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140 RAS _ Vol. 10, N o 41 – Out-Dez, 2008 RESUMO A segurança do paciente é, na atualidade, uma questão de grande interesse para os gestores públicos e privados, para os operadores de planos de saúde, médicos, enfermeiros, demais profissionais de saúde, clientes / pacientes e público em geral. A maioria dos gestores de organizações de saúde se sente insegura em assumir expli- citamente a responsabilidade pela segurança e qualidade assistencial. Este artigo discorre a atual relevância da segurança do paciente para os gestores e o papel fundamental que podem desempenhar no sentido de tornarem as instituições de saúde mais seguras e menos arriscadas. ABSTRACT Patient safety is, in reality, an issue of great interest to public and private adminis- trators, operators of health insurancy, doctors, nurses, other health professionals, cli- ents / patients and the general public. Most of health care organizations managers feel unsafe to assume explicit responsibility for the safety and quality care. This article discusses the current relevance of the patient safety for managers and the key role they can play in making the health facilities safer and less risky. 1. Médico Psiquiatra, Mestre em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em avaliação de organizações e sistemas de saúde; Diretor Superintendente do Hospital Banco de Olhos de Porto Alegre. Endereço eletrônico: [email protected] Palavras-chave Administração hospitalar. Gerenciamento de riscos. Efeitos adversos. Gestão da qualidade. Keywords Hospital administration. Safety management. Adverse effects. Quality management. Conflito de interesse: nenhum declarado. Financiador ou fontes de fomento: nenhum de- clarado. Data de recebimento do artigo: 22/12/2008. Data da aprovação: 12/1/2009. artigo original Como a segurança da assistência aos pacientes nas organizações de saúde parece tão óbvia, tem-se a fal- sa impressão que se trata de um as- sunto banal. Entretanto, quando são noticiados os incidentes médico-assis- tenciais – cirurgia em parte errada do corpo, cirurgia em paciente errado, pro- cedimento errado, superdosagem de medicação, queda, aquisição de uma doença infecciosa durante uma inter- nação hospitalar (ex.: hepatite, AIDS), transfusão sanguínea incompatível, etc., a primeira reação, como regra, é de espanto e perplexidade. Habitual- mente despontam dois posicionamen- tos extremos: pacientes e familiares in- clinados ao litígio, em contraposição aos profissionais de saúde e gestores que procuram caracterizar esses even- tos como uma fatalidade inerente à prática assistencial. De fato, essa ex- plicação dos profissionais de saúde e gestores se justificava convincente- A responsabilidade corporativa dos gestores de organizações de saúde e a segurança do paciente Corporate responsibility of health care organizations managers and patient safety Antonio Quinto Neto 1

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140 RAS _ Vol. 10, No 41 – Out-Dez, 2008

RESUMOA segurança do paciente é, na atualidade, uma questão de grande interesse para

os gestores públicos e privados, para os operadores de planos de saúde, médicos,enfermeiros, demais profissionais de saúde, clientes/pacientes e público em geral. Amaioria dos gestores de organizações de saúde se sente insegura em assumir expli-citamente a responsabilidade pela segurança e qualidade assistencial. Este artigodiscorre a atual relevância da segurança do paciente para os gestores e o papelfundamental que podem desempenhar no sentido de tornarem as instituições desaúde mais seguras e menos arriscadas.

ABSTRACTPatient safety is, in reality, an issue of great interest to public and private adminis-

trators, operators of health insurancy, doctors, nurses, other health professionals, cli-ents/patients and the general public. Most of health care organizations managersfeel unsafe to assume explicit responsibility for the safety and quality care. This articlediscusses the current relevance of the patient safety for managers and the key rolethey can play in making the health facilities safer and less risky.

1. Médico Psiquiatra, Mestre em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em avaliação de organizações e sistemas de saúde; DiretorSuperintendente do Hospital Banco de Olhos de Porto Alegre.

Endereço eletrônico: [email protected]

Palavras-chaveAdministração hospitalar.Gerenciamento de riscos.Efeitos adversos.Gestão da qualidade.

KeywordsHospital administration.Safety management.Adverse effects.Quality management.

Conflito de interesse: nenhum declarado.Financiador ou fontes de fomento: nenhum de-clarado.Data de recebimento do artigo: 22/12/2008.Data da aprovação: 12/1/2009.

artigo original

Como a segurança da assistênciaaos pacientes nas organizações desaúde parece tão óbvia, tem-se a fal-sa impressão que se trata de um as-sunto banal. Entretanto, quando sãonoticiados os incidentes médico-assis-tenciais – cirurgia em parte errada docorpo, cirurgia em paciente errado, pro-

cedimento errado, superdosagem demedicação, queda, aquisição de umadoença infecciosa durante uma inter-nação hospitalar (ex.: hepatite, AIDS),transfusão sanguínea incompatível,etc., a primeira reação, como regra, éde espanto e perplexidade. Habitual-mente despontam dois posicionamen-

tos extremos: pacientes e familiares in-clinados ao litígio, em contraposiçãoaos profissionais de saúde e gestoresque procuram caracterizar esses even-tos como uma fatalidade inerente àprática assistencial. De fato, essa ex-plicação dos profissionais de saúde egestores se justificava convincente-

A responsabilidade corporativa dos gestores deorganizações de saúde e a segurança do paciente

Corporate responsibility of health care organizations managers and patient safety

Antonio Quinto Neto1

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mente quando prevalecia a medicinaintuitiva(1) – tratamento de enfermida-des que só podem ser diagnosticadaspor seus sintomas e tratadas com te-rapias de eficácia incerta –, onde osmédicos se constituíam nos persona-gens exclusivos do êxito e do fracas-so. No entanto, à medida que se am-pliou o espaço para a prática da medi-cina de precisão(1) – tratamento dedoenças que podem ser diagnostica-das de maneira precisa, cujas causassão conhecidas e que, por conseguin-te, podem ser tratadas com terapiasbaseadas em regras previsivelmenteeficazes –, o argumento do “risco ine-rente” perdeu a força da racionalidadetécnica que encerrava, e se tornou ummecanismo de autoproteção dos mé-dicos e gestores.

Nas últimas duas décadas, passou-se a reconhecer que as organizaçõesde saúde não apenas curam doençase aliviam a dor, mas também causamdano e sofrimento(2). A prestação deserviços na área da saúde dependeintensivamente de complexas intera-ções entre pessoas, materiais, medi-camentos, equipamentos e instalações,e tal característica eleva a chance dealgo sair errado. Consequentemente,cada vez mais a assistência médico-hospitalar necessita da aplicação doconhecimento gerencial para reduzirfalhas e incidentes oriundos das des-continuidades existentes nos variadosprocessos de cuidado do paciente.

A pesquisa disponível sobre a asso-ciação de falhas e incidentes com ogerenciamento da assistência assina-la que um em cada 10 pacientes ad-mitidos em hospitais de países desen-volvidos são não intencionalmente ví-timas de um erro(3), e cerca de 50%desses eventos poderiam ser evitadosse os profissionais tivessem extraídolições de acontecimentos anteriores.

Também se identificou que os eventosadversos causados por medicamentos,um dos tipos mais comuns em hospi-tais, contribuem com cerca de 1/3 dasfalhas(4). A Organização Mundial daSaúde, atenta ao tema das falhas eincidentes na assistência à saúde, clas-sificou a questão como um problemade saúde pública, lançou uma campa-nha denominada “Aliança Mundial pelaSegurança do Paciente” e vem promo-vendo a disseminação de conhecimen-tos sobre o assunto(5).

Uma indagação subjacente aos in-cidentes relacionados à gestão da prá-tica assistencial é a seguinte: quem sãoos responsáveis por eles? A lembran-ça imediata recai nos médicos. Contu-do a moderna jurisprudência sustentaa tese de que as organizações de saú-de, pelo princípio da solidariedade, sãotão responsáveis quanto os profissio-nais que nela trabalham, sejam elescontratados ou não, o que ressalta aresponsabilidade das instituições hos-pitalares em face dos pacientes, inter-nados ou não(6). Na atualidade, portan-to, a função corporativa inclui neces-sariamente a segurança do pacientee, por extensão, a qualidade assisten-cial(7).

O presente artigo expõe as dificul-dades que os gestores se deparampara assumirem responsabilidadespela segurança do paciente e a quali-dade assistencial, bem como as idéiasque fundamentam essas obrigaçõescomo uma atribuição da alta direção.

A SEPARAÇÃO PROBLEMÁTICAENTRE NEGÓCIO E CUIDADODO PACIENTE

Ao se examinar as organizações desaúde a partir de uma visão adminis-trativa, nota-se que são formadas porduas partes indissociáveis, como a carae coroa de uma moeda. De um lado, a

gestão do negócio; do outro, a gestãoda assistência. Pelas peculiaridadesdesse macrossistema, os gestores ne-cessitam de uma habilidade excepcio-nal para harmonizar interesses e von-tades entre os que atuam em cada umadessas partes, as quais inexoravelmen-te precisam operar de forma simultâ-nea e interativa(8), para alcançar osmelhores resultados.

A visão tradicional de governançahospitalar propõe que os gestores seocupem apenas – ou primariamente –da saúde financeira e da reputação dasorganizações de saúde que adminis-tram(9). Nesse modelo de interpretaçãoadministrativa se destaca a clássicadicotomia: os gestores se dedicam aosaspectos econômico-financeiros, en-quanto os médicos, e secundariamen-te os enfermeiros, cuidam da seguran-ça do paciente e da qualidade assis-tencial. Essa concepção fazia sentidoquando as ferramentas da medicina seresumiam, praticamente, à inteligênciados médicos, à empatia dos enfermei-ros e a uns poucos procedimentos ci-rúrgicos (medicina intuitiva e empíri-ca), onde os riscos oriundos da faltade coordenação das ações assisten-ciais e da ausência de sistemas desegurança eram pequenos – até des-prezíveis(10).

Na moderna visão de governançahospitalar, os gestores das organiza-ções prestadoras de serviços de saú-de lidam com um sistema organizacio-nal interdependente, cada vez maiscomplexo, formado por quatro partes(1):a) proposição de valor (produtos e ser-viços assistenciais); b) recursos (pes-soas, tecnologia, produtos, instalações,equipamentos); c) processos (formashabituais de trabalho); d) fórmula delucro (ativos e estrutura de custos,margens, escala e velocidade neces-sários para cobri-los). Assim, tem-se

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que a ocorrência de defeitos em umdesses elementos influencia a segu-rança do paciente e a qualidade assis-tencial. Por exemplo, a experiênciaobtida no cotidiano das atividadesmédico-assistenciais revela que se ele-va a chance de um incidente de segu-rança do paciente quando os serviçosde saúde são ofertados através decomponentes estruturais inapropriados(pessoas, materiais, medicamentos,instalações, equipamentos) e por pro-cessos precariamente desenhados.

A maneira dicotômica de percebero funcionamento das organizações desaúde tem fomentado a propensãodeformada de se acreditar que a as-sistência é superior à administração,quando na verdade são sistemas in-terdependentes e indissociáveis. Acomplexidade assistencial evidenciaque o posicionamento dualista neces-sita ser superado, uma vez que seconstitui em fator de risco para os pa-cientes, profissionais e organizaçõesde saúde.

O LENTO DESPERTAR PARA ASEGURANÇA DO PACIENTE

Embora aparentemente paradoxal, oavanço da medicina se acompanhoude um aumento dos riscos na assis-tência médico-hospitalar. Essa ques-tão, entretanto, tardou para despertaro interesse dos médicos e gestores.Conforme Wachter(10), quatro motivoscontribuíram para a lentidão em com-preender o aumento dos riscos assis-tenciais: a) o modelo mental obsoletopara entender as falhas e incidentesmédico-assistenciais; b) a desatençãocoletiva pela segurança do paciente;c) uma forma de remuneração das fon-tes pagadoras que não leva em contaa segurança do paciente e a qualida-de assistencial; d) uma estrutura or-ganizacional fragmentada.

a) Modelo mental obsoleto para oentendimento das falhas e inciden-tes médico-assistenciais

Antes da publicação do relatório “Er-rar é humano...”(11), preponderava a con-cepção de que falhas e incidentes mé-dico-assistenciais decorriam basica-mente da ação de um ou mais profis-sionais (quase exclusivamente médi-cos) que, por princípio, deveriam seridentificados e punidos. A suposiçãoera de que o castigo reduziria a inci-dência desses fenômenos. Essa men-talidade, fortalecida tanto nos cursosde medicina quanto nos de enferma-gem, e apoiada por um sistema judici-ário de responsabilização pelo erro,tem-se mostrado de efeito limitado àmedida que aumenta a complexidadedas ações médico-assistenciais. Alémdisso, percebeu-se que incentiva o en-cobrimento desses eventos dolorosos.A cultura da responsabilização indivi-dual, portanto, demarcou um contextoque compreende os relatos de inciden-tes assistenciais como uma atribuiçãodas “maçãs podres” – os péssimos pro-fissionais –, não apenas pela mídia,mas pelos pacientes e os próprios mé-dicos(12). Embora esse método seja ge-rencial e legalmente conveniente, tempouco ou nenhum valor corretivo, alémdo que isola o profissional errante dasituação em que os atos não segurosaconteceram(12).

O relatório “Errar é humano...” trou-xe uma nova forma de interpretaçãopara os eventos assistenciais que pre-judicam os pacientes. Destacou que amaioria das falhas e incidentes deri-vava de processos e sistemas defei-tuosos, e não de ações específicas dosindivíduos(11), como habitualmente sejulga. Também propôs que a maneiramais plausível de se reduzir falhas eincidentes assistenciais seria efetuan-do modificações nos sistemas e pro-

cessos. Naturalmente que os profissio-nais negligentes, imprudentes ou im-peritos não desapareceram, mas a evi-dência dos fatos ensina que os inci-dentes não são devidos exclusivamen-te a eles(13).

b) Desatenção coletiva para a se-gurança do paciente

Quando se considera o aspecto se-gurança nas organizações de saúde, ese tenta efetuar uma comparação comoutros segmentos, como a aviação, asusinas nucleares e os poços petrolífe-ros, frequentemente se destaca a idéiade que são “diferentes”. Esse posicio-namento promove o desinteresse emnão aprender com as organizações dealta confiabilidade, as quais possuemexperiência e ferramentas que podemser adaptadas ao ambiente assisten-cial, ou suscitar idéias sobre como re-duzir a chance de incidentes de segu-rança do paciente(14). De fato, as orga-nizações de saúde possuem especifi-cidades, porém esse argumento nãopode ser utilizado como uma impossi-bilidade de aprendizado com organiza-ções de outros setores que são exem-plares em segurança.

c) Forma de remuneração das fon-tes pagadoras que não leva em con-ta a segurança do paciente e a qua-lidade assistencial

Hospitais e médicos são remunera-dos pelas fontes pagadoras sem quese leve em conta a segurança da as-sistência prestada(15). A forma de re-muneração não gera incentivo parainvestir em segurança do paciente equalidade assistencial. Assim, em mui-tas situações ocorre o oposto, ou seja,os incidentes levam a maiores recei-tas através de mais exames, mais diasde internação e mais procedimentos.

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Via de regra as operadoras de saú-de restringem suas escolhas aos pres-tadores de serviços que oferecemmaiores descontos, e não aos que de-monstram melhores resultados(16). Eisuma das possíveis áreas em que asfontes pagadoras podem contribuir nosentido de elevar o grau de segurançado paciente e qualidade assistencial.Embora não haja comprovação indis-cutível de que uma política de segu-rança do paciente e da melhoria daqualidade assistencial contribuam paraa redução de gastos, há uma suposi-ção plausível de que isso possivelmen-te ocorra(16).

d) Estrutura organizacional frag-mentada

Como regra, a estrutura organizacio-nal separa os médicos do resto do hos-pital e origina linhas de divergência queimpedem a integração de ações quepoderiam fortalecer a segurança dopaciente e a qualidade assistencial(17).Isso resulta em serviços desarticulados,falhas de comunicação, coordenaçãoaleatória das ações assistenciais, alémdos médicos raramente se reunirempara discutir os cuidados prestados.Pelo menos parte dessa peculiaridadeda assistência à saúde se relacionacom a questão da autonomia dos mé-dicos, a qual necessita ser revisadapara que não se constitua um obstá-culo ao aumento da segurança do pa-ciente.

À época em que os médicos eramauto-suficientes, a capacidade de cau-sar dano pela dicotomia organizacio-nal era relativamente pequena. O avan-ço da medicina, no entanto, levou auma indispensável cooperação entremédicos e gestores, o que pressupõeuma estrutura organizacional unifica-da(17). Os médicos que entendem a prá-tica da autonomia não como um direi-

to soberano e isolado de fazer o que aconsciência manda, mas como umaatitude que leva em conta o contextono qual ocorrem as ações médico-as-sistenciais e os benefícios aos pacien-tes, aumentam a segurança do pacien-te e a qualidade da assistência.

Atualmente, os processos judiciaisacionados por pacientes, que se sen-tem prejudicados pela assistência re-cebida, são julgados pelos juizes nabase da responsabilização dos médi-cos e das instituições nas quais atuam.O argumento se baseia no pressupos-to de que estas últimas são partícipesdos atos médico-assistenciais peloprincípio da solidariedade(6). Assim,tem-se uma ação originada no poderjudiciário que sinaliza a necessidade deintegração entre médicos e organiza-ções de saúde quanto à responsabili-dade dos cuidados prestados aos pa-cientes, e manifesta a seguinte presun-ção: não há atividade médico-assisten-cial complexa sem a responsabilidadedo hospital e vice-versa. Esse aspectotem implicações práticas para os ges-tores que precisam identificar e disporde mecanismos que protejam os pa-cientes, os médicos e suas instituiçõesde fenômenos que possam colocar emperigo assistencial os pacientes aten-didos.

CONCEITO DE SEGURANÇA DOPACIENTE

Existem vários conceitos sobre se-gurança do paciente, até porque se tra-ta de uma ciência nova no âmbito daassistência à saúde. Para efeito deexposição do tema neste artigo, utili-za-se o conceito do dicionário cana-dense de segurança do paciente(18):

Segurança do paciente é a reduçãoe a mitigação de atos não seguros nosistema de assistência à saúde, assim

como a utilização das melhores práti-cas que conduzem a resultados ótimospara o paciente.

Esse conceito se revela útil, princi-palmente pelo caráter prático: reduzirsituações indesejáveis decorrentes daassistência ao paciente e, no caso daocorrência, dispor de medidas que li-mitem o dano e restrinjam a chancede repetição do fenômeno. A seguran-ça do paciente, portanto, alude à ex-tensão em que um serviço de saúdepode minimizar um dano inadvertido eevitar riscos potenciais para o pacien-te.

O quadro 1 relaciona alguns doseventos de segurança do paciente quesão, na sua maioria, de conhecimentopúblico, e que até a pouco se conside-rava de estrita responsabilidade dosmédicos e, secundariamente, dos en-fermeiros.

Os gestores podem selecionar, deacordo com o perfil de suas organiza-ções de saúde, os eventos de segu-rança do paciente que consideraremmais oportunos, monitorá-los periodi-camente, examinar as causas e desen-volver estratégias que reduzam osmesmos ao longo de um determinadoperíodo.

Cabe destacar que toda organiza-ção de saúde, por mais bem estrutu-rada que seja, exibirá incidentes médi-co-assistenciais, porém a diferençaresidirá na frequência e forma de abor-dá-los. A tese é de que as organiza-ções de saúde bem estruturadas sãocapazes de aprender com as falhas eincidentes assistenciais, resultando naprestação de serviços cada vez maisseguros.

ACREDITAÇÃO E REGULAÇÃOTem-se como truísmo que os fato-

res organizacionais afetam a seguran-

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ça do paciente, porém ainda não sedesfruta da mesma clareza sobre o queé mais relevante. Dois mecanismosadquirem importância como catalisa-dores da segurança do paciente naatualidade: a acreditação e a regula-ção pública(19). Ambos se dirigem pri-mordialmente à forma como os cuida-dos devem ser prestados aos pacien-tes nas organizações de saúde. A acre-ditação, como uma avaliação externabaseada em padrões previamente es-tabelecidos(20) e tem caráter voluntá-rio, enquanto a regulação, um instru-mento de exigência governamentalcom força compulsória(21).

Presume-se que as organizações desaúde com certificado de acreditaçãosejam mais seguras, ou que pelo me-nos se encontram mais preparadaspara identificar, com maior presteza,

falhas e incidentes e, deste modo, abor-darem estes eventos de forma produ-tiva.

RESPONSABILIDADE DOSGESTORES SOBRE ASEGURANÇA DO PACIENTE

Até recentemente, os gestores fo-calizavam suas responsabilidades pre-dominantemente sobre as questõeseconômicas, em detrimento da quali-dade e segurança, por duas razões(17):a) os executivos tinham poucos incen-tivos para se importarem com a segu-rança do paciente e a qualidade assis-tencial; b) a maioria dos executivoshospitalares acreditava que não podialidar com questões de qualidade pornão serem médicos e possuíam prima-riamente experiência em negócio oufinanças. Na atualidade, contudo, há

gestores hospitalares médicos queobtiveram preparo técnico em gestão.O fato mais relevante é que a práticainstitucional demonstra, por exemplo,que não há necessidade do gestor sa-ber qual o medicamento utilizado noenfarte do miocárdio (até porque essaé uma função básica do médico); o queele necessita dominar são os elemen-tos que, gerencialmente, interferem,para o bem ou para o mal, na assis-tência de urgência de um pacientecardíaco.

Os hospitais que alcançam a certifi-cação denominada acreditação apre-sentam, como regra, uma cultura decolaboração entre os que atuam nosdiversos serviços, setores e unida-des(22). Observa-se nessas instituiçõesum clima em que os médicos reconhe-cem que a assistência é melhor e maissegura quando eles cumprem proce-dimentos-padrão, ao invés de levar ohospital aos procedimentos customi-zados, os quais são reconhecidamen-te ineficientes e propensos às falhase incidentes(17). A interdependência, aoinvés de ser uma moda como algunsalegam, representa uma necessidadepara que a assistência seja mais se-gura, com mais satisfação para os pa-cientes e ao menor custo possível(17).

Talvez o componente mais visível docompromisso dos gestores com a se-gurança do paciente se relacione coma tendência das operadoras negaremo pagamento para as condições ad-quiridas no hospital associadas ao tra-tamento(23). Tal fenômeno já ocorre nosEUA e a primeira lista de condiçõesadquiridas no hospital inclui os seguin-tes eventos adversos: eventos cirúrgi-cos (infecções e retenção de corpoestranho), escaras, embolia aérea, in-compatibilidade sanguínea, infecçõesassociadas a cateteres, injúrias hospi-talares, trombose de veia profunda e

QUADRO 1

Lista de alguns eventos de segurança do paciente que são de conhecimento público

• Cirurgia em parte errada do corpo (ex.: deveria ser amputada a perna direita e foiamputada a perna esquerda)

• Cirurgia em paciente errado (ex.: troca de paciente)

• Cirurgia errada (ex.: troca de paciente)

• Erro de medicação (ex.: falha derivada de diversas fontes)

• Queda de paciente (ex.: queda do leito, queda ao caminhar na área assistencial,queda de cadeira de rodas, queda no banheiro)

• Esquecimento de corpo estranho no interior do paciente (ex.: compressa, pinça,afastador)

• Queimadura pela utilização de equipamento

• Infecção hospitalar

• Complicações operatórias e pós-operatórias

• Demora do diagnóstico (seguido de doença grave que poderia ter sido identifica-da com maior antecedência)

• Demora do tratamento seguido de óbito

• Troca de paciente devido inadequado registro do nome (ex.: consulta, exame,cirurgia)

• Colocação do paciente em local assistencial errado

• Erro de dieta que coloca em risco a vida do paciente

• Infusão de dieta líquida em sonda não enteral

• Transfusão de sangue incompatível

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controle deficiente de glicemia(23). Nãoserá surpreendente que em breve asoperadoras de saúde adicionem à “lis-ta de condições não pagáveis” outroseventos adversos.

DESAFIOS PARA OS GESTORESOs gestores das organizações de

saúde enfrentam enormes desafiospara conduzir políticas de segurançado paciente e qualidade assistencial.Embora a disposição natural dos ges-tores seja a de assumirem uma atitu-de reativa diante de eventos indesejá-veis decorrentes de falhas assisten-ciais, acredita-se que alguns passospossam ser dados proativamente parapreveni-los(24): melhorar o acesso à in-formação, padronizar e simplificar pro-cessos e proporcionar treinamentoperiódico aos colaboradores.

Além dos aspectos já referidos, eisalguns pontos que devem ser consi-derados e abordados de forma consis-tente pelos gestores, a fim de concre-tizar um plano de segurança e quali-dade assistencial.

• Selecionar alguns indicadores desegurança do paciente e qualidadeassistencial

Os gestores devem identificar emtorno de 10 a 12 indicadores(17). Issopermitirá concentrar esforços e apren-der mais rapidamente sobre questõesde segurança e qualidade assistencial.Como regra, os indicadores devemcobrir uma ampla base com vários ní-veis da segurança e a qualidade. Porexemplo, as organizações, como pon-to de partida, podem dividir os indica-dores em três categorias: a) medidasde qualidade amplamente conhecidasdo público em geral (taxa de mortali-dade, taxa de infecção hospitalar), b)medidas relacionadas com a seguran-ça do paciente (vide quadro 1), c) me-

didas de experiência dos pacientes(grau de satisfação dos pacientes).

• Comprometer pacientes e familia-res

Algumas organizações começam aabordar pacientes e familiares, de di-versas formas, quando ocorre um inci-dente médico-assistencial. Por exem-plo, convidar pacientes que foram aco-metidos por um incidente assistencial,bem como seus familiares, para parti-ciparem de uma reunião com os ges-tores a fim de que narrem o que viven-ciaram(25). Consiste em uma medida dedifícil aplicação na cultura nacional, aqual exige grande preparo dos gesto-res em lidar com situações de conflito.O relatório “Errar é humano...”(11) pre-coniza que os pacientes sejam consi-derados como membros da equipe desaúde e, consequentemente, devemser envolvidos no processo assisten-cial. O termo de consentimento infor-mado e esclarecido adquire um papelessencial nesse contexto.

• Atrair os médicos para a qualida-de e segurança

Algumas organizações têm criadoambientes não punitivos que acolhemo relato de incidentes(15). Outros cons-troem uma estrutura de captação derelatos de incidentes que analisa edevolve a interpretação dos achadosaos profissionais envolvidos nos mes-mos, cujo propósito é promover a cor-reção das falhas identificadas que con-duziram ao evento assistencial indese-jável. Também se constitui em umamedida de difícil aplicação, uma vezque os médicos se sentem frequente-mente ameaçados com a possibilida-de de que as informações relatadassejam utilizadas contra eles. Há neces-sidade, portanto, de um ambiente emque predomine uma cultura acolhedo-

ra da segurança e qualidade dentro dasorganizações de saúde, além de mo-dificações legais que protejam os pro-fissionais que comuniquem os inciden-tes.

CONCLUSÕESConstitui-se um princípio fundamen-

tal dos gestores que as organizaçõesde saúde sejam seguras para os clien-tes/pacientes, visitantes, médicos, en-fermeiros e demais profissionais desaúde, bem como para o meio ambien-te. Essa função exige que os gestorespriorizem a melhoria contínua e atuemcomo catalisadores de interesses di-vergentes, os quais costumeiramenteelevam o risco de problemas de segu-rança dos pacientes e diminuem a qua-lidade assistencial. Ou seja, as organi-zações de saúde com muitos conflitosapresentam uma maior chance de in-cidentes e uma menor qualidade as-sistencial.

Há, no cenário nacional, uma lentae progressiva tendência dos gestoreshospitalares – principalmente das or-ganizações portadoras de certificadode acreditação – de assumirem, cor-porativamente, a responsabilidade pelasegurança do paciente e qualidadeassistencial. A segurança implica limi-tes na estrutura e nos processos, istoé, ela depende do sistema como umtodo. Assim, os gestores devem reco-nhecer que uma organização presta-dora de serviços de saúde se constituiem um conjunto de seguranças, assis-tenciais e administrativas, que se for-talecem mutuamente, com o propósi-to de transmitir uma imagem de con-fiabilidade para os clientes/pacientes,profissionais de saúde e o público emgeral. E é disso que depende, em gran-de parte, o prestígio institucional an-gariado pelos serviços prestados aolongo do tempo.

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Exija qualidade na saúde

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