a representação das mulheres nos media

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1 A Representação das Mulheres nos Media Dos Estereótipos e «Imagens de Mulher» ao «Feminino» no Circuito da Cultura 1 Maria João Silveirinha Quando a investigação fala em representações nos media é, com frequência, para denunciar, como falsos, os estereótipos construídos em torno de certos grupos ou indivíduos. A velha ideia de que os media fornecem imagens cristalizadas e caricaturais de pessoas de diferentes grupos sociais já está claramente patente no trabalho de Walter Lippmann, mas também a teoria crítica, nomeadamente através do trabalho de Adorno, fez aliar a psicologia ao conceito de ideologia para questionar os estereótipos como centrais às indústrias da cultura. A contestação identitária dos estereótipos como representações mediáticas situa-se, no entanto, sobretudo nas investigações da década de 1960 em torno da raça, do sexo e da classe. Numa altura de forte ativismo centrado em processos de consciencialização e de contestação de «imagens» consideradas opressoras, para as mulheres, em particular, era fundamental denunciar as múltiplas imagens mediáticas reprodutoras dos papéis sociais predominantes numa sociedade entendida como patriarcal. Com a complexificação dos movimentos feministas e com novos enquadramentos analíticos para compreender as questões identitárias e os próprios media, as limitações dessas primeiras abordagens em identificar «falsas» imagens tornaram-se, no entanto, evidentes. Para além da ainda importante questão dos estereótipos, a análise das representações mediáticas passou, assim, a envolver outros conceitos que se ligam à questão da (re)construção da identidade: ideologia, produção, consumo, o próprio conceito de representação. A recente tendência da investigação dos media para explorar os gostos populares, no entanto, com frequência fez perder de vista a forma como as ideologias sociais justificam e legitimam as relações de poder e de interesse. No terreno contestado das representações mediáticas das mulheres são, pois, estes os temas que nos propomos aqui explorar. Pensamos que, dessa forma, podemos situar, num tempo alargado, o que foram e são presentemente os estudos feministas dos media, 1 A autora gostaria de agradecer ao Professor Greg Philo e ao Glasgow Media Unit da Universidade da Glasgow, o apoio que permitiu a concretização deste texto, durante o seu período de permanência nesta instituição.

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    A Representao das Mulheres nos Media Dos Esteretipos e Imagens de Mulher ao Feminino no Circuito da Cultura1 Maria Joo Silveirinha

    Quando a investigao fala em representaes nos media , com frequncia, para

    denunciar, como falsos, os esteretipos construdos em torno de certos grupos ou

    indivduos. A velha ideia de que os media fornecem imagens cristalizadas e caricaturais

    de pessoas de diferentes grupos sociais j est claramente patente no trabalho de Walter

    Lippmann, mas tambm a teoria crtica, nomeadamente atravs do trabalho de Adorno,

    fez aliar a psicologia ao conceito de ideologia para questionar os esteretipos como

    centrais s indstrias da cultura. A contestao identitria dos esteretipos como

    representaes mediticas situa-se, no entanto, sobretudo nas investigaes da dcada

    de 1960 em torno da raa, do sexo e da classe. Numa altura de forte ativismo centrado

    em processos de consciencializao e de contestao de imagens consideradas

    opressoras, para as mulheres, em particular, era fundamental denunciar as mltiplas

    imagens mediticas reprodutoras dos papis sociais predominantes numa sociedade

    entendida como patriarcal. Com a complexificao dos movimentos feministas e com

    novos enquadramentos analticos para compreender as questes identitrias e os

    prprios media, as limitaes dessas primeiras abordagens em identificar falsas

    imagens tornaram-se, no entanto, evidentes. Para alm da ainda importante questo dos

    esteretipos, a anlise das representaes mediticas passou, assim, a envolver outros

    conceitos que se ligam questo da (re)construo da identidade: ideologia, produo,

    consumo, o prprio conceito de representao. A recente tendncia da investigao dos

    media para explorar os gostos populares, no entanto, com frequncia fez perder de vista

    a forma como as ideologias sociais justificam e legitimam as relaes de poder e de

    interesse.

    No terreno contestado das representaes mediticas das mulheres so, pois, estes

    os temas que nos propomos aqui explorar. Pensamos que, dessa forma, podemos situar,

    num tempo alargado, o que foram e so presentemente os estudos feministas dos media,

    1 A autora gostaria de agradecer ao Professor Greg Philo e ao Glasgow Media Unit da

    Universidade da Glasgow, o apoio que permitiu a concretizao deste texto, durante o seu perodo de permanncia nesta instituio.

  • 2

    num quadro de pensamento que articula aspetos cognitivos e psicologistas com

    instrumentos de anlise cultural e social.

    Quadros nas Nossas Cabeas

    O termo esteretipo traduz uma das primeiras formas de preocupao com as

    questes da representao. O termo deriva de uma metaforizao do vocabulrio da

    imprensa e da tipografia onde significava moldar o texto numa forma rgida, para fins

    de utilizao repetida (Pickering, 2001). No sculo XX, foi desenvolvido de forma mais

    significativa pela psicologia e pelas anlises dos media e da cultura. No seu estudo do

    preconceito, o psiclogo Gordon Allport definiu-o como uma crena exagerada

    associada a uma categoria. A sua funo justificar (racionalizar) a nossa conduta em

    relao a essa categoria (Allport apud Pickering, 2001: 10). Esta definio acabou por

    estar presente em vrias das noes que o termo adquiriu, nomeadamente pela ideia de

    que os esteretipos sociais exageram e homogenezam os traos considerados como

    categorias de determinados grupos sociais ou indivduos. Ligado a esta vaga conceo

    est tambm o argumento de que a simplicidade e deficincias de representao que lhe

    esto associadas podem ser corrigidas por mais informao sobre as categorias em

    questo, o que estabelece o campo da representao como um terreno contestado de

    significao.

    Os dilemas relacionados com o esteretipo so, no entanto, bem identificados por

    Walter Lippmann, no incio da dcada de 1920. Ainda que possivelmente no tivesse

    sido o primeiro a usar o termo, foi, pelo menos, o primeiro a dar-lhe uma definio

    crtica no livro Public Opinion, onde procurou capturar a mente pblica e o papel da

    imprensa na interface com a realidade fsica, social e poltica. A, situava o esteretipo

    como uma questo fundamental para compreender (e assim poder melhorar) o

    funcionamento da vida pblica. A ligao que estabeleceu entre os esteretipos e os

    media residia na sua tentativa de reavaliar de uma forma sria o modelo liberal de

    cidadania, concentrando-se nos obstculos de uma poltica democrtica, em especial em

    relao ao papel da imprensa no processo poltico. Os esteretipos mediticos eram um

    desses problemas polticos especficos.

    Lippmann equacionou a questo das representaes (nomeadamente dos

    estrangeiros) como o resultado de dois tipos de experincia: uma, de carcter cognitivo,

    resultava dos processos da prpria modernidade; a outra estava ligada necessidade

    subjetiva de manter o poder e a identidade do sujeito.

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    O ponto de partida , portando, a modernidade: na grande, emergente e ruidosa

    confuso do mundo exterior, percecionamos o que a nossa cultura j definiu para ns e

    tendemos a perceber o que percecionmos na forma que nos foi estereotipada pela nossa

    cultura (Lippmann 1922: 81). A emergncia do domnio da experincia em segunda-

    mo estava situada dentro da Grande Sociedade, um mundo onde as ligaes globais

    se tinham tornado cada vez mais visveis, e o localismo parecia ter acabado. Da

    Grande Sociedade faziam parte os meios de comunicao que, perante as fragilidades

    da mente pblica, deveriam fornecerem ao pblico uma informao credvel. Estava

    assim identificado um dos problemas mais srios da modernidade: a necessidade de um

    conhecimento fidedigno das complexidades do mundo, conhecimento que a

    dependncia do pblico de representaes mediticas inadequadas e mesmo

    manipuladas comprometia. Esta manipulao no se devia a um qualquer plano

    orquestrado e malfico, mas a razes comerciais, que seguem a linha de menor

    resistncia em relao aos preconceitos existentes.

    Os esteretipos, para Lippmann, devem, antes de mais, ser entendidos como uma

    forma de representao que deriva de uma perda do conhecimento individualizado e

    pessoal das pessoas e das suas comunidades, nomeadamente em relao aos

    estrangeiros. Por outro lado, so formas necessrias para fazermos sentido do mundo:

    o ambiente real demasiado grande, demasiado complexo e demasiado mutvel para dele termos um conhecimento direto. No estamos equipados para lidar com tanta subtileza, variedade, permutaes e combinaes. Embora tenhamos de agir nesse ambiente, temos de o reconstruir num modelo mais simples para o podermos gerir. Para atravessar o mundo, os homens tm que ter mapas do mundo (Ibid.: 16).

    E aqui reside a ambivalncia dos esteretipos: so, por um lado, distores e

    obstculos razo mas, por outro, so quadros nas nossas cabeas, isto , um modo

    de processar informao em sociedades altamente diferenciadas. So, por isso,

    elementos fundamentais da perceo humana, com uma utilidade fundamental no

    mundo moderno. Dando estabilidade e consistncia nossa vida quotidiana

    turbulenta e desordenada, os esteretipos funcionariam como uma espcie de economia

    de esforos, formando um repertrio de impresses fixas que ns temos nas nossas

    cabeas (como modelos mentais rgidos que enquadram a nossa experincia de um

    mundo). Tais modelos intersectam a informao a caminho da conscincia (Ibid.: 57).

    Precisamos de descrever e julgar mais pessoas, mais coisas, mais aes, do que

    podemos alguma vez imaginar, pelo que precisamos de resumir e generalizar.

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    Precisamos, a partir de amostras, de generalizar. Estes modelos cognitivos respondem,

    por outro lado, a uma sociedade que tambm cada vez mais impessoal, tornando certos

    objetos familiares ou estranhos (Ibid.: 90).

    Mas para Lippmann, os quadros nas nossas cabeas eram muito mais do que

    simples atalhos - eram tambm uma parte fundamentalmente inscrita na identidade do

    sujeito, dando corpo ao ncleo da nossa tradio pessoal, s defesas da nossa posio

    na sociedade (Ibid.: 95). Inscrevendo impresses de forma permanente, ofereciam no

    s um quadro habitual da realidade mas uma linha de defesa contra ameaas reais ou

    pressentidas ao nosso mundo. Lippmann equaciona assim a identidade do sujeito como

    a perceo do seu lugar no universo relativamente a todos os outros sujeitos e coisas.

    O esteretipo d forma e estabiliza uma viso do mundo que se estende para alm

    da experincia imediata e se constitui como uma realidade de segunda mo, onde o

    sujeito se encaixa:

    [Os esteretipos] so um quadro ordenado mais ou menos consistente do mundo a que os nossos hbitos, os nossos gostos e as nossas esperanas se ajustaram. Podem no ser um quadro completo, mas so o quadro de um mundo possvel a que nos adaptamos. Nesse mundo, pessoas e coisas tm os seus bem-conhecidos lugares, e fazem certas coisas que esperamos delas. Sentimo-nos em casa nesse mundo. Encaixamo-nos nele. Somos membros dele. Conhecemos os cantos casa. A, encontramos o charme do familiar, o normal, o seguro; os seus detalhes e formas so aqueles que ns esperamos encontrar () Ajustamo-nos a ele como a um velho sapato (Idem).

    Por fim, o esteretipo, alm da sua dimenso cognitiva e social, tinha tambm uma

    vertente poltica: a ele estava tambm associada uma posio de poder e a defesa do

    status quo: Um padro de esteretipos no neutro. No meramente uma forma de substituir a ordem pela grande, emergente e ruidosa confuso da realidade. No um mero atalho. tudo isso e mais. a garantia do nosso respeito prprio; a projeo sobre o mundo do nosso valor, da nossa posio e dos nossos prprios direitos (). Os esteretipos so a fortaleza da nossa tradio, e por detrs das suas defesas podemos continuar a sentirmo-nos seguros na posio que ocupamos (Ibid.: 96).

    Esta definio do esteretipo mostra uma boa compreenso do modo ideolgico

    como projetamos o mundo. Mas, ao ver nessas projees individuais (psicologistas e

    cognitivas) uma inevitvel deslocao para um mundo a necessitar de lei e ordem,

    Lippmann perdeu de vista as suas implicaes sociais e polticas, reclamando uma

    ordem cientfica independente das pobres e limitadas projees que os indivduos

    singulares, servidos pelos media, conseguiam fazer do mundo. O conhecimento pblico

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    teria de ir alm dos quadros mentais estereotipados organizados que os media ajudavam

    a formar. O panorama social que servia a democracia teria de ser corrigido para se

    atingir uma sociedade mais cientfica. O papel dos jornalistas na configurao que

    Lippmann tinha em mente no era, no entanto, simples, pelo menos por duas ordens de

    razo: pelas limitaes das prprias notcias, e pelo facto de estas serem, antes de mais,

    um recurso produtivo de empresas a necessitar de publicidade e de audincias.

    Ele prprio jornalista, Lippmann tinha uma viso muito clara do lugar das notcias

    no mundo: as notcias no so um espelho das condies sociais, mas o relato de um

    especto que foi obstrudo. As notcias no dizem como que a semente germina na

    terra, mas podem dizer que o primeiro rebento nasceu superfcie (Ibid.: 340). Opondo-

    se a outras vises mais culturalistas dos media, como a de Dewey, para Lippmann as

    notcias deveriam ser o resultado de uma poderosa mquina de registo de factos,

    alimentadas por fontes profissionalizadas que no deixassem aos prprios jornalistas

    muito campo de interveno subjetiva. O facto de estar consciente de que os media no

    eram um espelho do mundo e de que a realidade que eles apresentavam era

    necessariamente parcial, fazia-o colocar a tnica na necessidade de fazer emergir

    factos, rebentos de sementes, que os media pudessem sinalizar, por oposio s

    problemticas subjacentes a estes mesmo factos que se podiam, ento, tornar sinnimos

    de verdade2.

    Hoje, os movimentos sociais, tal como as mais poderosas mquinas polticas,

    conhecem bem esta necessidade, que Lippmann j associava positivamente s

    sufragistas (Lippmann, 1914). Na verdade, o que interessava ao prprio Lippmann no

    era o feminismo, mas a sua novidade e o seu significado poltico. Na introduo a

    Preface to Politics (1913), o seu primeiro livro, a emancipao das mulheres est

    entre as preocupaes sobre as quais preciso refletir, mas, no captulo dedicado ao

    movimentos das mulheres, fica bem patente que o interesse de Lippmann reside no

    carcter de novidade deste movimento que, como diz David A. Hollinger (1977),

    representava uma metfora das roturas que era preciso fazer com a tradicional vida

    americana. O movimento das mulheres era importante como expresso de uma

    verdadeira democracia bem organizada, no tanto como movimento reivindicativo e

    2 Duas passagens ilustram bem a necessidade, do ponto de vista noticioso, de se passar da

    problemtica ao acontecimento: o curso dos acontecimentos tem de assumir uma certa forma definida at estar na fase em que algum aspecto seja um facto realizado, as notcias no se separam do oceano da verdade possvel. () A quantos mais pontos () o acontecimento possa ser fixo, objectificado, medido, nomeado, mais pontos tem para que possa haver notcia (Lippmann, 1922: 340 e 341)

  • 6

    mesmo revolucionrio das mulheres. , no entanto, o seu conceito de esteretipo que ir

    marcar a literatura que relaciona as mulheres com a comunicao mediada. Ao ver os

    esteretipos como inadequados e realando os interesses daqueles que os usam,

    Lippmann realou bem os seus perigos. Este um especto importante ainda que, como

    refere Pickering (2001), ao dizer que os esteretipos so formas primordialmente

    individualizadas de processar a informao num mundo complexo, retirando-lhes assim

    a dimenso social, isso tenha induzido efeitos prejudiciais no que diz respeito ao modo

    como o conceito de esteretipo veio a ser utilizado posteriormente.

    Do Esteretipo nas Indstrias da Cultura

    O trabalho mais importante depois de Lippmann sobre a representao, nas suas

    formas estereotipadas, foi desenvolvido nas reas dos estudos da comunicao e da

    psicologia social. No entanto, a noo foi utilizada e aplicada por vezes de formas muito

    diferentes em cada uma destas reas3.

    Durante os anos entre as duas guerras, em ambas as reas foi muito forte a

    influncia do paradigma behaviorista estmulo-resposta, gerando um conjunto de

    investigaes que pressupunham um processo linear entre emissor e recetor. Neste

    modelo de efeitos diretos, os media eram vistos como capazes de seduzir e manipular

    uma audincia indefesa facilmente convencida pela propaganda e pelo mito social,

    apresentando esteretipos contra os quais no era possvel lutar. As primeiras anlises

    de contedo desenvolvidas nesta poca teriam, como veremos, eco na investigao dos

    anos 60, onde as representaes estereotipadas dos grupos desfavorecidos eram tidas

    como veculos para crenas e pontos de vista ideolgicos dominantes.

    Mas, se entre os anos 30 e 40 a direo do trabalho de investigao na

    comunicao foi progressivamente assumindo a forma de um paradigma dominante,

    ao mesmo tempo, desenvolvia-se na Alemanha, e depois nos Estados Unidos, uma

    crtica radical cultura de massas assente numa determinada compreenso filosfica da

    modernidade.

    Um dos mais importantes trabalhos nesta poca sobre o papel dos esteretipos na

    reproduo ideolgica foi, com efeito, o desenvolvido em A Personalidade Autoritria

    3 Se nos estudos da comunicao, o esteretipo se caracterizou pelo seu fraco desenvolvimento

    conceptual, j na psicologia o conceito foi sujeito, a partir dos anos 30, a uma extensa pesquisa experimental, desde uma srie de tentativas para restabelecer a sua definio geral e aplicao at, mais recentemente, sua reformulao radical, resultante particularmente da teoria de identidade social e da sua derivada teoria da auto-categorizao (Pickering, 2001: 691).

  • 7

    (Adorno et. al., 1950), um estudo realizado como parte de um grande projecto de

    investigao em torno das bases psicolgicas dos preconceitos anti-semitas. Procurava-

    se saber como que os indivduos acabam por adotar uma viso estereotipada dos

    grupos em que no se sentem includos. Adorno, em particular, estava interessado em

    compreender a capacidade autoritria que alguns sujeitos tm, e outros no. O potencial

    fascista em cada indivduo foi, assim, analisado luz de uma combinao entre o

    pensamento neomarxista em torno da ideologia e a psicanlise neofreudiana. luz das

    revelaes do ps-guerra, os autores mostraram-se convencidos, no tocante extenso

    das atrocidades de guerra nazis, que o preconceito era o produto de um tipo particular de

    estrutura de personalidade a do autoritarismo. O sndrome desta personalidade revela-

    se no facto de o indivduo respeitar e ter deferncia para com as figuras de autoridade,

    ser obcecado com a hierarquia e o status, ser intolerante com a ambiguidade e a

    incerteza e ter necessidade de ver um mundo clara e rigidamente definido, expressando

    dio e discriminao contra os mais fracos.

    A patologizao do preconceito alia-se, em Adorno, a uma base neomarxista. O

    marxismo ortodoxo havia estabelecido uma clara diferenciao entre a base econmica

    e a superstrutura poltica e ideolgica (com a determinao desta por aquela), enquanto

    que marxistas como Lukcs, Adorno e Gramsci concederam uma muito maior

    autonomia s esferas poltica e cultural como formas de conscincia social.

    A tese marxista da ideologia seria, na verdade, desenvolvida de forma diferente

    pelos percursores da teoria crtica. Para dois dos seus principais autores, Adorno e

    Horkheimer, a evoluo do capitalismo tinha destrudo a prpria possibilidade de uma

    poltica revolucionria. Acusando Marx de aceitar acriticamente a reduo burguesa da

    razo razo instrumental, os autores deixam de confiar na ideologia tal como fora

    definida pelo prprio Marx, porque o seu fundamento a crena numa soluo

    alternativa s contradies capitalistas resultantes da expanso das foras produtivas

    j no era possvel. Estes filsofos usaram ento a dialtica negativa termo que

    aponta um pensamento da no-identidade, centrado na conscincia crtica de que um

    conceito no pode identificar-se com o seu verdadeiro objeto aplicada ideologia.

    Trata-se, portanto, de rejeitar a identidade entre a conscincia verdadeira e os interesses

    do proletariado.

    Em Dialtica do Iluminismo (1947), escrito em colaborao com Horkheimer

    durante a guerra, Adorno faz uma forte crtica razo instrumental, civilizao

    tcnica, cultura do sistema capitalista (a indstria cultural) e sociedade de

  • 8

    mercado que no procura outro fim que no seja o progresso tcnico. Dentro dos

    sistemas totalizantes, as particularidades e as contradies na natureza e na sociedade

    so erradicadas pelas categorias da razo centrada no homem e na separao sujeito-

    objeto entendida como neutral. A dicotomia sujeito-objeto comea com a ciso entre

    homem e natureza com o fim de controlar e submeter esta ltima a partir da negao da

    natureza no homem. Os resultados aporticos desta razo podem ser vistos nas

    referncias ao papel ideolgico e representacional desempenhado pelas mulheres na

    histria que, de certa forma, ilustram a dicotomia sujeito-objeto.

    A anlise do sujeito tambm uma anlise da representao. O indivduo s

    emerge dentro de um sistema de representao que no pode controlar. A dialtica da

    subjetivao est precisamente na necessidade de o sujeito se subjugar para se tornar

    sujeito, o que acontece no s ao nvel da psique como ao nvel da prpria relao com

    o poder da representao: o poder no simplesmente representado o poder

    dominao como representao (Hewitt, 1992: 152). No discurso filosfico e literrio,

    notam Adorno e Horkheimer, comum a identificao da mulher com a natureza. Esta

    aparece, assim, como o sujeito reprimido do sujeito burgus masculino que a identifica

    com a natureza, dando corpo a uma dupla funo: representar o lugar da explorao e

    uma utopia potencial. A utopia concebida como uma reunificao entre o seu corpo e

    o sujeito burgus, o que significaria uma reconciliao com a natureza. Segundo esta

    lgica, o sujeito burgus sempre masculino, e a mulher uma projeo masculina.

    A questo do feminino est presente em outros pontos dispersos do trabalho de

    Adorno. Em Minima Moralia Adorno sugere que permitir a igualdade das mulheres no

    admiti-las a lugares onde antes se verificou a sua excluso num processo que conduz

    sua emancipao, mas apenas uma forma de nivelar homens e mulheres na

    oportunidade de desumanizao: a admisso das mulheres a todas as atividades

    supervisionadas esconde uma continuada desumanizao. Nos grandes negcios, elas

    mantm-se o que eram na famlia, objetos (Adorno, 1951: 92). Como refere Lisa Yun

    Lee (2006), este nivelamento da experincia de homens e mulheres no significa que

    Adorno no esteja consciente da experincia feminina na sociedade burguesa, mas no

    querendo reificar qualquer noo de feminilidade, esta colocada como um resultado da

    opresso das mulheres4. Apesar destas referncias, os autores parecem incapazes de

    pensar a categoria de mulher fora da lgica identitria (masculina) que criticam, ficando

    4 Diz Adorno: A feminilidade que apela ao instinto sempre exactamente o que cada mulher tem

    de forar sobre si prpria - pela violncia a ser: um homem (Adorno, 1951: 95).

  • 9

    prisioneiros da contradio performativa dos seus prprios termos. Como se pode

    afirmar que a honra da individualizao negada mulher sem, nessa mesma

    afirmao, se negar a sua individualizao, forando-a a uma categoria singular e

    simultaneamente genrica de mulher? (Hewitt, 1992: 148).

    Mais profcuas para a compreenso das representaes nos media a sua profunda

    crtica das formas mediticas e a anlise de como a lgica de marketing guia a

    programao e a distribuio estandardizada pelas convenes narrativas mediticas

    estende a influncia do capital sobre a experincia quotidiana. Neste contexto, os

    esteretipos tm uma funo essencial: na cultura de massas, a perpetuao dos

    esteretipos de sexualidade, feminilidade, moral, herosmo e romance estabiliza e torna

    previsveis os desejos das massas, impondo-lhe uma falsa identidade e fazendo de

    toda a subjetividade psquica, social e existencial objetivo dos poderes reificadores do

    capital.

    Para os autores, todos os produtos mediticos mostram, de uma forma ou outra, as

    influncias estandardizadoras da produo comercial. Quando as pessoas ouvem rdio,

    vo ao cinema, ou leem jornais, encontram um mundo estandardizado de imagens

    mediticas e so inevitavelmente atrados para elas. Como resultado, as suas

    experincias mentais e emocionais tornam-se tambm estandardizadas atravs de um

    efeito ideolgico dos hierglifos da cultura de massas (Hansen, 1992). Este efeito no

    se constitui tanto como uma questo de impor modelos positivos (ou negativos), mas de

    impedir os seres humanos de mudarem, de serem diferentes, de distinguir os seus

    prprios desejos e necessidades dos que lhes so impostos pela distribuio. Os

    hierglifos da cultura de massas exercem uma atraco regressiva no porque reflitam

    o estado geral de reificao, mas pelo contrrio, porque mascaram esse estado,

    disfarando um guio como imagem pura, uma presena natural e humanizada (Hansen,

    1992).

    Em Prlogo sobre a televiso, Adorno d ao imperativo hieroglfico da

    identidade uma determinada verso, ao classific-lo como a recomendao cnica da

    indstria da cultura para cada um se tornar o que se a indstria da cultura sorri

    ironicamente: s o que s, e a sua mentira reside precisamente na repetida ratificao e

    reforo do simples ser assim, daqueles a quem o andar do mundo fez como so

    (Adorno, 1953: 169).

    Nessas condies, a vida real torna-se indistinguvel das representaes

    comerciais, circunscrevendo todas as possveis ideias diversas e alternativas que as

  • 10

    pessoas pudessem ter, atravs dos seus mecanismos prprios que incluem os

    esteretipos:

    Em lugar de conferir a honra de o elevar conscincia e assim lhe permitir satisfazer os seus impulsos e pacificar a sua fora destruidora, a indstria da cultura, com a televiso como seu cume, reduz os seres humanos cada vez mais aos seus comportamentos inconscientes, quando as condies fazem surgir uma existncia que ameaa com o sofrimento quem v atravs dela e promete recompensa a quem a idolatrar. Os vocbulos da linguagem iconogrfica so os esteretipos (Adorno, 1953: 169).

    Em How to look at television (1954) Adorno identifica a questo dos

    esteretipos como fundamentais para perceber a reificao da experincia:

    Quanto mais os esteretipos se reificam e tornam rgidos na indstria cultural tal qual esta hoje, menos as pessoas so capazes de modificar as suas ideias preconcebidas em funo da evoluo da sua experincia. As pessoas podem no s perder de vista a verdadeira realidade, mas em ltima anlise a sua prpria capacidade de experienciar a vida pode ser obscurecida pelo desgaste constante dos programas azul e cor-de-rosa (Adorno, 1954: 171).

    Relembrando os dois lados do fenmeno psicodinmico (o inconsciente e a

    racionalizao), Adorno faz ver que as mensagens estereotipadas, dirigidas a certos

    sectores da populao, podem ser compreendidas como perfeitamente legtimas.

    Os esteretipos so, assim, fundamentais para se perceber como as formas

    objetivas dos media funcionam na estruturao da experincia das pessoas que se

    encontram a vrios nveis, simultaneamente. A um nvel, que ele designa a estrutura

    multicamadas da histria, a televiso serve como um meio tecnolgico para a

    indstria da cultura lidar com a audincia porque, diz Adorno, a forma como a

    histria retrata as pessoas e as suas aes sociais torna-se a prpria forma como o

    espectador compreende as pessoas e as suas aes sociais (Adorno, 1954: 222). A um

    segundo nvel, Adorno v a estrutura de formulao narrativa da televiso como

    estabelecendo um padro de atitude do espectador, mesmo antes de lhe ser apresentado

    qualquer contedo especfico. Dada a repetio da frmula, o espectador pode sentir-se

    confortvel e antecipar a forma como a histria acaba. Estes dois nveis constituem o

    poder da ideologia em Aco.

    A funo social e cognitiva de um esteretipo na indstria da cultura serve como

    meio de nos orientar naquilo que no compreendemos, que pensamos conhecer ou ainda

    como um atalho para aquilo que de facto compreendemos. Adorno estava,

    naturalmente, sobretudo interessado na forma como a televiso cria espectadores, mas

    reconhecia a necessidade parcial de utilizar os esteretipos. Estava igualmente

  • 11

    consciente, no entanto, de que o resultado de todo um modo de comunicao

    determinado dos esteretipos resultava na reificao da prpria conscincia:

    Uma vez que os esteretipos so um elemento indispensvel da organizao e antecipao da experincia, impedindo-nos de cair na desorganizao e no caos, nenhuma arte os pode dispensar. Uma vez mais, o que nos preocupa a mudana funcional. Quanto mais os esteretipos se tornam reificados e rgidos no presente estabelecido pela indstria cultural, mais pessoas so tentadas a agarrar-se desesperadamente aos chichs que parecem trazer alguma ordem ao que , de outra forma, incompreensvel (Adorno, 1954: 147).

    Ao simular a individualidade e a intimidade, as personagens da cultura de massas

    estabelecem normas de comportamento social formas de ser, de sorrir e de estabelecer

    relaes:

    os esteretipos da televiso, at na entoao e no dialeto, parecem-se exteriormente com o Z da Esquina e, ao mesmo tempo, no s propagam slogans como, por exemplo, o de que todos os estrangeiros so suspeitos, ou que o xito a coisa melhor que se pode esperar da vida, mas tambm, atravs do comportamento das suas personagens, do esses slogans por emanados de Deus e fixados uma vez por todas, mesmo que depois, por vezes, se deduza uma moral que at quer dizer o contrrio (Adorno, 1953: 169-170).

    A efetividade dos guies de identidade da cultura de massas reside na prpria

    solicitao dos espectadores como peritos, como leitores ativos. A identificao com o

    esteretipo avanada pelo apelo a um tipo particular de conhecimento assente na

    repetio: a identificao de um rosto ou de um gesto ou de uma conveno narrativa

    familiar que assume o lugar da cognio genuna.

    Apontando para a natureza multiestruturada da televiso, Adorno apresenta a

    utilizao da psicologia em profundidade como o meio que melhor permite

    compreender a televiso. Fazendo frequentes referncias aos nveis visveis e

    escondidos a que a televiso funciona, procura indagar da forma como esses nveis se

    dirigem ao consciente e inconsciente dos espectadores. A aplicao da psicologia no

    serve tanto programas televisivos especficos, mas a sua dinmica5. Devem-se assim

    evitar os critrios padro de avaliao a favor de uma perspetival que receba os

    contributos da psicologia:

    5 Na verdade, o que interessa a Adorno a relao extremamente complexa entre as audincias e a

    televiso: Toda esta interaco a vrios nveis (...) aponta em algum sentido: a tendncia para canalizar a reaco da audincia. Isto entra em linha com a suspeita por muitos partilhada, ainda que difcil de corroborar com dados exactos, de que a maior parte dos programas de televiso hoje procura produzir a prpria facilidade e passividade intelectual que parece encaixar nos credos totalitrios, mesmo que superfcie a mensagem explcita dos programas possa ser anti-totalitria (Adorno, 1954: 142).

  • 12

    Os efeitos da televiso no podem ser adequadamente expressos em termos de xito ou fracasso, gostos ou averses, aprovao ou desaprovao. Deve fazer-se uma tentativa, com a ajuda de categorias da psicologia e o conhecimento anterior dos media, de cristalizar uma srie de conceitos tericos a partir dos quais se possa estudar o efeito potencial da televiso, isto , o seu impacto sobre as vrias camadas da personalidade do espectador (Adorno, 1954: 136)6.

    A partir deste trajeto que procurou unir referncias no trabalho de Adorno,

    podemos concluir com a sua contribuio para uma compreenso das questes de

    gnero. A tarefa de reunir as suas dispersas e muitas vezes laterais observaes sobre as

    mulheres e sobre o feminismo moderno, numa leitura feminista, rdua. No entanto,

    essa tarefa ganha sentido nas (poucas) tentativas de o compreender pela lente do

    feminino.

    Havia pelo menos um ponto em comum no pensamento das feministas dos anos

    70 (do feminismo de segunda vaga) e no pensamento de Adorno: o facto de este

    considerar que a dominao ocorre ao nvel do consciente, sendo assim, de facto,

    constitutiva do sujeito porque os sujeitos so obrigados a sujeitarem-se sua prpria

    dominao atravs das formas culturais e epistemolgicas da sociedade, tanto Adorno

    como o feminismo focaram as suas anlises na cultura e na cognio (Rothenberg,

    2006: 38).

    As crticas feministas da cincia e da filosofia, ainda que raramente se dirijam ao

    trabalho de Adorno e Horkheimer tm, na verdade, vrios elementos em comum ao

    nvel do quadro filosfico de compreenso da identidade feminina, como a rejeio do

    androcentrismo do sujeito racional universal, do impulso masculino de domnio e

    controlo, e da natureza especificamente masculina das normas de distanciamento e

    objetividade que caracterizaram a filosofia ocidental. Adorno reconhece as distores

    patriarcais e androcentristas da razo instrumental, concluindo que a nica redeno da

    razo reside na sua reconfigurao radical em termos da dialtica sujeito/objeto, sem

    enraizar essa possibilidade nas prticas sociais, polticas ou cognitivas j existentes. A

    homologao do genrico humano com o masculino estabeleceu uma ordem que

    cristalizou as diferenas, atribuindo-lhes o valor de verdade imutvel uma ordem onde

    a diferena negada, estabelecendo analogias, comparaes hierarquizadas, oposies

    6 Curiosamente, Adorno defende aqui o que poderamos considerar uma teoria da recepo da

    televiso baseada na psicanlise crtica da ideologia, ainda que ele prprio fosse relativamente ambivalente quanto a essa mesma teoria: estudar a televiso em termos da psicologia dos autores seria quase to difcil como estudar os carros Ford em termos da psicologia do falecido Sr. Ford (1954: 145).

  • 13

    dicotmicas. As categorias para pensar a diferena estruturam-se volta de uma lgica

    em que o outro se constri pela falta ou a negao. O idealismo negativo toma assim

    conta do potencial transformador da crtica da razo centrada no sujeito. J o

    pensamento feminista, ao explorar os aspetos de gnero do objeto da sua crtica,

    oferece uma srie de estratgias para reconfigurar as prticas epistemolgicas baseadas

    nas relaes diferenciais com a materialidade, o outro e a totalidade social

    (Rothenberg, 2006: 43).

    Imagens de Mulher

    Na psicologia social, muitas outras investigaes procuraram documentar a

    existncia de crenas estereotipadas em determinadas populaes. Nesses estudos, com

    frequncia, os esteretipos foram tidos como simples falsidades, ignorando-se a sua

    dimenso ideolgica. Esse problema estendeu-se tambm de uma forma particular aos

    estudos das mulheres7. Para compreender esse enraizamento, no entanto, preciso

    recuar s ligaes histricas entre a teoria social desenvolvida em torno de conceitos

    como sexo e gnero, o ativismo feminino e os estudos de comunicao. Lana F.

    Rakow mostra como as cientistas sociais feministas, partilhando a preocupao das

    feministas da segunda metade do sculo XX com o contedo e efeitos dos media e as

    desvantagens das mulheres a nvel da linguagem e em situaes discursivas, levaram a

    cabo a sua pesquisa dentro de uma tradio positivista que determinava como a

    comunicao e o gnero eram conceptualizados (Rakow, 1986: 14). Duas grandes reas

    de investigao se desenvolveram nesta tradio: a investigao das diferenas sexuais

    na sociolingustica, na comunicao discursiva e nas imagens dos media e a pesquisa

    dos efeitos dos media. Assim, em meados de 1970, muitos acadmicos linguistas,

    socilogos, antroplogos e psiclogos tinham j comeado a explorar as inmeras

    formas de ligao entre a linguagem e a representao dos sexos.

    Obedecendo a uma viso funcionalista dos media (como cumprindo funes) e da

    sociedade (onde os indivduos so vistos como desempenhando papis funcionais de

    integrao na sociedade), a par da investigao das imagens, os media foram ento

    questionados no seu papel de agentes de socializao do gnero. Podendo ser definidos

    7 Inspirando-se no ttulo de um conjunto de ensaios de 1972 reunidos sob o ttulo Images of Women in Fiction: Feminist Perspective, Toril Moi (1985) chama precisamente crtica das imagens de mulheres primeira fase da crtica feminista literria anglo-americana, que se ocupou da representao das mulheres nas obras literrias de escritores famosos. Nesses trabalhos, dominados por um impulso empiricista, argumenta Moi, os modos ficcionais de representao so julgados em funo de uma concepo essencialista do que as mulheres na realidade so.

  • 14

    como a constelao de traos psicolgicos geralmente atribudos a homens e mulheres,

    respetivamente (Brown apud Seiter, 1986: 18), os esteretipos, no interior da

    psicologia social, mantiveram-se uma questo importante, podendo ser estudados

    atravs de mtodos como a aplicao da Lista de Adjetivos8.

    O problema desta formulao dos esteretipos nos media no s a viso

    funcionalista destes ltimos que pressupe, mas o facto de se realarem sobretudo

    aspetos psicologistas, relegando para segundo plano questes de enraizamento na

    estrutura social. O prprio termo papis sexuais que lhe est associado foi rejeitado

    por algumas feministas, que viram nele uma forma de obscurecer as questes de poder e

    desigualdade, e um centramento nos indivduos, em detrimento da estrutura social e das

    questes histricas, econmicas e polticas da relao entre os sexos.

    Foi, pois, no cruzamento de todas estas influncias, mas sob forte Aco poltica

    dos grupos ativistas das dcadas de 60 e 70, que ganhou especial relevo a ideia de

    esteretipo (como retrato negativo) no s das mulheres, mas tambm dos negros,

    latinos, americanos, gays, lsbicas. A eles estava tambm associada a ideia de

    subordinao legitimada pelos media, pelo que a sua denncia era um objetivo poltico

    importante. As anlises tendiam a concentrar-se nas imagens negativas dos grupos

    sociais e na necessidade de as substituir por imagens mais construtivas ou positivas,

    que seriam tambm as verdadeiras. Estas primeiras intervenes nas polticas da

    representao tinham, assim, subjacente, a ideia de uma identidade essencialista

    tipicamente distorcida pelos media. Desta forma, como referem Meenakshi Gigi

    Durham e Douglas Kellner, as narrativas da cultura foram ento escrutinadas para ver

    como certas foras (normalmente socialmente dominantes) eram representadas de forma

    mais afirmativa que os grupos subordinados (Durham e Kellner, 2006: xxxii). A

    estratgia era, por um lado, denunciar as distores e, por outro, criar novas leituras para

    marcas identitrias at ento denegridas. O dictum Black is beautiful, por exemplo,

    continha a ideia de que o conceito de negro podia ter outros significados, se lido de

    outra forma positiva.

    O esteretipo tornou-se, desta forma, um dos novos temas do feminismo (Van

    Zoonen, 1994). No entanto, ainda que as anlises dos esteretipos e distores

    colocassem questes legtimas sobre a plausibilidade identitria, assentavam muitas

    8 Mtodo que consiste em apresentar a uma amostra de sujeitos um conjunto de adjectivos

    equivalentes a traos de personalidade de grupos tnicos, pedindo-lhe que faam equivaler esses adjectivos a certos grupos (ver, por exemplo, Cabecinhas, 2004)

  • 15

    vezes numa compreenso limitada das identidades, como se elas existissem de forma

    autnoma e verdadeira, podendo depois ser representadas com exatido para fazer

    justia aos grupos representados. Utilizando quase sempre o estrito mtodo da anlise

    de contedo, estas anlises focalizavam apenas o texto e sugeriam que este deveria

    representar os sujeitos nele retratados de uma forma mais exata e de acordo com a

    realidade.

    nesse sentido que Kevin Williams (2003: 131) identificou trs direes da

    pesquisa em torno da relao entre os esteretipos e os media: o processo de criao dos

    esteretipos como distoro da presena real de um grupo na sociedade, distoro

    essa que pode ser por sub-representao, sobrerepresentao ou falsa representao; a

    deslegitimao de um grupo, com referncia a um ideal normativo de comportamento

    maioritrio; e o processo de produo de uma representao fixa e estreita de um grupo

    na sociedade, como o caso dos esteretipos de gnero. Esse quadro limitado de

    representao de gnero, por exemplo, remetia as mulheres para um espao domstico e

    da esfera privada, contrapondo-as aos homens que so representados num leque muito

    mais vasto de papis e no espao pblico.

    Como j se referiu, preciso entender estes trabalhos, dos finais dos anos 60,

    sobre os esteretipos de gnero, como sendo produzidos na continuidade do emergente

    feminismo de segunda vaga. nesse contexto que aparece A Mstica Feminina de

    Betty Friedan, onde se faz uma anlise de contedo das revistas femininas que inspirar

    todo um trabalho de denncia, baseado na ideia de que as imagens das mulheres nos

    media tm algum tipo de impacto prejudicial, quer sobre a conscincia individual, quer

    sobre a vida social coletiva (Tuchman, 1979: 530).

    Foi, portanto, neste esprito que, por exemplo, a organizao feminista americana

    National Organization for Women (NOW), fundada precisamente tambm por Betty

    Friedan, analisou o contedo de 1.241 anncios de televiso ao longo de um ano e meio.

    Televiso, revistas femininas e, em menor quantidade, os jornais foram perscrutados

    pelas suas imagens das mulheres e pelos papis sexuais a representados, apontando

    todos os resultados para concluses semelhantes. Como resume Linda Busby uma

    concluso definitiva se pode tirar destas anlises de contedo: os papis sexuais nos

    media so tradicionais e no refletem ainda o impacte do recente movimento das

    mulheres (1975: 122).

    A marcar de forma decisiva as anlises feministas dos media, est tambm o

    trabalho de Gaye Tuchman (1978) que no s se preocupou com a questo mais

  • 16

    imediata do esteretipo, como ligou esta noo de aniquilamento simblico das

    mulheres, referindo-se forma como a produo cultural e as representaes dos

    media ignoram, excluem, marginalizam ou trivializam as mulheres e os seus interesses.

    As representaes culturais das mulheres nos meios de comunicao so vistas como

    funcionando de forma a manter a prevalecente diviso sexual do trabalho, e uma

    conceptualizao ortodoxa dos papis de gnero. Baseada na ideia de Gerbner de que a

    ausncia significa aniquilamento simblico, a autora procurou ainda aprofundar esta

    ideia atravs da hiptese do reflexo, que sugere que os meios de comunicao de

    massas refletem os valores sociais dominantes numa sociedade, constituindo-se

    simultaneamente como agentes empresariais de socializao: projetando valores que

    os programadores assumem como fazendo apelo mais vasta maioria da audincia (com

    vista obteno de resultados em termos de publicidade), constroem determinados

    valores que so tidos como adquiridos. Dado que os anunciantes veem as mulheres

    como um determinado mercado e assim perpetuam um processo estereotipado e

    cclico, quando eles condenam, trivializam ou omitem as mulheres, mais no fazem do

    que proceder ao seu aniquilamento simblico. Confirma-se, dessa forma, que os

    papis de me, esposa, noiva, dona de casa, so o destino das mulheres numa sociedade

    patriarcal. Na televiso e nas revistas, as mulheres eram tratadas basicamente como

    vtimas, objetos sexuais, dependentes dos homens, submissas, e/ou domsticas.

    Gaye Tuchman, no entanto, nunca se limitou a argumentar que estas imagens eram

    falsas, ou uma distoro da realidade. O seu argumento era mais profundo e procurava

    compreender por que processos tais imagens se formavam, numa lgica meditica, e o

    que traduziam. Na verdade, ela prpria bastante ctica das perspetival que limitam a

    ver o problema da representao como sendo um de distoro9:

    Com demasiada frequncia, o termo usado para caracterizar estes resultados distoro. Sendo poltico e pejorativo, o termo parece derivar da teoria literria do realismo. A ideia de que a literatura reflete a sua sociedade transformada na afirmao de que os media devem refletir a sociedade e na acusao de que os media contemporneos no refletem devidamente a posio das mulheres (). Mas a prpria sub-representao das mulheres, incluindo o seu retrato estereotipado, pode simbolicamente traduzir a posio

    9 Numa poderosa crtica dos estudos que se limitaram empiria e que simplesmente procuravam

    respostas prticas para questes aparentemente prticas (Tuchman 1979: 528-529) a autora aponta a ingenuidade de muitos destes estudos tomados por um funcionalismo que no oferecia contributos analticos ou algum tipo de crtica substancial. Se queremos realmente compreender como as imagens de mulheres operam, precisamos de compreender, a partir de uma base teoricamente mais sustentada, o que o trabalho das imagens, o seu funcionamento dentro dos textos mediticos, a sua relao com formas de ver o mundo e de nos vermos a ns prprios, com o poder e a estrutura semelhante de uma linguagem dos enquadramentos inerentes aos media (Tuchman, 1979: 541).

  • 17

    das mulheres na sociedade americana a sua falta de poder real (Tuchman, 1979: 532-533).

    Era, ento, necessrio perceber porque que os media so sexistas. Pelo menos

    uma parte da resposta encontra-se na organizao socioeconmica dos media, bem

    como no facto de estes se organizarem como uma comunidade de discurso, regida por

    procedimentos profissionais e organizacionais, onde os enquadramentos, projetando

    mitos que encontram eco nas audincias, tm um papel fundamental. S recolhendo

    mais informao sobre o sexismo nos media se poderia intervir mudando as imagens

    das mulheres.

    Naturalmente que, j nos anos 70, os media haviam compreendido que as

    mulheres eram potenciais alvos de informao e constituam um no-desprezvel

    nicho de mercado. Em Portugal, o suplemento semanal Modas & Bordados do jornal

    O Sculo era um exemplo dessa tendncia de crescimento das pginas femininas na

    imprensa de grande circulao, que contava ainda com outras publicaes como a

    revista Eva ou a Crnica Feminina. Se essas revistas constituem, s por si, interessante

    matria de anlise (Vilas-Boas e Alvim, 2005; Bebiano e Silva, 2004), tambm

    fundamental compreender a relao delas com o jornalismo de grande divulgao.

    Discutindo o processo seletivo dos temas femininos nos jornais, Harvey L.

    Motoch conclua que essa seleo culminava num sentido masculino do mundo:

    Os jornais no cobrem os acontecimentos da vida quotidiana com que as mulheres tradicionalmente tiveram de lidar. Das pginas de notcias omitido o mundo da experincia imediata, os processos da vida e da morte que envolvem fraldas e sofrimento, vmitos e sujidade, intimidades srias e horrores pessoais. As descries e consideraes sobre esses tpicos, a serem colocadas, so-no noutro lado nas pginas femininas, se que so colocadas () Mas a definio desses temas como triviais o que predomina nos media e, portanto, as notcias que lhes so referentes so relegadas, de forma separada e desigual, para as pginas das mulheres (Molotch, 1978: 181, itlicos no original).

    A anlise dos esteretipos, no entanto, tendeu a centrar-se em produtos mediticos

    como a publicidade, tida como lugar privilegiado de sexismo nos media. Sendo difcil

    dar conta resumidamente do grande nmero de trabalhos nesta rea, pode dizer-se que

    desde o seu incio,

    a anlise da publicidade sugere que o gnero habitualmente retratado de acordo com esteretipos culturais tradicionais: as mulheres so representadas como muito femininas, como objetos sexuais, como donas de casa, mes, fadas do lar; e os homens em situaes de autoridade e domnio sobre as mulheres (Dyer, 1982: 97-98).

  • 18

    Ao longo dos anos, as anlises apontam para as mesmas concluses, ainda que

    dando conta da forma como, por vezes, os anncios criam uma aparncia de

    feminilidade emancipada para responder presso social, no sendo isso, no entanto,

    mais do que tentativas para atingir um alvo em movimento (Ford e LaTour, 1996:

    82). Entre ns, um estudo dos anos 90 indicava que os anncios da televiso

    portuguesa seguem os padres gerais das televises ocidentais e apresentam uma

    representao altamente estereotipada de homens e mulheres, apesar das presses

    governamentais e profissionais no sentido de uma sociedade mais igualitria (Neto e

    Pinto, 1998). Tambm Silvana Mota-Ribeiro reafirma a aparncia das mudanas: as

    representaes do gnero feminino na publicidade continuam imersas em ideologias e

    modos tradicionais de feminilidade, havendo uma continuidade ao nvel do discurso

    visual acerca das mulheres (2005: 188).

    A forma de estudar essas continuidades entre representao e ideologias, no

    entanto, j no se pode limitar questo das imagens de mulher e dos

    correspondentes esteretipos. Mesmo que, por vezes, as anlises dos anos 70 fossem

    relativamente complexas e extensivas no alcance das suas implicaes tericas, estavam

    limitadas na sua capacidade de compreenso por trs fatores: a utilizao exclusiva das

    anlises de contedo como sua metodologia de trabalho, o modelo de comunicao

    pressuposto e a relao com a realidade igualmente pressuposta (Hollows, 2000). Com

    efeito, concentravam-se mais em o que os media mostravam em vez de como

    produziam significado (MacDonald, 1995: 5; Hollows, 2000: 23). Certamente que

    isolar certas caractersticas do texto para de seguida as tratar quantitativamente (sob a

    forma de frequncias de imagens, de palavras ou de papis) permite lidar com corpus

    alargados, compar-los e estud-los no tempo. No entanto, a identificao dessas

    categorias implica no s tratar as mulheres como categorias homogneas como extra-

    las do seu contexto, tomando-as como categorias autoevidentes e transparentes e,

    portanto, sujeitas a uma nica interpretao possvel (a derivada dos nmeros). Nesta

    viso, est ainda patente uma certa ideia de efeitos mediticos diretos (que, na melhor

    das hipteses, no sero comportamentais, mas cognitivos) e independentes de qualquer

    capacidade interlocutiva e de significao. Por outro lado, desta crtica aos esteretipos

    ainda fica pressuposto que existe uma realidade, independente de todos os processos

    comunicativos, que pode ser relatada, devendo os media ser um simples reflexo dessa

    realidade.

  • 19

    Trabalhos como os de Gaye Tuchman ou de Harvey Molotch mostram j um

    quadro de pensamento mais complexo do que a simples linearidade dos efeitos,

    pressupondo a ideia de construo social da realidade. Hoje, a realidade do jornalismo

    questionada de formas mais sofisticadas, procurando, por exemplo, perceber o papel das

    rotinas produtivas na produo de esteretipos (Gallego, 2004), ou a forma como as

    imagens inseridas na produo informativa traduzem desigualdades estruturais e

    profissionais (Pinto-Coelho e Mota-Ribeiro, 2006). No trabalho de final dos anos 70, no

    entanto, ainda incipiente a tentativa de compreender como o sentido organizado

    dentro dos textos mediticos, traduzindo tambm um tratamento das mulheres como

    uma categoria homognea: as mulheres unidas sob a mesma opresso masculina,

    comum a todas elas e a todas as reas da sua vida.

    Nem todo o trabalho feminista, no entanto, perseguia esta linha de investigao.

    Autores como Lacan e Foucault deixaram a sua marca profunda na literatura feminista

    desta poca. Mais em geral, duas ideias comearam a ser trabalhadas no domnio do

    pensamento feminista e na investigao da cultura ainda nos anos 70: a crescente

    conscincia de que h diferenas que atravessam o sujeito feminino e a ideia que as

    representaes no eram expressivas de qualquer realidade anterior, mas eram

    ativamente constitutivas da prpria realidade (McRobbie, 1997: 172). o cruzamento

    destas duas ideias que marca o estudo das representaes como uma questo que no se

    pode resumir aos esteretipos. Isso mesmo podemos observar de forma muito clara

    numa linha dos Estudos Culturais Britnicos, desenvolvida a partir do final dos anos de

    1970.

    Das Representaes no Circuito da Cultura

    No final da dcada de 70 parecia claro que a importncia de estudar as imagens do

    feminino no residia tanto na questo do esteretipo como modelo simplificado e falso

    das mulheres, mas no facto de estas imagens terem inscrita uma dimenso cultural

    destinada a fazer crer que elas representam o que as mulheres so ou deveriam ser. A

    forma do significado desse so ou deveriam ser deixava de ser matria de interveno

    apenas dos movimentos feministas, para se constituir, progressivamente, como campo

    de anlise dos emergentes Estudos sobre as Mulheres. Importava agora no s combater

    o sexismo e a invisibilidade, mas compreend-los.

    Como vimos, ainda que a investigao tivesse interesse pela natureza ideolgica

    dos media, raramente o procurou enquadrar num campo mais amplo que partisse

  • 20

    simultaneamente da cultura e dos estudos sobre mulheres. Essa dificuldade ficou

    historicamente bem documentada no trabalho inicial dos estudos culturais feministas

    britnicos, em particular do Center for Contemporary Cultural Studies de Birmingham

    (CCCS), onde se procurou articular muito particularmente a cultura popular e as

    questes da representao cultural10.

    Influncias vindas do estruturalismo, da psicanlise e dos escritos de Gramsci

    sobre o trabalho deste Centro na dcada de 1970 coincidindo com a entrada de Stuart

    Hall , originaram novas abordagens questo da ideologia. A ateno ao marxismo

    althusseriano para compreender a relao entre a base econmica do capitalismo e

    superstrutura cultural-ideolgica, a partir de elaboraes resultantes da articulao

    interna da prpria superstrutura, combinada com o que Gramsci chamou de

    hegemonia, permitiu analisar a cultura sob novos prismas. O objeto de estudo era,

    agora, a ideologia construda pela cultura popular e vivida pelos sujeitos. Recorde-se

    que, para Gramsci,

    o exerccio normal da hegemonia caracterizado por uma combinao de fora e consentimento que se equilibram, por forma a que a fora no exceda o consentimento, mas aparea entre parntesis pelo consentimento da maioria, expresso pelos chamados rgos de opinio pblica (Gramsci, 1975: 155-156)11.

    Hegemonia no significa dominao impositiva, mas sobretudo aprovao e

    consentimento, constituindo-se como um processo ativo, contnuo, temporrio e sempre

    aberto a contestao.

    10 Dada a sua heterogeneidade, os estudos culturais, tal como os estudos feministas, so de difcil

    definio, mas parece-nos til a forma como Douglas Kellner os caracteriza: os estudos culturais insistem que a cultura tem de ser estudada dentro das relaes e sistemas sociais atravs dos quais produzida e consumida, o seu estudo est, pois, intimamente ligado ao estudo da sociedade, da poltica e da economia (...) os estudos culturais tambm subvertem as distines entre cultura de elite e cultura popular considerando um vasto continuum de artefactos culturais (..). Abrem-se a valorizaes mais diferenciadas da cultura, polticas, mais do que estticas (em que se procura distinguir momentos crticos e oposicionais dos momentos de conformismo e conservadores no que respeita relao com os artefactos culturais (Kellner, 1995: 6-7).

    11 O pensamento de Antonio Gramsci tem algum paralelo com o dos autores da Teoria Critica desenvolvida na Alemanha nos anos 30, ainda que provavelmente nunca se tenham encontrado ou lido reciprocamente. Nos escritos anteriores sua priso, e durante esta, as referncias de Gramsci cultura popular e linguagem revelam a sua conscincia da importncia dos textos culturais. A sua aguda preocupao com os intelectuais e com o poder revela tambm que, tal como a Escola de Frankfurt, ele reconhecia a importncia da indstria da cultura burguesa como um problema central do capitalismo moderno. Tal como Adorno, Gramsci tinha conscincia dos aspectos da cultura de massas caractersticos do fascismo. E tambm o popular gramsciniano, onde a cultura compreendida como um lugar de disputa hegemnica, tem paralelo com a indstria da cultura de Adorno (Cfr. Ives, 2004).

  • 21

    Dois contributos para a anlise da cultura e dos seus sujeitos comunicativos

    podem ser deduzidos da influncia gramsciniana. Por um lado, a sociedade deixa de ser

    concebida como uma totalidade unificada para passar a ser uma

    formao social que necessariamente constituda por totalidades complexamente estruturadas, com nveis diferentes de articulao entre si (o econmico, o poltico, as instncias ideolgicas), em combinaes diferentes, [onde] cada combinao d lugar a uma configurao diferente de foras sociais e, consequentemente, a um tipo diferente de desenvolvimento social (Hall, 1996a: 421).

    Por outro lado, tornam-se especialmente relevantes as especificidades histricas

    que moldam as vrias formas de representao, no de um modo estanque e

    perfeitamente estruturado, como em Althusser, mas de uma forma mvel e aberta a

    contestao12. Tambm o conceito gramsciniano de articulao, desenvolvido por

    Laclau, permitia explicar como que as formaes culturais so relativamente

    autnomas e como as elites usam a cultura para manter a sua hegemonia. A ideologia

    surge, a esta luz, no como uma falsa representao da realidade, mas como uma

    ligao entre as experincias da realidade e a sua interpretao. A hegemonia consegue-

    se no pela imposio de uma nica viso do mundo, mas atravs de uma certa relao

    entre as condies socio-econmicas e a filosofia da classe dominante. Para esta exercer

    o seu poder, no entanto, a ideologia e a experincia tm constantemente de se

    rearticular.

    Numa sociedade compreendida como totalidade complexa, a ideologia apenas

    pode ser entendida em relao aos diferentes nveis de articulao social (por exemplo,

    os nveis econmico, poltico, cultural). O ponto de partida dos estudos culturais no

    pode, pois, ser o dos valores, expectativas e comportamentos de um qualquer sujeito

    social em particular, mas o dos dispositivos a partir dos quais os bens simblicos so

    produzidos e oferecidos ao pblico, sob a forma de mercadoria.

    Esta compreenso da estrutura ideolgica da cultura, em conjuno com outras

    fontes tericas igualmente importantes, como a psicanlise, viria a ser uma poderosa

    ferramenta para a anlise das representaes do gnero nos media. Abandonavam-se,

    12 Neste sentido, a partir de Althusser, Hall procura construir uma teoria da ideologia que supera

    aquilo a que ele chama um funcionalismo marxista: Contrariamente nfase no argumento de Althusser, a ideologia no tem portanto a funo de reproduzir as relaes sociais da produo. A ideologia tambm estabelece os limites forma como uma sociedade-no-poder pode facilmente e funcionalmente reproduzir-se. A noo de que as ideologias esto j sempre inscritas no nos permite pensar adequadamente as mudanas de acentuao na linguagem e ideologia (Hall, 1985: 113). O conceito de hegemonia de Gramsci permite, pelo contrrio, teorizar os pontos fracos e as contradies da ideologia dominante. As ideologias so sempre historicamente contingentes e abertas a contestao.

  • 22

    assim, as anlises de imagens singulares que durante muito tempo suportaram os

    estudos dos esteretipos e o foco passou a incidir no estudo dos padres e temas mais

    vastos das representaes, compreendidas estas como lugares de luta e consentimento,

    isto , como formas ideolgicas complexas, trabalhando a diferentes nveis.

    O trabalho feminista desenvolvido no CCCS no foi, no entanto, moldado apenas

    pelos debates mais vastos sobre a forma de analisar e teorizar a cultura, mas tambm

    pelas tentativas de intervir de forma definitiva no Centro. A obra coletiva Women Take

    Issue (1978), de um grupo de investigadoras do CCCS onde se incluem, entre outras,

    Charlotte Brundson, Angela McRobbie, Rosalind Coward, Janice Winship e Dorothy

    Hobson , um dos primeiros livros a pensar explicitamente a interceo entre os

    estudos culturais e o feminismo. No texto introdutrio ao conjunto de trabalhos que a

    se apresenta, o Grupo Editorial revela bem os dilemas sentidos por quem iniciava este

    novo campo de estudo:

    Como que os Estudos de Mulheres ou a investigao feminista transforma o conhecimento e a pesquisa existente? Onde devemos comear a tentativa de analisar uma formao social como sendo estruturada tanto por antagonismos de classe como de sexo/gnero? Como podemos fazer o nosso trabalho sem ser sugadas para o campo intelectual j constitudo, isto , sem conseguir a legitimidade custa do nosso feminismo, sem perder de vista as questes polticas que do forma ao nosso trabalho? Para intervir de forma decisiva como feministas (), podamo-nos concentrar no que vamos como as reas centrais da pesquisa dentro do Grupo de Estudos de Mulheres, arriscando assim que as nossas preocupaes se mantivessem especficas ao gnero como uma preocupao prpria: a questo da mulher defendida pelas mulheres e relegada para elas (Grupo Editorial do WTI, 1978:10).

    A importncia destes dilemas no apenas histrica: reflete bem o processo de

    constituio de um ncleo de influncias feministas no contexto de outros quadros de

    leitura da cultura e da realidade vivida13. Na verdade, no estava apenas em causa,

    segundo o quadro dos estudos culturais, ir alm das questes do determinismo

    econmico e do foco no modo de produo como mbito da contradio-chave da

    sociedade, mas tambm, de acordo com o quadro feminista, documentar a opresso das

    13 Recorde-se que num influente texto, Stuart Hall (1980), referindo-se forma como os estudos

    culturais emergiram como uma resposta situao da Gr Bretanha nos anos 50 e agenda da Nova Esquerda, identificou apenas como paradigmas influentes destes mesmos estudos, o culturalismo e o estruturalismo, omitindo o feminismo. Isso, na opinio de Anne Balsamo (1991), deve-se ao facto de o feminismo, dento do Centro, nunca se ter constitudo com unidade. Women Take Issue exemplifica bem a forma como o feminismo se apresentou como um forte desafio s polticas institucionais e intelectuais do CCCS, dominado pela perspectiva masculina. Contestada pelas feministas (Brunsdon, 1996), a metfora escolhida por Stuart Hall (deliberada como ele prprio diz) para descrever o processo de entrada do feminismo no Centro de Estudos de Birmingham bem ilustrativa: como um ladro na noite [o feminismo] irrompeu; interrompeu, fez um barulho perturbador, agarrou o tempo, borrifou-se na mesa dos estudos culturais (Hall, 1996b: 269).

  • 23

    mulheres, desenvolvendo teorias explicativas de como e porqu as mulheres so

    oprimidas14. Numa das primeiras anlises das revistas femininas, por exemplo, Janice

    Winship propunha-se focar a revista como discurso(s) em que a ideologia, ao

    posicionar a leitora dentro de si, se constri atravs dos diferentes modos de

    representao que constituem a revista, nas suas diferentes partes (Winship, 1978:

    139).

    Mas outras influncias forneceriam no s novos meios de anlise, como novas

    perspetival sobre a identidade feminina. Foucault, dentro da teoria ps-estruturalista,

    veio desafiar a compreenso tradicional da relao entre conhecimento, poder e poltica,

    oferecendo uma noo de discurso como poder-saber que colocava o sujeito como

    produto do discurso do conhecimento (produto de determinadas categorias sociais

    produzidas por esse mesmo discurso). Deixava, assim, de ser possvel pressupor algum

    contedo intrnseco e essencial das identidades, definido por estruturas de experincia

    comum (como o gnero). Pelo contrrio, a identidade depende da sua diferena ou

    negao de um outro termo: a identidade uma representao estruturada que s

    alcana o seu positivo atravs do estreito buraco da agulha do outro, antes de se poder

    constituir (Hall, 1990: 21). A nfase passa, assim, para a multiplicidade e a diferena.

    Por outro lado, as questes de representao passam a no se limitar a questes de

    adequao ou distoro, da verdade ou falsidade: o centro da disputa a prpria

    representao, produzida pelas prticas culturais ou lingusticas da representao. Isto

    no significa que os esteretipos no tenham j lugar. Eles fazem parte da manuteno

    da ordem social e simblica, estabelecendo uma fronteira entre o normal e o

    desviante, o normal e o patolgico, o que pertence e o que no pertence, o

    ns e o eles. Estereotipar reduz, essencializa, naturaliza e conserta as diferenas,

    excluindo ou expelindo tudo aquilo que no se enquadra, tudo aquilo que diferente

    (Hall, 1997a). A sua compreenso, no entanto, vai muito mais alm de identificar uma

    distoro compreendida como uma unidade identitria reificada.

    14 De forma interessante, essa mesma opresso podia ser sentida, desde logo, no trabalho do

    prprio CCCS que no se constitua como um ambiente propcio para os estudos culturais femininos: Ns [o Grupo de Estudos de Mulheres] verificmos ser extremamente difcil participar nos grupos do CCCS e sentimos, sem ser capaz de o articular, que era um caso de dominao masculina do trabalho intelectual e do ambiente em que estava a ser desenvolvido (Editorial Group of WTI, 1978: 15). Angela McRobbie desenvolvendo um trabalho sobre as sub-culturas femininas, em paralelo ao de Paul Willies e Dick Hebdige sobre as sub-culturas masculinas, faz notar que o seu estudo sobre um clube de Birmingham para operrias foi despoletado pelo reconhecimento de que num espectro de disciplinas que lidam com a juventude (...) havia toda uma dimenso ausente, nomeadamente a das raparigas (McRobbie, 1978: 96).

  • 24

    Outras influncia importante para a anlise das representaes de gnero foi

    exercida pela psicanlise de Jaques Lacan, a partir da qual se forjou o conceito de

    diferena sexual, especialmente relevante para revistas como m/f e Screen. Realou-

    se, ento, a importncia do inconsciente na formao da identidade e a dificuldade de

    manter identidades unificadas e estveis, surgindo com alternativa a ideia de identidades

    complexas e heterogneas. Como recordam Franklin et al levar a noo de

    inconsciente a srio significava que o anterior sujeito unificado da anlise cultural era

    colocado em questo (1991: 176). Fantasia e desejo eram parte do mesmo vocabulrio,

    tornando-se fortemente influentes na sua conjuno com o ps-modernismo e na

    desconstruo das distines histricas binrias.

    Todas estas influncias permitem pensar a identidade em termos no-essencialistas

    no que diz respeito relao entre a posio do sujeito na estrutura social e aquilo em

    que esse sujeito acredita, ou a forma como age. Em relao ao gnero, tal significa

    rejeitar a ideia de uma ligao automtica entre o gnero do sujeito e a atitude para com

    o feminismo (Gill, 2007: 55). Dessa forma,

    asseres simplistas, como os homens serem violadores ou patriarcas, devem ser rejeitadas, o mesmo acontecendo com outras afirmaes igualmente descabidas sobre a natural afinidade de uma mulher com o feminismo (afirmaes que no podem explicar porque que um grande nmero de mulheres no se considera feminista) (Idem).

    Na mesma linha, entende-se que o significado cultural no esttico ou dado,

    como se estivesse simplesmente enraizado nas estruturas econmicas ou nos textos. ,

    antes, um processo onde o prprio ato da receo produz significado. Da que, nesta

    leitura, seja importante compreender como as pessoas usam os textos, abrindo assim

    uma nova perspetival sobre a necessidade de estudar as audincias.

    As teorias da receo desenvolvidas desde os anos 80 tomariam, no entanto, uma

    direo completamente diferente da imaginada por Adorno que, como vimos, procurou

    estabelecer uma alternativa aos estudos de comunicao que ento se faziam. Nos

    estudos feministas, a anlise das audincias passou a procurar as formas pelas quais os

    textos mediticos podiam no s revelar como os pressupostos ideolgicos de gnero

    marcavam as suas narrativas, mas tambm o modo genderizado como se dirigiam s

    suas audincias. Para isso, tornava-se clara a necessidade de analisar no s o contedo

    estrito dos media, mas todo o sistema mais vasto da sua (re)produo e consumo.

    Central questo da representao num contexto de ideolgico de produo de

    identidades culturais, , na verdade, a metfora do circuito da cultura (du Gay et. al.,

  • 25

    1997) que, constituindo-se como uma tentativa de afastamento do determinismo e

    reducionismo implcito no modelo marxista base-superstrutura, procura articular a

    produo e o consumo cultural. O circuito constitui-se como um processo que rene

    um conjunto de objetos e prticas (que se encaixam na definio de Raymond Williams

    de cultura como um modo particular de vida que expressa certos significados e valores),

    atravs dos quais a cultura recolhe significado em cinco momentos diferentes

    representao, identidade, produo, consumo, e regulao. O momento da

    Representao refere-se produo de significado pela linguagem liga significado e

    linguagem cultura (Hall, 1997c: 15). Reala-se aqui o funcionamento simblico da

    cultura. , afinal, o que est em causa nas anlises feministas dos media. O momento da

    Identidade refere-se forma como um produto cultural texto, objeto, prtica age

    como um marcador que identifica um grupo particular, quer dizer, como os significados

    criam uma identidade, nomeadamente feminina, que pode no ser una ou sujeita a um

    referente de identidade nico. Na medida em que a identidade depende da diferena

    para a sua construo, todas as prticas significantes envolvem relaes de poder,

    incluindo o poder de definir quem se inclui e quem excludo no referente da

    identidade. Os produtos culturais so codificados com significados no seu processo de

    produo so produzidos com base em formas que os fazem adquirir sentido. Estes

    processos de codificao constituem o momento da Produo no circuito. O significado

    tambm produzido quando incorporamos produtos culturais na nossa vida quotidiana.

    O momento do Consumo relaciona-se com aquilo que o produto significa para aqueles

    que de facto o usam. Por fim, o circuito de cultura sugere a necessidade de examinar o

    impacto que um produto cultural tem na Regulao da vida cultural, quer dizer, como

    atua sobre a formao social, as suas instituies e os seus pressupostos. A Regulao

    refere-se, portanto, ao momento que inclui o controlo sobre a atividade cultural, no s

    formalmente, atravs das leis e normas institucionalizadas, mas tambm pelos controlos

    informais que formam a cultura. neste momento que se produzem significados sobre

    aquilo que aceitvel e correto.

    O Circuito da Cultura assenta nos seus pontos de articulao, onde os significados

    so contestados e renegociados. A articulao tem, ela prpria, um duplo significado, o

    de expressar e o de reunir. Nesse sentido, vai alm do determinismo das abordagens

    crticas clssicas, reconhecendo que o particular de uma situao sempre sujeito s

    contingncias da circunstncia. Cada um dos momentos do circuito est encadeado

    com os outros, num processo contnuo de codificao e disseminao cultural. A forma

  • 26

    como a cultura representada afeta o modo como identificada. Tambm afeta o modo

    como produzida, consumida, e regulada. O mesmo se aplica a qualquer outro

    momento do circuito. Nele, o significado cultural produzido e enraizado no conjunto

    dos nveis constituintes do circuito, de modo que cada um dos nveis seja articulado

    com o seguinte, sem no entanto determinar os significados que sero assumidos e

    produzidos nesse nvel. A cultura , assim, autnoma, mas articulada com outras

    prticas, formando um todo. A nfase do modelo reside no carcter irredutvel das

    prticas culturais e, ao mesmo tempo, numa relao de determinao mtua com outras

    prticas. O desafio est em compreender como cada momento dessa produo se

    inscreve na representao, sem presumir que possa ser lido simplesmente em funo

    de relaes econmicas. A grande fora deste modelo focar a ateno, no s nestes

    momentos onde o poder e a cultura se encontram, permitindo que o significado seja

    partilhado, mas tambm nas ligaes entre momentos, onde a cultura mediada15.

    Apesar da tnica sobre a contingncia na articulao e, portanto, do seu inerente

    relativismo cultural, o circuito no coloca a cultura como uma atividade humana sempre

    libertadora (ou sempre opressora). A sua principal vantagem est na forma como

    permite compreender a comunicao mediada: no como um conjunto de funes

    relativamente independentes, mas como um processo multifacetado. Mas isso, no nosso

    entender, no significa que os momentos do circuito no se possam articular de formas

    particularmente hegemnicas. Hall tem, alis, o cuidado de referir que mesmo uma

    articulao oposicional das formas culturais no se liga necessariamente s polticas

    radicais. O seu objetivo mostrar que no h massas passivas e silenciosas e que o

    poder de contestar os significados permite encontrar formaes culturais atravs das

    quais se podem gerar e circular novos significados. Tais significados, no entanto, no

    so sempre libertadores. Um texto meditico como o talk show televisivo de Oprah

    Winfrey, por exemplo, constri uma certa identidade feminista negra mainstream das

    suas audincias, atravs de um processo meditico teraputico e psicologista, que no

    s tende a naturalizar os problemas das mulheres a quem se dirige, como a codificar

    esses problemas como questes que podem ser resolvidas na superfcie lisa de um ecr

    televisivo, longe das suas razes mais profundas e complexas. a sua produo, numa

    lgica de conglomerados e globalizao meditica, que permite que a identidade das

    15 Mas, como recorda Chris Barker, o perigo do modelo est em se poder perder de vista o facto de

    os seus nveis serem apenas um dispositivo heurstico e no aspectos organizacionais de um todo da sociedade que no separvel (2004: 23).

  • 27

    audincias femininas americanas negras se articule com as linguagens mais vastas da

    representao das mulheres em geral como pblicos de talk-shows. Estes so

    consumidos pelas audincias globais dos grandes canais americanos, o que constitui

    uma forma de regulao do prprio feminismo que se v, dessa forma, introduzido no

    circuito do consumo meditico. Ainda que no seja, certamente, o nico fator, essa

    comodificao do feminismo ajuda, por exemplo, a construir uma certa imagem de

    que vivemos uma era ps-feminista, onde as questes das mulheres esto

    devidamente integradas em toda a cultura popular e meditica.

    Um dos processos-chave do circuito da cultura, como Hall descreve, constitudo

    pelas prticas da representao que se organizam como

    a produo do significado dos conceitos na nossa mente atravs da linguagem. a ligao entre os conceitos e a linguagem que nos permite referir ao mundo real dos objetos, pessoas e acontecimentos, ou mesmo aos mundos imaginrios de objetos, pessoas e acontecimentos (1997c: 17).

    A representao, por outro lado, est fortemente ligada s nossas identidades:

    o significado o que nos d a nossa identidade, de quem somos e a quem pertencemos por isso est ligado a questes como a de saber de que modo a cultura usada para marcar e manter a identidade e a diferena entre os grupos sociais (Hall, 1997b: 3).

    Assim, ainda que no se possam desprezar as imagens de identidade produzidas

    pela cultura mediada, uma anlise das representaes no se pode limitar

    quantificao de imagens estereotipadas. So necessrios no s quadros de

    pensamento mais vastos que remetam para os processos de criao de determinadas

    ideologias, como outras metodologias que, no descurando os contedos, no se

    limitem porm a contabiliz-los. As anlises feministas que recorrem semiologia, por

    exemplo, h muito que identificaram alguns dos perigos dessas anlises positivistas,

    lembrando que o desejo de um modelo de papel positivo parecia privilegiar um tipo de

    mulher sobre outro e envolvia uma rejeio dos papis femininos mais tradicionais,

    de uma forma que parecia ir ao encontro do desprezo masculino pelos mesmos

    (Geraghty, 2000: 369).

    Nos estudos culturais, outras direes de interesse para temas da identidade e da

    subjetividade abriram-se com a introduo de metodologias mais etnogrficas,

    especialmente concebidas para o estudo da cultura vivida nomeadamente pelas

    subculturas e pelas audincias. Neste mbito, poder-se- dizer que a ltima dcada de

    investigao em torno das representaes foi marcada por uma verdadeira viragem

  • 28

    para o prazer (Gill, 2007: 13). A esta luz muito celebratria do poder das audincias

    face s mensagens mediticas, telenovelas, subculturas e revistas femininas foram

    escrutinadas nas suas formas de apropriao. Mas ao realar como as audincias podiam

    construir leituras oposicionais, sendo ativas no seu trabalho de descodificao e no

    apenas vtimas passivas de manipulao, confundiu-se com frequncia resistncia e

    prazer, subjetividades individuais, com fantasias e desejos. Tania Modeski, uma das

    primeiras autoras a trabalhar essa perspetival, reconhece hoje, no entanto, a ausncia de

    crtica que muitos desses trabalhos revelavam:

    Parecia importante, num dado momento histrico, enfatizar a forma como o povo resiste manipulao da cultura de massas. Hoje corremos o risco de esquecer o facto crucial de que, tal como o resto do mundo, mesmo a analista cultural poder por vezes ser uma dependente cultural o que , afinal, uma forma mais feia de dizer que existimos dentro da ideologia, que todas somos vtimas, at ao mago dos nossos seres, de dominao poltica e cultural (Modelski, 1991: 45).

    Concluso

    Compreender a questo das identidades nos media pela tica da representao no

    implica necessariamente um afastamento das ideias em torno do esteretipo como

    desenvolvido por Lippmann. No quadro de experincia da modernidade, ele mapeou as

    nossas identidades nos media por cartografias de incluso e excluso, como formas de

    apreender uma realidade fugidia e como afirmao de tradio e poder. Nesse processo,

    deu conta dos dilemas dos media na representao e estabeleceu uma viso clssica do

    esteretipo que as anlises de contedo, maioritariamente forjadas por modelos lineares

    de comunicao, retomaram ao longo do sculo XX. Em alternativa, no entanto, a

    Escola de Frankfurt reconheceu as distores patriarcais e androcentristas da razo

    instrumental, e o facto de o genrico humano ser identificado com o masculino ter

    estabelecido uma ordem que cristalizou as diferenas, atribuindo-lhes valor de verdade

    imutvel uma ordem onde a diferena negada e substituda por analogias,

    comparaes hierarquizadas, oposies dicotmicas. A lgica meditica, neste contexto,

    impede o desenvolvimento de indivduos autnomos e independentes que julgam e

    decidem de forma consciente, acabando por adotar uma viso estereotipada dos grupos

    em que no se sentem includos.

    Muita da investigao feita, desde ento, em torno da representao das

    identidades nos media foi no sentido de proceder a uma correo das representaes

    mediticas, isto , devotada a mostrar que estas tm, de uma forma ou outra, qualquer

    coisa de errado, em termos histricos, biogrficos, sociais ou sob qualquer outra base de

  • 29

    exatido. No entanto, como refere Myra McDonald, caar esteretipos pode ser um

    passatempo interessante e em ltima anlise no compensador. Pode tambm ser

    perigoso, se no dermos conta do jogo entre esteretipos, cada vez mais presente nos

    media (McDonald, 1995: 14). Compreender esse jogo, no entanto, passa por colocar as

    mulheres no apenas como derivados, mas como ponto de partida das disciplinas

    sociais, literrias, histricas, polticas ou culturais. Dada a grande pluralidade destas

    disciplinas, a tentativa de compreender como as imagens e as construes culturais

    esto ligadas a padres de desigualdade, dominao e opresso tem-se tornado

    progressivamente mais vasta, mais diversa e mais heterognea. Mltiplas abordagens e

    perspetival, diferentes metodologias e compromissos epistemolgicos ligados

    compreenso do sujeito (sexual, de gnero, de raa e de classe), do poder, ou mesmo da

    forma como o sentido individual da identidade e da subjetividade constitui um elemento

    na produo do significado das representaes tornaram mais difcil a unidade de um

    campo em torno das questes da representao. A prpria sociologia da comunicao

    passou a dispor de novas metodologias, novas linguagens tericas e tambm de

    diferentes concees da natureza e modelos de comunicao meditica. E, naturalmente,

    o prprio campo dos media tambm foi mudando, adotando novas estratgias e lgicas

    comunicativas.

    Neste quadro, andar atrs de imagens estereotipadas pode no ser muito produtivo

    do ponto de vista da investigao. O problema das vises simplificadas e

    unidimensionais mantm-se no entanto, podendo no residir tanto nas imagens em si,

    mas nas suas concentraes, na sua frequncia e nas omisses que se tornam parte da

    nossa memria.

    Num caminho de teorizao que se fez ao longo do sculo, e medida que os

    media se tornaram uma fora cada vez mais global e ponderosa na extenso e

    penetrao das suas imagens, a influncia dos media fez-se sentir. Na tentativa da sua

    compreenso, a experincia do fascismo marcou profundamente as anlises polticas e

    culturais. O centro da pesquisa sobre a representao foi cada vez mais focado na

    questo de como os media representam, reapresentam e constituem as identidades

    sociais. A cultura meditica aparecia, assim, como uma das foras que atuam sobre a

    perceo que temos de ns e dos outros, estendendo-se pelas diversas heranas da

    ideologia marxista entre os anos 30 e 50, associando-se s lutas pela representao

    cultural dos anos 60, at viragem lingustica na teoria cultural a partir dos anos 80.

  • 30

    O historicismo da experincia deslocou o essencialismo identitrio. Como disse

    Hall, as identidades culturais vm de algum lado, tm histrias. Mas, como tudo o que

    histrico, passam por uma constante transformao. Longe de serem fixas em algum

    passado essencializado, so sujeitas ao jogo contnuo da histria, da cultura e do

    poder (Hall, 1990: 225). O nosso papel na histria depende de como fomos

    representados e da forma com isso afeta o poder de nos representarmos.

    A contribuio dos estudos feministas dos media sobre o papel de reforo dos

    esteretipos como representaes inadequadas que ignoram, marginalizam e distorcem

    muitos aspetos da vida social, da experincia e da identidade , desde o seu incio,

    importante, mesmo que limitada em determinados aspetos. Como refere Margaret

    Gallagher, a propsito da importncia da monitorizao dos media em questes de

    gnero, as anlises dos esteretipos

    so inestimveis para marcar os grandes parmetros do retrato dos gneros. Fornecem uma prova irrefutvel no desequilbrio das representaes dos media de mulheres e homens em termos de status e autoridade e mesmo em simples nmeros (). Estudos deste tipo continuaro sempre a ser necessrios, para dar conta das grandes tendncias e padres. Mas no so suficientes para mudar as representaes dos media (Gallagher, 2004: 157).

    Ainda que continue a ser fundamental contestar essas representaes mediticas,

    na verdade, no suficiente focar toda a ateno na falsidade, desajuste ou erro dessas

    representaes estabelecido por comparaes empricas com a realidade, como se

    esta existisse de forma prvia e objetiva. No existe um caminho linear e direto entre as

    imagens estereotipadas e uma qualquer realidade transparente e mensurvel (Pickering,

    1995). preciso compreender e traar os caminhos que levam a essa representao,

    tendo em conta foras ideolgicas, padres de aculturao, produo de formas

    discursivas dos media e apropriao das mesmas. Como refere Seiter, Nem todos os esteretipos nascem iguais. No podemos ver os esteretipos mediticos definidos em termos psicolgicos ou politicamente neutros, nem os podemos ver como um mero sintoma da nossa degradada vida cultural. Precisamos especialmente de ter em conta a relao entre os seus aspetos descritivos e avaliativos, analisando a sua histria e o seu contedo, bem como a sua frequncia. Por fim, precisamos de nos interrogar sobre como diferentes grupos compreendero os esteretipos, acreditaro neles, riro deles, abra-los-o ou desdenh-los-o (1986: 25).

    H j uns anos que Tessa Perkins (1979) chamou a nossa ateno para a forma

    como os esteretipos esto habitualmente presentes no senso comum uma das reas

    privilegiadas da ideologia e tambm para o facto de ser precisamente atravs da

    ideologia que eles funcionam. Mais do que serem meramente falsos, a sua fora

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    reside na combinao de validade e distoro: so vlidos na medida em que as

    pessoas se definem em termos de esteretipos, reforando-os estruturalmente, e so

    falsos no s porque apresentam interpretaes dos grupos que escondem a causa

    real dos atributos desses mesmos grupos, confirmando a sua posio oprimida, mas

    tambm porque exageram reas particularmente problemticas. Sendo descries

    seletivas, representam, na verdade, as caractersticas do significado ideolgico que

    fazem sentido numa sociedade que projeta como vlidos determinados valores

    hegemnicos. Por isso, os esteretipos com frequncia apresentam os atributos

    identitrios como se eles fossem naturais, mas isto no resulta tanto do processo de

    estereotipizao per se, como do facto de os esteretipos serem conceitos ideolgicos

    (Perkins, 1979).

    Dada a complexidade dos esteretipos e das representaes em geral, no numa

    suposta objetividade da realidade e no apelo a uma verdade emprica existente fora dos

    circuitos da comunicao meditica, nem em anlises celebratrias do poder das

    audincias, que reside a justia da representao nos media. na luta em torno dos

    significados que essa justia deve ser procurada e estabelecida. Compreender as

    representaes das mulheres nos media implica no s procurar conhecer o modo de

    funcionamento destes, mas estabelecer um profundo engajamento com a teoria

    feminista relativamente ao que , ou podem ser, as identidades femininas e as suas

    construes por prticas simblicas e discursivas. Mudar as representaes nos media

    implica agir sobre os diferentes momentos do circuito da cultura, sem curto-circuitar

    a dimenso poltica da representao, isto , sem perder de vista os elementos

    ideolgicos que afetam toda a construo identitria nomeadamente os cristalizados

    sob