algumas seqüências discursivas a partir de determinados eixos temáticos.

O primeiro eixo corresponde ao valor positivo dado à revista e o segundo, às utilidades da

revista para o leitor, podendo ser essa de caráter educativo ou de lazer.

De forma a organizar o primeiro grupo, recortamos seqüências discursivas a partir de

determinadas marcas. As mais recorrentes foram os advérbios de intensidade, adjetivos e

verbos (apreciativos). Tais pistas são encontradas em recortes que enunciam sobre a revista e

sua utilidade. Vejamos:

SD18: Acho a Ciência Hoje das Crianças maravilhosa . Vocês conseguem tratar assuntos sérios de uma forma doce. É como transformar limão em mel. A revista conseguiu acabar com o tabu de que estudar ciência é monótono. Parabéns! (CHC nº39, Jun., 1994 – carta de criança). SD19: Nunca abri uma revista que tivesse tudo o que eu queria, onde nada fosse desperdiçado. A CHC é demais! (CHC nº48, Maio./Jun., 1995 – carta de criança). SD20: Oi! Meu nome é Alex, tenho 12 anos e amo de paixão a revista CHC. Ela é legal, interessante, importante, divertida, extraordinariamente maravilhosa, super, incrível, enfim... A CHC é tudo. (CHC nº91, Maio, 1999 – carta de criança). SD22: Conheci a CHC através de um amigo que me emprestou a revista. Quero dizer que adorei, a CHC é superalto-astral, é nota 10, com certeza. (CHC nº103, Jun., 2000 – carta de criança) SD23: A revista Ciência Hoje das Crianças é superhiperlegal! Esta revista é +QD+. (CHC nº168, Maio, 2006 – carta de criança)

Nessas seqüências, o leitor projeta a imagem de uma revista qualificada (excelente,

maravilhosa, divertida, importante, legal ). A valorização da revista assume um caráter

hiperbólico. Podemos dizer que a intensidade da qualificação, verificada nos adjetivos,

advérbios e expressões valorativas (extraordinariamente maravilhosa, super, incrível,

superalto-astral, nota 10, superhiperlegal, +QD+) confere à revista status de totalidade

(enfim... A CHC é tudo, tem tudo o que eu queria). O efeito criado é do maravilhamento, ou

melhor, de certo maravilhamento construído nos editoriais, nos artigos grandes e demais

seções.

Fazemos uma observação sobre a pontuação nessas seqüências. No editorial, elas

funcionam de forma a produzir determinados efeitos de sentido. Nas cartas, esse

funcionamento parece estar muito próximo ao do editorial. Concentremo-nos nas reticências

201

(enfim... A CHC é tudo). Aqui percebemos que o leitor na função-autor suspende, no fio do

discurso, seu dizer, como se criasse um suspense, um espaço marcado pelo silêncio que abre à

interpretação do leitor de sua carta. Contudo, ele retorna seu dizer generalizando e produzindo

indefinição (A CHC é tudo).

O sinal discursivo de exclamação põe em relevo a identificação do leitor com a

formação discursiva a qual domina o sujeito-divulgador, a saber: a formação discursiva do

discurso de divulgação científica para crianças. Expliquemos melhor, é pela identificação da

surpresa, do espanto, do entusiasmo frente às maravilhas científicas expostas pela CHC que o

leitor constitui-se enquanto tal. Aliás, no editorial da revista, constrói-se o que pode e deve ser

cada uma dessas expressões de emoção, de riso, de espanto. A condição da interpelação do

indivíduo em sujeito, “Ei, você aí!”, tem nas cartas do leitor, o sujeito que ao ler o editorial e

ao escrever cartas, identifica-se com a mesma formação discursiva do discurso de divulgação

científica para crianças. Por meio do mecanismo de pontuação, também se cria o consenso

intersubjetivo (eu e tu somos sujeitos interessados em ciência).

Após analisar as seqüências discursivas recortadas das cartas dos leitores, verificamos

que essas configuram um efeito de propaganda. Tal efeito parece ser relevante para a

compreensão de outros efeitos de sentido construídos nas cartas de leitores da revista CHC.

Distanciamo-nos da proposta de Cecílio e Ritter (2008), quando consideram a auto-

referenciação das revistas. Do nosso ponto de vista, o sujeito- leitor, em um jogo complexo de

imagens, projeta no discurso a imagem valorativa da revista já construída pelo sujeito-

divulgador.

Outro bloco de seqüência foi agrupado, abrigando a temática utilidade para o leitor.

SD24: Estudamos, na escola, no ano passado o artigo de Eduardo Marcelino Veado, Os caçadores da natureza perdida. Achamos tudo muito interessante e aproveitamos o material para nossas pesquisas (CHC nº 20, Jan./Fev., 1991 – carta de alunos) SD25: Participo de um projeto de educação com índios do Tocantins. Recentemente mandei um encarte (o da borboleta) para uma escola de Mariazinha (nação Apinayé, no Bico de papagaio). A professora usou o cartaz no trabalho de alfabetização. O resultado foi muito bonito. As crianças produziram textos e desenhos. (CHC nº27, Abr./Maio/Jun., 1992 – cara ta de professor) SD26: A Ciência Hoje das Crianças tem me ajudado muito com as tarefas escolares. Aprendi a gostar de ler e a estudar com vocês. Não me desgrudo mais da revista. (CHC nº21, Out., 1994 – carta de professor) SD27: Sou professora de Ciências e esta revista tem me ajudado no planejamento de minhas aulas. (CHC nº 44, Dez., 1994 – carta de professor) SD28: Nossa escola é cercada de muito verde. Um dia, ao entrar na sala pela manhã, havia uma coruja na madeira do telhado. A turma ficou empolgadíssima. Mas, apesar da agitação, a coruja permaneceu quieta, ora dormindo, ora nos observando. Ela virou o assunto sala. Se não fosse a CHC nº 45(“Quem tem medo de coruja?”), não sei o que faria para responder a tantas perguntas. (CHC nº 60, Jul., 1996 – carta de professor) SD29: Gostaria de agradecer à revista CHC que é a maior responsável pelo grande sucesso da Sociedade dos Amigos da Natureza (SAN). Vocês ajudaram a realizar o nosso sonho . (CHC nº104, Jul., 2000 – carta de adulto)

202

Nas seqüências 24 a 29, o leitor projeta uma imagem da CHC como um suporte para

atividades escolares dos alunos (aproveitamos o material para nossas pesquisas; tem me

ajudado muito com as tarefas escolares) e das atividades pedagógicas dos professores (tem

me ajudado no planejamento de minhas aulas; A professora usou o cartaz no trabalho de

alfabetização).

Além dessas, projeta-se também uma imagem de revista que assume o papel

educacional, seja como instrumento de alfabetização/ensino de leitura (Aprendi a gostar de

ler e a estudar com vocês), seja como instrumento de formação continuada do professor (Se

não fosse a CHC nº 45“Quem tem medo de coruja?”, não sei o que faria para responder a

tantas perguntas). Identificamos nas cartas-relato dos professores a imagem da revista como

um instrumento pedagógico capaz de auxiliar alunos e professores em suas atividades como

também ensinar os próprios professores.

Neste ponto, sublinhamos a relação que se mantém entre a escola e a divulgação

científica colocada ora como instrumento pedagógico auxiliar, ora como a própria escola,

ensinando alunos e professores.

Com as cartas de leitores, busca-se um espaço comum a todos os leitores. Busca-se

construir uma designação geral para todos que lêem a revista (todas suas seções, inclusive a

seção de cartas) e escrevem para ela. Mas também cabe à revista reiterar que tem um público-

leitor bastante diversificado. De forma a identificar as designações presentes nas cartas,

observamos itens lexicais (aluno, alunos, criança, crianças, adolescente, pré-adolescente,

mãe, professor, professora, professores, escola, educandário, assinante), sintagmas

nominais que indicam identificação de profissão (planejamento de minhas aulas, com minha

turminha de 3ª série), sintagmas verbais que sinalizam da atividade realizada e/ou profissão

(dou aulas, estudo, leciono) e a assinatura do autor. Agrupando as várias designações, é

possível dizer que, na maioria das cartas, o leitor designa-se como criança (por várias vezes,

indicam a idade) e, em outras, como aluno (citando, em alguns casos, o nome da escola). A

distinção das designações é estabelecida em relação às instituições, no caso de aluno, marca-

se a relação com a instituição escolar. Porém, ao se levar em consideração os agenciamentos

econômicos da revista, todos podem ser assinantes (criança, alunos, professores, escola).

Além da utilidade educativa marcadamente enunciada, outra utilidade da revista é a de

fazer amigos/correspondentes. Abaixo, apresentamos algumas seqüências.

SD30: Gostaria de agradecer, pois, na CHC nº 49, o endereço do meu clube de ciências saiu na Seção de Cartas e, hoje, o meu clube já tem 24 sócios. Peço que publiquem novamente o meu

203

endereço, para que o Clube continue recebendo cartas de crianças de todo o país. (CHC nº 62, Set., 1996 – carta de criança) SD31: Cara Redação da CHC, meu nome é Harrison e sou fundador do Clube de Amigos da Natureza (CAN) que tem 35 sócios espalhados por todo o Brasil. Gostaria de novos filiados para o CAN. (CHC nº97, Nov., 1999 – carta de criança) SD32: Gostaria de publicar o endereço para quem quiser se tornar sócio ou representante em outro estado. (CHC nº99, Jan./Fev., 2000 – carta de criança) SD33: Oi, pessoal! Gostaria de me corresponder com todas as crianças do Brasil. (CHC nº104, Jul., 2000 – carta de criança) SD34: Olá, pessoal! Estou escrevendo para vocês para dizer que o nosso clubinho “Amigos para sempre” está sendo um sucesso desde que nossa cartinha foi publicada na CHC . Mostramos para os nossos professores e todos eles nos deram parabéns. Gostaríamos de agradecer a algumas pessoas que nos escreveram: Maurílio/SP, Gilvana/MA, Clube Portal do Músico/BA, Alana/RJ, Edmar/BH e Josivânia/RN. (CHC nº111, Mar., 2001 – carta de criança)

Embora a possibilidade de “fazer amigos” mostre-se como mais uma utilidade da

revista (lugar de fazer amigos), tal atribuição atualiza a inscrição imaginária da seção de

cartas como função pragmática: instrumento de comunicação entre leitores. Atualiza-se em

enunciados como “estamos procurando amigos que possam corresponder-se conosco;

publiquem novamente o meu endereço, para que o Clube continue recebendo cartas de

crianças de todo o país”; “gostaria de me corresponder com outras pessoas”. Ou em

enunciados que pretendem confirmar o papel de intermediário/mediador da revista, tais como

em: “E quero que vocês saibam que através da CHC já fiz grandes amigos, que eu adoro

muito”; “o endereço do meu clube de ciências saiu na Seção de Cartas e, hoje, o meu clube

já tem 24 sócios”; “Estou escrevendo para vocês para dizer que o nosso clubinho”;

“Amigos para sempre”; “está sendo um sucesso desde que nossa cartinha foi publicada na

CHC”. A seção de cartas seria o espaço consagrado à comunicação.

As marcas topográficas recorrentes todo o Brasil, em outros estados e as siglas dos

estados indicam a extensão da cobertura da revista. Constrói-se a topografia na qual está

inserida a revista. Desta forma, a revista chegaria a qualquer escola ou residência de qualquer

localidade brasileira até mesmo no Tocantins na escola de Mariazinha nação Apinayé, no

Bico de Papagaio; a revista alcançaria todo Brasil. Só nos resta saber de que todo se trata,

quando se diz todo Brasil. Ela chega a qualquer rincão do extenso território nacional.

Deslocando a topografia para os sujeitos, todo Brasil torna-se todo brasileiro. Assim sendo,

“qualquer um” pode se tornar leitor/assinante da CHC. Podemos dizer que as marcas

topográficas também produzem o efeito de propaganda: qualquer um, em qualquer lugar do

Brasil terá acesso à revista, pois ela tem ampla distribuição. Mas o funcionamento discursivo

do pronome indefinido marca uma restrição: não são todos os que são assinantes, como

também não são todas as escolas que recebem a revista distribuída pelo MEC.

204

Os elogios, sobretudo, nos depoimentos sobre sua utilidade, constroem uma imagem

de revista que ajuda nas atividades da escola; é inteligente/torna o leitor inteligente, ajuda a

escolher uma profissão (algum tipo de cientista), faz amigos interessados em ciência, ajuda

a preparar as aulas. Em suma, é uma revista que apresenta inúmeras utilidades e sempre com

uma qualidade além da esperada. Quem não gostaria de consumir esse produto que só

apresenta consumidores satisfeitos? Ou parafraseando Pêcheux (2002 [1983]), como os

leitores poderiam resistir à semelhante pechincha?

Para que revista seja vendida (seja adquirida pela escola, assinada ou adquirida na

banca) e possa “competir” em um mercado editorial vasto, ela é apregoada como “a única

revista de divulgação científica para crianças feita por cientistas”117 e, mais do que isso, conta

com os depoimentos dos seus leitores que relatam os bons motivos para ler/comprar a CHC.

Ao posicionar-se, na seção de cartas, na função-autor, o leitor da CHC assume

ilusoriamente a responsabilidade de seu dizer e opera movimentos de aproximação e

identificação com o discurso da revista. É construído como um bom sujeito, que se identifica

plenamente com os dizeres da revista. Nos depoimentos de valorização exacerbada, a voz dos

leitores confunde-se com a voz da CHC e acaba por funcionar como um elogio.

Discursivamente, a seção de cartas parece funcionar como um espaço de apresentação do

produto, de suas utilidades, da comprovada qualidade e de ampla distribuição.

A língua imaginária nas cartas dos leitores

Identificamos que as cartas seguem algumas normas, algumas delas provenientes das

gramáticas normativas da língua portuguesa e outras da própria mídia, instaurando normas de

uma determinada forma de escrever (cf. Silva, 2001a e 2001b). No fio do discurso, é possível

destacar itens lexicais utilizados em um registro formal, como também concordância e

regência verbais e nominais adequadas à norma consagrada como padrão. Parece haver algum

tipo de revisão ortográfica e/ou gramatical deve ser realizada por pais/professores ou pela

própria redação da revista. Todos os que escrevem à CHC utilizam um mesmo padrão, uma

língua padronizada. Vejamos algumas seqüências:

SD35: A revista conseguiu acabar com o tabu de que estudar ciência é monótono . Parabéns! (CHC nº39, Jun., 1994). SD36: As matérias são interessantíssimas. (CHC nº60, Jul., 1996). SD37: Esta revista é excelente, promove matérias impressionantes e explica tudo do jeitinho que as crianças gostam. (CHC nº139, Set., 2003)

117 Conferir anexo 14.

205

SD38: Essa revista faz sucesso! Na biblioteca da minha escola, sempre há . Desde que leio a revista consigo entender melhor as tarefas escolares e aprender mais fácil. (CHC nº165, jan./Fev., 2006) SD39: Nós, alunos da 2ª série da Escola Municipal Orosina Cecílio Mendonça, estamos procurando amigos que possam corresponder-se conosco. (CHC nº99, Jan./Fev., 2000 ) SD40: O artigo despertou-nos a necessidade de preservar a natureza. (CHC nº 20, Jan./Fev., 1991) SD41: Gostaríamos de nos comunicar com outros leitores da CHC para trocarmos idéias e influenciar novas crianças na área científica. (CHC nº49, Jul., 1995) SD42: Nós, alunos da 1ª série da Escola Presidente Médice, ouvimos de nossa professora a leitura do texto do mosquito da dengue [...] Aprendemos muitas coisas de que não sabíamos. Um exemplo disso foi a origem verdadeira do mosquito e como foi feito seu transporte para o Brasil. (CHC nº136, jun., 2003)

Os trechos recortados parecem ter recebido um tratamento de homogeneização

lingüística, um tratamento operado na e pela mídia. Para compreendermos um pouco mais

sobre a língua padronizada que é encontrada na mídia, devemos considerá- la não de forma

abstrata, mas como materialidade específica de todo discurso.

De forma a proceder às nossas análises mobilizamos duas noções: língua imaginária e

língua fluida – definidas, inicialmente, por Orlandi e T. Souza 118 (1988). As línguas

imaginárias são “objetos-ficção”, artefatos construídos por estudiosos da linguagem. “São as

línguas-sistemas, normas, coerções, as línguas instituição, a-históricas. Construção. É a

sistematização que faz com que elas percam a fluidez e fixem-se em línguas- imaginárias”

(Orlandi e Souza, 1988). A língua fluida, as unidades vivas da língua enquanto historicidade,

pode ser observada quando se focalizam os processos discursivos, ou seja, observa-se a

constituição dos sentidos. A língua fluida, diferentemente da imaginária, não pode ser contida

no arcabouço dos sistemas e fórmulas, visto que é “a língua movimento, volume incalculável,

mudança contínua. Metáfora” (idem : 38).

Em nosso imaginário (a língua imaginária) temos a impressão de uma língua estável, com unidade, regrada, sobre a qual através do conhecimento de especialistas, podemos aprender, temos controle. Mas na realidade (língua fluida) não temos controle sobre a língua que falamos, ela não tem a unidade que imaginamos, não é clara e distinta, não tem os limites nos quais nos asseguramos, não a sabemos como imaginamos, ela é profundidade e movimento contínuo. Des-limite (Orlandi, 2009: 18).

A revista toma a língua regrada, com unidade, possível de segmentação e organização.

Alunos da 1ª série escreveriam expressões tal como origem verdadeira, ou alunos da 2ª série,

corresponder-se conosco? Temos, então, a língua imaginária criando efeitos na revista. Os

sujeitos envolvidos com a revista (divulgador, cientista, leitor) teriam uma mesma habilidade

118 As autoras inicialmente analisaram as gramáticas da língua Tupi elaboradas por missionários jesuítas, assim como a relação de contato e de empréstimo entre língua Tupi e a portuguesa. Posteriormente, Orlandi (1990, 2002, 2009) trabalhou as duas definições em relação à língua nacional.

206

lingüística. Podemos supor uma higienização e uma homogeneização da língua é aplicada nas

cartas.

Há também uma outra questão. O uso do sufixo –inho (recadinho para todos os

amiguinhos, o nosso clubinho, nossa cartinha) produz-se uma língua imaginária do que

seria a forma da criança escrever, ler, falar; imaginário que alimenta a “especialização do

mundo infantil”.

A crítica

Na seção de cartas, assim como nas seções anteriormente analisadas, não é instaurado

o discurso polêmico. Tampouco podemos falar de um discurso lúdico. Especificamente, na

seção de cartas, ao longo das várias edições da revista, encontramos poucas reclamações e

apenas duas críticas publicadas. Uma refere-se ao uso dos sacos plásticos na CHC e a outra,

ao excesso de informação. Para fins de análise, consideramos somente a primeira crítica, da

qual recortamos duas seqüências discursivas, uma da carta do leitor e a outra da resposta da

revista.

SD43: Nós, alunos do terceiro ano da E. M. Prof. Amilton Suga Gallego, viemos por meio desta fazer uma pergunta à revista Ciência Hoje da Crianças. A CHC é ótima, traz bastante temas interessantes, ensina a proteger a natureza e os animais, então ... Por que a revista desperdiça plástico – que leva um tempão para se decompor – embalando revista por revista, se a maioria das pessoas joga os saquinhos no lixo? (CHC – Cartas, nº 174, nov. 2006)

Na SD43, identificamos a posição porta-voz da humanidade para assuntos ecológicos.

Diga-se uma das posições depreendidas na análise dos editoriais. Essa SD ao mesmo tempo

mostra uma contradição no interior da revista: assume-se uma postura ecológica em seu

editorial, mas na prática utiliza saquinhos que levam um tempão para se decompor. Na

resposta da revista, temos

SD44: Que bom saber que você e seus amigos, Bianca, usaram os conhecimentos que têm a respeito do meio ambiente para fazer uma crítica construtiva e, assim, tentar evitar qualquer desperdício que possa prejudicar a natureza. A CHC agradece pelo alerta e informa que o uso de plástico para embalar cada edição da revista está sendo reavaliado. (CHC – Cartas, nº 174, nov. 2006)

Podemos observar que há a construção de um espaço para crítica, mas de uma crítica

construtiva. Esse espaço parece ter sido dado porque as crianças têm conhecimentos sobre

meio ambiente, provavelmente, própria revista teria “ensinado” tal postura. As críticas

parecem ser publicadas desde que baseadas em conhecimento científico. Embora o leitor

critique a ação da revista, não podemos falar em um movimento de contra- identificação com a

formação discursiva do discurso de divulgação científica para crianças. Há uma identificação

207

do leitor com a posição do porta-voz da humanidade inscrita no editorial, nos artigos grandes

e demais seções da revista.

Para finalizar o capítulo, destacamos que, na seção de cartas, o leitor, em função-autor,

pretende-se responsável e origem de seu dizer.

Nas primeiras edições a resposta do cientista a uma dúvida de um leitor era mais

comum – fato que ratifica a posição do cientista como fonte de saber. Ao longo das

publicações, a resposta do cientista não se fez mais presente. Isso não significa que o cientista

deixa de ser instituído como fonte de saber. Outros mecanismos discursivos são construídos,

como veremos no próximo capítulo ao analisar as profissões científicas. Os sentidos postos

pela ciência continuam a reverberar e a produzir silenciamento frente ao discurso do não-

cientista. De fato, o que muda, é que o leitor passa a ser o assinante da revista.

É interessante pensar na ausência da resposta do cientista e a construção de uma outra

posição para o leitor. Ao tornar-se o consumidor da revista, ele passa ser o foco.

Provavelmente, a revista cede esse espaço em virtude de agenciamentos econômicos.

O leitor é projetado com a imagem daquele que sugere temas, experiências para a

revista, e esta se mostra como aquela que insere as sugestões à sua produção. O leitor também

é posto em contato com a revista: ele pergunta e a revista responde, ou a revista o convida a

responder alguma questão (participar de eventos, sorteios, torneios, experiências), um

funcionamento que alimenta a ilusão de comunicação perfeita entre leitor e divulgador.

Podemos dizer que o amplo uso da 1ª pessoa do singular encena uma subjetividade

individualizada, mas não singularizada. Subjetivismos são criados: sujeito que gosta de

ciência; que adora a revista; que quer fazer amigos; que utiliza a revista para fins escolares.

Sendo individualizado pela revista como um sujeito de vontades e intenções, as

singularidades são estancadas e identidades são produzidas (cf. Mariani 2006). Narrar

depoimentos, relatos, sobretudo, em primeira pessoa do singular, acaba por funcionar com a

manutenção de sentidos hegemônicos (o que é ciência, cientista, revista, o papel da revista na

sociedade). As cartas representam um espaço do retorno do mesmo, já-autorizado, pela mídia.

A seção também funciona como um espaço para a propaganda da revista.

Retomando o efeito de veracidade, podemos dizer que as “informações” contidas na

revista são tomadas pelos leitores como verdade, ou como nos diz Soares “retrato da

realidade: efeito produzido pelo discurso jornalístico”, ou seja, “o leitor toma as informações

como verdade e não consegue, por conta do efeito de sentido que é constituído a partir do

discurso da imprensa, perceber que é possível que haja outras relações” (Soares, 2006:208 –

grifos do autor). O poder de informatividade das matérias publicadas pela mídia, em geral,

208

não abre espaço para a dúvida, para a incerteza; não se questiona a veracidade. E quando é

feita pela “crítica construtiva”, essa deve ratificar a posição do sujeito-divulgador. O leitor

não identifica outras relações com o saber, além daquela exposta pela revista. Há por parte da

mídia – que normaliza a língua, instituiu práticas, e cria subjetivismos – a impressão de

controle.

209

Capítulo 7: Memória: o futuro da criança

Ao longo dos 20 anos de publicação da revista CHC, verificamos mudanças na

editoração119 da mesma. Algumas seções foram suprimidas e outras acrescidas. É o caso da

seção “Quando crescer, vou ser ...”, objeto de análise do presente capítulo. A seção teve início

em 2001, na revista número 111. No período que corresponde ao nosso recorte temporal,

contabilizamos um total de 64 artigos120. Cada artigo da seção busca delinear características

de várias profissões, em grande parte, científicas.

Após sucessivas leituras do material, uma inquietação se impôs: por que uma revista

de divulgação científica apresenta uma seção para falar sobre profissões às crianças?

Principalmente porque não se trata de falar sobre qualquer profissão, mas de profissões

“reconhecidas” em nossa sociedade e que requerem, em geral, formação acadêmica

(graduação/pós-graduação). À pergunta cabe um desdobramento: por que profissões? Por que

científicas?

O primeiro ponto diz respeito a profissões num discurso que se destina a crianças.

Uma vez que, na sociedade ocidental contemporânea, a concepção de trabalho infantil é

banida, como vimos no capítulo 2, trata-se, então, de uma projeção construída socialmente

para a criança no futuro. Quanto à questão da restrição materializada discursivamente pelo

adjetivo ‘científicas’, podemos apontar outros desdobramentos. A revista, filiada à formação

discursiva do discurso de divulgação científica para crianças, sustenta e é sustentada pela

necessidade de alargar horizontes, ampliar a gama de conhecimento das crianças. Volta-se à

rede parafrástica na qual a ciência seria a grande “salvadora” da nação, conforme

apresentamos no capítulo 2. Sobre esse aspecto, Japiassu (1991) adverte que tudo se passa

como se a ciência pudesse legislar sobre como deveríamos pensar sobre as coisas. A ciência

aparece como o único caminho seguro capaz de levar à verdade. Vivemos, segundo o autor,

sob o slogan Scientia locuta, causa finita (Ciência falou, caso encerrado).

119 Souza (2000), ao comentar as mudanças das equipes de redação da revista CHC, propõe uma correspondência entre tais mudanças e as “fases da revista”. A associação feita pela autora é de ordem factual, visto que cada fase da revista estaria ligada a uma equipe diferente. Contrariamente, em nosso trabalho de analista, procuramos regularidades e dispersões no discurso, o que representa a análise das posições -sujeito em condições de produção historicamente determinadas, que incluem o contexto imediato (Orlandi, 1996). 120 A lista contendo as profissões apresentadas na seção encontra-se no anexo 15.

210

Refletimos, no entanto, que a verdade só poderia ser entendida como tal se tomada em

espaços semanticamente estabilizados, pois uma “verdade” é produzida his toricamente. Esses

espaços são impostos ao sujeito pragmático, sobretudo, por coerções exercidas pelo poder dos

cientistas, diz-nos Pêcheux (2002 [1983]).

Em nosso corpus, falar de profissões para leitor-criança em uma revista de divulgação

científica funciona como falar sobre profissões para criança-aluno na escola. A orientação

vocacional parece recuperar o fôlego perdido nas últimas décadas do século 1920,

expandindo-se para além dos muros escolares. Como já vimos no capítulo 2, a divulgação

científica e a educação mantêm, na sociedade contemporânea, um forte elo. Mais do que isso,

pois caberia à primeira a responsabilidade de formar cidadãos conhecedores e possíveis

produtores de ciência. A partir das análises realizadas nos capítulos anteriores de nossa tese,

identificamos que há uma sobreposição da divulgação científica sobre a educação. O efeito

que se produz é o da divulgação científica como aquela possível de ocupar o espaço da falta

(falta de formação, falta de informação) não mais preenchida pela educação formal.

Se, por um lado, poderia parecer óbvio (e impõe-se a questão: óbvio para quem?) falar

sobre profissões científicas, já que a revista é de divulgação científica, por outro lado,

caminhamos, em nossas análises, para a historicidade e a desnaturalização dessa obviedade.

Sendo o trabalho infantil vetado (aos menos na letra da lei), as profissões só podem ser

pensadas, na revista, como uma previsibilidade. De forma a realizar nossas análises, partimos

do seguinte questionamento: qual imagem de criança é construída nessa previsibilidade? Para

responder a questão, mobilizaremos a noção de memória, mais especificamente a de memória

discursiva (Pêcheux, [1983] 2007; Orlandi, 1996, 2000, 2002), e a de memória de futuro

(Mariani, 1998). Antes, porém, apresentaremos a contribuição de dois pensadores: Walter

Benjamin e Pierre Nora.

7.1. Sobre memória: lembrança e esquecimento

Deparamos com diferentes enfoques que definem a questão da memória, uma vez que

são vários os percursos que se delineiam desde a Antigüidade até os dias atuais. Assinalamos

que não os percorremos em sua totalidade, ocupar-nos-emos de algumas poucas rotas. Poucas,

mas basilares para a compreensão de nosso corpus. Recorremos à literatura específica dos

campos da História, da Filosofia e da Análise do Discurso.

Reunimos as principais colaborações de dois pensadores que tratam de questões

referentes à memória e à história. São eles: Walter Benjamin e Pierre Nora. Embora distantes

211

cronologicamente, e mesmo teoricamente, a contribuição dos pensadores supracitados é de

extrema relevância para a elaboração de nossas análises.

Benjamin dedicou-se, ao menos em três textos, a questões que podem ser relacionadas

ao tema, quais sejam: “Experiência e pobreza” (1987), “Sobre alguns temas de Baudelaire”

(1983a) e “O narrador” (1983b). Aprofundando a leitura dos textos desse autor, podemos

dizer que seu pensamento funda-se na crítica ao mundo moderno: o caráter mecânico,

uniforme e vazio da vida na sociedade industrial transforma os homens em bonecos

automatizados.

Com o desenvolvimento da técnica sobrepondo-se ao homem, uma nova forma de

miséria, decorrente da falta de experiências, surgiu. O homem moderno, pela ausência de

acontecimentos memoráveis, estaria mais pobre em experiências narráveis. Benjamin destaca

que a arte de contar histórias torna-se cada vez mais rara na sociedade capitalista moderna.

Não se contam mais histórias: há um certo emudecimento conseqüente do declínio da

experiência. Porém, o que seria experiência na visão benjaminiana? Ele diz, em “Sobre alguns

temas em Baudelaire”, que

a experiência é um fato de tradição, tanto na vida coletiva quanto na particular. Consiste não tanto em acontecimentos isolados fixados exatamente na lembrança quanto em dados acumulados, não raros inconscientes, que confluem na memória (Benjamin, 1983a: 30).

Além da perda da experiência, outros fatores característicos do homem moderno

conduzem à substituição da narrativa por outras formas de comunicação. Em “O narrador”,

Benjamin enfatiza o declínio da narrativa. Não haveria mais lugar, na sociedade moderna,

para as narrativas em virtude da queda de cotação do fenômeno de narrar; queda, segundo o

autor, interminável. A causa seria a premência da experiência.

A invenção de novas tecnologias, como no caso a da tipografia, propiciou a difusão do

romance. Benjamin afirma que o que realmente difere a narrativa do romance é a ação de

narrar, ação que deriva da tradição oral. O narrador colhe na experiência e a transforma para

aqueles que o ouvem. Já o romancista promove a segregação, pois, ao ler um romance, o

indivíduo permanece sozinho em sua solidão.

Com a burguesia já consolidada, a narrativa retrocede com o surgimento da

imprensa121 – instrumento importante ao capitalismo. Para o autor, a imprensa antepõe-se à

121 Podemos dizer que, nas últimas décadas, o surgimento e ampliação de técnicas digitais propiciaram mudanças significativas nas maneiras de produzir e circular textos nas sociedades. O que pode implicar/ser mais um fator para a aceleração da “queda interminável” da narrativa.

212

narrativa de uma forma muito mais ameaçadora do que o romance. Instaura-se uma “crise”,

sendo a nova forma de comunicação, veiculada pela imprensa, a informação. Para Benjamin,

a informação, porém, coloca a exigência de pronta verificabilidade. O que nela adquire primazia é o fato de ser 'inteligível por si mesma' [...] é indispensável à informação que soe plausível. Com isso ela mostra ser incompatível com o espírito da narrativa. Se a arte de narrar rareou, então a difusão da informação teve nesse acontecimento uma participação decisiva (Benjamin, 1983b: 61).

No fragmento acima, Benjamin ressalta como a narrativa cede lugar à informação.

Neste ponto, podemos fazer uma relação com os postulados de Mariani (1988) já apresentados

no capítulo 4 desta tese. Merece ser retomada a idéia de que o mito da informação tal qual

construído pela imprensa está vinculado à ilusão da linguagem referencial. Além disso, a

institucionalização dos “dizeres possíveis” no discurso jornalístico é como “um fio que tece e

conduz nos jornais o ecoar das repetições parafrásticas, impedindo o deslizar dos significantes

e/ou as resistências históricas, misturando passado, presente e futuro” (Mariani, 1998: 97). A

esse processo a autora chama de “narratividade”. Voltaremos a esse ponto em 7.2.3.

Retomando Benjamin, o advento da industrialização, com todo o afã de um

“verificacionismo” sem precedentes, desautoriza a credibilidade da experiência tradicional –

que propiciava a arte artesanal de narrar experiência memoráveis. Tal arte dispunha de

autoridade que a dispensava de verificação. O mesmo não ocorre com a informação, uma vez

que essa precisa provar sua veracidade e, conseqüentemente, emite explicações que a tornem

verificável.

Não podemos deixar de associar a formulação de Benjamin à idéia de concomitância

da institucionalização da imprensa e a de constituição do sujeito de direito (cf. Mariani, 1998).

A imprensa homogeneíza sentidos, pasteurizando-os, fixando-os como verdade. Assim

sinaliza Mariani (1988):

o papel da imprensa como uma instituição que, apesar de ter na heterogeneidade uma característica constitutiva, funciona desambigüizando o mundo, homogeneizando os sentidos e instituindo ‘verdades’ que ela mesma coloca em circulação [...] o discurso jornalístico, enquanto forma de manutenção de poder, atua na ordem do cotidiano, pois além de agendar campos de assuntos sobre os quais os leitores podem/devem pensar, organiza direções de leituras para tais assuntos (Mariani, 1998: 224).

No nosso caso, a CHC funciona instituindo verdades científicas, homogeneizando

sentidos sobre o mundo a partir do escopo de uma imagem de ciência. Organiza o mundo por

meio das informações sobre ciência que ela faz circular na sociedade. E mais, aponta quais

leituras são autorizadas. Vimos que, nas análises dos artigos grandes da revista CHC, Juca, o

homem humilde do campo, é rechaçada e somente o conhecimento científico verificável é

213

considerado verdadeiro. Podemos dizer que o discurso de divulgação científica funda-se em

uma dupla ilusão de veracidade: o do discurso científico e o do discurso jornalístico. Este

construído sob o império da informação, e aquele, sob o da razão.

Ao tratar sobre os temas pobreza de experiência e declínio da narrativa, Benjamin

(1983a) desenvolve, no seu texto Sobre alguns temas de Baudelaire, o conceito de memória

emprestada de Proust, o qual confronta a memória voluntária e a involuntária. A primeira

proporciona que as informações sobre o passado não conservam nada dele. Benjamin confere

aos aparelhos (artefatos tecnológicos) a ampliação do âmbito da memória voluntária. Os

aparelhos permitem fixar visualmente ou sonoramente um evento. Já a segunda, a memória

involuntária, conserva as impressões da situação criada. Ao contrário da anterior, as imagens

que afloram na memória involuntária possuem uma aura, entendida como manifestação

irrepetível de uma distância e, porquanto, inacessível. As imagens da memória involuntária

são “irrepetíveis e fogem à lembrança de quem tenta arquivá- las” (Benjamin, 1983a: 53).

Como nos artigos anteriores, Benjamin recupera a afirmação da “atrofia da

experiência” na modernidade. Esse fato provoca a cisão entre o passado individual e o

coletivo, o que corresponde, em certa medida, à separação entre a memória voluntária e a

involuntária, pois, somente “onde há experiência, no sentido próprio do termo, certos

conteúdos do passado individual entram em conjunção na memória com elementos do

passado coletivo” (idem : 32).

É possível pensar, a partir dos textos de Benjamin, o surgimento do “indivíduo”

moderno como um leitor de informações que, por sua evanescência, não propicia a elaboração

da narrativa, ou melhor, a arte de narrar experiências memoráveis. Esse leitor de informações

seria marcado pelo esquecimento.

O tema da memória na modernidade surge, então, em Benjamin, como uma

determinada forma de lembrar: não se “grava” enquanto se tece e fia, são necessários

mecanismos para se lembrar e “relativizar” o esquecimento propiciado pela informação.

Concluímos que, a partir de uma ótica benjaminiana, enquanto se fiava e tecia, as

experiências eram transpostas para as narrativas, que por sua vez, inscreviam-se na memória

voluntária – mesclando memória individual e coletiva, permitindo a inscrição do narrador.

Com a chegada da modernidade, as novas relações de produção, acrescidas pelo advento da

imprensa, dão à informação o status de verdade. Verdade que precisa ser lembrada, ou

melhor, arquivada em aparatos que preservam a memória voluntária.

Em seu consagrado artigo “Entre memória e história: a problemática dos lugares”,

Pierre Nora (1993) afirma que não existe mais memória na contemporaneidade, uma vez que

214

a memória carrega o estatuto de origem. Vale destacar que a proposta de Nora insere-se em

um movimento de revisão da prática historiográfica. Tal movimento nega a possibilidade de

uma (re)construção da história em sua totalidade, ou melhor, compreende que não é possível

recobrir todos os eventos passados.

Assim como Benjamin, Nora (1993) confere o declínio da experiência à ascensão do

capitalismo, sobretudo, em sua fase industrial. Nora (idem) sustenta que o desmoronamento

central da memória deu-se com o apogeu do crescimento industrial. Sinaliza que a aceleração

da história, ou melhor, o fenômeno de aceleração nas sociedades industriais (democratização,

mundialização, massificação, mediatização), teria acometido a memória. Para o referido autor,

não existiria memória nas sociedades modernas, e sim, tentativas de acessá- la. O autor

denuncia que vivemos em um momento – tempo de lugares – limítrofe da transformação

quase que completa da memória em história. É o momento “preciso onde desaparece um

imenso capital que nós vivíamos na intimidade de uma memória, para só viver sob o olhar de

uma história reconstituída” (Nora, 1993: 12).

Nora (idem) postula o conceito de lugar de memória. Tal lugar é considerado restos,

acúmulo de vestígios, sinal do que já foi marco testemunho de outra época. Para o autor, os

lugares de memória “nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é

preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar

elogios fúnebres, noticiar atas, porque essas não são naturais” (Nora, 1993:13). Nesses

lugares, acessa-se uma memória construída.

A história apodera-se de lembranças, sova-as, deforma-as, transforma-as, petrifica-as.

A memória passa a ser um momento de história arrancado do movimento da história.

Podemos traçar um paralelo entre Benjamin e Nora ao fazer uma alusão aos conceitos

de memória voluntária e de lugar de memória. Os autores afirmam que vivemos em uma

época voluntariamente produtora de meios de arquivos (as novas tecnologias que se apoderam

da memória, em Benjamin, e dos lugares de memória, para Nora). Ou nas palavras de Nora,

“a constituição de tudo em arquivos, a dilatação indiferenciada do campo do memorável, o

inchaço hipertrófico da função da memória, ligada ao próprio sentimento de sua perda” (Nora,

1993: 15). Dizemos, então que a produção de arquivos procura uma estabilização do que pode

e deve ser lembrado e esquecido.

Segundo Nora (1993), uma “memória arquivística”, registradora, é aquela que delega

ao arquivo a necessidade de lembrar, uma vez que vivemos em uma época da “vontade do

registro”. Teria o arquivo a condição de tudo lembrar? No arquivo, produz-se a ilusão de uma

completude, embora ele esteja sempre se organizando a partir de determinações históricas.

215

Nora (idem) defende que a metamorfose histórica da memória em lugares de memória

teve como preço a conversão definitiva à psicologia individual. Cabe aqui ressaltar que essa

metamorfose apontada por Nora inaugura um deslocamento: do histórico ao psicológico; do

social ao individual, ou seja, uma psicologização da memória.

A psicologia integral da memória contemporânea levou a uma economia singularmente nova da identidade do eu, dos mecanismos da memória e da relação com o passado. [...] A atomização de uma memória geral em memória privada dá à lei da lembrança um imenso poder de coersão (sic) interior. Ela obriga cada um a se relembrar e a reencontrar o pertencimento, princípio e segredo da identidade (Nora, 1993:18).

Segundo Nora, o lugar da memória torna-se, portanto, uma resposta à necessidade do

sujeito contemporâneo identificar-se como pertencente a um grupo, uma vez que os lugares

de memória são construídos para o grupo e não pelo grupo.

Para o autor, vivemos sob o signo do lembrar, do presente absoluto na busca de causas

verdadeiras, em uma luta constante contra o esquecimento. Estamos rondados pela a ameaça

iminente: não-lembrar. Assim como destaca Nora, “a razão fundamental de ser de um lugar de

memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento” (idem : 22). A injunção de

sempre lembrar tal como proporcionada pela sociedade pós- industrial é de tamanha monta

que surgem cada vez mais rapidamente aparelhos que nos fazem consumir mais e mais

informações e arquivá- las “metalicamente” (cf. Orlandi, 1996).

Em síntese, podemos dizer que os lugares de memória assinalam a premência do não-

esquecimento, de lembrar o que de outra forma, sem a memória arquivística, seria esquecido.

E o próprio autor adverte que o lugar de memória não se configura em memória, mas

história reconstruída. História que confere lugares nos quais os sujeitos são pensados como

não constituídos de esquecimentos, mas sim de lembranças.

Em nossa perspectiva teórica, consideramos que o esquecimento contraria o desejo de

plenitude do sujeito cartesiano. Sujeito que se julga um “eu” pleno, centrado, conhecedor de

suas vontades, de sua história e de seu dizer. É um sujeito que “necessit a” de lugares de

memória que supostamente garantiriam seu lembrar. Entretanto, viver sob a insígnia da

completude não implica que se viva na completude, pois o esquecimento é constitutivo do

sujeito, ou melhor, os sujeitos são constituídos pelo efeito de dois esquecimentos

(esquecimento nº1 e esquecimento nº2, tal como já mencionado no capítulo 1). Na próxima

seção, trataremos da questão da memória a partir de nosso quadro teórico.

216

7.2 Memória e Análise de Discurso

A memória em AD não é tratada nem dentro de uma abordagem neurológica nem

psicológica, mas como memória do discurso, constituída por lembrança e esquecimento.

Como vimos, Benjamin e Nora também consideram, em suas formulações, a tensão entre

lembrança e esquecimento. Para nós analistas, não se trata apenas de uma questão de lembrar

ou de esquecer. O que é trazido à lembrança, silencia outras versões de um mesmo

acontecimento, e o que é esquecido pode propiciar a ruptura de uma rede de sentidos.

Diferentemente dos autores anteriormente citados, centramos nossa discussão sobre memória

em relação às “contradições constitutivas das relações de sentido” (Mariani, 1998:35).

Embora os sentidos que constituam a memória sejam muitos, apenas alguns são fixados por

determinadas condições históricas de produção de sentidos e, portanto, tidos como literais (a

ideologia toma determinado sentido como evidência e fixa-o na memória).

Contraditoriamente, como lembra Mariani (1998), a rede de sentidos é tecida por resistência,

ambigüidades, deslocamentos. Então, não se trata apenas de lembrar ou esquecer, mas: o que

lembrar e o que esquecer? Por que lembrar e por que esquecer? O que se esquece lembrando e

o que se lembra esquecendo?

Com o objetivo de lançar mão das construções teóricas já estabelecidas no arcabouço

da AD, trazemos, em seguida, os postulados de Pêcheux (2007 [1983]), Orlandi (2000 e 2002)

e Mariani (1998) sobre a memória discursiva.

7.2.1 O papel da memória

Pêcheux (2007 [1983]), no artigo O papel da memória, confere um estatuto específico

à memória. Ela não deve ser entendida “no sentido diretamente psicologista da ‘memória

individual’, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em

práticas, e da memória construída do historiador” (Pêcheux, 2007 [1983]: 50).

Em seu artigo, Pêcheux focaliza o processo de inscrição do acontecimento122 no

espaço da memória, ou melhor, da reorganização da memória (que pode ou não absorver o

acontecimento discursivo), como também o papel da memória no aparato da interpretação –

122 Cabe ressaltar que um acontecimento histórico pode ou não instaurar um acontecimento discursivo. Pêcheux (2002 [1983]), no livro O discurso: estrutura ou acontecimento, postula que o acontecimento discursivo é o “ponto de encontro de uma atualidade e uma memória” (Pêcheux, 2002 [1983]: 17). O acontecimento pode desestabilizar o que está posto e provocar novas interpretações no espaço da memória que ele convoca e começar a reorganizá-la.

217

uma vez que “a questão da interpretação é incontornável e retornará sempre” (Pêcheux, 2007

[1983]: 54). Os pontos de deriva de um enunciado oferecem lugar à interpretação.

Em relação ao aparato da interpretação, a memória discursiva seria aquilo que, em

face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer pré-construídos,

elementos citados e relatados, discursos transversos, entre outros. A leitura de uma

materialidade discursiva implica a “condição do legível em relação ao próprio legível” (idem :

52). A interpretação transita na relação existente entre o ideológico e a memória. Assim,

algumas interpretações de um acontecimento serão inscritas na memória; já outras não serão.

Pêcheux (idem) destaca a existência de uma tensão contraditória no processo de

inscrição do acontecimento. Ou o acontecimento escapa, não chega a inscrever-se, ou o

acontecimento é absorvido na memória como se não tivesse ocorrido. Em outros termos, sob

o choque do acontecimento, um jogo de forças se instaura na memória: ora a manutenção de

uma regularização pré-existente, uma estabilização parafrástica que acaba por absorver o

acontecimento e dissolvê-lo (lembrando que, necessariamente, a regularização apóia-se sobre

o reconhecimento do que é repetido), ora a desregularização que perturba a repetição, o

espaço da estabilidade. Podemos dizer, então, que a memória comporta tanto continuidade

quanto ruptura. Voltando à questão da regularização, Pêcheux (idem) afirma que

a repetição é antes de tudo um efeito material que funda comutações e variações, e assegura – sobretudo ao nível da frase escrita – o espaço de estabilidade de uma vulgata parafrástica produzida por recorrência, quer dizer, por repetição literal dessa identidade material. Mas a recorrência do item ou do enunciado pode também [...] caracterizar uma divisão da identidade material do item: sob o “mesmo” da materialidade da palavra abre-se então o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação discursiva... Uma espécie de repetição vertical, em que a própria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase (ibidem: 53 – grifos nossos).

Paralelamente à retomada, à repetição do “mesmo” (item lexical ou enunciado),

podem ocorrer deslizamentos de sentidos responsáveis pela reorganização da memória. A

repetição vertical é propensa, em sua materialidade, a furos; diga-se uma propensão que

instaura que outra possibilidade de articulação discursiva possa ser aberta. O jogo da

metáfora pode romper com a ordem do repetível, instaurando um novo sentido, ou melhor,

outras direções de sentido. Cabe ressaltar que não se consegue apagar o sentido precedente,

pois este continuará ressoando.

A memória discursiva é um espaço móvel de disjunções, deslocamentos, retomadas,

ou como aponta Pêcheux, é “um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-

discursos” (ibidem : 56). Nos embates dos movimentos entre o mesmo e o outro, a repetição e

a ruptura, emergem lacunas repletas de historicidade. Embora lacunar, ao ser acumulada como

218

em um reservatório, arquivada123, a memória torna-se planificada, homogeneizada. Um efeito

ideológico que toma um determinado sentido como evidente e fixa-o na memória. Dessa

forma, os sentidos aparecerem como unívocos, literais, transparentes.

7.2.2 Memória discursiva, memória institucional e memória metálica

Orlandi (2000, 2002) também desenvolveu uma intensa elaboração teórica acerca do

conceito de memória tal como definido por Pêcheux. Ao longo de seus artigos, Orlandi

distingue algumas noções de memória, a saber: a discursiva, a institucional (arquivo) e a

metálica124 (cf. Barreto, 2007). A memória discursiva é a que se constitui pelo esquecimento,

na qual “fala uma voz sem nome”. Aquela em que algo fala antes, em outro lugar,

independentemente (Pêcheux, 1988 [1975]), produzindo o efeito do já-dito. Na obra de

Orlandi, o termo memória recobre, de certa forma, o próprio conceito de interdiscurso.

A memória é tratada como interdiscurso quando tomada como possibilidade do dizer.

Só é possível dizer se anteriormente algo foi dito. Contudo, também é necessário esquecer

para poder dizer; esquecer que as palavras ditas por nós não são nossas. Ou como aponta

Orlandi (2000), esquecer é “efeito do interdiscurso”.

Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido. E isto é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito por um sujeito específico, em um momento particular se apague na memória para que, passando para o “anonimato”, possa fazer sentido em “minhas” palavras. (Orlandi, 2000: 33-34).

Esquecer o que foi dito não é um esquecimento voluntário, pois, ao se identificar com

o que diz, o sujeito constitui-se em sujeito, ou melhor, o esquecimento constitui o sujeito e os

sentidos.

123 Luiz Francis co Dias, em seu artigo “Ser brasileiro hoje” (2003), teve como objetivo definir o que Pêcheux chamou de “espaço de memória” de uma seqüência. Para tal, buscou subsídios em trabalhos inseridos na história das mentalidades. Dias (2003) assume que não é possível realizar uma aproximação direta entre o espaço da memória e lugar de memória, mas “o que particularmente aproxima os dois conceitos é o fato de se conceber o simbólico constitutivamente às condições sócio-históricas de produção” (Dias, 2003: 82). Concordamos com Dias, ao considerar a impossibilidade de uma aproximação direta, mas discordamos no ponto em que Dias afirma que Nora concebe o simbólico constitutivamente às condições sócio-históricas de produção, visto que, para o último, o lugar de memória é, simultaneamente, material, simbólico e funcional. Diz Nora que “mesmo um lugar de aparência puramente material como o depósito de arquivos só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica” (Nora, 1993:21). E por que frisamos a impossibilidade de uma aproximação direta? Diferentemente de Nora, Pêcheux propõe que a memória discursiva corresponde à materialidade discursiva exterior e anterior de uma seqüência. Cabe ressaltar que a materialidade à qual Pêcheux refere-se é a lingüís tica, que serve como base para a produção dos processos discursivos. Por conseguinte, a linguagem não é um fora que se soma a algo de ordem física, empírica, como em Nora (1993). Acreditamos que uma aproximação possível entre os dois conceitos se dê em relação à produção de arquivos. Quando a memória é arquivada, ela torna-se um lugar de memória (necessariamente discursivo), pronto a lembrar. 124 Trata-se de uma entrevista, concedida à Raquel Goulart Barreto, na qual a Professora Eni Orlandi apresenta, dentre outros conceitos, o de memória.

219

A memória institucional, também chamada memória de arquivo, é aquela que as

instituições (escolas, museus, etc.) praticam. Ao fazê- lo, normatizam o processo de

significação, sustentando-a em uma textualidade documental. A memória de arquivo

estabiliza, cristaliza sentidos e pretende não-esquecer. Orlandi (2002) ressalta que para

compreender o funcionamento dos discursos faz-se necessário imergir na tensão entre a

memória institucionalizada e o esquecimento.

Outra distinção operada é a da memória metálica (formal). Essa é a produzida pela

mídia, pelas novas tecnologias de linguagem (bancos de dados). É a memória que não se

produz pela historicidade, mas por um construto técnico. É a “informatização dos arquivos”

(Orlandi, 2004a [1996]: 15). Não há estratificação em seu processo, mas distribuição em série,

na forma de adição, acúmulo: o que foi dito alhures, em distintas condições de produção, vai

se juntando a outros dizeres. Encena-se a formação de uma rede de filiação, mas de fato é

apenas uma soma. Portanto, sua particularidade é ser horizontal, é coletar uma infinidade de

informações e colocá- las “à disposição”. Para Orlandi (idem), a memória metálica

“‘lineariza’, por assim dizer, o interdiscurso, reduzido a um pacote de informações,

ideologicamente equivalentes, sem distinguir posições” (ibidem : 15-16). Acredita-se que, nos

des-limites dos meios, o que conta é a quantidade e não a historicidade. Destacamos que dizer

que, na memória metálica, os efeitos da história, da ideologia são apagados não significa dizer

que eles não estão presentes (id, 2000).

Além desses três conceitos de memória, outras relações teóricas podem ser mantidas

com a memória na extensa obra de Orlandi. Citamos a relação entre memória e paráfrase e

polissemia; memória e silêncio.

Como vimos mais acima, Pêcheux ressalta que há na memória discursiva uma

repetição vertical que acaba por perfurar, esburacar a memória antes mesmo de ela desdobrar-

se em paráfrase (ponto da divisão do mesmo e da metáfora: sobre o mesmo da materialidade

abre-se o jogo da metáfora). Dessa forma, é possível identificar a estreita relação que a

memória discursiva mantém com os processos parafrásticos e os polissêmicos postulados por

Orlandi (1987 e 2000). No primeiro, mantém-se algo do dizível, da memória. No último, ao

lado da desestabilização, joga com a ruptura dos processos de significação e produz

deslocamentos.

Orlandi (2002) afirma que o esquecimento é uma das formas do político relacionar-se

com a memória. Há também um esquecimento provocado pela censura, ou seja, o

silenciamento. É nesse ponto que Orlandi (idem) propõe pensar o sujeito em relação à

memória, quando da intervenção da censura. Nesse caso, uma terceira possibilidade (e não

220

apenas duas como postas por Pêcheux) de inscrição do acontecimento é elaborada. Quando a

censura intervém, o acontecimento escapa a inscrição, não porque é absorvido pela memória,

mas porque é tido como não ocorrido. Silencia-se: a) porque é preciso esquecer para o novo

sentido apareça; b) porque é preciso esquecer para impedir que o novo sentido apareça.

7.2.3 Memória do futuro

Mariani (1998) retoma os conceitos de memória em Pêcheux e Orlandi. Ao tratar da

memória discursiva na imprensa, Mariani (1998) distingue algumas formas de memória. A

primeira, a memória social, a autora diz ser o processo histórico resultante de uma disputa de

interpretações para os acontecimentos presentes ou já ocorridos. Resulta desse processo a

predominância de uma interpretação e um aparente esquecimento das demais.

É o fio da narrativa que, na memória social, garante um efeito imaginário de

continuidades temporais, projetando sentidos hegemônicos. A manutenção de uma narrativa –

que, por muitas vezes, conduz a um passado eternizado – projeta imaginariamente uma

'realidade' desvinculada das relações contraditórias de poder e das censuras domesticadas.

Para a autora, a narratividade é um processo que, atuando junto à memória discursiva,

promove a ilusão de completude. É, como a própria autora sugere, um fio invisível que tece e

conduz sentidos parafrásticos, ou ainda que impede ou direciona deslizamento de sentidos. Os

mecanismos de poder que apontam para sentidos possíveis ou silenciam outros em função de

mudanças históricas são exercidos por meio da narratividade, uma vez que

a narratividade possibilita a reorganização imaginária do movimento histórico, é o que permite que fatos antes ‘descartados’ passem a fazer sentido para a história. A narratividade, enfim, é o efeito que permite o contar uma história coerente, sem falhas, com estruturação temporal, com encadeamento de causas e conseqüências, com personagens e cenários explicativos (Mariani, 1998: 231).

A narratividade produz o efeito da linearidade histórica. A autora, ao observar esta

forma, estipula que o papel da memória é compatível com a atuação da chamada “memória

histórica oficial” (idem : 35). Efetua-se, com tal atuação, um gesto de exclusão ao que pode

escapar ao exercício do poder. Ou preserva-se um passado “bom e verdadeiro”, ou “a

lembrança de um passado longínquo e ruim pode encontrar-se superada pela memória de

outro passado mais recente e melhor, infância prováve l de um futuro promissor” (ibidem : 36).

Talvez seja esse o passado construído discursivamente pela CHC.

Complementa Mariani (idem) dizendo que para a memória social impor-se é

necessário o esquecimento, mas, paradoxalmente, é por meio do esquecimento que novos

221

sentidos surgem. Por ser a memória lacunar, como exposto na seção 7.2.1, as contradições, os

silenciamentos e os deslocamentos potenciais da repetibilidade comparecem nas lacunas da

memória social.

Entrelaçam-se, nas práticas sociais de fixação da memória, o que deve ser lembrado e

o que deve ser esquecido. A fixação de uma interpretação do acontecimento sobre as outras,

impede seu esquecimento. Citamos Mariani (1998): “não deixar um sentido ser esquecido é

uma forma de eternizá-lo (e, até mesmo, mitificá- lo) enquanto memória ‘oficial’” (ibidem :

36). Os sentidos silenciados podem redirecionar os hegemônicos.

Para intervir discursivamente na aparente mobilização social, Mariani afirma que

“pensar discursivamente a memória é analisar as formas conflituosas de inscrição da

historicidade nos processos de significação da linguagem” (ibidem : 38).

A autora busca entrever os processos discursivos que contribuíram para a

homogeneização da memória histórica oficial de um grupo social. Faz-se necessário, dentre

outros aspectos, considerar a relação de forças, traçar filiações com sentidos outros, mapear

gestos de resistência, identificar as condições necessárias para fazer sentido em uma dada

formação social, ou melhor, considerar os subterrâneos constitutivos deste mundo

semanticamente normal. Para a autora,

o papel da memória histórica seria, então, o de fixar um sentido sobre os demais (também possíveis) em uma dada conjuntura. Ou ainda, vista deste ângulo, à memória estaria reservado o espaço da organização, da linearidade entre passado, presente e futuro, isto é, a manutenção de uma coerência interna da diacronia de uma formação social (ibidem: 41).

A referida autora aponta como o já-dito se atualiza no dizer e como esse mesmo dizer

produz antecipações, o que é definido como “memória do futuro”. Em suas palavras,

a memória pode ser entendida como a reatualização de acontecimentos e práticas passadas em um momento presente, sob diferentes modos de textualização (...). O “recordar” possibilitado pela memória também se concretiza no movimento do presente em direção ao devir, engendrando assim uma espécie de “memória do futuro” tão imaginada e idealizada quanto a museificação do passado em determinadas circunstâncias (ibidem: 38).

O discurso jornalístico agenda uma memória de futuro para seus leitores (observamos

um funcionamento semelhante na revista CHC, especialmente, na seção “Quando crescer vou

ser...”). A autora assinala que a memória do futuro tem sua materialidade textualizada de

diversas formas: escolha lexical, adjetivações, advérbios, discurso relatado.

A pergunta “o que você vai ser quando crescer?” e sua resposta “quando crescer, vou

ser...”, faz parte da memória da sociedade brasileira urbana. Pode-se dizer que a pergunta é

222

feita e refeita por diferentes gerações. No entanto, a repetição da pergunta não assegura a

repetição da resposta. Sabemos que, a partir dos postulados de Pêcheux, no mesmo se

inscreve a possibilidade do diferente, ou seja, outra possibilidade de articulação discursiva –

como, por exemplo, a resposta jocosa “vou ser grande” que desestabiliza a rede parafrástica

que prevê a utilização de profissões como resposta.

Mas, para além da resposta jocosa, podemos encontrar redes parafrásticas distintas

para grupos sociais também distintos. Na próxima seção buscaremos analisar tais redes. De

fato, o que pretendemos, daqui por diante, é tecer, fiar, desfiar os fios dos discursos que

construíram (e ainda constroem) as tramas da memória do futuro da criança, ou melhor, de

uma determinada imagem de criança. Estamos nesse ponto, referindo-nos a uma memória

hegemônica - construída em determinadas condições de produção – que ressoam sentidos

Os sentidos são formados na história – o que se supõe uma memória e,

contraditoriamente, para a análise da memória e sua relação com o esquecimento faz-se

necessário desautomatizar o efeito de construção de sentidos, ou seja, desnaturalizá- los.

Para tal, devemos tanto analisar as formulações dos enunciados que se atualizam na

revista CHC, quanto à memória que constitui tais enunciados. Buscaremos na materialidade

discursiva repetições e deslocamentos no processo de construção de sentidos sobre profissões,

mais especificamente sobre profissões científicas.

7.3 Cientistas de amanhã e criminosos de amanhã

Philippe Ariès (1978 [1975]) salienta que a criança foi construída historicamente como

o futuro de um país. Mas que futuro é esse? Poderíamos pensar em um mesmo futuro para

todas as crianças de um mesmo país? Haveria imagens de futuros distintos para crianças

também distintas? Por meio do trabalho de Maia (2006), tese intitulada “Instâncias de

subjetivação em relatórios sobre adolescentes infratores”, podemos afirmar que não é

construída uma memória de futuro, mas memórias de futuro distintas, que reproduzem a cisão

social e a desigualdade entre crianças.

Depois de realizarmos leituras de trabalhos sobre a história na infância no Brasil,

consideramos fundamental para nosso trabalho historicizar dois enunciados, quais sejam:

“cientistas de amanhã” e “criminosos de amanhã” (enunciados que servem como título da

presente seção). Ambos apontam para um devir, um futuro que poderá ser promissor ou não.

Marca-se, no entanto, a divisão do tratamento dispensado às crianças, uma vez que essas estão

em posições diferentes e lugares sociais distintos, cada qual atualizando uma memória

223

distinta. Gostaríamos de trazer uma observação de Mariani (1998); “trabalhar com a memória

discursiva é estar observando retomadas e/ou disjunções nada pacíficas, uma vez que se trata

de conflitos pela regularização e hegemonia de sentidos” (Mariani, 1998: 41). Buscaremos

historicizar os dois enunciados, ou melhor, compreender como se construiu uma forma de

falar para crianças sobre cientistas e suas atividades e silenciar outras profissões – de forma

nada pacífica. Há aí a questão do político, intrínseco à língua, pois dizer algo é silenciar

outros sentidos. Vale destacar que compreendemos o político discursivamente, ou seja, “o

sentido é sempre divido, sendo que esta divisão tem uma direção que não é indiferente às

injunções das relações de força que derivam da forma da sociedade na história” (Orlandi,

1998: 74). A política, por sua vez, está relacionada à disputa de espaços de dizer

Como exemplo de disputas, trazemos uma contribuição de Pfeiffer (2000). Segundo a

autora, no discurso francês do século XX, fundava-se a propensão inata de alguns à

criminalidade. Em outros termos,

quem nasce propenso à criminalidade não vai ser recuperado pela educação, mas quem ainda não tem caminho certo garantido pode ser “salvo” deste “destino”. Neste sentido a educação não é salvação (salvação da alma como na catequização dos jesuítas), mas garantia de que se a alma não está perdida, com a educação ela irá para o “bom caminho”. Vai-se desenhando uma rede discursiva que coloca a educação como aquela que mostra o que é bom, define o que é bom, em termos de estética e em termos de comportamento (Pfeiffer, 2000).

Poderíamos dizer que é a divulgação científica que mostra o que é bom. Assegura a

formação de um “bom sujeito”, nos termos de Pêcheux (1988 [1975]), um sujeito totalmente

identificado com a rede de sentidos da divulgação científica – atividade que supostamente

ajudaria a formar cientistas.

O termo divulgação científica está atrelado à possibilidade de suscitar vocações

científicas, como também de assinalar a incompetência da instituição escolar em tratar de

assuntos científicos. Vejamos um exemplo ilustrativo retirado de Reis (1968):

Essa história revela-nos um fato surpreendente e doloroso. É que os sistemas de ensino, por mais aperfeiçoados, sempre representam mecanismos grosseiros, incapazes, de um modo geral, de evitar que suas engrenagens, por descuido de quem as aciona ou regula, triturem, em vez de apurar, certos espíritos que entre elas passam. E revela -nos mais ainda. Aluno incompreendido, foi nos livros de divulgação científica que Einstein encontrou alento e inspiração, foi neles que ouviu o chamado da ciência (Reis, 1968: 227 – grifos nossos).

O chamado da ciência, inscrito em livros, revistas de divulgação científica e ouvido

por crianças posicionadas em diferentes lugares sociais, teria a grande responsabilidade de

formar crianças/jovens em futuros cientistas, ou melhor, nos cientistas de amanhã.

224

Segundo Ormastroni (1999), José Reis tratou, em um artigo intitulado "Em busca de

talentos científicos", publicado em 26 de julho de 1946, na então Folha da Noite, do

desperdício de talentos científicos no Brasil, da urgência em implementar programas visando

ao encontro precoce de talentos e de seu encaminhamento para carreiras que permitissem seu

desenvolvimento adequado. Neste artigo, Reis teria feito um apelo: “Que surjam os Cientistas

de Amanhã e, uma vez surgindo, recebem (sic!) o apoio e a orientação necessários!” (Reis

apud Ormastroni, 1999: 104). Alguns anos depois, era lançado o Concurso Cientista de

Amanhã (CCA)125. Ao tratar dos “reflexos” do concurso na carreira dos participantes,

Ormastroni (1999) destaca que

dos seis classificados no primeiro concurso, pelo menos quatro de seus autores ocupam posição de destaque na ciência nacional e, em entrevista realizada vários anos após sua premiação, afirmaram que o concurso teve uma influência decisiva em suas carreiras e sucessos no meio científico (Ormastroni, 1999: 115 – grifos nossos).

O concurso parece ratificar a tomada de posição que considera a divulgação científica

como promotora de informação e formação. Justifica-se a relevância do Concurso pela

influência que este pode exercer na futura carreira dos jovens. Como uma suposta prova da

influência, cita-se a posição de destaque na ciência nacional dos ganhadores do primeiro

concurso. Aliás, será esse um sentido que ressoa na revista em análise.

O segundo enunciado (criminosos de amanhã) mobiliza outra rede de sentidos. É

necessário historicizar. Faria Filho e Sales (2002), no artigo “Escolarização da infância

brasileira: a contribuição do bacharel Bernardo Pereira de Vasconcelos”, consideram que o

discurso fundador acerca da escolarização no Brasil teve o bacharel126 em seu cerne. Aqui

cabe tecermos, brevemente, algumas considerações sobre o discurso fundador. Orlandi (2003

[1983]) define o discurso fundador – uma categoria de análise – como a instauração de uma

nova ordem de sentidos. O discurso fundador cria uma nova tradição: re-significa o que veio

antes e institui ali outra memória. O processo de instauração do discurso fundador irrompe nas

falhas do ritual ideológico e, aproveitando os destroços do ritual fragmentado, instala o novo.

125 No mês de maio de 1957, o então presidente do Instituto Brasileiro de Educação Ciência e Cultura (IBECC), afiliado à UNESCO, Prof. Paulo Mendes da Rocha, firmara um convênio com a Organização Novo-Mundo VEMAG para a realização do primeiro Concurso Cientistas de Amanhã. Participaram da cerimônia de criação do convênio o Prof. Clóvis Salgado, Ministro da Educação, e Gabriel Teixeira de Carvalho, reitor da USP. O primeiro concurso foi realizado em janeiro de 1958, em São Paulo. Foi na ocasião do lançamento do segundo concurso que José Reis convidou o IBBEC a realizar o CCA dentro da reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). 126 O bacharelismo, uma herança colonial, é um traço característico da sociedade brasileira. Caracterizou-se por sua predominância na vida política e cultural do Brasil colônia e império. Os bacharéis, os formados em direito, ocupavam atividades públicas e promoviam a conservação do status quo. Mais do que profissão, significou segurança e ascensão profissional.

225

A principal característica do discurso fundador é a instituição de um momento de fundação,

em outras palavras, a relação particular com a filiação. Ou melhor,

o sentido anterior é desautorizado. Instala-se outra “tradição” de sentidos que produz os outros sentidos nesse lugar. Instala-se uma nova “filiação”. Esse dizer irrompe no processo significativo de tal modo que pelo seu próprio surgir produz sua “memória”. [...] Cria-se tradição de sentidos projetando-se para a frente e para trás, trazendo o novo para o efeito do permanente. Instala-se irrevogavelmente. É talvez esse efeito que o identifica como fundador: a eficácia em produzir o efeito do novo que se arraiga no entanto na memória permanente (sem limite). Produz desse modo o efeito familiar, do evidente, do que só pode ser assim (Orlandi, 2003 [1993]: 13-14).

Especificamente em relação à história de um país, o discurso fundador funciona como

referência no imaginário constitutivo desse país. Para Faria Filho e Sales (2002), o bacharel

foi “o responsável por toda uma forma de compreender e produzir, no Brasil, o ideário liberal

e iluminista” (Faria Filho e Sales, 2002: 249). E reatualizaram a memória da legislação

ibérica. Ao longo de nossa história, eles foram convertidos em “políticos,

formadores/fundadores do Brasil e educadores do povo” (idem : 250).

A divisão de trabalho entre a população pobre e os bacharéis perpetua, de certa forma,

em nossa sociedade. Se o trabalho intelectual foi uma atividade destinada a uma única camada

da sociedade “capaz” (e, notadamente, autorizada a cumpri- la), o trabalho manual, outrora

atribuído aos escravos, tornou-se “naturalmente” uma atividade realizada pela classe

trabalhadora-assalariada. E como vemos mais adiante, supostamente o único futuro possível

aos menores infratores.

Com o advento da República – de forte influência positivista – a criança brasileira

começou a despertar a atenção do Estado, sendo a partir de então considerada o futuro da

nação. Como futuro adulto, ou como nos coloca Priore (2004), “adulto em gestação”, a

criança passou a ser vista como o motor da sociedade. A explosão do crescimento urbano que

se seguiu à proclamação da República ratificou a separação entre criança de classes sociais

distintas. Os filhos do escravismo, com o final deste, tomaram "dejetos" que encheram as

ruas. “Os meninos das ruas tomaram-se ‘meninos de rua’” (Santos, 2004: 229), enquanto que

os filhos das classes mais abastadas eram educados nas escolas e teriam um futuro promissor.

Uma imagem de criança pobre, abandonada era construída. Essa criança passou a ser

vista como potencialmente perigosa, um futuro delinquente. Para João Bonuna (1913), caberia

ao Estado reformar a infância desvalida, pois esta seria a única forma de evitar que os

meninos fossem “os criminosos relapsos de amanhã” (Bonuna apud Santos, 2004: 223). Para

as crianças pobres das ruas foram criados internatos, que deveriam funcionar, sob os auspícios

226

da pedagogia do trabalho, como estabelecimentos de recuperação de menores. A essa criança

foi impedido o acesso à escola, por ser vista como incapaz de ser contida e educada.

Passeti (2004) ratifica a mesma posição. Em sua pesquisa, ao comparar as

constituições brasileiras, assim como decretos e códigos que esboçavam, ao longo de nossa

história, alguma política social para crianças e jovens, constatou que o Estado,

gradativamente, desde 1934, aperfeiçoou o controle sobre a educação na escola e na família,

como também criou controles suplementares - os internatos especiais. Às escolas públicas e

particulares caberia educar as crianças discip linadas e aos internatos, atender os abandonados

e infratores.

Outro enunciado ecoa o mesmo sentido: “(a escola) oficina onde se amolda o caracter

e se aclara o espírito dos cidadãos de amanhã” (Martins, 1918 apud Pfeiffer, 2000:36). No

livro No templo de minerva (O Ensino Primário no Brasil), funciona uma discursividade que

também aponta para uma imoralidade daqueles que não realizam adequadamente o processo

de estar escolarizado (Pfeiffer, 2000).

E afinal, o que a criança pobre, indisciplinada, potencialmente delinqüente poderia ser

quando crescer?

Em sua tese de doutorado, ao analisar os relatórios sobre adolescentes infratores

internados para o cumprimento de medidas socioeducativas em uma das instituições do

sistema DEGASE, Maia (2006) destaca como o futuro do adolescente infrator é, em geral,

previsto nos relatórios produzidos pelos técnicos: “apresenta, quando indagado, perspectivas

futuras limitadas” (Maia, 2006: 192). As profissões vislumbradas em tais relatórios são as de

caráter manual, como por exemplo:

“Pensa em trabalhar em oficina mecânica e estudar” (idem: 172). “Sabe trabalhar em jardinagem, mas pretende se especializar em mecânica de automóveis” (idem: 84). “O adolescente tem expressado desejo de retornar ao Curso de Mecânica, para sua futura inserção no mercado de trabalho, na profissão de Mecânico” (idem). “Orientado a fazer supletivo e a ter um ofício (borracheiro, pedreiro etc), para que possa ser cidadão” (idem). “Apresenta desejo de mudança para um novo redirecionamento de vida, revelando sua aptidão na área de mecânica” (idem).

Com trechos retirados de Maia (2006), podemos verificar que, nos relatórios, o futuro

de tais crianças é limitado. São capazes de ter um ofício, mas não uma profissão científica.

Serão mecânicos, bombeiros, pedreiros, jardineiros. Ofícios que necessitam apenas de

formação básica, ou melhor, de um ensino técnico. Segundo Maia (2006), o Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA) determina que a escolaridade deva ser atrelada à

profissionalização “para que haja desenvolvimento de habilidades que tenham colocação no

227

mercado de trabalho, devendo-se evitar atividades sem utilidade prática – atividades lúdicas

estão excluídas sob esse raciocínio” (Maia, 2006: 84).

Parece ser a pedagogia do trabalho a tônica direcionada para os menores infratores.

Passeti (2004) lembra-nos que o Código de Menores de 1927 já previa a responsabilidade do

Estado em relação à situação de abandono e propunha aplicar corretivos para suprimir o

comportamento delinquente. A estratégia era integrar a criança abandonada e potencialmente

perigosa ao mercado de trabalho, tirando-a da vida infratora, sentidos de uma pedagogia do

trabalho que ressoam no ECA.

Observamos, no caso da revista CHC, outra rede de sentidos. A forma lúdica é

considerada ímpar na sua produção – a redação da revista afirma que os textos precisam ser

divertidos, prazerosos – e a profissão científica é destinada a um futuro promissor de pesquisa

e docência. Trata-se de “infância com destinos desiguais” (Gondra, 2002: 207), ou melhor,

funcionam duas discursividades sobre infância.

Encontramos, no entanto, outras possibilidades para os leitores da revista de

divulgação científica (vale lembrar que se trata de uma revista destinada a crianças que

frequentam escolas públicas e particulares, mas, sobretudo, as primeiras em virtude de sua

distribuição pelo MEC a mais de 100 mil escolas públicas): Quando crescer, vou ser...

malacólogo, entonólogo, glaciologista, palinólogo, micologista, bioantropólogo,

helmintologista e muitas outras especialidades científicas.

Por meio das formas de inscrição da história na linguagem, é possível entrever os

processos discursivos que homogeneízam a memória, ou melhor, que atuam na perpetuação e

cristalização de determinados sentidos sobre o futuro da infância em detrimento de outros. Os

sentidos postos produzem uma tensão entre dois eixos parafrásticos: “cientistas de amanhã” e

“criminosos de amanhã”. São sentidos que trabalham uma distinção – efeito ideológico –

entre quem pode ser cientista ou não-cientista. Ressonâncias discursivas comparecem na

construção da produção do título da revista. Ao analisar o título com o enunciado “quando

crescer, vou ser cientista”, silencia-se o outro eixo parafrástico “quando crescer, vou ser não-

cientista: pedreiro, jardineiro, mecânico”. Funcionam, na memória discursiva, sentidos

unívocos. Mas não haveria uma possibilidade de mudança, transformação desse quadro?

Quem nos responde é Mariani:

Embora seja lícito atribuir à memória o espaço da reprodução homogênea de determinados sentidos produzidos por formações discursivas hegemônicas em dado período, parece ser lícito, também, considerar que ocorre um “silenciamento” temporário dos sentidos excluídos. Se a memória histórica fosse assim tão radicalmente plena e homogênea, seríamos sujeitos condenados (como a mitológica

228

ninfa Eco) a repetir de modo infindável sentidos imutáveis (Mariani, 2003 [1993]: 41).

O que Mariani salienta é que os sentidos silenciados não desaparecem, pois se assim

fosse, todos os menores infratores se identificariam com as profissões manua is e os leitores da

CHC com as profissões científicas. O furo na materialidade que esburaca a repetição vertical

comparece nos enunciados tanto dos relatórios analisados por Maia (2006) quanto na revista

CHC. Esses furos resistem à homogeneização, à planificação. E aí reside a resistência.

7.4 Quando crescer, vou ser...

De acordo com os informes da revista CHC, a seção “Quando crescer, vou ser...”

pretende apresentar diversas possibilidades de profissão, com informações técnicas e

curiosidades relatadas por profissionais de cada área. Seu principal objetivo é dar subsídios

para que a criança faça uma escolha “bem fundamentada” de sua futura profissão. De acordo

com a revista, a seção realiza a “definição e composição das atividades desempenhadas em

diferentes campos de trabalho, aprofundando a dimensão social, os conhecimentos e as

tendências individuais, pontos importantes nas predisposições vocacionais”127 (CHC, 2006 -

grifos nossos).

Na perspectiva assumida pela revista, ao ler a seção, a criança interessar-se-ia pela

profissão descrita e tornar-se-ia, no futuro, um determinado cientista. A revista seria, então,

um instrumento para despertar vocações científicas. Volta-se mais uma vez à questão da

aptidão vocacional, à escolha individual de uma profissão, considerando o sujeito- leitor

senhor de suas escolhas.

A seção “Quando crescer, vou ser...” segue a seguinte organização: primeiro há a

apresentação de um parágrafo introdutório, aos moldes dos produzidos nos artigos grandes.

Em seguida, descreve-se a atividade realizada por determinado cientista. Posteriormente, são

relatadas as motivações (sonho de infância, influência de um professor, etc.) que levaram a

escolha da profissão. Também é apresentada a formação (graduação/pós graduação no Brasil

ou no exterior) exigida para cada profissão. Alguns textos tecem comentários a respeito do

mercado de trabalho128.

127 Trecho retirado do site da revista. Disponível em:<www.cienciahoje.uol.com.br/view/683> Acessado em: 15 set. 2006. 128 Reproduzimos a seção “Quando crescer, vou ser...” da revista Ciência Hoje das Crianças, n°155 (março de 2005) no anexo 16.

229

O título da seção é construído por meio de um discurso relatado, ou melhor, encena-se

que o enunciado “Quando crescer, vou ser...” (em 1ª pessoa do singular) corresponde à voz

trazida de uma criança, ou seja, como se ela própria estivesse ali respondendo à questão. No

entanto, é o divulgador que produz o enunciado e outro efeito de sentido é produzido.

Assim como a análise do título do encarte “Dicas do professor”, o título da seção é

relevante para análise de toda a seção. Além do enunciado “quando crescer, vou ser...”,

também faz parte do título a designação de uma determinada profissão científica. O título é

um mecanismo de colocação em cena de uma nova profissão científica trazida pelo

divulgador. O título, ao mesmo tempo, remete a algo já-dado, assim como constrói

discursivamente uma região de significação. Expliquemos melhor: a primeira parte do título

“Quando crescer, vou ser” inscreve-se em uma memória de futuro de escolha profissional; e a

segunda atualiza-se a cada profissão trazida.

As reticências funcionam, como já analisamos no capítulo 4, como uma suspensão do

discurso que é preenchida materialmente pelo sujeito-divulgador. Em outros termos, deixa em

suspenso o fio do discurso para posteriormente retomá-lo com a profissão a ser descrita. A

suspensão das reticências indica a formação discursiva a qual o enunciado “quando crescer,

vou ser...” se inscreve. Trata-se da formação discursiva do discurso de divulgação científica

para crianças, que significa as profissões científicas como as únicas legítimas na sociedade.

Além da pontuação, identificamos regularidade de marcas em relação a textos de

outras seções da revista. Por exemplo, destacamos que a brincadeira com os significantes não

aparecem somente nos parágrafos introdutórios dos artigos que falam sobre ciência, mas

também aparecem nos textos sobre profissões.

SD1: Se sua primeira reação ao ler esse título é olhar para os pés, você definitivamente precisa saber mais sobre o pedólogo! Mas não fique triste, até que você chegou perto! Basta olhar abaixo dos pés para saber exatamente o que esse profissional estuda... (CHC – Quando crescer, vou ser pedólogo – nº121, jan./fev. 2002). SD2: Suspeito de que você sentiu dificuldade para falar o nome do profissional que está no título deste texto! Então, tome fôlego e tente novamente. Repita sem pressa: her-pe-tó-lo-go. Agora, diga lá: o que faz a pessoa que exerce esse ofício? (CHC – Quando crescer, vou ser herpetólogo – nº126, jul. 2002). SD3: o nome do profissional que se interessa por pelo comportamento animal você só vai saber se ler aí no título: e-tó-lo-go. (CHC – Quando crescer, vou ser etólogo – nº163, nov. 2005).

Nas seqüências acima, brinca-se com a cadeia fônica, encenando uma aproximação

com o sujeito leitor (até que você chegou perto!; repita sem pressa). Pedólogo seria o

profissional que estudas os pés? Assume-se que a criança olharia para os pés em busca do

entendimento do termo desconhecido pedólogo, por considerar que a similaridade fonética

indicaria similaridade semântica. A ação de soletrar o nome das profissões (her-pe-tó-lo-go,

230

e-tó-lo-go) poderia indicar tanto uma brincadeira com as sílabas, como também a dificuldade

que crianças teriam em ler itens lexicais de formação morfológica mais complexa. Da mesma

forma como apresentamos no capítulo 4, acreditamos que o hífen abre, no interior da palavra,

para um espaço em relação ao outro leitor, espaço repleto de sentidos. O sujeito-divulgador,

em um mecanismo de antecipação, assume que a dificuldade com a língua não só

representaria um desconhecimento lingüístico, mas, sobretudo, um desconhecimento por parte

do leitor em relações às profissões descritas.

Uma temática que se põe em pauta na seção: a formação acadêmica das profissões

ganha destaque. Cursos de graduação e pós-graduação são citados. Muitas vezes as

universidades que oferecem os cursos são listadas, e algumas vezes até mesmo a necessidade

de realizar uma especialização no exterior é sinalizada. Embora algumas profissões não

tenham uma exigência de formação superior, esta é posta em relevo. Vejamos:

SD4: E para ter diploma de músico, é preciso cursar a faculdade de música. Mas muitos desses profissionais não passaram pela universidade. Por isso, eles são considerados “músicos práticos” pela Ordem dos Músicos do Brasil, entidade criada para coordenar o exercício da profissão no país. (CHC – Quando crescer, vou ser músico – nº138, ago., 2003). SD5: Os folcloristas normalmente estão ligados às ciências humanas. Muitos são antropólogos e professores que se especializaram na área, fazendo cursos em museus ou pós-graduação em universidades. Mas qualquer profissional que se dedique ao estudo e à documentação do folclore é considerado folclorista. (CHC – Quando crescer, vou ser folclorista – nº157, maio, 2005). SD6: Para seguir na profissão, é recomendável cursar uma faculdade de artes visuais, belas artes ou desenho industrial. (CHC – Quando crescer, vou ser ilustrador – nº166, mar., 2006). SD7: Então, saiba que há cursos profissionalizantes no Brasil nessa área, assim como de especialização nesse ofício. Além disso , no Rio de Janeiro, o Instituto Politécnico Universitário da Universidade Estácio de Sá oferece um curso de graduação em Restauração de Bens Culturais e a Universidade Estadual de Campinas, no estado de São Paulo, tem planos de oferecer, no futuro, um curso semelhante. (CHC – Quando crescer, vou ser restaurador – nº171, ago., 2006).

Nas seqüências acima, a formação acadêmica é destacada ainda para as profissões que

não a exigem. Nessas seqüências, os práticos, aqueles que têm um ofício, devem buscar

formação. É interessante, por exemplo, destacar na SD7, que o músico que não se formou em

uma universidade, o músico prático, deve ser coordenado por uma instância externa.

Ao longo de nosso corpus, a única profissão em que não se cita a formação acadêmica

é a de atleta.

SD8: Mas não pense que eles ficam jogando bola o dia inteiro. Todos têm de freqüentar a escola [...] Além disso, o clube conta com uma biblioteca e realiza oficinas para entreter e ajudar na formação cultural dos futuros futebolistas. [...] “Muitos jovens que querem ser jogadores têm um certo encantamento pela profissão, mas a realidade para o atleta é diferente. Quem não tem disciplina e dom não vai ter vaga”, diz Marcelo que já jogou pela seleção brasileira e por times como o próprio Atlético Mineiro e o Botafogo, no Rio de Janeiro. [...] Se você quiser ser atleta, além de muita habilidade, precisa saber se seu tipo fís ico condiz com o esporte dos seus sonhos. E seja qual for sua escolha, nunca deixe a escola de lado. O estudo, sim, é que nos torna especiais em qualquer campo! (CHC – Quando crescer, vou ser atleta – nº169, jun., 2006).

231

Na Sd8, há um espaço de deslocamento, uma vez que a profissão de atleta

(especificamente de jogador de futebol) é trazida. É permitido tematizar tal profissão, porém

com ressalvas. Cristaliza-se um sentido pela mídia: o “sonho de muitos meninos” em se tornar

jogador de futebol. No entanto, desqualificado: “O estudo, sim, é que nos torna especiais em

qualquer campo!”.

7.4.1 As profissões elencadas

Ao listar as profissões elencadas129 pela revista, verificamos que há um predomínio

das ciências naturais e exatas130. Dos 64 artigos observados, cerca de 30% podem ser

considerados como profissões oriundas das ciências humanas. Outro fato é a maciça cobertura

das várias especialidades da biologia. Não só a profissão do biólogo é apresentada, como

várias de suas especialidades (ictiólogo, ecólogo, ornitólogo, primatólogo, liquenólogo, etc.)

também o são. Interrogamo-nos: por que a disparidade entre o bloco das Ciências Humanas e

o das Ciências biológicas e Exatas?

E. Guimarães (2001), no artigo “A ciência entre as políticas científicas e a mídia”,

permite-nos observar a correlação existente entre a constituição das políticas científicas do

Estado e a circulação da produção científica na mídia. Para o autor, os percursos sociais do

conhecimento sofrem sempre a ação do Estado. Por exemplo, ao comparar os programas

especiais do CNPq – que tem como finalidade apoiar determinados domínios (biotecnologia,

desenvolvimento tecnológico, informática, meio-ambiente) – e algumas produções de

divulgação científica na mídia impressa, verificou-se também a ênfase em tecnologia, ciências

exatas e ciências da vida. E conclui o autor que a distinção existente na mídia é semelhante ao

que se encontra no discurso das políticas científicas do Estado.

O autor ressalta que, de certo modo, há no discurso do Estado e da mídia uma divisão

dos domínios das Humanidades e das Ciências e Tecnologia, uma distinção própria de um

discurso tradicional que “significa concepção social pragmática e utilitária do conhecimento e

que compreende quase exclusivamente as Ciências Exatas, da Vida e suas Tecnologias” (E.

Guimarães, 2001: 76). O autor indica que não se pode analisar a presença das Ciências

Humanas na mídia como exceções, uma vez que essas não são pensadas pela mídia como

129 Conferir a lista no anexo 14. 130 Um fato interessante é a profissão de físico ter sido contemplada em dois exemplares (nº 131 e 158). O mesmo artigo editado no nº131 é reeditado no nº158, edição com dupla comemoração, a saber: o centenário de publicação do primeiro trabalho de Eisntein e o ano da Física.

232

ciência, salvo quando podem ser reduzidas às ciências exatas ou da natureza ou se podem

produzir artefatos tecnológicos. O trabalho da mídia é sustentado por uma concepção

empirista de ciência e “este empirismo está completamente de acordo com um pragmatismo

que está também presente na posição dos organismos de Estado que produzem políticas

científicas enquanto norma” (idem : 76).

Lembra-nos, ainda, que o recobrimento da posição sobre a divisão do campo de saber

praticado pelo Estado e pela mídia deve ser discutido levando-se em consideração o

funcionamento do discurso científico e das relações entre as ciências. De forma a buscar

analisar e interpretar as condições históricas que sustentam tal divisão, E. Guimarães (idem)

não se furta em trazer as contribuições de Foucault.

Em As palavras e as coisas, em uma busca da arqueologia das ciências, Foucault

(2007 [1969]) apresenta as (des)continuidades e as rupturas na constituição de ciências na

passagem do século XVIII. Foucault destaca três áreas (triedro de saberes): vida, trabalho e

linguagem – nas quais as profundas transformações ocorridas no século XIX deram lugar não

a remodelações dentro de uma ciência, mas, rigorosamente, ao nascimento de novas ciências,

com novos objetos e novos métodos de investigação, distintos dos saberes das épocas

anteriores. Todas essas remodelações derivam de um aspecto.

Seria falso – sobretudo insuficiente – atribuir essa mutação à descoberta de objetos ainda desconhecidos como o sistema gramatical do sânscrito, ou a relação, no ser vivo, entre as disposições anatômicas e os planos funcionais, ou ainda o papel do econômico do capital. [...] O que mudou, na curva do século, e sofreu uma alteração irreparável foi o próprio saber como modo de ser prévio e indiviso entre o sujeito que conhece e o objeto do conhecimento (Foucault, 2007 [1969]: 346 – grifos nossos).

Foucault (idem) aponta para o aparecimento do sujeito, uma vez que não havia, nos

séculos anteriores, uma consciência epistemológica do sujeito como tal. Foi pelo mecanismo

do saber e pelo seu funcionamento que se pode erguer uma estrutura de um sujeito que

pudesse conhecer a natureza, a linguagem e a economia e, por conseguinte, reconhecer a si

mesmo como um ser natural, de linguagem e inserido nas relações de trabalho. Segundo

Foucault (idem), o sujeito aparece com uma posição ambígua: é ao mesmo tempo objeto para

um saber e sujeito que conhece esse saber.

Sobre as Ciências Humanas131, Foucault afirma que elas se constituíram tardiamente,

comparando aos outros domínios científicos. O autor ressalta que as Ciências Humanas não

131 Ter o homem como objeto refere-se, no caso das Ciências Humanas, à maneira como tais ciências tematizam o homem. Para Foucault “não são uma análise do que o homem é por natureza; são antes uma análise que se

233

tiveram um campo epistemológico prescrito de antemão. A emergência histórica dessas

ciências teria ocorrido por “ocasião de um problema, de uma exigência, de um obstáculo de

ordem teórica ou prática” (Foucault, 2007 [1969]: 476). As novas normas impostas pela

sociedade industrial podem ter servido como referências a determinadas circunstâncias, no

entanto, o autor aponta que a questão primordial foi o homem se tornar objeto da ciência –

fato considerado um “acontecimento na ordem do saber” (idem : 477), que proporcionou uma

redistribuição geral da epistémê. Foucault (idem) destaca que

o homem tornava-se aquilo a partir do qual todo conhecimento podia ser constituído em sua evidência imediata e não-problematizada; tornava-se, a fortiori , aquilo que autoriza o questionamento de todo conhecimento do homem. Daí esta dupla e inevitável contestação: a que institui o perpétuo debate entre as ciências do homem e as ciências propriamente ditas, tendo as primeiras a pretensão invencível de fundar as segundas, que, sem cessar são obrigadas a buscar seu próprio fundamento, a justificação de seu método e a purificação de sua história (ibidem: 477-478 – grifos nossos).

A dificuldade das Ciências Humanas132 - precariedade, incerteza como ciência, seu

caráter secundário e derivado – não se dá pela densidade de seu objeto, mas na complexa

configuração epistemológica em que se acham colocadas. Em outros termos, o perpétuo

debate entre as ciências do homem e as ciências propriamente ditas pode ser identificado na

dificuldade de situar as primeiras no campo do triedro de saberes que se configurou a partir do

século XIX; mas também na possibilidade de serem incluídas por ele.

Em seu artigo “Linguagem e Conhecimento: Produção e Circulação da Ciência”, E.

Guimarães (2009) leva em conta que, de um determinado ponto de vista, a divisão dos

domínios da ciência significa uma concepção pragmática e utilitarista do conhecimento. O

autor defende que o trabalho da mídia é sustentado por uma concepção empirista da ciência,

concepção esta que está em consonância com um pragmatismo também presente na posição

dos organismos de Estado que produzem políticas científicas enquanto norma.

Voltando às divisões das políticas científicas do Estado entre as ciências que devem

receber atenção especial e as que não devem, E. Guimarães (2001) fala então que elas

fundam-se, de certo modo, nos debates dos domínios da ciência. Essa mesma divisão pode ser

observada na mídia ao realizar a divulgação científica. Pode-se dizer que essa divisão afeta a

representação dos domínios da ciência na sociedade, como também afeta o próprio modo

como o conhecimento circula na sociedade. Articulada a uma significação do que seja ciência estende entre o que o homem é em sua positividade (ser que vive, trabalha, fala) e o que permite a esse mesmo saber” (Foucault, 2007 [1969]: 488). 132 Em sua reflexão, Foucault destaca que as Ciências Humanas são ciências perigosas – representam risco para todos os outros saberes de encarregarem-se de sua impureza – e em perigo (do psicologismo, do sociologismo, do antropologismo).

234

na contemporaneidade, a mídia tende a manter a estabilidade do discurso científico e legitimar

a normatividade do Estado (cf. E. Guimarães, 2001 e 2009). E como seria o caso da CHC?

Vejamos a SD a seguir:

SD9: O Brasil é um dos países que assinaram o Tratado Antártico , um documento que determina como deve ser feita a ocupação da Antártica e define que apenas as nações que enviarem pesquisadores à região poderão decidir sobre o destino do território: se ele será voltado para a preservação ambiental, para a exploração de recursos naturais, para o turismo, para os estudos científicos. (CHC – Quando crescer, vou ser glaciologista – nº174, nov., 2006).

A SD9 é a única seqüência que tematiza a questão das políticas científicas do Estado.

Essa temática é trazida como um gesto de argumentação do sujeito-divulgador em justificar a

necessidade da profissão de glaciologista em um país tropical. Do nosso ponto de vista, a

justificativa não é profissional, mas política. E mais uma vez observamos o discurso da

necessidade impondo-se: necessidade de formação de cientistas para a inserção do país no rol

dos países desenvolvidos.

7.4.2 O discurso do outro

Tradicionalmente, as gramáticas contemporâneas, ao considerar os modos de

representação no discurso de um discurso outro, limitam-se a três formas: o discurso direto

(DD), o discurso indireto (DI) e o discurso indireto livre (DIL).

Para Authier-Revuz, no entanto, as três formas consagradas não são suficientes para

englobar a complexa relação existente entre discurso citado e citante. Para a autora, a

estratégia discursiva do discurso relatado (DR) pode atender a formas mais ou menos

marcadas, conforme a criação de contornos exteriores nítidos ao redor do enunciado citado ou

até mesmo atenuá- los, chegando, em alguns casos, a um total enfraquecimento de suas

fronteiras. Assim sendo, o distanciamento que o discurso citante, ao relatar, produz com o DR

é muito variável, podendo haver outras formas, como, por exemplo, ilhas textuais, discurso

direto livre, discurso segundo, dentre outros.

A partir de constatações de Authier-Revuz sobre discurso relatado, Medeiros (2006)133

desloca a noção para o interior da Análise do Discurso e, para tal, busca historicizá- la. De

fato, a autora busca analisar o DD e o DI como práticas que trabalham o juridismo na

133 A autora identifica que, nas gramáticas contemporâneas brasileiras, também comparece a mesma tradição. O DD reproduziria fielmente a palavra do outro por manter o significante. Já no DI, haveria a manutenção do dizer do outro por meio da reformulação do dito, do conteúdo, sem, no entanto, sua reprodução fiel. Outro traço característico dessa tradição é pensar o DI como uma transformação do DD. Medeiros (2006) alerta que a posição das gramáticas não constitui a única posição, pois as modalidades direta e indireta são fruto de um processo histórico. A autora busca analisar o DD e o DI como práticas que trabalham o juridismo na linguagem.

235

linguagem. Segundo Medeiros, as duas modalidades de discurso relatado nem sempre fizeram

funcionar os efeitos que hoje se fazem presentes nas gramáticas No período clássico, o DD

não se apresentava como espaço da reprodução, tampouco pretendia funcionar como discurso

verdadeiro. O DD era considerado uma cópia da cópia (phantasma), um simulacro, uma cópia

destinada a enganar. Era encontrado com estatuto estilístico na prática do discurso poético. Já

o DI era considerado uma imagem, uma cópia boa (eidolon). Haveria, nesse período, a

supremacia do DI sobre o DD, ou melhor, o DI funcionaria como discurso da verdade, visto

que se constituía como discurso de lei, inscrevia-se na relação da narração com o político.

Para pensar o gesto de escrita da lei no período clássico, Medeiros (2006) considera um duplo

movimento: o DI instaura uma forma de escrita da lei, assim como confere estatuto oficial

àquilo que é por ele relatado. Resumidamente,

podemos dizer que o não comparecimento do discurso direto no discurso jurídico e no discurso histórico no período clássico se deve em função de, com o discurso indireto, o autor falar, de o discurso indireto funcionar como se o autor assumisse o dizer ao passo que o discurso direto funciona como se o autor simulasse um dizer, instaurando assim a ilusão de um falso dizer. Ou seja, o indireto produz o efeito de assunção de seu próprio dizer enquanto o direto, o efeito de simulação de um dizer (Medeiros, 2006: 37).

O DI teria seu funcionamento como discurso da verdade – discurso da lei. O DI

constitui-se em uma prática do discurso jurídico. Destaca-se que, na atualidade, o DI ainda

funciona em uma prática judiciária corrente. Em depoimentos policiais ou depoimentos nos

tribunais, a voz do outro é relatada, funcionando como uma forma de atestar o dizer134.

Ao tratar da mudança135 do estatuto do DD, Medeiros (idem) destaca o processo

histórico de aproximação feito entre DD e a citação (o que implica conferir ao DD a mesma

“força argumentativa” atribuída à citação). Os dois são tornados equivalentes pela tipografia,

especificamente, pelo uso das aspas.

134 Podemos citar, como exemplo, trechos de pareceres produzidos pelos técnicos do DEGASE que relatam a voz do menor ao juiz da Vara da Infância e Adolescência. Vejamos o exemplo: “Manifestou interesse em fazer curso de mecânica, ele diz que em sua cidade tem SENAC e pretende obter informações a respeito do curso” (Maia, 2006: 84). Coma aponta Medeiros (2006), embora pareça haver um consenso por parte das gramáticas, há territórios discursivos em que o DI ainda é institucionalizado como discurso da verdade. 135 As primeiras mudanças do DD em direção à forma de relato fiel de dizer, tal como funciona na atualidade, deu-se com os gramáticos de Port-Royal. Surgia a gramaticalização do par DD e DI e o aspecto sintático passava a ser referência. A alteração do estudo do par DD/DI consubstanciou-se no século XVIII com a pontuação, mais especificamente como uso das aspas. Compagnon (1996) confere às aspas – sinal tipográfico da citação – o papel de indicador que equivale a “eu cito”. Segundo Compagnon (1996), o impressor Guillaume teria inventado as aspas, no século XVII, para isolar um discurso em modalidade direta – ou citação. Diz Compagnon que “anteriormente, apenas a repetição do nome próprio do autor citado, sob a forma de uma oração intercalada, ‘diz fulano’, preenchia essa função. O que as aspas dizem é que a palavra é dada a um outro, que o autor renuncia à enunciação em benefício de um outro: as aspas designam uma re-enunciação, ou uma renúncia a um direito de autor. Elas operam uma sutil divisão entre sujeitos e assinalam o lugar em que a silhueta do sujeito da citação se mostra em retirada, como uma sombra chinesa” (Compagnon, 1996: 38).

236

A tipografia – um dispositivo que serve à prática do dizer na imprensa - assumiu um

papel importante no que se refere à mudança do estatuto do DD. Esse passa a ser uma fala

demarcada e aprisionada pela tipografia. Em outros termos, as aspas, assim como outros

sinais, são “produtos da prática política da imprensa sobre as formas de demarcação da

palavra do outro” (Medeiros, 2006: 40-41). Se até o final do século XVIII, as aspas serviram

para marcar acréscimo, posteriormente, passaram a indicar alternância de vozes.

A mudança do estatuto do DD está atrelada à questão da autoria. Medeiros (idem),

retomando Foucault (1982 [1969]), destaca a integração do autor ao sistema de propriedade. E

aí se instaura o papel da aspas: determinar a voz do autor das outras vozes. Tais sinais

tipográficos possibilitam uma ilusória autonomia do dizer decorrente de uma pretensa

autonomia sintática, ou seja, pelo corte sintático promovido no fio do discurso.

Criam-se, a partir dessa pretensa autonomia sintática, ilusões de fidelidade da palavra

do outro, de objetividade na reprodução no dizer do outro e de neutralidade por parte de quem

relata. Dessa forma, acredita-se que aquele que enuncia, ao abrir espaço para a voz do outro,

exime-se de responsabilidade sobre esse dizer. Sinteticamente, afirma-se que o DD é produto

de longo processo de configuração do autor, e as aspas funcionam como materialização desse

processo na língua.

Medeiros (2006) retoma as considerações de Authier-Revuz sobre dois aspectos do

DD, a saber: a) não comportar sinonímia; e b) manutenção do significante. Embora esses dois

aspectos indiquem a reprodução do significante (aparentemente, sem alterá- los), eles criam a

ilusão da possibilidade da reprodução verdadeira. Supõe-se que as aspas apreenderiam

também os sentidos. Para Medeiros (idem), no entanto, o corte no fio do discurso coisifica a

palavra do outro e faz supô- la transparente.

Os aspectos ora apresentados também promovem a mudança no estatuto do DI, o qual

passa a ser tomado como forma decorrente do DD. Vale lembrar que Medeiros (idem) indica

que o percurso das duas formas de discurso relatado é tomado como fenômeno sintático.

Tomá-lo dessa forma, afirma a autora, resulta em apagar o juridismo nas formas de relatar a

palavra do outro.

No caso de nosso trabalho, na seção “Quando vou crescer, vou ser...”, a voz do

cientista é trazida, sobretudo, na forma de discurso direto. Nas seqüências a seguir, podemos

observar o corte no fio do discurso promovido pelas aspas, funcionando como uma forma de

demarcar a voz do sujeito-cientista em relação à da voz do sujeito-divulgador.

237

SD1: “Quando vi pela primeira vez uma cobra, foi como se o sol surgisse para mim”, lembra o herpetólogo. “A partir daí, não parei mais de ler e de informar-me sobre o assunto”. (CHC – Quando crescer, vou ser herpetólogo – nº126, jul., 2002) SD2: “Desde os setes anos, interesso-me pela origem da vida na Terra”, diz Ismar. (CHC – Quando crescer, vou ser paleontólogo – nº127, ago., 2002) SD3: “Quando era criança, eu também adorava ver filmes sobre astronomia e sempre tive uma curiosidade enorme pela natureza”, diz. (CHC – Quando crescer, vou ser físico – nº131, dez., 2002) SD4: Por falar em pesquisa, essa é a função de Gustavo Nunan, pesquisador do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele diz que sua paixão pelos peixes vem desde pequeno, quando, aos dez anos de idade, ganhou um livro de sua mãe que mostrava peixes do mundo inteiro. “Sempre fui maluco por eles!” (CHC – Quando crescer, vou ser ictiólogo – nº136, jun., 2003) SD5: César Ades, que des de pequeno gostava de criar animais e observá-los. “Sempre mantive curiosidade em saber como os bichos cuidam de sua própria vida: é como penetrar em um mundo misterioso e cheio de surpresas”, revela o etólogo nato. (CHC – Quando crescer, vou ser etólogo – nº163, nov., 2005)

A voz do cientista ganha destaque na seção. Ao observarmos incidências de DR em

nosso corpus, pudemos identificar, sobretudo, o uso do discurso direto (DD). Este tipo de DR

caracteriza-se por dissociar, no fio do discurso, as duas situações de enunciação – o discurso

citado e o discurso citante – por intermédio de formas tipográficas como, por exemplo, o uso

de aspas, e por indicar, pelo uso de verbos ou de locuções verbais, que há outra enunciação.

Os verbos destinados a introduzir o DD (verbos dicendi) podem ser colocados antes ou no

final do enunciado (lembra, diz, revela). Eles acabam por fornecer pistas para a construção de

efeitos de sentido ao que foi citado. Assim sendo, cria-se a ilusão de que a veracidade do dito

é responsabilidade do cientista citado e não do sujeito-divulgador.

Podemos dizer que a inscrição da voz do cientista, principalmente, em forma de DD,

funciona como um depoimento que exalta a vocação científica despertada na infância.

7.4.3 Temporalidade e espacialidade

Quanto à temporalidade, podemos dizer que há um imbricamento do presente, passado

e futuro, conjugados de forma a sustentar a posição de predição do futuro da criança. Em

relação ao espaço, há a construção de um espaço institucional atrelado a um espaço

geográfico.

Recortamos um bloco de seqüências discursivas no qual verificamos a questão das

profissões científicas.

SD1: Tânia Sampaio, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro , decidiu seguir no ramo, porque, desde criança, quando costumava passear com suas primas no sítio de seu tio, encantou-se com as flores. Hoje, ela trabalha com a conservação de florestas, estudando como as sementes germinam nesses lugares (CHC – Quando crescer vou ser biólogo, março. 2001).

238

SD2: O tempo passou e o garoto que procurou um reconhecido pesquisador de libélulas para saber o nome dos insetos que tinha coletado se tornou professor! Hoje, Angelo Machado dá aula na Universidade Federal de Minas Gerais, é especialista em libélulas (claro!) e seu trabalho consiste, justamente, em identificá-las e classificá-las. “Desde criança, eu queria ser entonólogo, pois gostava de insetos e queria trabalhar com que gostava”, conta ele. (CHC – Quando crescer, vou ser entonólogo, set. 2003). SD3: O professor da USP diz que se fascinou pelas pedras quando ainda era criança. “Estava na primeira série quando ganhei uma ametista”, conta. “Fiquei encantado por aquela linda pedra e nunca mais parei de estudá-las” (CHC – Quando crescer, vou ser gemólogo, março 2005). SD4: “Para ser geofísico você tem que estudar muito, ser curioso, gostar de matemática, física, geologia e de computação, além disso, deve gostar de viajar, para coletar informações em vários lugares”, é o que diz Luiz Rijo, geofísico e professor da Universidade Federal do Pará. Muito antes de se formar, quando ainda era um estudante, Rijo queria trabalhar ajudando a descobrir petróleo. Sonho que, de certa forma, conseguiu realizar, pois hoje, ele é consultor de uma empresa de petróleo. “O dia-a-dia do geofísico é descobrir onde se esconde o minério, o petróleo, em águas subterrâneas. Um trabalho de muita paciência e responsabilidade”, conta. (CHC – Quando crescer, vou ser geofísico, abril 2005).

Nas seqüências 4 a 7, testemunhos de especialista são trazidos. Falamos em

testemunhos por ser o discurso do cientista “reconstruído, ao modo de um relato histórico

atualizado, com características ficcionais: a história da ciência é encenada de modo a não

distinguir os limites entre ficção e realidade” (Nunes, 2003: 54). Em relação às marcas

lingüísticas, destacamos o uso de adjuntos adverbiais de tempo e de lugar que constroem uma

situação que tem a seguinte cronologia:

quando criança /desde criança, o cientista X encantou-se, gostava, fascinou-se

por algum ramo/especialização científica e hoje trabalha na área ou nunca mais

parou de estudá- las.

O que pode ser parafraseado por:

se X, desde criança, sonhou em ser Y, você, leitor-criança, poderá também ser Y

amanhã.

Quanto à temporalidade, há um jogo entre o passado-presente do cientista e presente-

futuro do leitor-criança. O passado do cientista ilustra uma vontade que se realizou e capacita-

o no presente. O leitor, ao seguir os mesmos passos, terá também um futuro promissor, o qual

aparece como previsibilidade. Nas seqüências acima, concentram-se três dimensões

temporais, visto que para projetar o futuro do leitor, projeta-se o presente do cientista e

remonta-se o seu passado.

Os adjuntos adverbiais de lugar indicam a posição dos cientistas no mercado de

trabalho, por sinal, funcionários de instituições públicas dedicadas ao ensino e à pesquisa

(Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Universidade Federal de Minas Gerais, USP). Trata-se

da construção discursiva de um espaço institucional atrelado a um espaço geográfico (do Rio

de Janeiro, de Minas Gerais, de São Paulo). Também podemos identificar que ainda ressoa

certa prática do bacharelismo, prática consubstanciada desde o Brasil-Colônia. Outros

239

sentidos, além do bacharelismo ecoam. Na atualidade, vivemos em uma sociedade,

reconhecida por sociólogos, mundializada, em que há a promoção não só da desigualdade,

mas, sobretudo, da segregação136 (Schalller, 2002: 151). Sob esse olhar, poderíamos

compreender porque enunciar os locais de trabalho (essencialmente públicos) dos

especialistas produziria um efeito de sentido de proteção, segurança para a criança já definida

como futuro cientista.

Como o uso dos adjuntos adverbiais e o do discurso relatado na modalidade direta

funcionam em nosso corpus? Recorre-se ao discurso relatado que funciona, no discurso, como

testemunho, o qual remete a um sujeito que constrói e responsabiliza-se por seu “próprio

destino”. Movimento que apaga a distribuição desigual de recursos materiais e de

oportunidades em nossa sociedade. Testemunho que materializa a ideologia do merecimento

individual: só os indivíduos motivados, empreendedores e que tem bom desempenho são

agraciados (graças às suas aptidões) com o emprego dos sonhos.

Voltamos nesse ponto à noção de memória do futuro. A seção “Quando crescer, vou

ser...”, mais do que dizer sobre as atividades realizadas por diferentes cientistas - profissões

que requerem formação universitária –, dialoga com já-ditos, ou melhor, com discursos que

estabelecem quem pode e deve ser cientista e quem não pode e não deve ser cientista. Por

meio da noção de memória do futuro, é possível identificar como a seção da revista reproduz

a cisão da força de trabalho: de um lado, o trabalho intelectual (na ordem do dito), e do outro,

o trabalho manual (na ordem do não-dito).

Talvez seja muito pueril, de nossa parte, achar que só se estabelece a divisão entre

trabalho manual e intelectual. Dizer que os sentidos são esquecidos não significa dizer que são

apagados. Eles retornam em brechas, nas fissuras da repetição vertical. Na seção “Quando

crescer, vou ser ...”, observamos como essas brechas comparecem na materialidade textual.

SD5: Olha que se quiser ser bombeiro , ainda tem chances de se formar em meteorologista. Por quê? Porque esse era o sonho de criança do meteorologista Luiz Carlos Austin. Ele, que morava em frente a um cemitério, também cogitou de ser coveiro . Mas conheceu a meteorologia e apaixonou-se! (Quando crescer, vou ser meteorologista – CHC – nº124, maio, 2002). SD6: Seria melhor se ele tivesse seguido seu sonho de criança: ser chofer de caminhão? Bom, ele não teria viajado o mundo, conhecido tão bem o ser humano, escrito mais de 60 livros, aprendido novas línguas, defendido os direitos humanos, combatido injustiças sociais ... Enfim, acho que foi melhor ele ter optado pela teologia! (Quando crescer, vou ser teólogo – CHC – nº130, Nov., 2002).

136 Para Schaller (2002), “a diminuição do trabalho industrial, as novas estratificações profissionais, a instabilidade do emprego, a precarização dos assalariados embaralharam as antigas fronteiras e referências” (Schaller, 2002:149). Estaríamos presenciando outra forma de organização da sociedade. Para além da divisão da sociedade em classes, outras linhas de clivagem existiriam. Linhas que demarcam certos lugares e relegam à exclusão, à segregação, o que poderíamos chamar de não-lugar, uma parcela imensa da sociedade.

240

SD7: Estudo a Mata Atlântica e os ecossistemas vizinhos a ela, como restingas, pântanos etc.”, explica ele, que “como boa parte dos meninos, quando era criança, queria ser jogador de futebol” (Quando crescer, vou ser ecólogo – CHC – nº140, out., 2003). SD8: Toda menina sonha em ser modelo ou atriz, certo? Que nada! Mutue Toyata Fujii, pesquisadora científica do Instituto de Botânica, da Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo, é a prova de que esse papo é a maior bobagem. (Quando crescer, vou ser ficólogo – CHC – nº143, jan./fev., 2004).

Negam-se outras profissões (bombeiro, coveiro, chofer de caminhão, modelo ou

atriz, jogador de futebol). No entanto, elas aparecem mesmo sendo negadas, pois quem tem o

sonho de seguir profissões não-científicas, ainda tem chances de mudar, de optar por uma

profissão científica.

Nos textos benjaminianos convocados na seção 7.1, as dimensões temporais estão

interligadas: a fim de projetar o futuro no presente, obriga-se a rememorar o passado. Tal

constatação é válida para proceder à interpretação dos recortes destacados. A revista convoca

cientistas, pesquisadores, professores universitários a relatar suas vivências; vivências que se

misturam a projeções pretéritas; vivências são relatadas na tentativa de recuperar uma

temporalidade e uma localidade pretérita e endereçá- las ao futuro. Dessa forma, constrói-se,

imaginariamente, um por vir rememorando um passado igualmente imaginário e projeta-se no

futuro a possível profissão de especialista ao leitor-criança.

As vivências são materializadas na língua tanto por meio dos advérbios quanto por

recurso ao discurso direto. Essas funcionam como testemunhos que por si só substituiriam os

documentos escritos, em uma ilusão de que os testemunhos configuram a forma mais eficaz

de dizer o indizível dos documentos escritos. Mas, contraditoriamente, a revista funciona

como um documento escrito que arquiva o que é possível sonhar ou desejar ter uma profissão

(ou formação?) para uma determinada classe social.

Consideramos que a seção “Quando crescer, vou ser...” funciona como um espaço de

atualização de memória do futuro, ou seja, um espaço (construção imaginária, não física)

que arquiva representações, ou melhor, projeções imaginárias de um por vir – do que é

considerado um futuro promissor. Assim sendo, constrói um imaginário de profissões aceitas

socialmente para uma determinada classe social.

O cientista/pesquisador que queria ser bombeiro, o outro que queria ser chofer ou

como o ecólogo que queria ser jogador de futebol, o que levou cada um dos referidos

cientistas/pesquisadores a mudarem seus sonhos? Ou o que faz com que um cientista se

241

identifique como “um verdadeiro cientista”137? Para Pêcheux (1988 [1975]) o sujeito

ideológico reduplica – “constituído sob a evidência da constatação que veicula e mascara a

‘norma’ identificadora” (Pêcheux, 1988 [1975]: 159), ou seja, a ideologia que designa o que

será e o que deverá ser uma criança no futuro: cientista ou não-cientista; cientista ou

jardineiro, pedreiro, mecânico. Segundo Grigoletto (2005), a norma identificadora, sob o

efeito do ideológico, determina os lugares sociais de cada sujeito. Assim sendo, as formações

ideológicas estão relacionadas às formações sociais, determinando os lugares empíricos que

cada sujeito pode ocupar, bem como estabelecendo as imagens que representam tais lugares.

Em outros termos, afirma a autora que o sujeito, ao ser interpelado pela ideologia e afetado

pelas relações de poder, sobretudo as institucionais, já está inscrito num determinado lugar

social/empírico e não em outro.

Podemos dizer que a seção tende a eternizar os sentidos da memória oficial – de forma

a imobilizar os sentidos. A seção funciona como um elemento de reprodução do consenso

hegemônico de significação sobre profissões no Brasil. Mas podemos interpretá- la a partir de

outro prisma. Por circular em escolas públicas, visto ser o MEC é seu maior comprador, à

seção caberia arrebanhar as crianças das escolas públicas que ainda não foram “desvirtuadas

para a criminalidade” – movimento produzido historicamente para muitas crianças das

camadas populares. Ainda restaria a elas tornarem-se “cientistas do amanhã”, que condiz com

o projeto pautado na ideologia capitalista de democratização (levar ciência para todos), de

criar cidadãos para salvar o país do obscurantismo, visto que a educação não é capaz de fazê-

lo – e mais: de criar cidadãos da humanidade, conhecedores de ciência para salvar o

mundo138.

Não é a revista com seus testemunhos de adultos supostamente bem sucedidos –

outrora crianças inscritas em um lugar social que possibilitava a dita “aptidão para a ciência”

– que possibilitará inscrever seus leitores em um ou outro lugar social. São as reais condições

de produção que o fazem. Não é a revista que desperta vocações científicas, mas a formação

discursiva na qual sujeito- leitor se inscreve que o faz identificar-se ou não com a posição de

cientista – das ciências humanas ou das exatas e da natureza. Lembramo-nos de que Pêcheux,

ao referir-se à reprodução, afirma não se tratar de uma máquina de salsichas, pois sempre há a

137 Parafraseando Pêcheux (1988 [1975]) quando o referido autor, com o enunciado “um soldado francês não recua”, exemplifica a “norma” identificadora que põe como significado “se você é um verdadeiro soldado francês, o que, de fato, você é, então você não pode/deve recuar’ (Pêcheux, 1988 [1975]: 159 – grifos do autor). 138 Como exemplo, observamos que, na reunião de Copenhagen, “Conferencia sobre o clima”, em 2009, a “salvação do mundo” está atrelada às relações de poder e não à ciência.

242

possibilidade da transformação. Como já tivemos a oportunidade de retomar em nossa tese, o

ritual ideológico é passível de falha.

Assim como Benjamin, concordamos que o passado comporta outros futuros além

daquele que ocorreu. Há possibilidades outras, outros futuros possíveis tanto para menores

infratores quanto para leitores da CHC. O discurso vocacional não é absoluto, apresenta

fissuras nas quais outros sentidos podem emergir. A cada nova retomada, novos elementos

podem inscrever-se na ordem da memória. E podem ocorrer rupturas e fundação de novas

redes de sentidos. A história é contraditória e a língua propensa ao equívoco, portanto, o

futuro pode sempre ser outro.

Ao longo de nossa tese, pudemos observar que a categoria criança, tomada como um-

vir-a-ser-sujeito, imaginariamente representada na relação com o jurídico, é perpassada pelo

ludicismo. Do nosso ponto de vista, a criança é um sujeito que produz história, mesmo que

lhe seja (como é a todos os sujeitos) opaca. Devemos, como aponta Jobim e Souza (2005),

considerar que “a criança não se constitui no amanhã: ela é hoje, no seu presente, um ser que

participa da cons trução histórica de seu tempo” ‘(Jobim e Souza, 2005: 142).

243

É chegada a hora: a ilusão de fechamento

Segundo Orlandi (2004a [1996]), o gesto de interpretação do analista do discurso

difere do gesto de um leitor comum exatamente por aquele ser orientado teoricamente. Porém,

tal como no leitor comum, o efeito ideológico também produz em nós seus efeitos. Eis o

paradoxo do analista. Afinal, também somos sujeitos, sujeitos à ideologia, à língua e à história

e é impossível colocar-nos fora da língua, da história, da ideologia. Essa condição nos

posiciona como autora de nossa tese, a posição da qual mais se cobra a responsabilidade pelo

dizer.

Buscamos com nossa pesquisa compreender o funcionamento do discurso de

divulgação científica para crianças, como também as relações interdiscursivas. Antes de

tecermos algumas considerações finais, mas sem dar, contudo, um ponto final – uma vez que

somente pragmaticamente falando poderíamos encontrar um fim para nosso texto –,

gostaríamos de relatar, brevemente, o caminho investigativo que seguimos.

Iniciamos nossa tese com o questionamento de uma concepção dominante de ciência

construída no imaginário social como aquela que busca verdades e que se pretende neutra e

objetiva. De fato, a ciência, atuando como instância de poder, produz efeitos de verdade,

neutralidade, objetividade. Do nosso ponto de vista, a ciência é uma produção histórica e de

sujeitos. Sendo assim, não pode ser apartada das determinações sócio-históricas.

Consideramos que um dos modos de também compreender a ciência é conhecer suas

formas de financiamento. Segundo E. Guimarães (2009), o modo de circulação do

conhecimento científico relaciona-se com as políticas públicas que, de certa forma, buscam

estabelecer o que deve ou não ser pesquisado. Podemos dizer que, em relação à Ciência Hoje

das Crianças, as políticas públicas do Estado junto à mídia definem o que deve circular, ou

seja, o que pode e deve ser publicado.

No primeiro capítulo, apresentamos os referenciais teóricos dessa disciplina

constituída a partir da tríade: lingüística, psicanálise e materialismo histórico. Tratamos de

noções, como: discurso, sujeito, sentido, formação discursiva, interdiscurso, dentre outras.

Articulamos essas noções ao nosso material de análise e nossas questões de pesquisa de forma

a construir nosso dispositivo analítico. Na segunda parte do capítulo, apresentamos a

244

constituição de nosso corpus. Vale lembrar que tal constituição já faz parte das análises, uma

vez que teoria e prática, em Análise do Discurso, integram-se. Configuramos um arquivo

composto por 176 exemplares da revista Ciência Hoje das Crianças e por dois exemplares do

encarte “Dicas do Professor”. De forma a possibilitar responder a alguns dos nossos

questionamentos, além do nosso corpus principal, construímos um auxiliar. Vale lembrar que

na Análise do Discurso o arquivo é sempre aberto, podendo incorporar outros textos. A

completude só funciona como efeito imaginário; uma ilusão de fechamento. O passo seguinte

foi o de recortá- lo. A partir dos textos, selecionamos, recortamos, agrupamos seqüências

discursivas – em um retorno contínuo com a teoria –, buscando respostas a certos

questionamentos. Relacionamos os textos com a história. Trabalhamos o lingüístico em

relação ao ideológico.

No capítulo 2, trabalhando com os textos que compõem nosso corpus auxiliar, no

capítulo 2, tínhamos como objetivo compreender duas categorias: a criança e a divulgação

científica. Cumpre destacar que as análises realizadas no capítulo em tela foram realizadas a

partir de nosso corpus auxiliar, composto por diferentes materialidades textuais. Na primeira

seção, analisamos a categoria criança. Para tal retomamos as reflexões de Haroche (1992) e

Orlandi (2002) sobre o sujeito-jurídico do capitalismo e os trabalhos realizados, sobretudo, no

âmbito da história.

Observamos que, com a irrupção de um novo modo de produção, a criança foi

associada a um período demarcado na linha do desenvolvimento humano, que é a infância. A

criança, ou melhor, a categoria criança passou a ser falada em um espaço de previsões. A

criança (ao menos a criança de uma determinada classe social) deixou de ocupar lugar na

produção. Por extensão, por não trabalhar/fazer, a improdutividade foi imputada ao não-saber.

Assim sendo, a criança passou a não fazer e a não saber. Essa condição a definiu como um de

vir-a-ser-sujeito. Juridicamente, a criança não fala, mas é falada pela medicina, pela

psicologia, pela pedagogia – campos autorizados a observar a criança, demarcar atitudes para

distintas faixas etárias, pronunciar sobre seu desenvolvimento, etc. Uma outra questão

mereceu destaque. O jogo (desvinculado da seriedade adulta) tornou-se, historicamente,

imbricado nas práticas da criança. A “especialização do mundo infantil” produz consenso: a

forma de falar a criança. A relação da categoria criança com o jurídico é marcada pelo que

denominamos ludicismo. Uma relação pautada pela futuridade (visto ser a criança

considerada um vir-a-ser) e pela previsibilidade (vir-a-ser-um-bom-sujeito).

Nas seções seguintes do capítulo 2, analisamos outras textualizações. Buscamos os

sentidos de divulgação científica. Analisamos verbetes de dicionários, artigos, entrevistas,

245

capítulos de livros. A discursividade dominante sobre a divulgação científica aponta para

sentidos que ecoam: a transmissão de informações, o desenvolvimento da democracia, o

despertar de vocações e a superação de deficiências do sistema educacional brasileiro. Ao

longo de nossa pesquisa, destacamos uma questão que foi tematizada a respeito da revista.

Refere-se à relação fundante entre divulgação científica e escolaridade.

Por fim, nos interrogamos pela demanda da divulgação em nossa sociedade. A partir

de nossas análises, depreendemos o que pode ser chamado de discurso da necessidade,

pautado no imaginário do que seja a ordem das necessidades sociais em relação à ciência. A

ciência divulgada é a ciência que supostamente o povo tem necessidade de adquirir. Vejamos

que é uma necessidade que é posta como se fosse do povo. E, portanto, uma necessidade a

serviço do Estado. Consideramos, pelo que foi exposto, que o mecanismo de individualização

do sujeito pelo Estado se dá também na textualização da divulgação científica para crianças,

ou seja, determina responsabilidades futuras e indeterminando o vir-a-ser-sujeito na massa

uniforme do “povo”, público da divulgação, objeto das políticas públicas (cf. Pfeiffer, 2000).

No capítulo 3, trouxemos as reflexões teóricas de Authier-Revuz (1998 e 1999), de

Zamboni (1999), de Orlandi (2001e 2004b) e de Grigoletto (2005) a respeito do discurso de

divulgação científica. Dialogamos com as propostas das autoras citadas e nosso corpus. Entre

aproximações e afastamentos, pudemos compreender, junto às nossas análises, como se

caracteriza o discurso de divulgação científica para crianças da revista Ciência Hoje das

Crianças. Nesse sentido, articulamos noções – principalmente a de marca, propriedade,

tipologia discursiva e efeito-leitor– e observações do material de análise. Promovemos uma

reflexão sobre o discurso de divulgação científica para crianças que, pautado na necessidade

de obter informações e despertar vocações, constrói a imagem de uma criança apartada das

relações sócio-históricas. Essa reflexão nos possibilitou definir o discurso de divulgação

científica para crianças como um espaço discursivo intervalar (constituído no entremeio de

quatros ordens), caracterizado pelo efeito-leitor, produzido por um gesto de interpretação do

divulgador.

As marcas lingüísticas são consideradas sistematicidades que funcionam como pistas

para depreender o modo de funcionamento de um discurso (Orlandi (2003 [1983]). Em nosso

material de análise, observamos as marcas de pessoa, as perguntas, os advérbios de tempo, de

espaço e de intensidade, o discurso relatado, os sinais discursivos de pontuação, itens lexicais

e até mesmo o rébus. Observando essas marcas com as condições de produção e o trabalho

com a memória, podemos dizer que a não-reversibilidade e a direcionalidade de sentidos são

as propriedades desse discurso.

246

Ao retomar o paralelo entre discurso/sujeito e texto/autor proposto por Orlandi (2005),

consideramos que o material analisado, a revista Ciência Hoje das Crianças, é uma versão, ou

seja, uma textualização possível do discurso de divulgação científica para crianças. Esse

discurso corresponde a uma dispersão de discursos que, a ser textualizado, circula no espaço

discursivo da mídia, mais precisamente o da revista.

Nos capítulos seguintes, debruçamos sobre as análises das seções da revista e do

encarte endereçado ao professor. Nas seções analisadas da revista, depreendemos posições-

sujeito e suas imagens produzidas no discurso. Ademais, compreendemos o modo de

funcionamento das seções.

No capítulo 4, em análise do editorial da revista, procedendo ao deslocamento de uma

postura teórica (oriunda do campo do jornalismo) que insere o editorial como “jornalismo

opinativo”, buscamos compreender seu modo de funcionamento. Além disso, propomos

identificar as representações do divulgador de forma a depreender suas posições. Para tal,

destacamos as marcas de pessoa (não-pessoa discursiva e quarta pessoa discursiva) como

fundamentais para a depreensão das posições-sujeito. Ainda para o desenvolvimento das

análises, foi importante trazer a pontuação, ou melhor, os sinais discursivos de pontuação,

uma vez que marcam a relação entre o discurso de divulgação científica para crianças e o

texto do editorial. Nessa relação, o divulgador é produzido e produz sentidos por meio da

pontuação – um mecanismo de textualização.

Embora aparentemente lúdico, no editorial, há dominância do tipo autoritário, com

tendência ao estancamento da polissemia. O simulacro de diálogo entre divulgador e leitor

aponta para a não reversibilidade, muito embora seja a ilusão de reversibilidade que sustente

esse discurso.

Nos artigos grandes, nas experiências e no encarte “Dicas do professor”, objeto de

análise do capítulo 5, buscamos analisar as imagens dos sujeitos – sobretudo, o leitor e o

cientista – que também constituem o discurso de divulgação científica. Analisar o modo como

o leitor e o cientista são representados e trabalhados em relação às posições discursivas do

divulgador permitiu depreender algumas posições do leitor (leitor-criança e leitor-professor) e

do cientista; além de algumas relações entre o cientista e a criança; o cientista e o homem do

campo. Dentre essas posições, efeitos de aproximação, aliança, incorporação, ou afastamento

entre a ordem da ciência e da não-ciência são produzidos.

O leitor, tanto criança quanto professor, é marcado pela falta: não saber ciência. Nesta

condição, a falta funda um dos sentidos da divulgação. Por isso é possível falar, por exemplo,

em alfabetização científica, pois a população está fadada a ser cientificamente analfabeta:

247

sempre haverá um conhecimento novo que foi produzido pelo cientista X, no

laboratório/universidade Y e que “necessita” ser divulgado. O cientista é o pesquisador

incansável que, por meio de observações empíricas, produz conhecimento. É uma imagem

historicamente construída daquele que ocupa o lugar da autoridade e do poder, uma

construção fundada pelo efeito de verdade científica.

Na seção de cartas, buscamos analisar a leitor em função-autor. Iniciamos o capítulo

trazendo tanto pesquisas de domínios diversos, como também aquelas desenvolvidas sob

perspectiva discursiva. As considerações tecidas nas duas primeiras seções do capítulo

auxiliaram-nos a pensar discursivamente as cartas dos leitores, assim como construir um

dispositivo analítico. Por meio das análises, observamos que, na seção de cartas,

subjetivismos são criados: sujeito que gosta de ciência; que adora a revista; que quer fazer

amigos; que utiliza a revista para fins escolares. As cartas, por representarem um espaço do

retorno do mesmo, já-autorizado, pela mídia, funcionam como um espaço para a propaganda

da revista. Mais uma posição pode ser depreendida: o leitor-assinante.

No capítulo 7, no qual analisamos a seção “Quando crescer, vou ser...”, destacamos a

memória como o conceito teórico basilar para a reflexão desenvolvida nesse capítulo.

Detivemo-nos em dois enunciados que povoam o imaginário sobre o futuro da criança

brasileira: “cientistas de amanhã” e “criminosos de amanhã”. Importa sublinhar que,

considerando esses dois enunciados, pudemos conjugar nosso trabalho de análise da seção da

revista com o batimento de outra tese de doutorado que analisou, dentre outras questões, as

“prováveis” profissões de menores infratores. Nesse batimento, pensamos a historicidade

inscrita no enunciado “Q uando crescer, vou ser...”, título da seção da revista CHC.

O trabalho da memória do futuro produz uma predição de perpetuação das profissões

científicas como sendo as únicas valorizadas. Essa seção caracteriza-se por se estruturar como

um espaço de atualização da memória do futuro, no qual a formação científica é construída

como garantia de trabalho futuro. Mariani (1998) destaca que “o trabalho da memória produz

uma certa previsibilidade, dando a ilusão de que nada muda” (Mariani, 1998:36). Podemos

falar em ilusão de perpetuação da valorização da atividade científica, sobretudo, da

valorização das ciências naturais e exatas.

Por meio de nossas análises, verificamos que o discurso de divulgação científica é

constituído no movimento de diferentes ordens: a da ciência e a da não-ciência (do cotidiano,

da mídia, do ensino). É um movimento, por vezes, de aproximação ou de afastamento entre as

diferentes ordens. Desse movimento estabelece-se uma nova posição: a do sujeito-divulgador.

Esse sujeito identifica seu dizer com os dizeres do cientista ao mesmo tempo em que pode

248

aproximar-se ou afastar-se dos dizeres do não-cientista (por considerá- los antagônicos, como,

por exemplo, o dizer do homem do campo).

A partir de nosso trabalho, verificamos e chegamos ao que denominamos de Formação

Discursiva do Discurso de Divulgação Científica para crianças. A FD que abriga esse discurso

caracteriza-se por manter relações de aliança com a ordem da ciência e de aproximação com

os saberes cotidianos, às vezes, sobrepondo-o ou mesmo opondo-se a ele. Acreditamos que a

mídia tem papel fundamental na delimitação desse discurso, assim como a ordem da

pedagogia.

O sujeito-divulgador, inscrito na formação discursiva do discurso de divulgação

científica para crianças, recorta sentidos da ordem da ciência e da mídia alinhando ao leitor

pretensamente interessado por ciência. Por vezes, minimiza a credibilidade das formulações

de outras ordens, por exemplo, aquela do saber popular.

Cumpre sublinhar que a formulação desse discurso é produzida pelo gesto

argumentativo do divulgador, uma vez que, em posição de função-autor, desloca dizeres de

diferentes ordens, produz aproximações, oposições e distanciamentos. No discurso de

divulgação científica, não é a posição do cientista que movimenta o dizer, é o sujeito-

divulgador que o faz. Esse gesto argumentativo é, em parte, determinado pelas imagens de

cada um dos sujeitos/posições (divulgador, cientista, leitor-criança, leitor-professor), como

também pela memória discursiva.

Devemos ressaltar que não defendemos que não se divulgue a ciência. Para a ciência

se exteriorizar, circular no social, faz-se necessário que ela seja divulgada. No entanto, esse

processo deve ser feito de forma que o sujeito possa compreendê-lo. Ao compreender o que lê

sobre ciência, o sujeito “poderá inserir-se nesse processo, do qual já faz parte apesar dele

mesmo. Poderá tomar uma posição em relação a esse processo” (Orlandi, 2004:143). É assim

que poderá ocorrer a apropriação do conhecimento científico pela sociedade. Consideramos

que a divulgação científica para crianças deva concorrer para que a criança aproprie-se da

construção desse conhecimento.

Não esgotamos – e não tínhamos pretensão de fazê- lo – as possibilidades de análise do

nosso corpus. Várias outras questões poderiam (e podem!) ser suscitadas. Apontamos um

caminho dentre vários caminhos que poderão ser trilhados em outras direções. Por isso não

falamos em conclusão, mas em ilusão de fechamento.

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Anexos

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Anexo 1 Lista dos exemplares da revistas Ciência Hoje das Crianças que compõem o corpus empírico

N° Ano Mês Edição Capa 0 1986 dezembro 1ª A criação do sol 1 1987 março 1ª Uma história de carnaval 2 1987 1ª Como ovo de galinha vira pinto 3 1987 1ª Não se caça ouriço a mão 5 1988 jan./fev. 1ª Quando o mar briga com a areia, quem apanha é o caranguejo 6 1988 1ª É bicho ou é máquina? 7 1988 junho 1ª Luz e sombra 8 1988 julho 1ª “Ele era um herói de outra galáxia.” O que será uma galáxia? 9 1988 agosto 1ª Energia elétrica 12 1989 mar./abr. 1ª Povos indígenas brasileiros 13 1989 jun./jul. 1ª Visita ao laboratório de microscopia eletrônica 14 1989 ago. 1ª Gralha azul 15 1989 dezembro 1ª Erosão 16 1990 setembro 1ª Algas do mar 17 1990 outubro 1ª Uma lista dos bichos ameaçados 18 1990 novembro 1ª Terra, planeta vivo 19 1990 dezembro 1ª Polvos 20 1991 jan./fev./mar. 1ª Caleidoscópio 21 1991 abr./maio 1ª Este ano tem censo 22 1991 jun./jul. 1ª Vaga-lume 23 1991 ago./s et. 1ª Vulcões 24 1991 out./nov. 1ª Quem manda no coração? 25 1991/

1992 dez./jan. 1ª Alga que é comida

26 1992 fev./mar. 1ª Terra à vista 27 1992 abr./maio/jun. 1ª Com papel se faz papel 28 1992 jul./ago./ set. 1ª Golfinhos 29 1992 out./nov./dez. 1ª Papagaio 30 1993 jan./fev./mar. 1ª A dança das abelhas 31 1993 abr./maio/jun. 1ª Sauromania – os dinossauros estão de volta? 32 1993 jul./out. 1ª Morcegos na cidade 33 1993 novembro 1ª A vida no espaço 34 1993 dezembro 1ª Quem foi que inventou o avião 35 1994 jan./fev. 1ª E jibóia engole boi, sô? 36 1994 março 1ª Olha o passarinho! Fotografia e história 37 1994 abril 1ª A bruxa está solta 38 1994 maio 1ª Tubarão! 39 1994 junho 1ª Mamíferos extintos 40 1994 julho 1ª Tratado de Tordesilhas 41 1994 ago./set. 1ª O dia vai virar noite 42 1994 outubro 1ª Borboletas urbanas 43 1994 novembro 1ª O Brasil de Von Martius 44 1994 dezembro 1ª Uma viagem à Idade Média 45 1995 jan./fev. 1ª Por dentro de São Paulo 46 1995 março 1ª O Fim da guerra 47 1995 abril 1ª O tataravô do computador 48 1995 maio/jun. 1ª Pesquisando a AIDS 49 1995 julho 1ª Bzz ... Que mosca! 50 1995 agosto 1ª Especial Água 51 1995 setembro 1ª Quilombo de Palmares 52 1995 outubro 1ª Conversa entre macacos 53 1995 novembro 1ª O império dos Incas 54 1995 dezembro 1ª A matemática de Malba Tahan

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55 1996 jan./fev. 1ª Fala mais alto! 56 1996 março 1ª Carrancas do São Francisco 57 1996 abril 1ª Cinema – efeitos especiais 58 1996 maio 1ª Viva São João 59 1996 junho 1ª Olimpíadas 96 60 1996 julho 1ª A volta dos índios gigantes 61 1996 agosto 1ª O segredo do arco-íris 62 1996 setembro 1ª Bip!Bip!Fon!Fon! 64 1996 novembro 1ª Dez anos da turma do Rex! 65 1996 dezembro 1ª Um mergulho em Noronha 66 1997 jan./fev. 1ª Andando em círculos 67 1997 março 1ª Você tem sangue azul 68 1997 abril 1ª Capoeira mandou me chamar 69 1997 maio 1ª O peixe das cavernas 70 1997 junho 1ª Uma noite de sonhos e pesadelos 71 1997 julho 1ª Bichos da cidade 72 1997 agosto 1ª Um dia de sol 73 1997 setembro 1ª Um roubo interplanetário 74 1997 outubro 1ª Gasp, cof,cof! 75 1997 novembro 2ª Faça seu brinquedo 76 1997 dezembro 1ª Papos e chiados 77 1998 jan./fev. 1ª Os reis do disfarce 78 1998 março 1ª As pinceladas de Dali 79 1998 abril 1ª Aventura no mar 80 1998 maio 1ª Bola na rede 81 1998 junho 1ª Batucada na aldeia 82 1998 julho 1ª Um banquete muito animado 84 1998 setembro 1ª Aves do gelo 85 1998 outubro 1ª Tal pai tal filho 86 1998 novembro 1ª Um criador de ilusões 87 1998 dezembro 1ª Um vôo de balão 88 1999 jan./fev. 1ª Bolhas de sabão 89 1999 março 1ª Cães ou gatos 91 1999 maio 1ª O som das trompas 92 1999 junho 1ª Direto dos pampas 93 1999 julho 1ª Uma bolsa na barriga 94 1999 agosto 1ª A história dos calendários 95 1999 setembro 1ª Objetos curiosos do Brasil Imperial 96 1999 outubro 1ª Um brinquedo do barulho 97 1999 novembro 2ª A tradição de moldar cabeças 98 1999 dezembro 2ª O bug do milênio 99 2000 jan./fev. 2ª Ovos de dinossauro 100 2000 março 1ª É festa! 101 2000 abril 1ª 500 anos de história para contar 102 2000 maio 1ª As curiosas frutas brasileiras 103 2000 junho 1ª O giro das estações 104 2000 julho 1ª O nascimento do livro 105 2000 agosto 1ª As 7 maravilhas do mundo 106 2000 setembro 1ª Morcegos em ação 107 2000 outubro 1ª Os relógios ao longo do tempo 108 2000 novembro 1ª Pequenos moradores das árvores 109 2000 dezembro 1ª Bola rolando 110 2001 jan./fev. 1ª A matemática da natureza 111 2001 março 1ª O mapa do céu 112 2001 abril 1ª Os segredos da voz 113 2001 maio 1ª A vida com sol, calor e pouca água 114 2001 junho 1ª Incas, Maias e Astecas

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115 2001 julho 1ª Um escorrega eletrizante 116 2001 agosto 1ª Do riso à digestão 117 2001 setembro 1ª A doce transformação do açúcar 118 2001 outubro 1ª A aventura em 3D 119 2001 novembro 1ª Tsunami, a onda gigante 120 2001 dezembro 1ª Entre carneirinhos e tempestades 121 2002 jan./fev. 1ª Olhos e lentes: o mundo com foco 122 2002 março 1ª Especial DNA clonagem – transgênicos – projeto genoma 123 2002 abril 1ª Terra chamando Marte. Câmbio! 124 2002 maio 1ª Um furacão? Um tufão? Ou será um ciclone! 125 2002 junho 1ª Quem dividiu o Brasil? 126 2002 julho 1ª Quando a cobra dá o bote 127 2002 agosto 1ª Quilo, metro, litro ... História da unidades de medida 128 2002 setembro 1ª O que é um mutante? 129 2002 outubro 1ª Dunas: Vento areia e surfe! 130 2002 novembro 1ª Queimadas: a natureza em chamas 131 2002 dezembro 1ª A inteligência dos bichos 132 2003 jan./fev. 1ª Não é cobra nem minhoca. O que será? 133 2003 março 1ª Especial bichos 134 2003 abril 1ª Piolhos – os reis do coça-coça 135 2003 maio 1ª Plantas carnívoras 136 2003 junho 1ª Pterossauros: aves ou répteis? 137 2003 julho 1ª Missão: contar os bichos 138 2003 agosto 1ª Quem sabe ler música? 139 2003 setembro 1ª A imigração e a formação do Brasil 140 2003 outubro 1ª Metamorfose: e os bichos se transformam 141 2003 novembro 1ª A invasão das algas - no mar, no jantar e até na pasta de dente! 142 2003 dezembro 1ª Aves de rapina – de olho na sobrevivência 143 2004 jan./fev. 1ª Fóssil vivo? Isso existe? 144 2004 março 1ª Quem sabe o que é cordel? 145 2004 abril 1ª Ossos, sorriam! A história dos raios X 146 2004 maio 1ª Tem boto na pescaria! 147 2004 junho 1ª Espelho, espelho meu! A ciência da imagem refletida 148 2004 julho 1ª A história das Olimpíadas 149 2004 agosto 1ª Esportes – A ciência e os limites do corpo 150 2004 setembro 1ª As células conversam! 151 2004 outubro 1ª Sanguessugas, morcegos, aranhas, peixe -vampiro... Bichos de

arrepiar! 152 2004 novembro 1ª Cada bicho dorme do seu jeito 153 2004 dezembro 1ª Ciência em pequenos frascos – A história da produção de perfumes 154 2005 jan./fev. 1ª Formigas: muito trabalho e muitas curiosidades! 155 2005 março 1ª Feijões no limite – É possível germinar em ambientes extremos? 156 2005 abril 1ª Por que viajar para o espaço? 157 2005 maio 1ª Quem disse que é de cão que se faz sabão? 158 2005 junho 1ª 2005: A ciência está em festa! Por que será? 159 2005 julho 1ª Caricaturas – desenhos para rir e pensar 160 2005 agosto 1ª Júlio Verne: ciência que brota da imaginação 161 2005 setembro 1ª Águas -vivas, ouriços-do-mar, caravelas... – Fique de alerta! 162 2005 outubro 1ª Opilião: defesa fedorenta 163 2005 novembro 1ª Ritos de passagem – o que vamos celebrar? 164 2005 dezembro 1ª Animais que só moram no cerrado 165 2006 jan./fev. 1ª Vermes: conheça seres que podem (argh!) morar dentro de você! 166 2006 março 1ª Histórias de uma princesa bem brasileira 167 2006 abril 1ª Papo na cabeça: como as células do cérebro conversam? 168 2006 maio 1ª Especial África! 169 2006 junho 1ª Futebol: arte e ciência em campo 170 2006 julho 1ª Está limpo? Ou poluído? Quem vive no rio responde!

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171 2006 agosto 1ª Namoro animal – O que os bichos fazem para conquistar um par? 172 2006 setembro 1ª Há 100 anos, Santos-Dumont inventou o avião 173 2006 outubro 1ª Prato do dia: insetos! 174 2006 novembro 1ª Carrapichos: cheios de espinhos, prontos para espetar sementes! 175 2006 dezembro 1ª Vai rolar a festa! 20 anos de CHC!

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Anexo 2 Promoção: CHC, muito prazer! - Revista Criança Hoje das Crianças – nº98 – dezembro de 1999.

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Anexo 3 Lista de materiais que compõem o corpus auxiliar

Dicionários AULETE, F. J. C. Dicionário contemporâneo da língua portugueza. Lisboa: Livraria

do Editor Antonio Maria Pereira, 1948, 2vol.

FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa . Rio de Janneiro: Nova Fronteira, 1986.

HOUAISS, A., Dicionário Houaiss da língua portuguesa . São Paulo:Objetiva, 2001.

LEITE, J. K., JORDÃO, A. J. Dicionário latino vernáculo. 3ed. Rio de Janeirio: Editora Lux, 1958, 2vol. LITTRÉ, É. Dictionaire de la langue française. Paris: Librairie Hachette, 1930, 4vol. SILVA, A. de M. Diccionário da língua portugueza: recopilado. 2ed. Lisboa: Typographia Lacérdina, 1813, 2vol.

Sites ABRADIC: fundação e objetivos. Disponível em: www.eca.usp.br/nucleos/njr/abradic, [citado em 15 março 2007].

Romero, T. Conhecimento e cidadania.AGÊNCIA FAPESP. 23 nov. 2007. Disponível em :< http://www.agencia.fapesp.br/boletim_dentro.php?id=8064 >. Acessado em: 25 nov. 2007

REIS, J. O que é divulgação científica? Disponível em: <www.eca.usp.br/nucleos/njr/index.htm>. Acessado em: 15 mar. 2007.

Curso de Redação Avançada em Ciência e Tecnologia”Leitura e Escritura da Divulgação Científica” Disponível em: http://leituraeescrita.com/ledc/cdl/ Acessado em: 02 nov. 2007.

Entrevistas MOREIRA, I. C. A divulgação científica no Brasil. Revista da Fapemig, Minas Gerais,

n. 18, mar. 2004. DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: um grande desafio para este século. Cienc. Cult. [online]. abr./jun. 2005, vol.57, n.2, p.18 -20. Disponível em: <http://www.cienciaecultura.bvs.brlscielo.php?script=sci_arttext&pid=5000967252005000200013&1ng=pt&nrm=iso. Acessado em: 06 fev.2007.

Artigos acadêmicos ALBAGLI, S. Divulgação científica: informação científica para a cidadania? Ciência da Informação, Brasília, v. 25, n.3, p.396-404, set./dez., 1996.

CANDOTI, E. Divulgação e democratização da ciência. Ciência & Ambiente, n.23, jul./dez., 2001, Santa Maria, p.5-13. PEREZ, J. R. B., CALUZI, J. J., A divulgação científica e o ensino de física moderna. In: ARAÚJO, E. S. N. N., CALUZI, J.J., CALDEIRA, A. M. A. (org.) Divulgação científica e ensino de ciências: estudos e experiências. São Paulo: Escrituras, 2006, p.57-93.

Livro sobre divulgação científica

ALMEIDA, M. O. A vulgarização do saber. Rio de Janeiro: Ariel, 1931.

Livros de literatura infantil

LOBATO, J. B. M. Serões de Dona Benta. 6 ed. São Paulo: Brasiliense, 1955.

Jornal REIS, F. S.Ciência para todos. A Manhã , Rio de Janeiro, 28 mar. 1948, Suplemento Ciência para Todos, p.2.

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Anexo 4 A vulgarização do saber, de Miguel Ozório de Almeida

OZORIO DE ALMEIRA, Miguel. A vulgarização do saber. Rio de Janeiro: Ariel, 1931. p. 229-240.

As collecções de livros de vulgarização scientifica se multiplicam. As conferencias e cursos publicos

sobre as questões mais arduas e difficeis destinadas a pôr ao alcance de todo o mundo noções ou conhecimentos que eram o apanagio de grupos limitados de especialistas, secundam e completam a tarefa que visam executar as edições populares.

Tudo isso demonstra que o publico em geral tem sua attenção despertada para as coisas do saber e aspira participar do movimento incessante das idéas, e comprehender, pelo menos em suas linhas essenciaes, as bases dos grandes factos scientificos e a essencia das principaes leis naturaes. Essa aspiração é sem duvida nobilitante. Será ella util? Poderá ella ser satisfeita? Que resultados advirão de uma cultura popular mais extensa, e, o que é fundamental, até que ponto poderão os homens de sciencia corresponder a esse apello colectivo? Emfim, terá a sciencia alguma coisa a ganhar com esse movimento?

Difficil seria responder de um modo cabal a todas essas perguntas. Esses problemas já têm sido discutidos por sabios e philosophos e as conclusões são, em geral, contradictorias. Alguns não escondem o seu scepticismo e não crêm na possibilidade de reduzir a termos sufficientemente elementares os resultados complexos de pesquizas scientificas, para a comprehensão dos quaes é necessaria uma longa preparação.

É esse scepticismo que, conquanto não expressamente declarado, transparece do prefacio escripto por E. Meyerson para a Collection Fontenelle, dirigida por Salomon Reinach e Georges Urbain, que se iniciou recentemente com um volume intitulado Deux Heures de Mathématiques.

O grande publico conhece de sobra o nome de Salomon Reinach, historiador, archeologo, critico de arte e philologo. Georges Urbain, menos conhecido, é uma figura interessante e complexa de sabio, que a uma competencia das mais especializadas em alguns ramos da Chimica, accrescenta uma vasta erudição scientifica e uma solida cultura artistica. Os que admiram suas pesquizas profundas sobre os complexos não ficariam pouco surprehendidos ao saberem que é delle um livro Le tombeau d’Aristoxène, onde é analysada toda a estructura da musica, desde a antiguidade até os nossos dias, e onde elle mostra como certos modos musicaes, ainda deixados de lado, constituem reservas quasi inesgotaveis para essa arte, que atravessa agora uma crise de renovação. Mais admirados ainda ficariam se soubessem que Urbain não se limita a estudos theoricos sobre musica, mas compõe elle proprio.

Emille Meyerson é hoje dos mais autorizados e profundos pensadores da França. Seus volumes sobre a explicação das sciencias, A Deducção Relativista, Identidade e Realidade, revelam esforço de erudição e capacidade de meditação absolutamentes raros. O ideal dos homens de sciencia em todas as épocas, as tendencias de cada escola, desde os grandes philosophos da Grecia, até os phisicos relativistas actuaes, foram por elle postos em evidencia em um trabalho longo e penetrante. Certamente, a somma de conhecimentos por elle adquirida, a possibilidade de ter presente á memória uma tão larga mésse de resultados, e a necessidade essencial de seu espirito, de ver além dos factos e leis das sciencias positivas os methodos empregados para descobril-os e as tentativas abortadas ou perdidas, feitas sem sucesso, tudo isso concorre para a attitude de scepticismo a que acima nos referiamos.

Aliás, em um de seus volumes anteriores (La déduction rélativiste) Meyerson tinha apresentado idéas semelhantes, ao verificar o insuccesso de todas as tentativas feitas para expôr a theoria da relatividade ao alcance de todos. Quando se anunciou que Einstein havia revolucionado as concepções classicas do espaço e do tempo, houve uma emoção muito maior nos meios não scientificos que entre os phisicos de profissão. Poucas pessoas, dentre as que mais curiosas se mostravam das novas idéas, seriam capazes de dizer o que havia de essencial nas concepções classicas do espaço e do tempo. Isso não importava. A ameaça contra esses conceitos despertava um interesse analogo ao que haveria se se propalasse que as pyramides do Egypto estavam em vesperas de desabar. Os que nunca viram as pyramides e muito pouca probabilidade teriam de vel-as um dia, sem duvida se mostrariam mais apprehensivos que os demais.

Diante desse anseio geral por saber como se criava a nova ordem de idéas, de todos os lados se tentou esse tour de force: expôr a relatividade na linguagem simples comprehensível á massa dos homens de instrucção média. Uma revista chegou a pôr o thema em concurso. Nada foi possivel fazer, e na opinião de todos, os trabalhos escriptos com esse fim, inclusive o do proprio Einstein, falharam por completo.

Esse insuccesso, entretanto, tem sua explicação facil. A theoria da relatividade exige para ser comprehendida a posse de noções muito elevadas de mathematica, por vezes mesmo inteiramente fóra da cultura classica dos mathematicos de profissão. É impossivel, quasi sempre, apresentar em linguagem profana um raciocínio que só pode ser assimilado com o auxilio de um symbolismo proprio. Meyerson soube pôr esse ponto bem em evidencia. A linguagem commum, a que é utilizada para a vida de todos os dias, tem suas raizes

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profundas no senso commum. A mathematica, como a philosophia, recorre a conceitos, dependentes, em certos casos, de uma especie de senso differente, e que assim não se adaptam ás condições precarias da lingua habitual. Dá-se aqui, segundo Meyerson, o que se observa em um grau muito menor com as traducções literaes. A passagem de certas expressões, que correspondem á mentalidade profunda peculiar a um povo, e que representam exactamente o seu modo de sentir, não pode ser feita convenientemente para outras linguas, que se mostram assim deficientes. A traducção em linguagem vulgar de concepções mathematicas encontra diante de si uma difficuldade desse genero, mas em proporções muito maiores. Ella terá que ser forçosamente incompleta e defeituosa. Para bem comprehender a litteratura de um povo, é necessario conhecer a sua lingua. Um dos argumentos fundamentaes dos partidarios do estudo do grego e do latim é mesmo esse, que a essencia do pensamento dos gregos e dos romanos, formando a origem de nossa cultura, só pode ser assimilada por quem seja capaz de lel-os nos textos originaes. Para bem acompanhar os raciocinios dos mathematicos, é, a fortiori, indispensavel comprehender a linguagem que elles empregam.

Sem duvida, neste ponto particular, o accôrdo não será difficil. As mathematicas e todas as questões scientificas com que ellas têm relações muito intimas, como a maior parte das theorias da Phisica e da Cosmogonia, parecem condemnadas a permanecerem por muito tempo ainda em um certo isolamento. Ellas só serão accessiveis a certos iniciados e a certos privilegiados.

As sciencias, porém, se distinguem umas de outras pelo modo por que ellas são estudadas. Se algumas põem em trabalho as capacidades superiores do raciocinio, e se para abordal-as com proveito é preciso desenvolver ao mais alto grau o poder de abstracção, afastando-se, como observou Meyerson, do senso commum, outras não exigem mais do que as qualidades bem equilibradas dos homens medios. Os seus resultados podem muitas vezes ser isolados, expostos de um modo sufficientemente claro, em palavras simples de uma linguagem muito proxima da linguagem quotidiana. Além disso, é indispensavel distinguir aqui o trabalho do homem de sciencia que porfia por descobrir factos novos, do esforço relativamente pequeno daquelle que apenas quer comprehender o essencial de um phenomeno. Chegar a evidenciar phenomenos até então desconhecidos, ou demonstrar relações até então não suspeitadas de phenomenos já anteriormente descriptos, é sempre tarefa complexa, ao alcance só dos espiritos preparados por dons naturaes e por uma cultura especializada. Em muitos casos, porém, uma vez descobertos esses phenomenos, nenhuma difficuldade existe em expol-os.

As sciencias naturaes apresentam innumeras questões que estão nesses casos. Mesmo algumas das grandes concepções orientadoras que se encontram na base dessas sciencias podem ser explicadas com successo a profanos. Todo o mundo comprehende em seus pontos essenciaes a teoria da evolução ou a natureza microbiana das doenças infecciosas. Ao leigo não interessa, nem é necessario saber a minucia technica e sim apenas as grandes linhas essenciaes de um conjunto importante de conhecimentos.

A utilidade de pôr o grande publico a par do movimento scientifico tem parecido duvidosa a muitos espiritos. O receio dos perigos que offerece a "meia sciencia" é uma das principaes objecções levantadas. Entretanto, esses perigos são mais imaginarios que reaes. Uma instrucção popular bem orientada é feita de modo tal que não deixa duvidas sobre a competencia effectiva dos que a adquiriram. Não é difficil instruir sem deixar ilusão sobre os limites desse saber e sobre as possibilidades exactas que elle confere. Por outro lado, a vida moderna está cada vez mais dependente da sciencia e cada vez mais impregnada della. Não são só as pessôas cujas profissões reconhecidamente têm uma base scientifica, como a Medicina ou a Engenharia, que têm interesse em estar mais ou menos em permanente contacto com differentes sciencias. Hoje, todas as industrias, a agricultura e um grande numero de outras profissões soffrem uma evolução rapida, devido á introducção dos methodos e processos scientificos. A technica moderna evolui para um estado racional, muito mais preciso e de rendimento muito maior. A diffusão da cultura scientifica traria como resultado a familiaridade de todos com as coisas da sciencia, e sobretudo uma confiança proveitosa nos methodos scientificos, uma consciencia esclarecida dos serviços que estes podem prestar.

Poder-se-ia concorrer para destruir esse estado de espirito, que considera o saber quasi um luxo, e a sciencia como um dominio á parte, theorico e abstracto, sem pontos de contacto com a vida real.

A sciencia estuda os phenomenos naturaes e suas relações reciprocas, tratando de conhecer as suas leis do modo mais approximado possível. É ella que faculta o homem o poder de modificar um certo numero de phenomenos, ou de criar as condições de apparecimento de outros, augmentando sua acção sobre o meio que o cerca. É ella que estuda o proprio homem estabelecendo as condições optimas em que seu organismo póde viver. A melhoria das condições de vida é assim uma consequencia natural do augmento e aperfeiçoamento dos conhecimentos scientificos. Em principio, pois, uma vida complexa, cheia, bem organizada é inseparavel de uma sciencia adiantada e poderosa. É claro que cada pessoa, mesmo se dedicando exclusivamente ao estudo, só póde adquirir competencia de valor effetivo, em um campo estreito dos conhecimentos. Com a extensão da sciencia, a especialização, ao menos temporária, é uma necessidade. Mas é preciso que todos, dentro dos limites possiveis, sejam esclarecidos sobre o auxilio, sobre os serviços que a sciencia é capaz de prestar em todos os actos e em todos os momentos da vida commum. Essa noção que parece tão elementar aos que possuem alguma cultura scientifica é entretanto inexistente ou muito vaga, ás vezes mesmo nos meios que são, sob outros pontos de vista,

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altamente cultivados. A vulgarização scientifica bem conduzida tem, pois, por fim real, mais esclarecer do que instruir minuciosamente a todos, sobre este ou aquelle ponto em particular. Mantendo constantemente a maioria das intelligencias em contacto com a sciencia, ella virá criar um estado de espirito mais receptivel e mais apto a comprehender. Ella se destina mais a preparar uma mentalidade collectiva, do que realmente a diffundir conhecimentos isolados. No dia em que a maioria dos homens estiver impregnada da verdadeira significação dos fins da sciencia e tiver comprehendido um pouco da essencia dos methodos scientificos, e, em um passo mais adiantado ainda, souber se aproveitar um pouco das vantagens que a cultura scientifica confere, pela precisão que empresta ao raciocínio e pelo respeito á verdade, além de outras qualidades moraes que desenvolve, a humanidade terá dado um grande passo.

A utilidade da vulgarização scientifica, assim praticada, não me parece, pois, discutivel. É facto que alguns inconvenientes podem resultar de uma diffusão larga da sciencia. Muitas vezes crêam-se mal entendidos penosos. A sciencia progride e evolue constantemente. Os conhecimentos alargam-se e modificam-se. A um conhecimento com um determinado grau de approximação substitue-se outro mais aproximado ainda, quando o aperfeiçoamento da technica de pesquisa o permitte. As descoberta de factos novos obrigam a modificar as concepções geraes orientadoras do pensamento. Isso tudo dá aos que observam superficialmente o progresso da sciencia uma impressão de instabilidade, de insegurança, por vezes desalentadora. De quando em vez, em altos brados, proclama-se a fallencia da sciencia, e talvez disso tudo pudesse resultar um certo descredito. Não ha aqui, porém, nenhum risco de mal entendido quando tudo isso é claramente definido e quando se substituem as opiniões erradas sobre os fins da sciencia por uma concepção correcta e sadia de uma marcha e dos seus objetivos.

A sciencia, por seu lado, só tem a lucrar com uma vulgarização bem feita. Suas necessidades são cada vez maiores, e se na maioria dos paizes ellas são desprezadas, e a cultura da sciencia soffre um atrazo considerável, isto é bem um indicio que as classes dirigentes e os povos, em geral, estão longe de bem julgar esses problemas. Quando se trata de questões simples em que as relações de causa e effeito são bem evidentes e ao alcance de todos, as difficuldades desaparecem. Oswaldo Cruz mostrou que o conhecimentos das leis scientificas exactas sobre a transmissão da febre amarella é indispensavel para a exterminação dessa doença. Não lhe foi difficil obter em seguida meios para um grande instituto de pesquizas sobre pathologia experimental. Ninguem discutiu essa utilidade, tão brilhante havia sido a demonstração que, por força das circunstancias, era essencialmente popular. Quando se trata, porém, de relações menos immediatas entre os progressos scientificos e o bem de toda a collectividade, as difficuldades crescem. É licito, entretanto, esperar que aqui como no outro caso se trate exclusivamente de uma questão de comprehensão geral, e essa comprehensão só pode vir depois de uma larga diffusão de conhecimentos scientificos.

Essa diffusão pode tambem exercer um papel importante no despertar de novas vocações. O contacto constante com as coisas da sciencia aguça a curiosidade e revela tendencias que poderiam de outro modo permanecer para sempre occultas.

Meyerson nos diz duas palavras sobre as difficuldades da vulgarização e sobre a fórma especial de talento que precisam ter os vulgarizadores. Neste ponto estamos de acôrdo. Nem sempre o grande genio inventivo, ou a excepcional capacidade de homem de sciencia pura, se casam com a forma de intelligencia mais adequada para o trabalho de vulgarização. Este requer uma grande capacidade de clareza, a possibilidade de despertar o interesse e de aplainar as difficuldades, que não se obtem sem esforço e pasciencia. É preciso não esquecer, porém, que esse esforço pode ser vantajoso mesmo para o grande sabio. Lord Kelvin declarou uma vez que o preparo de suas conferencias populares muito concorria para o aperfeiçoamento de suas concepções. Como se vê, apezar do pessimismo de E. Meyerson, a tarefa de uma vulgarização scientifica mais intensa e bem orientada seria digna de tentar muitas intelligencias, que se applicariam assim a um trabalho util e proveitoso.

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Anexo 5 Verbetes

Dicionário Vulgarização Divulgação

Dicionário da Língua VULGARISAÇÃO, s.f. O acto de vulgarizar.

DIVULGAÇÂO, s.f. O acto de divulgar; o estado da coisa divulgada.

Portuguesa de António de Morais Silva (1813)

VULGARISÁDO, p. pass. de Vulgarizar. DIVULGÁDO, p. pass. de Divulgar. Em versos divulgado numerosos (o amor da Pátria). Lusiada.

VULGARISADÒR, s. m. O que vulgarizou.

DIVULGADÒR, s.m. Divulgadora, f. Pessoa que divulga; coisa que divulga.

VULGARISÁR, v.at. Reduzir ao estado de plebeu, e homem vulgar. § Fazer commum, com abalimento da nobreza, graduação; v.g. vulgarizar as honras, magistrados, insignias, e graduação de nobreza; os foros de fidalgo, os habitos de Ordens. § Vulgarizar o corpo, devassalo, prostituilo “mulher que se vulgarizava ao que primeiro chegasse”.§ fig. Vulgarizar a fama, dando-a a coisas vulgares. § Traduzir em vulgar . § Publicar a todos.

DIVULGAR, v.at. Publicar, espalhar alguma notícia, nova, vulgarizá-la: divulgárão a Fe no Oriente: divulgar feitos em Historia. Goes.

Dicionário

Contemporâneo da Língua Portugueza de

FJC Aulete (1948)

Vulgarização (vul-gha-ri-za-ssão), s.f. acção ou effeito de vulgarizar.¦ F. Vulgarizar+ão.

Divulgação (di-vul-gha-ssão), s.f. acção de divulgar; vulgarização, propagação, diffusão: Sempre tinham procurado conciliar o zêlo de divulgação das verdades religiosas com os interesses mundanos e commerciaes. (R. da Silva) ¦ F. lat. Divulgatio.

Vulgarizado (vul-gha-ri-za-du), adj. tornado vulgar, commum ou trivial, que está ao alcance de todos; generalizado. ¦ F. Vulgarizar+ado.

Vulgarizador (vul-gha-ri-za-dôr), adj, e s. m. que vulgariza: Talento vulgarizador. É um vulgarizador incançável. ¦ F. Vulgarizar+dor.

Divulgador (di-vul-gha-dôr), s.m. adj, e s. m. que divulga, apregoador, propagandista. ¦ F. lat. Divulgator.

Vulgarizar (vul-gha-ri-zar), v.tr. tornar notório ou mui conhecido; propagar, vulgar, divulgar; pôr ao alcance , ao conhecimento muitos ou de todos; popularizar: Vulgarizar a sciencia. ¦ Abandalhar. ¦ Traduzir em vulgar.¦ –, v. pr. Tornar-se vulgar, tornar-semui conhecido; popularizar-se: Esta xacara é das que menos se vulgarizaram. (Garret.) ¦ Abandalhar-se: ... Não se deixando vulgarizar e ter em pouco. (Fil. Elys.). ¦ F. Vulgar+izar.

Divulgar (di-vul-ghár), v. tr. tornar público, fazer conhecido de todos ou do maior numero; apregoar, propagar, diffundir. A grandeza e a variedade de successos de seu tempo em paz e guerra estão merecendo serem divulgadas por muitas línguas e celebradas por muitas pennas. (FR. L. De Sousa)¦ –, v. pr. tornar-se público ou conhecido; propagar-se: Divulgou-se o successo na cidade (Camilo) ¦ F. lat. Divulgare

Novo Dicionário da

Língua Portuguesa de

vulgarização s.f. Ato ou efeito de vulgarizar(-se).

divulgação [Do lat. divulgatione]. S. f. Ação de divulgar(-se); vulgarização, propagação difusão.

Aurélio B. de H. Ferreira (1986)

vulgarizador (ô). Adj. e s. m. Que ou aquele que vulgariza

divulgador (ô). Adj. e s. m. Que ou aquele que divulga.

vulgarizar [De vulgar +izar] V.t.d. 1 Tornar vulgar ou notório; propagar, divulgar, difundir, vulgar: vulgarizar uma doutrina; “O gaiato ... é no mundo musical um meio que a providência destinou a

divulgar [Do lat. divulgare] V.t.d. 1 Tornar público ou notório; publicar; propagar, difundir, vulgarizar: Os jornais divulgaram o plano governamental; “Em O Constitucional de1883, Alberto Torres

274

vulgarizar os cantos que devem tornar-se populares”.(Latino Coelho, Tipos nacionais, p.29). 2 Fazer comum. Acanalhar, abandalhar. P. 4 Tornar-se muito conhecido, popularizar-se: “Só depois dos românticos ... veio a vulgarizar-se o verso dodecassílabo sem qualquer pausa ou acento na Sexta sílaba, como o queria Hugo [Vitor Hugo]”. (Melo Nóbrega, O Soneto de Arvers, p.88). 5 Abandalhar-se, acanalhar-se.

divulga diversos poemas”. (Barbosa Lima Sobrinho, Presença de Alberto Torres, p.37). P. 2 Tornar-se público ou conhecido;propagar-se, difundir-se | Conj.: v. lavar |

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa , de

Antonio Houaiss (2001)

vulgarização s. f. (1789 cf.MS) 1 ato ou efeito de vulgarizar(-se) (a v. da arte) (a v. do sexo) 2 LEX. fenômeno neológico que se constitui na passagem de um termo científico para o vocabulário da língua corrente. ETIM vulgarizar+ção; ver vulg(i/o); f.. hist. 1789 vulgarisação. SIN/VAR ver sinonímia de divulgação.

divulgação s. f. (1614 SGonç) ato, processo ou efeito de tornar pública alguma coisa; difusão, propagação, vulgarização. ETIM lat. divulgatio, onis ‘ação de espalhar , publicar, divulgar; ver vulg(i/o); f. Hist. 1614 divulgaçon. SIN/VAR difusão, disseminação, generalização, preonício, propogação, propaganda, propalação, publicação, publicidade, reclamo, vulgarização.

divulgado adj.(s.XV cf. VPM) que se

divulgou; propagado, publicado, vulgarizado. ETIM divulgata , a, um ‘publicado, divulgado’, part. pass. do v. divulgare; ver vulg(i/o); f. hist s.XV divulgar

vulgarizador /ô/ adj., s. m. (1789 cf.MS que ou aquele que vulgariza 9o ministro implantou política v. da cultura) (foi um v. da alfabetização). ETIM rad. de vulgarizado (part. de vulgarizar)+dor; ver vulg(i/o); a datação é para o subst.

divulgador /ô/ adj. s.m. (1789 cf. MS). que ou o que divulga. ETIM. lat. divulgator, oris. ‘aquele que divulga, propagador’; ver vulg(i/o); a datação é para o subst.

vulgarizar v. (1702 cf. VPM)1 t. d. e pron. difundir(-se) de um grupo restrito para círculos mais amplos; tornar(-se) comum; popularizar(-se) (v. o estilo clássico) (vários termos científicos vulgarizaram-se em vários níveis da língua) 2 t. d. e pron. tornar(-se) muito conhecido, divulgar(-se), propagar(-se), popularizar(-se) (uma propaganda bem planejada vulgarizou a imagem do artista por todo o país) (no Brasil, a ópera não se vulgarizou). 3 t. d. e pron. tornar(-se) muito comum; banalizar(-se) (v. uma moda) (este estilo vulgarizou-se) 4 Uso: pejorativo. Fazer perder ou perder a dignidade, a respeitabilidade; tornar(-se) reles (v. os costumes) (v.-se a moral). ETIM vulgar+izar; ver vulg(i/o); f.. hist. 1702 vulgarizar; 1789 vulgarisação. SIN/VAR ver sinonímia de divulgar.

divulgar v.(sXV cf.VPM) 1 t. d. tornar pública (alguma coisa desconhecida por outrem); propagar, publicar (d. o teor do documento). 2 pron. promover-se, fazendo-se conhecer. (diante dos fotógrafos, aproveitou a oportunidade para d.-se). GRAM. a respeito da conj. Deste verbo, ver -algar. ETIM lat. divulgo,as,evi,atum,are ‘tornar público, publicar, divulgar’; var. devulgar, com alt. equivocada de grafia; ver vulg(i/o); SIN/VAR alastrar, apregoar, despargir, desparzir, difundir, dispersar, asseminar, distribuir, espalhar, espargir, esparzir, expandir, irradiar, pregar, propagandear, propalar, publicar, publicitar, semear, transmitir, vulgarizar; ver tb. sinonímia de manifestar.

275

Anexo 6 Editorial – Ciência Hoje das Crianças – nº8, julho, 1988

276

Anexo 7 Editorial – Ciência Hoje das Crianças – nº9, agosto, 1988

277

Editorial – Ciência Hoje das Crianças – nº16, setembro, 1990

278

Anexo 8 Testagem de leitura do editorial da revista Ciência Hoje das Crianças (nº9, agosto,

1988) realizada com leitores.

279

280

281

282

283

Anexo 9 Testagem de leitura do editorial da revista Ciência Hoje das Crianças (nº16, setembro,

1990) realizada com leitores.

284

285

Anexo 10

Artigo Raios-X! retirado da revista Ciência Hoje das Crianças nº 145 (abril de 2004).

286

287

288

Anexo 11 Contra-capa da revista Ciência Hoje da Crianças nº75 (outubro de 1997).

289

Pesquisa: Alô, professor! - Revista Criança Hoje das Crianças nº151 (outubro de 2004).

290

Anexo 12 Dicas do professor – Encarte da revista Ciência Hoje das Crianças nº 97 (novembro de 1999).

291

Anexo 13 Cartas de leitores da revista Ciência Hoje das Crianças, nº 99, janeiro/fevereiro de 2000.

292

Anexo 14 Anúncios de assinatura encartados no interior da revista.

293

294

Anexo 15 Lista de profissões da seção “Quando crescer vou ser ...”

Ano Mês N° “Quando crescer, vou ser ...” Página.

2001 Jan./Fev. 110 Não há a seção 2001 Mar. 111 Biólogo 6 2001 Abril. 112 Arqueólogo 9 2001 Maio. 113 Astrônomo 6 2001 Jun. 114 Matemático 6 2001 Jul. 115 Não há a seção 2001 Agos. 116 Geógrafo 22 2001 Set. 117 Filólogo 18 2001 Out. 118 Historiador 12 2001 Nov. 119 Educador 18 2001 Dez. 120 Fonoaudiólogo 20 2002 Jan./Fev 121 Pedólogo 18 2002 Mar. 122 Geneticista 12 2002 Abril 123 Astronauta 6 2002 Maio 124 Metereologista 10 2002 Jun. 125 Estatístico 22 2002 Jul. 126 Herpetólogo 18 2002 Agos. 127 Paleontólogo 22 2002 Set. 128 Bibliotecário 18 2002 Out. 129 Sociólogo 22 2002 Nov. 130 Teólogo 22 2002 Dez. 131 Físico 22 2003 Jan./Fev. 132 Farmacêutico 22 2003 Mar. 133 Zoólogo 22 2003 Abril 134 Nutricionista 22 2003 Maio 135 Botânico 22 2003 Jun. 136 Ictiólogo 20 2003 Jul. 137 Diplomata 22 2003 Agos. 138 Músico 20 2003 Set. 139 Entomólogo 22 2003 Out. 140 Ecólogo 22 2003 Nov. 141 Químico 22 2003 Dez. 142 Ornitólogo 22 2004 Jan./Fev. 143 Ficólogo 22 2004 Mar. 144 Primatólogo 22 2004 Abril 145 Espeleólogo 22 2004 Maio 146 Filósofo 22 2004 Jun. 147 Lingüista 18 2004 Jul. 148 Fisiologista 22 2004 Agos 149 Preparador Físico 22 2004 Set. 150 Veterinário 22 2004 Out. 151 Hematologista 22 2004 Nov. 152 Palinólogo 22 2004 Dez. 153 Antropólogo 22 2005 Jan./Fev. 154 Mirmecologista 22 2005 Mar. 155 Gemólogo 22 2005 Abril 156 Geofísico 22 2005 Maio 157 Folclorista 22 2005 Jun. 158 Físico 22 2005 Jul. 159 Cartógrafo 22 2005 Agos. 160 Micologista 22 2005 Set. 161 Liquenólogo 22 2005 Out. 162 Zootecnista 22

295

2005 Nov. 163 Etólogo 22 2005 Dez. 164 Epidemologista 22 2006 Jan./Fev. 165 Helmintologista 22 2006 Mar. 166 Ilustrador 20 2006 Abril 167 Malacólogo 18 2006 Maio 168 Bio -antropólogo 22 2006 Jun. 169 Atleta 20 2006 Jul. 170 Limnólogo 20 2006 Agos. 171 Restaurador 22 2006 Set. 172 Engenheiro Aeronáutico 22 2006 Out.. 173 Cientista Político 22 2006 Nov. 174 Glaciologista 22 2006 Dez. 175 Jornalista 22

296

Anexo 16 Reprodução da seção “Quando crescer, vou ser ...” da revista Ciência Hoje das

Crianças (nº155, março, 2005).

297

298

Apêndices

299

Apêndice 1

Das origens: um pouco de história ou história-ficção

A história tem um sentido particular para a Análise de Discurso. Longe de estar ligada

à cronologia, a história, organizada a partir de relações de poder, é definida por sua relação

com a linguagem. Orlandi (1990) faz uma distinção entre discurso histórico e da história. No

primeiro, o homem elabora sua relação com o tempo e com a memória. O segundo, marcado

fortemente por suas características institucionais, é um subproduto do primeiro. O discurso

histórico abrange, além do discurso da história, discursos menos formalizados

institucionalmente (lendas, contos e canções populares). Trabalhamos, fundamentalmente,

com o discurso da história, mas não descartaremos os possíveis acessos aos discursos

históricos.

De acordo com Orlandi, a Análise do Discurso nos “obriga a uma tomada de posição

frente à história das ciências” (Orlandi, 1990: 33). Tratamos a historiografia da ciência como

uma narração. Para melhor entendermos tal posicionamento, tomaremos de empréstimo a

noção de narratividade desenvolvida por Mariani (1998). Para a autora, a narratividade é um

processo que, atuando junto à memória discursiva, promove a ilusão de completude. É, como

a própria autora sugere, um fio invisível que tece e conduz sentidos parafrásticos ou ainda

impede ou direciona deslizamento de sentidos.

Os mecanismos de poder que apontam para sentidos possíveis que silenciam outros em

função de mudanças históricas são exercidos por meio da narratividade, uma vez que

a narratividade possibilita a reorganização imaginária do movimento histórico, é o que permite que fatos antes ‘descartados’ passem a fazer sentido para a história. A narratividade, enfim, é o efeito que permite o contar uma história coerente, sem falhas, com estruturação temporal, com encadeamento de causas e conseqüências, com personagens e cenários explicativos (Mariani, 1998: 231).

A história da ciência narrada permite os riscos da história-ficção. Devemos lembrar

que os discursos da história são afetados pela ideologia e, como qualquer discurso, são

opacos. Assim sendo, recorremos aos discursos da história não como depositários de sentidos

únicos, mas como uma narração.

É bem verdade, que é ilusório colocar para a história uma questão de origem e esperar dela a explicação do que existe. Ao contrário, não há “fato” ou “evento” histórico que não faça sentido, que não peça interpretação, que não reclame que lhe achemos causas e conseqüências. É nisso que consiste para nós a história, nesse fazer sentido, mesmo que possamos divergir sobre esse sentido em cada caso. Isto

300

vale para nossa história pessoal, assim como para a outra, a grande História (Henry, 1994: 51-52).

O que é ciência? Não há uma resposta única para essa questão. O que usualmente é

identificado como “ciência moderna”139 é, de fato, uma atividade européia, e como tal deve

ser vista como um caso particular de produção de conhecimento que emergiu em conjunturas

históricas bem definidas: fim da Idade Média, “revolução” comercial e ascensão da classe

burguesa. O que se convencionou chamar de ciência adquire assim um caráter não monolítico.

Dantes e Hamburger (1996), por meio de uma análise historiográfica, propõe conceituar

ciência como uma prática de produção de conhecimento que se estabelece como síntese de

tradições formadoras, com características locais e em determinados meios sociais.

No final do século XVIII, passou-se a associar o conhecimento científico à idéia de

utilidade. A atividade científica deveria incluir “naturalmente” a questão da utilidade e não

constituir um conhecimento meramente livresco. E interrogamo-nos: quais foram as

condições que propiciaram a passagem “natural” de uma ciência livresca, de cunho filosófico,

para uma ciência utilitária? No decurso do século, os processos de revoluções (Francesa,

Industrial) marcaram as origens das sociedades contemporâneas, transformaram as relações de

trabalho e as concepções científicas. A ciência passou a ser considerada como essencial à

industrialização, ao bem-estar da sociedade e ao progresso. A atividade científica utilitária

tornou-se mais próxima da economia, com as conseqüências das Revoluções. Entendemos que

a mudança de foco da ciência é uma construção social, pois a sociedade moderna foi formada

dentro da dinâmica do processo de industrialização. As indústrias, por sua vez, dependem

diretamente da presença e do desenvolvimento de máquinas, que se vinculam diretamente à

ciência e à tecnologia.

Para os historiadores foi esse quadro que possibilitou o surgimento da divulgação

científica. Para Malet (2002), os fatores necessários para o desenvolvimento de estratégias de

divulgação científica não se dão na Europa antes do século XVIII. O autor destaca que, dentre

vários fatores, a formação do tecido urbano da “classe média” proporcionou a audiência para

um discurso de divulgação científica. Para Panza e Presas (2002), a ascensão da divulgação

científica, no século XIX, em diferentes suportes (museus, exposições, conferências), ocorreu

139 Uma das características da ciência moderna européia, na passagem do século XVI ao XVII, foi a criação de sociedades científicas. As principais academias científicas européias foram a Royal Society, em Londres, e a Académie Royale, em Paris. Os integrantes dessas academias não eram unicamente cientistas, mas também pessoas instruídas interessadas em ciência. Pode-se dizer que é no século XVII que a ciência faz uso de um “método científico”. Em 1637, é publicada a obra Discurso sobre o método para bem conduzir sua razão e procurar a verdade nas ciências, de R. Decartes que defendia o caráter singular e universal do método. Para Mota (2001) a publicação de Principia, de Isaac Newton, em 1687, marca a sistematização do método científico, como também se tornou um marco na revolução científica moderna.

301

paralelamente à ascensão da educação – uma exigência da burguesia. A ascensão da

divulgação também pode ser atribuída, de acordo com os autores, aos diferentes meios de

informação que atuaram com o propósito de chegar às modernas idéias científicas a um

público sem formação científica. Em resumo, a superação do analfabetismo e as inovações

técnicas de impressão – que propiciaram uma maior circulação dos meios impressos – teriam

sido os principais catalisadores para o desenvolvimento da divulgação científica.

A historiografia das ciências atesta que a institucionalização das ciências desenrolou-

se ao longo do século XIX. Ela visava à profissionalização dos cientistas e à garantia de

autonomia140 e auto-regulamentação frente ao Estado e à sociedade. Segundo Vergara (2003)

a institucionalização da ciência e da divulgação científica estariam intimamente ligadas:

a vulgarização científica e a especialização das disciplinas são processos correlatos ao longo dos oitocentos, erigindo fronteiras entre o que era ciência ou não [...]. Na medida em que a sociedade aceitasse a idéia geral de que o trabalho do cientista é desinteressado e que está sempre em busca do bem comum, o apoio da sociedade para a atividade científica deveria ser incondicional e a ciência se desenvolveria, segundo seus critérios de auto-regulamentação, independentemente da opinião pública, justificado pelo seu aspecto utilitário (Vergara, 2003: 8).

Do ponto de vista discursivo, em que nos colocamos, a institucionalização é um

processo discursivo, uma vez que as instituições são pensadas e explicitadas pelo discurso.

Distanciando-se da perspectiva sociologista, Mariani (1998) verifica que o processo de

institucionalização tem sua historicidade. Uma instituição, ao constituir-se, encontra-se

regulada por uma formação discursiva, a qual lhe confere sentido.

O que chamamos de instituição, do nosso ponto de vista, é fruto de longos processos históricos, durante os quais ocorre uma sedimentação de determinados sentidos concomitantemente à legitimação de práticas ou condutas sociais. São práticas discursivas e não-discursivas que se legitimaram e institucionalizaram, ao mesmo tempo em que organizaram direções de sentidos e formas de agir no todo social (Mariani, 1998:71).

Seguindo a formulação da autora, podemos dizer que as instituições que se

estabelecem tornam-se visíveis por meio de suas práticas, pela circulação de seus produtos e

por suas normas e leis. A visibilidade consagrada à instituição provoca um efeito de

reconhecimento: “todo mundo sabe”. Reconhecemos que a institucionalização da ciência

moderna deu-se por um processo discursivo. No século XVIII, as sociedades científicas eram

gerais e cobriam todos os ramos da filosofia natural. Em suas sessões podiam ser lidos e

ouvidos trabalhos sobre qualquer aspecto da ciência e seu público era constituído por

140 Até o século XVIII, os monarcas absolutos tendiam a apoiar a ciência por suas conseqüências tecnológicas e econômicas (Ben-David, 1974: 236).

302

cientistas e interessados por ciências (pessoas instruídas). A circulação dos produtos da

ciência moderna – sua produção textual e suas normas (discursos) – naturalizou o

reconhecimento de que “todo mundo sabe o que é ciência” e que “todo mundo sabe o que é

um cientista”, ou ainda, que “todo mundo conhece a famosa lei da gravidade”; seqüências

recortada de um artigo da CHC, as quais analisamos no capítulo 6 de nossa tese. Podemos

finalizar com as palavras de Mariani (1998):

Esse processo de naturalização das instituições funciona no sentido de torná-las ‘evidentes’, legítimas e necessárias, da mesma forma, ao longo do tempo, passa-se a considerar como naturais os discursos que delas ‘emanam’, bem como os comportamentos a elas associados (Mariani, 1998:204).

.

303

Apêndice 2

O cientificismo no Brasil

As principais correntes cientificistas foram trazidas para o Brasil entre o final do

século XVIII e as primeiras décadas do século XIX. Cabe ressaltar que falar em cientificismo

remete a uma imagem de ciência sem limites; a uma promoção de determinismos e certezas

absolutas. A principal corrente foi o positivismo de Augusto Comte. Aqui cabe uma ressalva.

Quando os historiados falam sobre cientificismo, referem-se, principalmente, a certas

doutrinas, a saber: o positivismo, o naturalismo, o evolucionismo. Especificamente, com as

idéias positivistas, buscou-se modernizar a nação frente aos “triunfos da ciência”141, que se

especializava e relacionava-se com a indústria.

A doutrina dos três estados do desenvolvimento histórico de Comte142 passou a ser

usada como referencial teórico para compreensão do processo histórico brasileiro e para o

estabelecimento de ações políticas. O modelo positivista – baseado na unidade de civilização

– enfatizava que a diferença entre as nações residiria no estágio em que cada nação se

encontrava.

A facilidade de incorporação/aceitação das idéias positivistas143, no Brasil, é apontada

por historiadores como uma esperança para as elites de formar uma nação moderna, uma

tentativa de integração do Brasil na cultural ocidental. Entendia-se que o caminho para os

foros da civilização seria dado pelo conhecimento científico obtido a partir da natureza pátria,

visto que um país “desprovido de história” deveria atingir o estágio civilizatório por outras

vias (cf. Vergara, 2003).

Acreditava-se que o Brasil seria o país do futuro e que ainda germinaria e floresceria.

A natureza e a grandeza do território eram os alicerces do nacionalismo brasileiro – visão

141 Para Vergara (2003), os cientificistas não apenas valorizavam a ciência pela ciência, mas advogavam a impossibilidade de qualquer solução ‘não-científica’ para os problemas humanos, pois só a ciência revelaria o ‘ser’ das coisas. A ciência não seria simplesmente, no campo das soluções humanas, o limite imposto a valores e ideais extracientíficos, mas a atividade geradora dos próprios ideais e valores (Vergara, 2003: 40). 142 O positivismo de Augusto Comte começou a difundir-se no Brasil por volta de 1840. Dantes (1996) relata que, em 1842, foi editado em Paris o último dos seis volumes de Cours de Philosophie Positive, de Comte. O primeiro texto positivista produzido por um autor brasileiro data de 1844. Trata-se de uma tese, cujo título é “Plano e Método de um Curso de Filosofia”, de Justiniano da Silva Gomes, apresentada na Faculdade de Medicina da Bahia. A difusão extrema do positivismo, assim como de outras teorias cientificistas (por exemplo, as evolucionistas), aconteceu a partir da década de 70 do século XIX, sobretudo, com o término da guerra contra o Paraguai. 143 As idéias positivistas correspondem ao que chamamos de “herança cientificista”. Nos textos produzidos no início do século XXI, ressoam sentidos positivistas: a nação alcançará seu desenvolvimento e consolidará a democracia por meio da ciência – uma prática redentora.

304

herdeira do romantismo, que tinha na natureza o principal elemento para o caminho da

civilização. O “patriotismo esclarecido” pautava-se na confiança de que as instituições

científicas144 conduziriam o país à emancipação. A presença do positivismo é considerada por

historiadores da ciência como um dos fatores determinantes dos rumos traçados pelo processo

de implantação das ciências experimentais no país.

Para compreendermos essa “aceitação das idéias positivistas”, faz-se necessário

compreender a unidade de civilização a qual o positivismo sinalizava. Para nossa reflexão,

trazemos a contribuição de E. Guimarães (2004) sobre a palavra civilização. Em seu artigo

“Civilização na lingüística brasileira do século XX”, E. Guimarães (2004) aponta que “é

preciso tratar as palavras nas relações de domínio que suas relações constroem” (idem : 129).

No corpus analisado pelo autor, a designação “civilização” opera sentidos de hierarquia de

valores (primitivo X civilizado; barbárie X civilização), como também de valor universal,

envolvendo o sentido de progresso, educação, língua escrita. Há uma relação de oposição que

se constrói entre civilização, por um lado, e primitivo, ignorante, exótico, por outro. O autor

aponta que

a civilização é o que identifica o Brasil e sua língua por serem ambos determinados pela Europa, pela colonização. Contraditoriamente, o que se opõe à civilização antonimicamente, a ignorância, determina selva (e selvagem) e caipira. Ou seja, a ignorância e o selvagem (primitivo) são uma questão do Brasil enquanto lugar de litígio entre civilização (educada) e a ignorância dos povos originários do Brasil (ibidem: 137).

Voltando à questão do positivismo, ou melhor, a “discursividade que hoje pode ser

pensada como fundada em uma epistemologia positivista que crê na possibilidade de estar

fora da história, da ideologia, para se olhar e compreender a 'realidade'” (Pfeiffer, 2002: 142),

podemos destacar que tal doutrina foi considerada uma nova “percepção” sobre a realidade,

sendo esta observada pela perspectiva da objetividade, transparência e neutralidade. O

positivismo julgava compreender a realidade por ela mesma sem que nesse projeto o sujeito

do conhecimento interviesse, mantendo-se neutro, imparcial e objetivo. Criava-se o mito do

cientista desinteressado: celebração do gênio rotulado como homem à frente de seu tempo,

imune às paixões e aos apelos mundanos; celebração moralizante do herói da ciência que

venceu os obstáculos da terra brasilis sem espírito científico. O cientista desinteressado –

comprometido com o saber e capaz de sacrificar seu conforto pessoal em prol do bem da

144 Figuerôa e Lopes (1997) afirmam que a criação do Instituto Agrônomo de Campinas, em 1887, consubstanciou uma opção ‘cientificista’ para a resolução dos principais problemas da economia cafeicultora. A crescente representatividade política dos grupos ligados à produção cafeeira, enunciada em jornais paulistas da época, os quais constituíram importantes veículos de difusão dos “projetos políticos embasados em pressupostos científicos que consolidaram a elite cafeicultora paulista” (Figuerôa e Lopes, 1997: 191).

305

sociedade – tornava-se o exemplo no qual as novas gerações deveriam se espelhar. Todo

jovem, preocupado com o bem da nação, deveria, quando crescer, tornar-se um cientista.

Boeira (1980) aponta que além do aspecto cientifico, a doutrina de Comte tornou-se

especialmente popular no Brasil. O filósofo (1980) expõe que, além do positivismo político –

que influenciou em muito a nascente República Brasileira e na formação dos oficiais das

Forças Armada - e do positivismo religioso - da Igreja e do Apostolado Positivista145 – , há

uma terceira modalidade identificada como “positivismo difuso”. Essa modalidade teria

atingido disciplinas e atividades diferentes e pouco periodizáveis, pois

existem outros sinais igualmente significativos da extensão da presença do positivismo, todos submetidos a ritmos de tempo dificilmente catalogáveis. Como classificar a publicação do calendário positivista ao lado do calendário gregoriano, nos almanaques do começo do século? Ou a referência ao ‘busto de Augusto Comte’ no folclore e ao ‘tal de positivismo’ nos poemas regionalistas? O que dize r da ‘Farmácia da Humanidade’ e da ‘Lavanderia Ordem e Progresso’? E das referências ao positivismo nos versos de poetas diletantes do interior e nas charges humorísticas? E do intendente inculto do interior que, falando da instrução em seu município, refere -se também a ‘idéia fixa do progresso’ que permitirá a todos serem lutadores ‘no campo de honra em prol da Humanidade’? (Boeira, 1980: 4).

As interrogações do autor tangenciam algo que foge à historiografia: o discurso. E, por

isso, cons idera a modalidade, em relação às outras, como “difuso”. De nosso ponto de vista,

que é o discursivo, não compreendemos o positivismo como modalidades. Devemos

considerar como os sentidos do positivismo francês deslocaram, tornaram-se outros em terras

brasileiras, um positivismo difuso e pouco periodizável. O trajeto do sentido que se pretendia

preciso, específico (caráter científico) passa a estar em tudo, “migra para a consensualidade da

sociedade brasileira, transbordando, pegando tudo, tornando-se sentido do senso comum”

(Orlandi, 2002:266). Por isso, a existência de uma “Lavanderia Ordem e Progresso”, da

“Farmácia Humanidade”, do “busto de Augusto Comte”.

145 Sobre a Igreja e o Apostolado Positivista criado por Miguel de Lemos, em 1881, Orlandi (2002) destaca que este último ocupa lugar secundário para os historiadores, pois é visto como uma corrente de idéias marginais. No entanto, para nós, analistas do discurso, “não o vemos assim, mas como discurso em que estão atestadas ‘razões’ do pensamento positivista no Brasil. Ou melhor, importante ou não, é um lugar discursivo relevante para se perceber (apreender) o movimento do pensamento positivista no Brasil, pois nele se mostram as relações de sentido (intertexto e interdiscurso), as relações de força e o modo de construção do imaginário positivista em nossa história ” (Orlandi, 2002: 267).

306

Apêndice 3

O chiste e a Divulgação Científica

A institucionalização da ciência e de sua circulação na sociedade produziu (e ainda

produz) efeitos de objetividade, neutralidade e veracidade. A ciência é tomada como a

possibilidade de progresso. E os cientistas como seus produtores. No entanto, há espaço para

a resistência. Como é possível?

Malet (2002) relata que a realização de conferências públicas não universitárias era um

modismo que se estendia a quase toda a população européia urbana, em diferentes espaços.

Os instrumentos científicos desempenhavam papel central nas conferências: demonstrar as

maravilhas da natureza, produzir efeitos espetaculares e inesperados ao observador. Todo esse

efeito de maravilhamento pela ciência conferia aos cursos e às conferências um componente

de ludicidade e entretenimento.

No Brasil oitocentista, as atividades de divulgação não se restringiam à edição de

periódicos. Visitas ao Jardim Botânico, ao Jardim Zoológico, aos Museus146 e às conferências

populares147. Dentre essas atividades, sublinhamos as Conferências Populares da Glória, que

foram iniciadas no ano de 1873 e estenderam-se por volta de 20 anos (cf. Fonseca, 1996).

Inspiradas nas conferências européias, as “Conferências Populares da Glória” eram

denominadas assim por se realizarem em escolas públicas localizadas na Freguesia da Glória,

no município da corte. Deve-se registrar que muito embora tais conferências fossem

destinadas à instrução do povo, “a sua platéia era constituída por um seleto público, onde se

notava a presença da família real, da aristocracia da corte, de profissionais liberais e de

estudantes” (Fonseca, 1996: 136). Ou seja, no Brasil, as conferências públicas contavam com

um público constituído por homens instruídos – a elite letrada.

Vergara (2003) assinala como já naquela época ironizavam tais conferências. Em uma

publicação satírica intitulada “A Bibliotheca dos Bonds: publicação diária de uns literatos

desocupados”, de 1876, um artigo anônimo narra a ida do Dr. Almondega à Conferência da

Glória148: Vejamos um trecho:

146 A partir de 1860, ocorreu a criação de uma série de museus nas províncias do Império. 147 Os organizadores das Conferências acreditavam que a nação poderia ser transformada por meio da Ilustração do país. Sua função primordial era, de acordo com seu criador, o conselheiro Correia, tornar-se “um meio para despertar o espírito para os mais diversos assuntos, excetuando ‘as paixões políticas’’(Fonseca, 1996: 136). 148 “O ilustrado (fórmula necessária) professor, o Sr. Dr. Almondega, disseram todos os jornais, sobe á cadeira da Escola da Glória, no domingo próximo, às 11 horas da manhã, a fazer uma conferência sobre esta sua tese: da

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A sátira, o deboche, o riso aos literatos desocupados é o lugar de “esgarçamento da

ideologia” cientificista. Ou como Pêcheux nos propõe “a interpelação ideológica como ritual

supõe reconhecer que não há ritual sem falhas” (Pêcheux, 1988 [1975]: 300-1), ou seja, as

práticas discursivas, materialmente textualizadas, são práticas ideológicas reguladas por

rituais sujeitos a falhas. A sátira é o lugar da resistência, “das vitórias ínfimas que, no tempo

de um relâmpago, colocam em xeque a ideologia dominante tirando partido de seu

desequilíbrio” (idem, p.301). A publicação da “Bibliotheca dos Bonds” mostra que a

“aceitação”, por parte da sociedade, do caráter benéfico da ciência não ocorria tal como foi

narrada por muitos historiadores. A história narrada – sob efeito da coerência e do

encadeamento – apaga a resistência, a contradição que se fazia presente entre a aristocrática

localidade, entre seus meios de produção e circulação de conhecimento, e os trabalhadores

que utilizavam os bondes. A imagem construída do cientista era a do desocupado,

Como tratar do humor, da anedota, do riso em AD? Para Pêcheux (1988 [1975]), os

chistes são como um sintoma da resistência ao assujeitamento ideológico. Isso não significar

patologia social dos seres mancos em relação às exterioridades negativas. Que síntese bonita! Ninguém a entendeu; porém quanto mais sábio era apregoado o leitor, tanto mais entendido se presumia. Foi um verdadeiro reboliço em toda aquela aristocrática localidade! As moças diziam: Mamãe, não quero perder; o Dr. Almondega vai brilhar!”. Destacamos que a cópia foi retirada do microfilme pertencente ao Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UNICAMP.

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dizer que o sujeito é consciente e desidentifica-se à formação discursiva na qual se insere. Ao

desidentificar-se, o sujeito já se ident ifica à outra formação discursiva.

Em A língua inatingível, Gadet e Pêcheux (2004 [1983]), localizam a existência do

humor149 através da tensão, no limite do paradoxo e do absurdo, constante no interior da

língua. Os autores trabalham no espaço do joke (humor anglo-saxão) e do witz (humor

judaico)150, locais de contradição e de diferentes reações ao equívoco, aqui entendido como,

"aquilo que faz com que em toda língua um segmento possa ser ao mesmo tempo ele mesmo e

um outro, através da metáfora, do deslizamento, do lapso e do jogo de palavras e do duplo

sentido dos efeitos discursivos" (Gadet e Pêcheux, 2004 [1983]: 51).

Para os autores, o mecanismo de funcionamento do humor, atua freqüentemente na

base da violação de um “saber”. É possível compreender o riso como desencadeado pela

violação de um saber de uma formação discursiva. O humor é um sintoma da violação de um

saber, no caso da “Bibliotheca dos Bonds”, uma violação ao saber da ciência.

Através da equivocidade constitutiva da língua, é possível alcançar o que ocorre nos

jogos de diferenças, das contradições, do paradoxo e do absurdo. É o absurdo da tese de Dr.

Almondega “da pathologia social dos seres mancos em relação às exterioridades negativas”

que traz o riso. Uma tese na qual o exagero e o non sense trabalham reações de equívoco que

fazem desencadear a violação da formação discursiva da ciência.

149 Não tomaremos a reflexão sobre o humor de forma extensa. Se desde a Antigüidade o tema vem sendo discutido e re-discutido, foi, sem dúvida, com Freud que ganhou relevo. Seu principal trabalho sobre usos e funções do chiste é encontrado em “Os chistes e sua relação com o inconsciente”. Nota-se que chiste tem origem no termo alemã witz, que pode ser tomado como piada, trocadilho, jogo de palavras. 150 A diferença do humor entre essas duas situações demonstra um sintoma de profundas diferenças históricas, culturais e ideológicas marcadas na língua.

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