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171 R. bras. de Dir. Público – RBDP | Belo Horizonte, ano 16, n. 60, p. 171-198, jan./abr. 2018 A responsabilidade do Presidente da República pela prática de crimes comuns Suzana Maria Fernandes Mendonça Mestranda em Ciências Jurídico-Políticas Especialidade em Direitos Fundamentais pela Universidade de Lisboa. Pós-Graduada em Bioética pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Advogada. Resumo: O Presidente da República, como expressão máxima da vontade popular, revelada através da escolha democrática, apresenta-se como uma figura que inspira confiança e credibilidade. Entretanto, o chefe de Estado e de Governo pode vir a romper com a respeitabilidade decorrente do seu ofício a partir do momento que comete crimes, associados ou não à sua função. Para tanto, mostra-se necessário o regime de responsabilidade do Presidente, que regula justamente tais situações, seja pela prática de crimes de responsabilidade ou de infrações comuns. A possibilidade de atuação que enseje a configuração de crime comum praticado pelo ocupante da Presidência da República carrega consigo variadas questões e problemáticas, algumas abordadas no presente trabalho. Palavras-chave: Responsabilidade. Presidente da República. Crimes comuns. Sumário: Introdução – 1 A responsabilidade do Presidente da República – 1.1 Aspectos – 1.2 Breve contextualização histórica – 1.3 Constituições brasileiras – 2 Crimes de responsabilidade – 2.1 Enquadramento – 2.2 Características – 2.3 Hipóteses – 2.4 Processo e julgamento – 3 Crimes comuns – 3.1 Conceito – 3.2 Atos estranhos ao exercício de suas funções – 3.2.1 Irresponsabilidade penal relativa – 3.2.2 Conduta anterior ao início ao mandato – 3.3 In officio e propter officium 3.4 Outras questões problemáticas – 3.4.1 Instauração de inquérito – 3.4.2 Linha sucessória presi- dencial – Conclusão – Referências Introdução O tema da responsabilidade do Presidente da República é de extrema rele- vância tendo em vista a expressividade de tal cargo político, não apenas pela le- gitimidade carregada pelo principal representante da vontade popular expressada por meio de voto, mas também como figura que inspira confiança e credibilidade. Ademais, a magnitude e a amplitude dos poderes associados à sua posição reve- lam a necessidade de um contraposto que traga equilíbrio ao sistema. Além disso, por se tratar de um regime presidencialista, a configuração do titular da Presidência da República envolve maior atenção e cobrança por parte dos cidadãos, uma vez que se constitui como detentor da chefia de Estado, de Governo e da Administração Pública. Logo, é essencial que o texto constitucional

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171r. bras. de Dir. Público – rBDP | Belo Horizonte, ano 16, n. 60, p. 171-198, jan./abr. 2018

A responsabilidade do Presidente da república pela prática de crimes comuns

Suzana Maria Fernandes MendonçaMestranda em Ciências Jurídico-Políticas Especialidade em Direitos Fundamentais pela Universidade de Lisboa. Pós-graduada em Bioética pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Advogada.

Resumo: o Presidente da república, como expressão máxima da vontade popular, revelada através da escolha democrática, apresenta-se como uma figura que inspira confiança e credibilidade. Entretanto, o chefe de Estado e de governo pode vir a romper com a respeitabilidade decorrente do seu ofício a partir do momento que comete crimes, associados ou não à sua função. Para tanto, mostra-se necessário o regime de responsabilidade do Presidente, que regula justamente tais situações, seja pela prática de crimes de responsabilidade ou de infrações comuns. A possibilidade de atuação que enseje a configuração de crime comum praticado pelo ocupante da Presidência da república carrega consigo variadas questões e problemáticas, algumas abordadas no presente trabalho.

Palavras-chave: responsabilidade. Presidente da república. Crimes comuns.

Sumário: introdução – 1 A responsabilidade do Presidente da república – 1.1 Aspectos – 1.2 Breve contextualização histórica – 1.3 Constituições brasileiras – 2 Crimes de responsabilidade – 2.1 Enquadramento – 2.2 Características – 2.3 Hipóteses – 2.4 Processo e julgamento – 3 Crimes comuns – 3.1 Conceito – 3.2 Atos estranhos ao exercício de suas funções – 3.2.1 irresponsabilidade penal relativa – 3.2.2 Conduta anterior ao início ao mandato – 3.3 In officio e propter officium – 3.4 outras questões problemáticas – 3.4.1 instauração de inquérito – 3.4.2 Linha sucessória presi-dencial – Conclusão – referências

introdução

o tema da responsabilidade do Presidente da república é de extrema rele-

vância tendo em vista a expressividade de tal cargo político, não apenas pela le-

gitimidade carregada pelo principal representante da vontade popular expressada

por meio de voto, mas também como figura que inspira confiança e credibilidade.

Ademais, a magnitude e a amplitude dos poderes associados à sua posição reve-

lam a necessidade de um contraposto que traga equilíbrio ao sistema.

Além disso, por se tratar de um regime presidencialista, a configuração do

titular da Presidência da república envolve maior atenção e cobrança por parte

dos cidadãos, uma vez que se constitui como detentor da chefia de Estado, de

governo e da Administração Pública. Logo, é essencial que o texto constitucional

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apresente dispositivos que reproduzam medidas adequadas para a preservação

da estabilidade do Estado em caso de prática de ilícitos por parte do chefe do

poder Executivo.

A responsabilidade do Presidente da república, portanto, reproduz justa-

mente a necessidade de se trazer ao sistema estabilidade e equilíbrio. tendo o

princípio da separação de poderes como fundamento, a responsabilidade inclui o

Legislativo e o Judiciário no processo e julgamento – a intensidade de participação

de cada um varia a depender do procedimento em questão – como forma de se

manter a harmonia da estrutura política do Estado.

Configura-se, nesse sentido, como um mecanismo que visa impedir que

o ocupante de tal cargo venha a exercê-lo de maneira indevida e imprudente.

Entretanto, caso essa conjuntura venha a realizar-se, a possibilidade de respon-

sabilização do chefe do poder Executivo indica precisamente que nem mesmo o

detentor do mais alto cargo da república deixa de estar sujeito às normas que

regem o Estado.

A possibilidade de ser o Presidente responsável pela sua atuação é matéria

tratada em todas as constituições da república, sofrendo pequenas e significa-

tivas alterações ao longo dos anos. Já a constituição do império, por se tratar

de uma monarquia constitucional, dispunha o inverso, sobre a irresponsabilidade

absoluta e irrestrita do imperador, já que era considerada como uma figura sobe-

rana, incapaz de deslizes e desvios.

A versão atual da responsabilidade por atos praticados pelo Presidente

da república, prevista na Constituição Federal, enquadra-se em dois cenários

possíveis: crimes de responsabilidade e crimes comuns. os primeiros sendo os

constantes do texto constitucional e da legislação específica que versa sobre a

matéria, já os últimos configuram-se como aqueles abrangidos pela legislação

penal.

Por se tratar do chefe de Estado e de governo, o procedimento associado

à prática de ilícitos é especial e singular, tanto nos crimes de responsabilida-

de, como nas infrações comuns. As prerrogativas vinculadas ao Presidente da

república, nesse sentido, especialmente no tema de responsabilidade, visam

resguardar e preservar a posição de respeitabilidade emanada do cargo, ocupado

por uma determinada pessoa em decorrência da escolha democrática.

A responsabilização do Presidente, seja no âmbito de crimes de responsa-

bilidade ou de infrações comuns, retrata a importância de existir um instrumento

de contrapartida em casos excepcionais, de modo a apresentar detalhes e es-

pecificidades que elevam o tópico a uma posição extraordinária. Como a respon-

sabilidade coloca-se como uma matéria de extremo destaque no cenário político

e constitucional, está sempre envolvida de questões controversas e polêmicas;

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algumas delas serão abordadas neste trabalho, em especial aquelas relacionadas

às infrações comuns que podem ser praticadas pelo Presidente da república.

1 A responsabilidade do Presidente da república

o Presidente da república é uma figura de extrema relevância para o ade-

quado andamento das opções políticas de um Estado e, em níveis diversos de

importância conforme o regime vigente. Entretanto, há algo em comum entre to-

das as chefias de Estado: o exercício de uma função constitucional, tanto no

sentido de estabelecer ligações harmônicas, como de preservar e promover a

funcionalidade.1

Em um sistema presidencialista como é o caso brasileiro, não apenas a

chefia de Estado cabe ao Presidente da república, mas também a de governo.

Nesse sentido, o titular do ofício presidencial caracteriza-se como detentor de

amplos e variados poderes, o que indica precisamente a magnitude da influência

política de suas decisões.

Logo, não poderia a titularidade da Presidência envolver tantas atribuições

e poderes sem um instrumento de contraposição capaz de evitar situações ad-

versas. Ademais, por se tratar de um sistema de governo orientado pelo princípio

democrático, a autoridade associada ao poder político deve estar de certa forma

ligada a uma disposição constitucional de responsabilidade,2 que representa jus-

tamente um mecanismo de equilíbrio para o sistema.

1.1 Aspectos

o princípio da separação de poderes, que identifica três funções no Estado,3

distribui competências não exclusivas entre seus respectivos órgãos, de modo

a traduzir um método de disposição da própria estrutura política do Estado4 ou,

ainda, um princípio que descreve a estrutura orgânica presente na Constituição.5

Ademais, é fonte de controle recíproco, não apenas como forma de salvaguarda

do apropriado andamento da atividade estatal, mas também da preservação das

garantias individuais.6

1 CANotiLHo, José gomes; MorEirA, Vital. Os poderes do Presidente da República (especialmente em matéria de defesa e política externa). Coimbra, 1991, p. 31.

2 VALLE, Jaime. O poder de exteriorização do pensamento político do Presidente da República. Lisboa, 2013, p. 508.

3 FErrEirA FiLHo, Manoel gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 38. ed. São Paulo, 2012, p. 134.4 rAMoS tAVArES, André. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo, 2013, p. 1952.5 CANotiLHo, José gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra, 1993, p. 73.6 rAMoS tAVArES, André. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo, 2013, p. 1953.

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Logo, tal sistema foi originariamente concebido como um mecanismo de pre-

venção de casos em que os titulares dos poderes poderiam vir a praticar abusos,

uma vez que a divisão de atribuições configuraria a construção de uma estrutura

de colaboração,7 o que forneceria justamente limites mútuos aos poderes. A cria-

ção de um poder para limitar outro ou a divisão do poder em outros diversos,8 con-

cepção emanada da separação, é uma ferramenta eficaz de limitação recíproca.

tal controle recíproco é essencial no sentido de impedir atuações arbitrárias,

como a concentração de poder por parte de uma autoridade ou a invasão de com-

petências designadas para uma função diversa do Estado.9 Nesse sentido, não

podem os titulares de cada poder interferir em incumbências cuja execução suce-

de na área de atuação exclusiva de outro, até como forma de se preservar a leal-

dade institucional.10 igualmente, e também em razão do sistema presidencialista,

não é possível que o chefe do poder Executivo venha a colocar fim ao mandato

de parlamentares, nem tem o Legislativo o arbítrio de destituir o Presidente me-

ramente por força de desconfiança,11 hipóteses que, inclusive, viriam a ferir não

apenas a separação de poderes, mas também o próprio princípio democrático.

A distribuição de funções, decorrente da separação de poderes, acaba por

conferir ao Presidente da república atribuições diversas e de extrema relevância,

previstas na Constituição. Cabe ao chefe do poder Executivo no Brasil, portanto,

o exercício da chefia de Estado e de governo.12 Ademais, detém a direção admi-

nistrativa do Estado,13 de modo a estarem as suas atividades carregadas de um

elevado grau de importância política. Diferentemente, por exemplo, do caso portu-

guês em que o Presidente da república é chefe de Estado, enquanto o Primeiro-

Ministro é responsável pela chefia de governo.

Assim, em razão da acumulação de tantos poderes e da magnitude de in-

fluência que seus atos e suas decisões podem tomar para a administração de

um Estado, é necessário um instrumento de compensação que possibilite uma

via de neutralização de suas ações,14 caso seja necessário. Não haveria sentido,

portanto, conferir ao Presidente da república tantas atribuições e funções sem

um mecanismo de contrapartida que viabilizasse um reequilíbrio em caso de even-

tuais excessos ou abusos.

7 rEiS NoVAiS, Jorge. Contributo para uma Teoria do Estado de Direito. Coimbra, 1987, p. 83.8 MirANDA, Jorge. Formas e sistemas de governo. rio de Janeiro, 2007, p. 56.9 otEro, Paulo. Direito Constitucional português, organização do poder político. v. ii, Coimbra, 2017, p. 11.10 CANotiLHo, José gomes; MorEirA, Vital. Os poderes do Presidente da República (especialmente em

matéria de defesa e política externa). Coimbra, 1991, p. 71.11 FErrEirA FiLHo, Manoel gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 38. ed. São Paulo, 2012, p. 134.12 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1246.13 AFoNSo DA SiLVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo, 2011, p. 550.14 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1255.

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tal ferramenta é justamente a responsabilidade do Presidente da república,

ou seja, a legitimidade conferida à função presidencial não o exime de responder

pela prática de atos ilegais que constem do texto constitucional e da lei específica

sobre a matéria. Da responsabilidade deriva a possibilidade de afastamento do

cargo, bem como o cenário de processo e julgamento em virtude da prática de de-

litos relacionados à função, sem descartar a punição pelo cometimento de crimes

comuns, conforme seja este o caso, como consta dos seguintes dispositivos da

Constituição Federal: art. 52, i; art. 86, caput; art. 102, i. Assim, os atos do titular

da chefia do Executivo não podem ser revestidos de imprudência e ilegalidade,

uma vez que estão sujeitos à responsabilização.

o texto constitucional prevê determinadas imunidades e prerrogativas ao

Presidente no campo da responsabilidade, que, entretanto, não podem ser con-

sideradas como vantagem ou isenção por determinada conduta, mas sim como

garantias constitucionais que derivam justamente da separação de poderes. tais

prerrogativas são, na realidade, um instrumento de preservação do mais alto car-

go do Executivo em hipótese de eventuais interferências dos demais poderes.

A previsão constitucional de responsabilização do Presidente em caso de

prática de atos ilegais apresenta, ainda, uma outra vertente, de modo a ter como

uma de suas consequências, o efeito pedagógico. Produz a ideia de que não há

cidadão que esteja acima da lei, uma vez que, se até mesmo o ocupante do mais

alto cargo da república responde por seus atos, também os demais membros de

uma nação são responsáveis por suas condutas.

1.2 Breve contextualização histórica

A concepção de responsabilidade do chefe do Executivo é um mecanismo

que confere um certo grau de equilíbrio ao sistema, de modo a evitar excessos

e remediar desvios. tal instrumento mostra-se necessário e pertinente devido

à amplitude de poderes atribuídos ao Presidente da república, já que qualquer

desvio em sua conduta pode vir a gerar circunstâncias extremamente danosas à

população e ao Estado.

Diferentemente, por exemplo, do que ocorria quando se tratava de uma

monarquia,15 já que em tal hipótese, o rei, como detentor de poderes supremos,16

era considerado como uma pessoa incapaz de agir contra a lei,17 de modo a

não responder por qualquer de seus atos justamente por se tratar de uma figura

15 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1255.16 VEigA, Paula. O que faz de um Presidente da República um presidente republicano? Coimbra, 2014, p.

158. 17 CriStÓBAL, rosário Serra. Las responsabilidades de um Jefe de Estado. Revista de Estudios Politicos,

n. 115, 2002, p. 162.

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soberana e, como consequência, suas condutas jamais seriam passíveis de ques-

tionamento e responsabilidade. Seu reinado era revestido por uma regra de inviola-

bilidade, que lhe conferia imunidade em caráter perpétuo.18 tal conceito, inclusive,

foi transportado às monarquias atuais, embora seguido por um distanciamento do

monarca de funções políticas.19

Entretanto, quando se trata de uma república, o chefe de Estado está sujei-

to à responsabilização por seus atos. Em contraste com os valores monárquicos

que concediam imunidade pessoal ao rei em um verdadeiro regime de irresponsa-

bilidade, o princípio republicano trouxe consigo não apenas a renovação periódica

da titularidade de cargos públicos,20 mas também a possibilidade de responsa-

bilização daqueles que venham a se utilizar indevidamente de tais postos, em

detrimento do Estado e da própria população.

Contudo, houve um momento na história brasileira em que a disposi-

ção referente à responsabilidade do chefe de Estado sequer constava do tex-

to constitucional, ou em uma construção mais adequada, o registro quanto ao

tema era nomeadamente no sentido da irresponsabilidade total e irrestrita do

chefe do Executivo. Quando o regime em vigor no Brasil era a monarquia cons-

titucional, a primeira Constituição, outorgada em 1824, conferia ao imperador

não apenas a titularidade do poder Executivo, mas também do Moderador.

tal disposição já era suficiente para mostrar a assimetria entre os pode-

res. Além disso, e para acrescentar à desarmonia, havia um dispositivo –

art. 99 – que pontuava a irresponsabilidade do imperador.

o conteúdo do artigo ainda enunciava a inviolabilidade da pessoa do

imperador, bem como a impossibilidade de ser ele responsável pelo exercício de

qualquer de seus atos. Logo, o imperador, detentor da chefia de dois dos quatro

poderes, não era sujeito à responsabilidade alguma, o que é a adequada repre-

sentação do desequilíbrio e da desarmonia desse sistema.

Entretanto, quando se trata de regimes democráticos, não há governante

que seja irresponsável por seus atos. A democracia, nesse sentido, não se con-

some com o fim das eleições, de modo a serem os representantes, escolhidos

legitimamente pelo povo, passíveis de responsabilização por qualquer conduta

indevida decorrente do uso de seus cargos21 e, caso reste comprovado o ilícito,

que respondam devidamente por tal prática.

18 DELPÉrÉE, Francis. La responsabilité du Chef de l’État. Révue Française de Droit Constitutionnel, Presses Universitaire de France, n. 49, 2002/1, p. 31-41.

19 CriStÓBAL, rosário Serra. Las responsabilidades de um Jefe de Estado. Revista de Estudios Politicos, n. 115, 2002, p. 155-181.

20 VALLE, Jaime. O poder de exteriorização do pensamento político do Presidente da República. Lisboa, 2013, p. 481.

21 AFoNSo DA SiLVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo, 2011, p. 550.

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1.3 Constituições brasileiras

o tema da responsabilidade do Presidente encontra-se presente em todas

as constituições da república,22 de modo a sofrer alterações diversas ao longo do

tempo, seja quanto às hipóteses previstas e penas, seja em relação à forma de

processo e julgamento. A constante disposição sobre a matéria reflete justamente

sua relevância para o equilíbrio do sistema e influência para a estabilidade do

governo.

Conforme mencionado anteriormente, a primeira constituição brasileira foi

outorgada pelo imperador no ano de 1824, dois anos após a independência, de

modo a lhe conferir uma densidade de poderes que representam adequadamente

a sua intenção em mantê-los concentrados em sua figura. Exemplo disso era a

previsão de que, caso houvesse queixas contra os juízes, poderia o imperador

suspendê-los,23 bem como a criação do poder Moderador que lhe atribuía o título

de chefe supremo da nação.

Ademais, relativamente à sua responsabilização, o imperador deixou expres-

sa a sua completa inviolabilidade, não estando sujeito à responsabilidade em

qualquer ordem. tais pontos são suficientes para se constatar, assim, que a

forma como se deu a gênese da organização da estrutura do Estado, há pouco

independente, revestida de cargas autoritárias e antidemocráticas,24 acabou de-

sencadeando consequências ao longo da história brasileira, marcada por diversos

golpes de Estado, entre outras diversas tentativas.

Já a constituição de 1891, a primeira republicana, inaugurou a forma federa-

tiva e, em razão dos eventos ocorridos durante o período em que a monarquia era

vigente, propunha como um de seus objetivos formais minimizar o poder pessoal

de membros do governo,25 de modo a deslocar e distribuir competências entre os

poderes. A demasiada concentração de poderes no imperador, assim, gerou um

senso de empenho para alcançar a ruptura com o antigo sistema, de modo a in-

fluenciar não apenas na distribuição de competências entre as funções do Estado,

mas também na matéria da responsabilidade do chefe do Executivo. A previsão de

responsabilização do Presidente, portanto, constou pela primeira vez justamente

deste texto constitucional.

o Presidente, conforme previsto no art. 53, após declaração da Câmara de

que a acusação é procedente, seria submetido a processo e julgamento perante

o Senado, em casos de crime de responsabilidade e perante o Supremo tribunal

22 MENDES, gilmar; goNEt BrANCo, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2014, p. 2527.

23 ViLLA, Marco Antônio. A história das constituições brasileiras. São Paulo, 2011, p. 11.24 ViLLA, Marco Antônio. A história das constituições brasileiras. São Paulo, 2011, p. 11.25 BoNAViDES, Paulo; ANDrADE, Paes de. História constitucional do Brasil. rio de Janeiro, 1991, p. 249.

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Federal, em hipótese de cometimento de crimes comuns. Dispunha, ainda, que

se houvesse a decretação da procedência da acusação, ficaria o Presidente sus-

penso de suas funções.

Nesse sentido, o primeiro rascunho do que viria a ser a atual concepção de

responsabilidade do Presidente sucedeu justamente nos dispositivos presentes

na primeira constituição promulgada após o fim da monarquia. As hipóteses de

responsabilização, assim, bem como a forma de processo e julgamento são pró-

ximas à estruturação atual, prevista na Constituição de 1988. Ponto interessante

deste texto constitucional é a divisão dos possíveis delitos a serem cometidos

pelo chefe do Executivo em crimes comuns e crimes de responsabilidade.

A constituição de 1934 foi promulgada após conturbações decorrentes de

revoluções de 1930 e 1932 e, em razão disso, as preocupações de cunho social26

refletiram no conteúdo da Carta, de modo a representar a inauguração do consti-

tucionalismo social.27 Exemplo disso é a disposição, pela primeira vez, de que as

mulheres poderiam votar para Presidente.28

Quanto à responsabilidade do titular da chefia do Executivo, algumas mudan-

ças substanciais foram acrescentadas, especialmente em relação ao julgamento.

Quando se tratava de crimes comuns, a previsão do art. 58 também atribuía à

Corte Suprema a incumbência de julgar o Presidente; entretanto, relativamente

aos de responsabilidade, o processo e julgamento seriam de competência de

um tribunal Especial. Comporiam este tribunal três ministros da Suprema Corte,

três membros do Senado Federal e três membros da Câmara dos Deputados, de

modo a ter como presidente o da Suprema Corte. Da mesma forma, caso fosse

decretada a acusação, ficaria afastado de imediato.

A composição de tal tribunal traduz a conjugação dos poderes Judiciário e

Legislativo para análise de delitos e, posteriormente, processo e julgamento, do

chefe do Executivo. Seria um mecanismo claro do controle e da limitação de um

poder pelos demais,29 justamente como forma de responsabilizar o Presidente por

eventuais atos ilegais que pudesse ter cometido. Ademais, a presença ativa do

Judiciário no julgamento de hipóteses de crimes comuns e de responsabilidade

também foi uma alteração considerável em relação à Carta anterior.

Já a constituição de 1937, outorgada por getúlio Vargas após o golpe, tinha

como objetivo primário a manutenção do Presidente no poder. A Carta preservava

os três poderes, entretanto não havia qualquer harmonia ou equilíbrio entre eles,

não apenas devido à prática ditatorial, mas também em razão do próprio conteúdo

26 BoNAViDES, Paulo; ANDrADE, Paes de. História constitucional do Brasil. rio de Janeiro, 1991, p. 319.27 SArMENto, Daniel; SoUZA NEto, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de

trabalho. Belo Horizonte, 2012, p. 99.28 ViLLA, Marco Antônio. A história das constituições brasileiras. São Paulo, 2011, p. 38.29 MirANDA, Jorge. Formas e sistemas de governo. rio de Janeiro, 2007, p. 56.

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de seu texto, que designava ao Presidente da república o papel de autoridade

suprema do Estado.30

Na temática da responsabilidade, processo e julgamento seriam de compe-

tência do Conselho Federal, que era uma espécie de Senado, com dois represen-

tantes de cada estado e do Distrito Federal; após declaração de procedência de

acusação pela Câmara dos Deputados, conforme previsto no art. 86. A novidade

que acompanhou as disposições quanto à responsabilização foi a possibilidade

de pena de inabilitação para o exercício de qualquer função pública por até cinco

anos, sem prejuízos de eventuais ações criminais e cíveis adequadas.

Ademais, outra alteração constituiu na impossibilidade de ser o Presidente

da república responsabilizado enquanto estiver no exercício de suas funções,

por atos estranhos às mesmas. tal modificação é nomeadamente compreensível

dado o momento em que foi acrescentada à Carta, uma vez que se tratava de

uma constituição outorgada por um regime ditatorial, de modo a preservar a figura

do Presidente de eventuais processos durante o período de vigência de suas

atividades.

A constituição de 1946, resultado do fim da ditadura, foi promulgada com

um cunho restaurador.31 o texto trouxe de volta o equilíbrio entre os poderes, de

modo a restabelecer as forças do Legislativo e do Judiciário,32 por anos reprimidas

pelo excesso de autoridade atribuída e praticada pelo chefe do Executivo.

A responsabilidade do Presidente, prevista nos art. 88 e art. 89, não sofreu

alterações drásticas, ainda sendo preservada a forma de processo e julgamento

tanto no caso da prática de crimes de responsabilidade, cuja competência era do

Senado Federal após declaração de procedência pela Câmara dos Deputados;

como em circunstância de conduta que configure crime comum, cuja apreciação

seria conduzida pelo Supremo tribunal Federal. Em caso de declaração de proce-

dência pela Câmara, como em constituições anteriores, também ficaria o chefe

do Executivo suspenso de suas funções. inclusive, em 1954, houve um pedido de

impeachment de getúlio Vargas pela União Democrática Nacional, entretanto não

obteve o número necessário de votos.33

A constituição de 1967, a primeira da ditadura militar instaurada em 1964,

conferia ao Presidente amplos poderes,34 como o de edição de decretos com força

30 SArMENto, Daniel; SoUZA NEto, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte, 2012, p. 103.

31 BoNAViDES, Paulo; ANDrADE, Paes de. História constitucional do Brasil. rio de Janeiro, 1991, p. 418.32 SArMENto, Daniel; SoUZA NEto, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de

trabalho. Belo Horizonte, 2012, p. 110.33 ViLLA, Marco Antônio. A história das constituições brasileiras. São Paulo, 2011, p. 60.34 MENDES, gilmar; goNEt BrANCo, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2014, p. 291.

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SUZANA MAriA FErNANDES MENDoNçA

de lei para determinadas matérias,35 mecanismo amplamente utilizado durante

o período de vigência deste texto constitucional. Por se tratar de uma ditadura,

a constituição foi arquitetada para fortalecer o chefe do Executivo e a União, de

modo a centralizar o poder na figura do Presidente, eleito de maneira indireta pelo

Congresso Nacional e por delegados de Assembleias Legislativas.36

o tema da responsabilidade do Presidente manteve-se com as disposições

do texto constitucional anterior quanto ao processo e julgamento em hipóteses

tanto de crimes de responsabilidade, como de crimes comuns. A única modifica-

ção foi a inclusão de um prazo de sessenta dias para arquivamento do processo,

caso não estivesse ainda sido concluído o julgamento. A emenda que veio a alte-

rar o texto de 1967, por alguns considerada constituição de 1969, preservou os

dispositivos referentes à responsabilidade do Presidente.

Já a Constituição Federal de 1988, resultado de um lento processo de en-

cerramento do regime militar e consequente redemocratização, consagra a har-

monia e a independência entre os poderes, conceito por anos rejeitado, em razão

da centralização excessiva decorrente do período ditatorial. A limitação recíproca

entre os poderes, portanto, é evidente no atual texto, o que acabou influenciando

o tema da responsabilidade, cujos dispositivos combinam ideias e conceitos já

previstos em constituições anteriores.

A forma de processo e julgamento, após juízo de admissibilidade realizado

pela maioria qualificada da Câmara dos Deputados, perante o Senado Federal nos

crimes de responsabilidade e perante o Supremo tribunal Federal nas infrações

penais comuns, prevista no art. 86, mantém o conteúdo já constante da consti-

tuição de 1891, a primeira republicana. Ademais, outra previsão do primeiro texto

constitucional republicano e igualmente transportada à Constituição Federal de

1988, é a possibilidade de suspensão do titular da chefia do Executivo de suas

funções, entretanto com a inclusão de especificidades relativamente a cada tipo

de crime.

Quando se tratar de crime de responsabilidade, conforme dispõe o art. 86,

§1º, ficará suspenso após a instauração do processo pelo Senado, já em hipótese

de infrações penais comuns, a suspensão ocorrerá após o recebimento da denún-

cia ou queixa-crime pelo Supremo tribunal Federal. Se o julgamento não estiver

concluído em cento e oitenta dias, a suspensão do Presidente cessa, sem prejuízo

do regular andamento do processo, conforme art. 86, §2º. A estipulação de um

35 SArMENto, Daniel; SoUZA NEto, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte, 2012, p. 119.

36 SArMENto, Daniel; SoUZA NEto, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte, 2012, p. 119.

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A rESPoNSABiLiDADE Do PrESiDENtE DA rEPÚBLiCA PELA PrátiCA DE CriMES CoMUNS

prazo para encerramento de tal suspensão, conforme mencionado anteriormente,

foi enunciada pela primeira vez na constituição de 1967.

Não pode o Presidente, ainda, como informa o art. 86, §3º da Constituição

Federal, estar sujeito à prisão nas hipóteses de prática de infrações penais co-

muns, enquanto não suceder a sentença condenatória. Além disso, conforme

consta do art. 86, §4º, também não é possível que seja responsabilizado por atos

considerados estranhos ao exercício das funções presidenciais no período de vi-

gência do seu mandato, conteúdo previamente enunciado apenas da constituição

de 1937.

A responsabilidade do Presidente da república encontra-se prevista na

Constituição Federal, mas não exclusivamente, uma vez que a Lei nº 1.079/50

regula também, tanto os crimes de responsabilidade, como o respectivo julgamen-

to. o atual modelo de responsabilização do chefe do Executivo, portanto, combina

novos elementos a outros já constantes de textos constitucionais prévios.

2 Crimes de responsabilidade

No Brasil, como reflexo do sistema presidencialista, a figura do Presidente

da república concentra as chefias de Estado e de governo,37 bem com da

Administração Pública. tal regime entrega ao titular da chefia do Executivo relevan-

tes poderes constitucionais, como a escolha da composição ministerial e a própria

direção administrativa.38 o que, inclusive, manifesta o conteúdo paradoxal dos

efeitos do presidencialismo: confere-se ao Executivo, sob o revestimento da legiti-

midade democrática, incumbências de modo a torná-lo um poder expressamente

forte e estável, entretanto vigora um estado de constante e intensa desconfiança

da forma como tais poderes, por serem canalizados em apenas uma pessoa,39

podem afetar os rumos do Estado.

tal suspeita é precisamente um dos fundamentos da existência de mecanis-

mos de responsabilização do Presidente da república, como é o caso do próprio

impeachment. As experiências associadas à configuração clássica da chefia de

Estado, momento em que o rei gozava de isenção completa de responsabilidade,

ou até mesmo ao arbítrio irrestrito ligado aos regimes ditatoriais, acabam por

repercutir na organização político-estrutural, bem como na criação de instrumentos

que possam evitar a concentração excessiva de poder.

37 MENDES, gilmar; goNEt BrANCo, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2014, p. 2501.

38 LiNZ, Juan José. the Perils of Presidentialism. Journal of Democracy, the John Hopkins University Press v. i, n. 1, 1990, p. 51-69.

39 LiNZ, Juan José. the Perils of Presidentialism. Journal of Democracy, the John Hopkins University Press v. i, n. 1, 1990, p. 51-69.

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SUZANA MAriA FErNANDES MENDoNçA

Como as funções de ofício presidencial são amplas e expressivas, de modo

a afetar diretamente as diretrizes internas e externas do Estado, como a pró-

pria população, mostra-se indispensável a existência de ferramentas que possam

evitar maiores danos em caso de desvio de conduta. Nesse sentido, quando a

atuação ilegal do chefe do Executivo vier a atingir determinados bens jurídicos

previstos no texto constitucional, configura-se hipótese de prática de crime de

responsabilidade.

2.1 Enquadramento

o papel do Presidente pode ser ramificado em chefia de Estado e chefia de

governo, de modo a ter ressonância direta nas escolhas político-administrativas

conforme o sistema.40 Nos regimes presidencialistas, já que ambos são concen-

trados na mesma pessoa, o ofício presidencial assume uma posição demasiada

expressiva na condução política do Estado. Assim, as incumbências cabíveis ao

Presidente da república, por serem constitucionalmente previstas,41 conferem le-

gitimidade às decisões de governo por ele tomadas.

Entretanto, o próprio texto constitucional impõe limites aos poderes do

Presidente, sejam estes associados à própria distribuição de atribuições e conse-

quente equilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário; ou até mesmo referentes

à responsabilidade pela sua conduta. Por constituir a figura detentora do comando

administrativo nacional, o Presidente deve estar sujeito a certos mecanismos que

possam minimizar efeitos que de alguma forma possam ser desfavoráveis ao

Estado e à população.

Assim, o Presidente da república responde por seus atos conforme um con-

junto de regras previstas tanto na Constituição Federal, como em lei específica

sobre a matéria. tal construção é nomeadamente relevante no sentido de se

estabelecer limites até mesmo ao chefe de Estado e de governo, de modo a

retratar que nem mesmo o ocupante do mais alto cargo da república está isento

de responsabilização em caso de prática de atividades ilícitas, como ocorria no

período da monarquia constitucional, momento em que era vigente a irresponsa-

bilidade penal absoluta.

Em caso de violação direta de normas enunciadas no texto constitucional

e na legislação específica, os atos do chefe do Executivo serão enquadrados

nas hipóteses de crimes de responsabilidade.42 Estes são, portanto, infrações

40 griMALDi, Selena. the role of italian Presidents: the Subtle Boundary between Accountabilty and Political Action. Bulletin of Italian Politics, v. iii, n. 1, 2011, p. 103-125.

41 MorroNE, Andrea. il Presidente dela repubblica in transformazione. Rivista dell’Associazione Italiana dei Constituzionalisti, n. 2, 2013, p. 1-18.

42 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1255.

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A rESPoNSABiLiDADE Do PrESiDENtE DA rEPÚBLiCA PELA PrátiCA DE CriMES CoMUNS

político-administrativas43 decorrentes do exercício de funções públicas que confi-

guram situações não tratadas no âmbito do Direito Penal, mas sim no campo do

Direito Constitucional.44

2.2 Características

os crimes de responsabilidade caracterizam-se, quanto ao sujeito, como

aqueles cometidos por ocupantes de alguns dos altos cargos da república, como

o Presidente, os Ministros de Estado e da Corte Suprema, ou até mesmo no

âmbito dos estados, os governadores. Logo, as infrações enquadradas como cri-

mes de responsabilidade atingem bens nomeadamente expressivos da ordem

constitucional, de modo a configurar um dever dos titulares de cargos políticos a

sua preservação e efetivação.45 Mostra-se como incumbência dos três poderes,

assim, em observância ao equilíbrio e ao controle mútuo proposto pelo princípio

da separação dos poderes, a manutenção da legitimidade de tais posições, de

modo a serem seus respectivos ocupantes hábeis para o exercício adequado das

funções que lhes foram atribuídas.

Podem ser os crimes de responsabilidade ramificados em infrações políticas

e crimes funcionais,46 a depender da conduta praticada. Não configuram, portan-

to, mera infração de caráter administrativo e disciplinar,47 nem mesmo prática

de delito comum prevista apenas na legislação penal. Mas um nível diverso de

conduta ilícita, uma vez que cometida por altos cargos políticos, aqueles que, teo-

ricamente, encontram-se legitimamente em posição de representação da vontade

popular, porém apresentando um comportamento diverso, de modo culminar com

o rompimento da confiança coletiva depositada nos titulares de tais postos.

Ademais, o trâmite processual é especial, distinto daquele aplicado em caso

de crimes cometidos por qualquer do povo, ou seja, pessoa não ocupante de um

dos cargos políticos em questão. A sanção imposta quando comprovada a prática

delituosa é política,48 de modo a gerar a perda do cargo e a inabilitação para exer-

cício de funções públicas pelo período de oito anos, conforme consta do parágrafo

único do art. 52 da Constituição Federal. Há, portanto, particularidades em relação

ao processo e à competência de julgamento, bem como quanto às decorrentes

43 MENDES, gilmar; goNEt BrANCo, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2014, p. 2527.

44 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1257.45 MirANDA, Jorge. imunidades Constitucionais e Crimes de responsabilidade. Revista Direito e Justiça,

Universidade Católica Portuguesa, ano XV, tomo 2, 2001, p. 27-48.46 AFoNSo DA SiLVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo, 2011, p. 551.47 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1257.48 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1257.

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SUZANA MAriA FErNANDES MENDoNçA

penas e seus respectivos efeitos,49 quando a conduta do Presidente enquadra-se

no conjunto de hipóteses de crimes de responsabilidade.

2.3 Hipóteses

A violação direta dos dispositivos constantes da Constituição Federal e

da Lei nº 1.079/50, específica sobre a matéria, por meio de atos praticados

pelo Presidente da república, configuram hipóteses descritas como crimes de

responsabilidade. o art. 85 do texto constitucional prevê que constitui crime de

responsabilidade a conduta do chefe do Executivo que vier a atentar contra a

existência da União, o livre exercício dos demais poderes, do Ministério Público

ou até mesmo dos Entes Federativos; a segurança nacional, a lei orçamentária,

o cumprimento da lei e das decisões judiciais e o exercício de direitos políticos,

individuais e sociais.

o rol de hipóteses enunciado em tal dispositivo, entretanto, é meramente

exemplificativo,50 uma vez que a lei que regula os crimes de responsabilidade

apresenta mais detalhes e especificidades. Ademais, reputa-se insuficiente a

mera listagem dos bens jurídicos tutelados, já que, em razão do princípio da lega-

lidade criminal e consequentemente da tipicidade, os elementos de uma conduta

ilícita devem ser devidamente descritos, caso contrário tais normas sequer serão

revestidas de efetividade.51

Ademais, as condutas que constituem crime de responsabilidade são aque-

las praticadas no exercício do mandato ou sob a alegação ou para exercê-lo, res-

pectivamente in officio e propter officium.52 Portanto, o Presidente responde por

eventual atividade ilícita executada no período de vigência do mandato apenas se

esta tiver alguma correlação propriamente com o exercício das funções atribuídas

ao ofício presidencial ou para o seu desempenho.

Se a atuação do titular do comando do poder Executivo vier a ser enquadrada

em qualquer das hipóteses de crime de responsabilidade, enumeradas no texto

constitucional e discriminadas na legislação específica sobre a matéria, de modo

a ter sido a atividade decorrente do exercício de suas funções, não há qualquer

imunidade presidencial capaz de evitar o início do processo. o procedimento re-

ferente aos crimes de responsabilidade, nesse sentido, contém especificidades,

49 MirANDA, Jorge. imunidades Constitucionais e Crimes de responsabilidade. Revista Direito e Justiça, Universidade Católica Portuguesa, ano XV, tomo 2, 2001, p. 27-48.

50 FErNANDES, Bernardo gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. rio de Janeiro, 2011, p. 532.51 MirANDA, Jorge. imunidades Constitucionais e Crimes de responsabilidade. Revista Direito e Justiça,

Universidade Católica Portuguesa, ano XV, tomo 2, 2001, p. 27-48.52 PEÑA DE MorAES, guilherme. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo, 2012, p. 444.

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caracterizando-se como uma modalidade singular de processo, já que se trata

justamente do julgamento do chefe de Estado e de governo.

2.4 Processo e julgamento

o procedimento decorrente da conduta caracterizada como crime de res-

ponsabilidade apresenta duas fases, sendo estas o juízo de admissibilidade e

o processo e julgamento.53 A acusação, de elaboração realizada por qualquer ci-

dadão, pode ser conhecida ou não pela Câmara, caso sim, seguirá para votação

de declaração de procedência,54 o que ocorrerá se atingido o quórum de 2/3 da

Câmara dos Deputados, conforme consta do caput do art. 86 da Constituição.

Caso a acusação for admitida pela Câmara, o Presidente ficará afastado de suas

funções pelo período de 180 dias.55 Em seguida, será submetido a julgamento

pelo Senado Federal, que funciona como um verdadeiro tribunal56 político.

A fase de instrução será realizada por uma comissão processante formada

por ¼ dos senadores. Após as diligências, haverá a elaboração de uma peça acu-

satória final, garantida a ampla defesa do acusado durante o procedimento. Então

o Presidente do Senado comunica ao Presidente do Supremo tribunal Federal a

data do julgamento,57 uma vez que este é responsável pela condução do mesmo.

A condenação ocorrerá se 2/3 dos senadores, em votação em caráter nominal, se

posicionarem nesse sentido.58

A pena decorrente da condenação tem natureza política, já que o próprio

julgamento realizado pelo Senado apresenta a mesma característica, sendo base-

ado em juízo de conveniência e oportunidade.59 A sanção enseja a perda do cargo

ou impeachment, bem como a inabilitação para exercício de funções públicas pelo

intervalo de oito anos, conforme disposto pelo art. 52, parágrafo único do texto

constitucional.

Impeachment, portanto, é um instrumento institucional associado ao poder

Legislativo que constitui justamente uma sanção de caráter político-administrativo

que tem como consequência a remoção do Presidente da república sob reves-

timento legítimo e constitucional.60 Assim, apesar de as hipóteses de práticas

53 MENDES, gilmar; goNEt BrANCo, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2014, p. 2529.

54 AFoNSo DA SiLVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo, 2011, p. 551.55 rAMoS tAVArES, André. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo, 2013, p. 2213.56 AFoNSo DA SiLVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo, 2011, p. 551.57 FErNANDES, Bernardo gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. rio de Janeiro, 2011, p. 533.58 MENDES, gilmar; goNEt BrANCo, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2014, p.

2533.59 NoVELiNo, Marcelo. Manual de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo, 2013, p. 3201.60 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1265.

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indevidas estarem tipificadas na legislação específica sobre o tema, a sanção

retrata especialmente o cunho político de todo o procedimento. Além de o julga-

mento ocorrer no âmbito do Congresso Nacional, sendo o juízo de valor aplica-

do eminentemente político, a penalidade imposta também apresenta a mesma

natureza.

A responsabilidade política, nesse sentido, manifesta-se de maneira autô-

noma em relação à concepção de ilicitude, até mesmo em razão da condução do

processo tendo como parâmetro o juízo de conveniência e oportunidade. Não é ne-

cessário no contexto da responsabilidade política, ainda, um exame de culpa, nem

mesmo há qualquer conexão com o dolo ou a negligência por parte do Presidente,

de modo a revelar-se de certa forma como uma reponsabilidade objetiva.61

Ademais, os obstáculos constitucionais, tais como a dupla fase de julga-

mento em duas câmaras ou mesmo o quórum mínimo tanto para a admissibilida-

de, como para a condenação e consequente impeachment, caracterizados como

pressupostos formais, indicam que tal medida deve ser empregada apenas em

conjuntura de cunho eminentemente excepcional. iniciar um processo que possa

vir a gerar a destituição do Presidente da república, portanto, é uma providência

extrema, e em razão disso, exige o preenchimento de uma série de requisitos, que

serão avaliados por meio de um juízo de caráter político.62

A perda do cargo em decorrência do processo e julgamento político, assim,

deve ser uma medida aplicada apenas em circunstâncias de manifesta afronta à

Constituição, ou seja, da prática de crimes de significativa gravidade63 que afetem

o adequado andamento do Estado. Funciona, assim, como uma ferramenta de

resguardo em caso de eventuais arbitrariedades cometidas pelo Presidente.64

Não se pode permitir, entretanto, que o impeachment seja utilizado singu-

larmente como instrumento de revisão de resultados eleitorais, uma vez que não

foi concebido com essa intenção ou esse objetivo. A sua aplicação indevida viria a

estabelecer o enfraquecimento e a fragilização não apenas do mecanismo gerador

da destituição do Presidente em razão da prática de crime de responsabilidade,

mas nomeadamente da própria democracia.

61 otEro, Paulo. Direito Constitucional português, organização do poder político. v. ii, Coimbra, 2017, p. 34.62 VALLE, Jaime. O poder de exteriorização do pensamento político do Presidente da República. Lisboa,

2013, p. 509.63 iSENBErg, Joseph. impeachment and Presidential immunity from Judicial Process. Yale Law and Police

Review, v. 18, n. 1, 1999, p. 53-109.64 EgUigUrEN PrAELi, Francisco José. La Responsabilidad Constitucional y Penal del Presidente de la

República en Peru: Propuesta para su reforma. tesis PUCP, Lima, 2007, p. 42.

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A rESPoNSABiLiDADE Do PrESiDENtE DA rEPÚBLiCA PELA PrátiCA DE CriMES CoMUNS

3 Crimes comuns

o Presidente da república, escolhido por força da vontade popular, configu-

ra-se como indivíduo legitimamente apto para o desempenho regular de suas atri-

buições constitucionalmente previstas. A finalidade da responsabilidade perpassa

justamente por circunstâncias em que o chefe de Estado e de governo venha

a apresentar uma conduta incompatível com aquela para a qual foi legitimado.

Entretanto, a atuação irregular não se enquadra apenas em situações que de

alguma forma estejam relacionadas com o cargo político em questão, como é

característica dos crimes de responsabilidade, que só podem ser praticados por

ocupantes de determinados cargos da república.

A ramificação dos crimes claramente disposta no texto constitucional ex-

põe a relevância, bem como a necessidade, de se regular cenários em que o

Presidente venha a exercer suas funções em descontinuidade com as normas

que conduzem o adequado andamento do poder político. Nesse sentido, o regime

de responsabilização do titular do Executivo trata não apenas daquelas práticas

classificadas como crimes de responsabilidade, mas também do comportamento

que possa ser enquadrado nas hipóteses de crime comum.

3.1 Conceito

o texto constitucional não deixou de pontuar a importante disposição refe-

rente à matéria de responsabilidade: ao Presidente podem ser imputados não

apenas aqueles crimes necessariamente decorrentes de seu ofício, como é o

caso dos crimes de responsabilidade, mas também aqueles que podem ser co-

metidos por qualquer cidadão, não detentor de cargo político. As práticas que se

enquadrem nestas hipóteses são classificadas como crimes comuns.

os crimes comuns, portanto, compreendem qualquer tipo de conduta ilí-

cita caracterizada como infração criminal,65 definidos tanto na legislação penal

comum, como na especial,66 o que inclui diversas modalidades, como os delitos

eleitorais ou contravenções penais.67 Logo, o Presidente também responde caso

venha a agir de maneira ilícita por conduta tipificada apenas na legislação penal,

diversamente dos crimes de responsabilidade, cuja previsão encontra-se primaria-

mente na Constituição e, em maiores detalhes, na lei especial sobre a matéria.

o processo decorrente da prática de crime comum também segue um

procedimento único, justamente por se tratar do titular do Executivo. o juízo de

65 FErNANDES, Bernardo gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. rio de Janeiro, 2011, p. 534.66 AFoNSo DA SiLVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo, 2011, p. 550.67 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1262.

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admissibilidade a ser realizado pela Câmara dos Deputados mantém-se, bem

como o quórum de 2/3 para que avance à próxima fase. Entretanto, o Presidente

é submetido a julgamento perante o Supremo tribunal Federal, ao contrário dos

crimes de responsabilidade, hipótese em que o processo seria enviado para o

Senado, conforme previsão do art. 86 do texto constitucional. o Presidente será

suspenso de suas funções, ainda, se a denúncia ou queixa-crime for recebida pelo

StF, pelo mesmo prazo aplicado em caso de afastamento pela prática de crime de

responsabilidade, cento e oitenta dias.

3.2 Atos estranhos ao exercício de suas funções

A divisão de infrações que podem vir a ser praticadas pelo titular da

Presidência da república, em crimes comuns e de responsabilidade, não esgo-

ta, ainda, as ramificações possíveis associadas à responsabilização do chefe do

Executivo. Há também aquelas condutas que estão conectadas ou não de alguma

forma ao ofício presidencial; entretanto, o texto constitucional prevê expressamen-

te apenas os atos estranhos ao exercício das funções presidenciais. isso ocorre

por motivo claro, já que as condutas necessariamente conexas com a atuação

de ofício do Presidente são justamente aquelas enquadradas como crimes de

responsabilidade.

A Constituição, em seu art. 86, §4º, dispõe que não responde o Presidente,

durante o período de vigência do seu mandato, por atos estranhos ao exercício de

suas funções. Assim, quanto às infrações comuns, em uma análise superficial,

poderia até se adotar a premissa de que os crimes relacionados ao exercício

da função presidencial seriam apenas crimes de responsabilidade, o que viria a

enquadrar todos os crimes comuns como condutas estranhas ao cargo e, conse-

quentemente, não passíveis de gerar responsabilização do Presidente na vigência

do seu mandato.

No entanto, um ponto ainda estaria à margem de tal proposição: os crimes

comuns. Não faria sentido o texto constitucional mencionar a hipótese de julga-

mento pela prática de infrações penais comuns, se o Presidente não pudesse ser

responsabilizado durante o seu mandato.

Se o Presidente vier a cometer algum dos crimes previstos na legislação

penal, deve-se analisar se este tem alguma conexão com o ofício presidencial.

Caso do exame resulte uma resposta negativa, o Presidente será submetido a

julgamento apenas quando da conclusão do período do seu mandato. Contudo,

na hipótese de haver ligação entre o crime praticado, constante da legislação

criminal, e a atividade presidencial, sucederá a possibilidade de julgamento do

titular da Presidência da república, ainda durante a vigência do seu mandato, por

crime comum.

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Logo, os crimes de responsabilidade estão sempre associados ao ofício,

justamente por ser a sua prática necessariamente ligada a determinados cargos

da república, nomeadamente o de Presidente. Já as infrações comuns, caso esti-

verem de certa forma conectadas às funções presidenciais, serão passíveis de jul-

gamento durante o período de vigência do mandato, caso contrário, apenas após

a conclusão deste, uma vez que estarão devidamente enquadradas no dispositivo

de imunidade por atos estranhos.

3.2.1 irresponsabilidade penal relativa

A cláusula de irresponsabilidade penal relativa prevista no texto constitu-

cional é uma consequência da existência de atos estranhos às funções presi-

denciais. Neste caso, não responde o titular do Executivo durante o período do

seu mandato. o efeito desta cláusula, assim, é dar imunidade ao Presidente da

república por aqueles atos que se evidenciem como estranhos às atividades ine-

rentes ao ofício presidencial,68 de modo a impedir que o titular do Executivo esteja

sujeito à persecução penal por tal conduta.

o texto constitucional, dessa forma, ao dispor sobre a possibilidade de jul-

gamento do Presidente da república por crimes comuns, desperta, por força da

cláusula de irresponsabilidade penal relativa, a hipótese de infrações comuns

relacionadas com as funções do ofício presidencial. A harmonização entre os

dispositivos de imunidade em caso de atos considerados estranhos às funções

presidenciais e o de processo e julgamento por crimes comuns ocorre, assim,

nas circunstâncias em que as infrações previstas na legislação criminal estão

associadas à atividade político-administrativa.

A posição do Presidente, como sendo de relevância inquestionável e, ainda,

associada a amplos poderes, também deve manter a sua existência escoltada

por uma previsão de responsabilidade penal e política por eventuais infrações

praticadas no exercício de tal atividade, até mesmo em observância ao princípio

republicano.69 Entretanto, justamente por se tratar do mais elevado e significativo

cargo em um Estado, especialmente em um sistema presidencialista, deve haver

prerrogativas compatíveis com a magnitude de tal posição, como é o caso da

cláusula de irresponsabilidade penal relativa ou imunidade presidencial.

A relatividade referente à imunidade decorre do fato de que esta não abrange

responsabilidade civil, tributária, administrativa ou política.70 Assim, o Presidente

pode responder em processos instaurados em qualquer das matérias em questão,

68 StF, Supremo tribunal Federal. inq 1418/rS, rel. Min. Celso de Mello, DJ 08/11/2001.69 StF, Supremo tribunal Federal. inq 927-0/SP, rel. Min. Celso de Mello, DJ 23/02/1995.70 StF, Supremo tribunal Federal. inq 672/DF, rel. Min. Celso de Mello, DJ 16/04/1993.

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uma vez que a irresponsabilidade penal relativa não se comunica com as demais,71

de modo a não caracterizar, assim, uma irresponsabilidade irrestrita e absoluta do

chefe de Estado e de governo.

Ademais, outro efeito dessa cláusula é a impossibilidade de estar o

Presidente sujeito à prisão em hipóteses de prática de infrações comuns enquanto

não sobrevier sentença condenatória, conforme art. 86, §3º, da Constituição.

tal dispositivo é válido apenas ao Presidente da república, como prerrogativa

de chefe de Estado,72 de maneira a não se estender aos chefes do Executivo

estaduais.73 Ao dispor sobre este tema, a intenção do legislador constituinte era

precisamente preservar o Presidente da república de uma eventual decretação de

prisão temporária, preventiva74 ou até mesmo em flagrante delito.

A cláusula de irresponsabilidade penal relativa ou imunidade presidencial,

portanto, abrange aquelas infrações penais comuns praticadas pelo Presidente,

ainda que executadas durante a vigência do mandato, que não guardem qualquer

associação com o exercício das funções presidenciais. Apresenta-se, dessa for-

ma, como uma prerrogativa compatível com a magnitude da atividade exercida

pelo chefe de Estado.

3.2.2 Conduta anterior ao início ao mandato

Há a possibilidade de estar em trâmite ação judicial contra o Presidente

da república iniciada em momento anterior à diplomação. Nesse caso, por se

tratar de hipótese enquadrada como ato estranho à função, o titular do Executivo

apenas responde após o término do período de vigência do mandato. outro efeito

associado também à imunidade presidencial referente à conduta anterior ao iní-

cio da diplomação é a suspensão do processo e da prescrição até a conclusão

do mandato,75 caso já estiver em trâmite ação judicial em desfavor do chefe de

Estado e de governo.

Considerando que após o início do mandato não é possível que se responda

por atos estranhos ao ofício presidencial, tal prerrogativa é pertinente no sentido

de evitar que haja prescrição e, como consequência, que o ocupante do cargo

de Presidente da república deixe de responder por eventual infração cometida

antes da diplomação. impede-se, ainda, que o cargo de chefe do Executivo possa

vir a ser utilizado como escudo de proteção em caso de prática de ilícito anterior

71 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1261.72 NoVELiNo, Marcelo. Manual de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo, 2013, p. 3206.73 StF, Supremo tribunal Federal. ADi 1634 MC, rel. Min. Néri da Silveira, DJ 08/09/2000.74 StF, Supremo tribunal Federal. ADi 1020 MC, rel. Min. Celso de Mello, 17/11/1995.75 StF, Supremo tribunal Federal. HC 83154/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 21/11/2003.

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à posse, de modo a se tornar a referida posição meramente um mecanismo de

imunidade ou de extinção da responsabilidade criminal.

Assim, tanto em condutas anteriores à diplomação, hipótese que claramente

não apresenta qualquer conexão com o exercício do ofício presidencial, como

nas infrações penais comuns que não se revelem ligadas às atividades funcio-

nais, aplica-se a suspensão do processo e da prescrição de maneira provisória.76

Segue-se, dessa maneira, a previsão constitucional de que a responsabilização

por atos estranhos ao exercício de suas funções ocorre apenas após o fim da

vigência do mandato, seja em razão da suspensão de processo penal prévio ou

pela vedação de instauração de ação penal.

3.3 In officio e propter officium

As situações enquadradas como infrações comuns são não apenas aquelas

estranhas ao exercício das funções presidenciais, mas também as que manifes-

tam qualquer relação com as atividades atribuídas ao titular do Executivo. Quando

o ilícito praticado tiver relação com o ofício, o Presidente estará sujeito à respon-

sabilização ainda durante o período do seu mandato.

tal conexão com as funções, ademais, apresenta duas ramificações possí-

veis: in officio, no exercício do mandato,77 e propter officium, em razão do exercício

das funções78 ou a pretexto de exercê-las. Assim, o princípio da irresponsabilidade

penal absoluta do Presidente não foi consagrado pelo texto constitucional, uma

vez que, em caso de prática de delitos penais in officio ou propter officium, será

passível de persecução criminal, desde que obtida autorização prévia da Câmara

dos Deputados.79

Seria interessante, nesse sentido, supor a existência de um cenário em

que apenas uma conduta do Presidente venha a se enquadrar simultaneamente

em uma circunstância de crime de responsabilidade e de crime comum, como

por exemplo um dos possíveis ilícitos contra a Administração Pública, previstos

tanto na legislação penal comum, como na legislação específica sobre respon-

sabilidade. Nesse caso, é de se questionar se seria hipótese de bis in idem ou

se o julgamento por ambos procederia de maneira perfeitamente viável, uma vez

constituem esferas diversas.

76 MENDES, gilmar; goNEt BrANCo, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2014, p. 2535.

77 PEÑA DE MorAES, guilherme. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo, 2012, p. 444.78 MENDES, gilmar; goNEt BrANCo, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2014, p.

2535.79 StF, Supremo tribunal Federal. inq 672, rel. Min. Celso de Mello, DJ 16/04/1993.

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o julgamento por crimes comuns é de atribuição do Supremo tribunal

Federal, após autorização pela Câmara dos Deputados. Em tal conjuntura, como

pena pelo comportamento indevido, os direitos políticos do Presidente seriam ob-

jeto de perda ou suspensão, desde que sucedida condenação criminal transitada

em julgado, conforme art. 15, iii, do texto constitucional. Já a punição por crime de

responsabilidade é justamente a perda do cargo, bem como a inabilitação por oito

anos para o exercício da função pública, sem prejuízo de outras sanções judiciais

que se mostrem cabíveis nessa situação, conforme parágrafo único do art. 52 da

Constituição Federal.

Na eventualidade de uma conduta ferir bens jurídicos variados, é possível

que o agente seja julgado nas instâncias penal, administrativa e civil, como consta

da legislação específica sobre o regime de servidores públicos, Lei nº 8.112/91.

Sendo o Presidente um agente público, especificamente o agente político, se um

ato vier a ser passível de responsabilização política e criminal simultaneamente,

por analogia, poderia responder em ambas as instâncias sem configuração de

bis in idem. Ademais, o próprio texto constitucional dispõe sobre a viabilidade de

demais sanções judiciais cabíveis quanto a comportamento do titular do Executivo

que venha a se caracterizar como ilícito.

3.4 outras questões problemáticas

o Presidente da república, como detentor da chefia de Estado, de governo

e da Administração Pública, distingue-se por sua relevância política no cenário na-

cional. A matéria de responsabilidade, dessa forma, é especialmente relevante no

sentido de impor limites e estabelecer medidas adequadas à atuação do ocupante

de tão significativa posição política.

Nesse sentido, é impossível, dada a relevância do tema, bem como o grau

de expressão do cargo de Presidente da república, como líder de Estado e repre-

sentante da vontade popular, em especial em um regime presidencialista, que

não se suscitem indagações e suposições que envolvam justamente sua respon-

sabilidade. Despertam-se as mais diversas questões e ponderações acerca da

temática, algumas delas extremamente recentes.

3.4.1 instauração de inquérito

o regime de responsabilização referente aos atos estranhos às funções,

bem como aos considerados in officio e propter officium encontra-se claramente

definido. Entretanto, uma questão controversa, inclusive recentemente, é a pos-

sibilidade ou não de instauração de inquérito para averiguar o comportamento do

Presidente da república ainda no período de vigência do seu mandato.

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Quando a conduta estiver associada ao exercício do ofício presidencial, é

lícito e válido que se venha a se instaurar procedimento policial para a devida

investigação da atuação do titular do Executivo, até em razão da possibilidade de

julgamento por crimes comuns prevista no texto constitucional. A fase inquisito-

rial, como forma de se coletar elementos probatórios que venham a subsidiar uma

futura demanda, mesmo que o agente investigado seja o Presidente da república,

seria plenamente aceitável. inclusive, caso recente comprova tal hipótese, uma

vez que após inquérito para se apurar determinados atos do titular do Executivo,

o Ministério Público acabou por oferecer a denúncia.

o real problema reside naquelas condutas que derivam de atos estranhos

ao exercício das funções, como ocorreu recentemente, em situação em que o

Presidente foi acusado de cometer ilícitos eleitorais durante a campanha. Como

mencionado anteriormente, aquela atuação indevida anterior à diplomação não é

passível de questionamento judicial ou persecução penal, enquanto estiver vigen-

te o mandato do chefe de Estado e de governo.

Questiona-se, assim, se a cláusula de irresponsabilidade penal relativa, refe-

rente aos atos estranhos às atividades presidenciais, também se estenderia para

a fase pré-processual ou inquisitória. Em caso parecido, julgado no ano de 1993,

o então Presidente da república também havia sido acusado de prática eleitoral

delituosa durante a campanha. Na época, indagou-se se a prerrogativa de imuni-

dade presidencial não seria suficiente para resguardar o titular da Presidência da

república.

Entretanto, a decisão não lhe foi favorável. o texto constitucional, nesse

sentido, protege o Presidente de eventual persecução penal por atos estranhos ao

exercício de suas funções, de modo a não poder ser submetido a qualquer ação

de natureza persecutória por parte do Poder Público, desde que no plano judicial.80

tal cláusula reveste, ainda, aquelas condutas praticadas em momento anterior à

investidura no cargo.

Nesse sentido, em sede judicial, a imunidade quanto aos atos estranhos às

funções permanece intacta, conforme previsão constitucional. No entanto, uma

vez que o inquérito não consta do plano judicial, pois é considerado como elemen-

to da fase pré-processual, não haveria impedimento no sentido de se investigar

eventual conduta estranha ao ofício, até como forma de subsídio para futura ação

penal81 no momento oportuno em observância às disposições constitucionais,

inclusive, sem riscos de que determinadas provas se percam.

80 StF, Supremo tribunal Federal. inq 672, rel. Min. Celso de Mello, DJ 16/04/1993.81 StF, Supremo tribunal Federal. Pet 5569, rel. Min. teori Zavascki, DJ 18/05/2015.

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3.4.2 Linha sucessória presidencial

o texto constitucional elenca possíveis substitutos do Presidente da

república, como forma de solucionar a circunstância de vacância do cargo. o

primeiro em ordem de substituição para assumir o posto vago é, evidentemente, o

Vice-Presidente, conforme previsão constante do art. 79 da Constituição Federal.

Entretanto, em caso de impedimento de ambos, o disposto no art. 80 resolve tal

obstáculo, uma vez que serão chamados sucessivamente para o exercício da fun-

ção presidencial, o Presidente da Câmara dos Deputados, o Presidente do Senado

e o Presidente do Supremo tribunal Federal.

Nesse sentido, os titulares de determinados cargos podem vir a ocupar a

posição de Presidente da república em caso de impedimento deste. Como houve

um caso recente de impeachment, o Vice-Presidente assumiu o posto de chefe do

Executivo, no entanto, uma das consequências é justamente a falta de um Vice,

até o fim de seu mandato. Assim, a chance de um dos demais atores assumir

provisoriamente a Presidência foi elevada consideravelmente.

Entretanto, em conjuntura ocorrida há pouco, questionou-se a legitimidade

de o Presidente do Senado constar da linha sucessória presidencial, uma vez

que já corria processo penal contra o ocupante deste cargo, o que o colocava em

situação de réu. o texto constitucional, em seu art. 86, §1º, prevê a suspensão

do Presidente da república do exercício de suas devidas funções em caso de

recebimento de denúncia por parte do Supremo tribunal Federal.

Assim, o objetivo do legislador constituinte, ao dispor sobre o afastamento

de natureza cautelar e provisória, é claro no sentido de preservar o cargo e a figura

de Presidente da república, bem como de manter o respeito e a credibilidade das

instituições republicanas.82 Logo, os réus criminais, perante o Supremo tribunal

Federal, presentes na linha sucessória de substituição do chefe do Executivo são

impedidos de, em eventual vacância do posto, serem convocados a assumir a

posição em questão.83

Não haveria sentido, portanto, que ao eventual substituto que esteja em

condição de réu em ação penal, seja dada prerrogativa maior que ao próprio

Presidente da república, legítimo titular de sua posição. Ademais, não há impedi-

mento constitucional para o regular exercício de sua respectiva função legislativa;

entretanto, há a vedação, por interpretação jurisprudencial, para o desempenho do

ofício da Presidência da república.84

82 StF, Supremo tribunal Federal. ADPF 402, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 07/12/2016.83 StF, Supremo tribunal Federal. ADPF 402, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 07/12/2016.84 StF, Supremo tribunal Federal. ADPF 402, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 07/12/2016.

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Conclusão

o Presidente da república corresponde a uma figura que inspira respeitabi-

lidade e confiança por parte da população, especialmente em virtude de ter sido

elevado a tal posição em decorrência da vontade popular expressa por meio de

eleições. Como detentor da chefia de Estado, de governo e da Administração

Pública, o Presidente representa uma figura que desperta maior atenção da socie-

dade, e, consequentemente, sua atuação suscita um elevado grau de cobrança

popular.

Nesse sentido, a amplitude e a variedade de poderes atribuídos ao ofício

presidencial entrega ao ocupante de tal cargo funções de extrema relevância e

influência no cenário político e social nacional. Por outro lado, a extensão e a

expressividade das competências conferidas ao Presidente da república pode

configurar uma fonte de situações diversas que envolvem práticas conduzidas de

maneira inescrupulosa, aptas a produzir consequências negativas tanto para o

Poder Público, como para própria a sociedade.

A eventual conduta de caráter questionável que pode vir a ser praticada

pelo Chefe de Estado e de governo acaba desmantelando toda a estrutura de

credibilidade e segurança ligadas ao cargo. Assim, a previsibilidade normativa de

ferramentas capazes de prevenir eventuais práticas abusivas e inconsequentes,

especialmente considerando a abrangência dos poderes associados à função pre-

sidencial, manifesta-se essencial para a garantia de estabilidade do Estado.

Entretanto, caso o cenário que vise se prevenir venha a ser concretizado,

revelando-se através de um comportamento presidencial que viole dispositivos

constitucionais e legais, a viabilidade da responsabilização do Presidente mostra,

nomeadamente, que até mesmo o ocupante do mais alto cargo da república

está submetido às normas regentes do Estado. Nesse sentido, a necessidade de

mecanismos capazes de trazer equilíbrio ao sistema, bem como de controle de

eventuais danos decorrentes de uma atuação irresponsável, é o que fundamenta

a existência da responsabilidade do Presidente da república.

A amplitude e a intensidade de seus poderes, se indevidamente utilizados,

viabilizam o exercício da função presidencial de maneira inadequada ou até mes-

mo inconsequente, prejudicando a estabilidade do Estado e rompendo com a con-

fiança pelo povo depositada através da escolha democrática. Para tal hipótese,

a possibilidade de responsabilização reproduz a importância de se ter um instru-

mento de contrapeso, hábil a reestabelecer o equilíbrio do sistema.

Apresentando como fundamento o princípio da separação dos poderes, a

responsabilidade integra Legislativo e Judiciário nas fases de processo e julga-

mento, com as devidas funções cabíveis a cada um, conforme o procedimento em

questão. o Presidente da república responde, assim, pelas práticas de crimes de

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responsabilidade e de infrações comuns, com as especificidades associadas a

cada procedimento e proporcionais à relevância do cargo em questão.

os crimes de responsabilidade assim se caracterizam pela violação de dis-

positivos constitucionais ou específicos da legislação que regula o tema, necessa-

riamente decorrentes do exercício do cargo. Já as infrações comuns representam

aquelas práticas previstas na legislação comum, imputadas a qualquer cidadão,

porém cometidas pelo Presidente da república.

Muito embora possa cometer crimes comuns como qualquer cidadão, o

Presidente da república não responde por tais infrações como qualquer cidadão.

As prerrogativas associadas à sua função colocam o Presidente em posição de

julgamento por crimes comuns, durante o período de vigência de seu mandato,

apenas perante o Supremo tribunal Federal.

Ademais, a previsão de suspensão do exercício de suas funções uma vez

recebida a denúncia, a inviabilidade de decretação de prisão enquanto não hou-

ver sentença condenatória e a impossibilidade de responsabilização por atos es-

tranhos ao ofício durante o mandato revelam não apenas a relevância do cargo

presidencial, mas a gravidade de uma eventual prática de crime comum por um

Presidente da república.

As consequências para a sociedade e para o Estado de estar em trâmite um

processo pela prática de infração comum pelo Chefe de Estado e de governo são

manifestamente críticas. Pode-se questionar, inclusive, a legitimidade para o exer-

cício do ofício presidencial de quem comete ilícitos penais mesmo na condição de

ocupante do mais alto cargo da república, ao qual se encontra exclusivamente em

decorrência do resultado da escolha democrática.

o regime de responsabilidade do Presidente da república pela prática de

crimes comuns, portanto, revela-se essencial para indicar que todos estão sub-

metidos às disposições constitucionais. Ademais, visa proteger a respeitabilidade

e a confiança suscitadas pelo cargo presidencial, que deve ser ocupado apenas

por pessoa que se manifeste apta a conduzir as funções decorrentes da chefia de

Estado, de governo e da Administração Pública conforme parâmetros legais e valo-

res de idoneidade, retidão e honestidade, em respeito à posição que desempenha

apenas em virtude da vontade popular.

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A rESPoNSABiLiDADE Do PrESiDENtE DA rEPÚBLiCA PELA PrátiCA DE CriMES CoMUNS

Abstract: the President of the republic, as the maximum expression of the popular will, revealed through democratic choice, is presented as a figure that inspires confidence and credibility. However, the head of State and government may break with the respectability emanated from his occupation from the moment he commits crimes, associated or not with his function. Due to this fact, it is necessary to exist the President’s accountability regime, which regulates these situations precisely, whether because of acts that represent crimes of responsibility or common infractions. the possibility of acting that configures a common crime practiced by the occupant of the Presidency of the republic carries with it several issues and problems, some of which are dealt with in the present work.

Keywords: Accountability. President of the republic. Common Crimes.

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informação bibliográfica deste texto, conforme a NBr 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas técnicas (ABNt):

MENDoNçA, Suzana Maria Fernandes. A responsabilidade do Presidente da república pela prática de crimes comuns. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 16, n. 60, p. 171-198, jan./abr. 2018.