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INSTITUTO SUPERIOR DE CINCIAS DO TRABALHO E DA EMPRESA Departamento de Sociologia

A RECONSTRUO DA IDENTIDADE NA INTERNET

Ana Filipa Gaspar

Tese submetida como requisito parcial para obteno do grau de

Mestre em Comunicao, Cultura e Tecnologias da Informao

Orientador: Professor Doutor Gustavo Alberto Guerreiro Seabra Leito Cardoso Professor Assistente, ISCTE

Outubro, 2008i

A RECONSTRUO DA IDENTIDADE NA INTERNET

Ana Filipa Gaspar

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Aos meus pais, ao Joo e Ftima pelo apoio nesta tarefa solitria

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A partir da formulao da pergunta Quais os efeitos da interaco social na Internet sobre a identidade individual?, esta investigao verifica em que medida a utilizao de servios como blogues, Instant Messaging Services (IM), Social Networking Sites (ou redes sociais), email, newsgroups (ou fruns de discusso), VoIP e Second Life alteram o modo como o cibernauta portugus se perspectiva em relao a si mesmo, como se relaciona com os outros (online e offline) e como interage num contexto profissional. Palavras-chave: interaco, Internet, identidade, blogue, email, redes de sociabilidade

To answer the question What are the effects of social interaction on the Internet over individual identity? this research analyses how the use of blogs, Instant Messaging Services (IM), Social Networking Sites, email, newsgroups, VoIP and Second Life changes the way the Portuguese Internet user sees himself, the way he connects with others (online and offline) and the way he interacts in a professional environment. Keywords: interaction, Internet, identity, blog, email, social networking

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ndice Introduo 1. Nova era comunicacional 1.1. Fenmeno da globalizao 1.2. Problemtica em torno da sociedade de informao 1.3. Da galxia de Gutenberg era electrnica: novo paradigma comunicacional 1.4. Dos mass media networked communication 1.5. Internet, uma rede global 1.6. Comunidades virtuais 2. Questes da identidade 2.1. Crise da identidade na sociedade contempornea 2.2. Relao entre a identidade e a Internet 3. Construo da identidade, a interaco social e o fenmeno da Internet 3.1. Construo da identidade a partir da ideia de representao teatral 3.2. Interagir atravs das janelas 3.3. Reconstruir a identidade mediante processos de interaco 3.4. Concluso 4. Identidade e interaco na Internet 4.1. Comunicar na Internet 5. Observar a reconstruo online da identidade 5.1. Hipteses 6. Diz-me como comunicas na Internet 6.1. Metodologia 6.2. Caracterizao dos entrevistados 6.3. Utilizao da Internet 6.4. Relao da Internet com outras actividades 6.5. Performances do eu na Internet 6.5.1. Blogo, logo existo 6.5.2. E quem fica margem dos blogues? 6.5.3. Espao pessoal numa rede social 6.6. Comunicar online 6.6.1. O domnio do Messenger 7 9 9 12 15 17 19 22 24 24 26 29 30 32 33 35 35 36 37 37 38 38 38 39 40 41 41 43 44 44 45v

6.6.2. A crescente presena do Hi5 6.6.3. Fruns como passatempo 6.6.4. A alternativa VoIP? 6.6.5. O ainda desconhecido Second Life 6.7. A Internet no trabalho Concluso Bibliografia Glossrio Anexos

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A Reconstruo da Identidade na Internet Um sistema de redes em rpida expanso, conhecido colectivamente por Internet, liga milhes de pessoas em novos espaos que esto a alterar o modo como pensamos, a natureza da nossa sexualidade, a organizao das nossas comunidades e at mesmo a nossa identidade. Sherry Turkle, A Vida no Ecr a Identidade na Era da Internet

Introduo Hoje, o computador e a ligao Internet fazem parte do quotidiano de cada vez mais pessoas em todo o mundo. Trabalho, lazer, comunicao interpessoal, estudo, informao, compras ou acesso a contas bancrias esto agora distncia de um clique e, por isso, possvel aglomerar janelas na barra de tarefas que representam actividades distintas, realizadas em simultneo. Assim, simples e fcil conversar com os amigos online e em tempo real, enquanto se escreve mais um post num blogue, se envia uma candidatura de emprego por email ou se consulta as ltimas operaes bancrias atravs de um servio de homebanking. Contudo, se trabalhamos e comunicamos atravs da Internet, pertinente perguntar como transpomos para esta nova tecnologia os vrios papis que representamos no dia-a-dia o eu profissional que agenda uma reunio de trabalho com os colegas via email, a faceta amiga e descontrada que tenta animar uma pessoa prxima atravs de uma conversa no Messenger, etc. De que modo est a Internet a alterar a nossa vida? Esta interrogao evoca, de certo modo, um processo de reconstruo da identidade. Amin Maalouf escreveu a propsito da noo de identidade que cada pessoa, sem excepo alguma, dotada de uma identidade compsita: bastaria colocar a si mesma algumas questes para revelar fracturas esquecidas, ramificaes insuspeitas, e para se descobrir complexa, nica, insubstituvel (2002:29). Face a essa realidade de que todos possumos uma identidade compsita , uma outra pergunta torna-se pertinente: que contributo pode ter a Internet na reconstruo da identidade individual? Isto porque a identidade no um elemento estanque e constri-se para alm das razes nacionais, culturais, religiosas, atravs de contributos que hoje so cada vez mais diversos e difusos. Na Internet, podemos identificarnos com ideias, hbitos, prticas que no precisam de fronteiras terrestres para serem delimitados como pertena de um grupo. Ao longo deste trajecto, importante considerar que a construo identitria na Internet pode assumir vrios rumos. Por exemplo, pode ter um carcter experimental ou ficcional, como acontece por vezes na utilizao da Internet por parte de adolescentes. Num estudo intitulado Adolescents identity experiments on the Internet, Patti M. Valkenburg realizou7

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um questionrio a 600 estudantes dos nove aos 18 anos e concluiu que 50% dos adolescentes que utilizam Instant Messaging Services (IM) ou chats na Internet participam em experincias identitrias. Contudo, essa no a dimenso mais comum da utilizao da Internet. Como Manuel Castells salienta, os usos da Internet esto (...) relacionados com o trabalho, a famlia e a vida quotidiana dos utilizadores (2001:118). A interaco social na Internet envolve prticas de experimentao identitria sobretudo entre os adolescentes e so principalmente os novos internautas quem procura interagir com outras pessoas no anonimato do ciberespao. Com a adaptao ao novo media, os utilizadores acabam por aproveitar as suas potencialidades para contactar amigos ou familiares, que por vezes esto a centenas de quilmetros de distncia e com quem nem sempre tm possibilidade de comunicar. De facto, uma das hipteses desta investigao precisamente verificar se a Internet se assume como um complemento das relaes existentes, sobretudo atravs da utilizao de servios como os Instant Messaging Services (IM), redes sociais online e email. Alm disso, importa perceber se a construo de um blogue tem algum impacto sobre a forma como o cibernauta se perspectiva em relao a si prprio, tal como sobre as suas relaes sociais (online e offline). A nvel profissional, a introduo do email, IM, blogues ou servios VoIP tambm levanta algumas questes, nomeadamente no que diz respeito alterao do ritmo de trabalho e de lazer (Nicholas Negroponte, 1996), separao entre a identidade profissional e pessoal, ou ainda s relaes com colegas e organizaes. A investigao apresentada de seguida observa e analisa diferentes modalidades de utilizao da Internet, com base em testemunhos de cibernautas portugueses, para tentar perceber tendncias na forma como os utilizadores adoptaram esta tecnologia e qual o respectivo impacto sobre a sua vida.

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1. Nova era comunicacional 1.1. Fenmeno da globalizao O termo globalizao tornou-se corrente no vocabulrio dos meios acadmico, econmico e meditico a partir da segunda metade dos anos 1980, adquirindo sentidos diversos (Robertson, 1990:19). Aps vrios esforos no sentido da sua conceptualizao, hoje possvel adoptar uma definio mais ou menos consensual do seu significado. Nas palavras de Alexandre Melo, trata-se de uma dinmica que envolve todas as sociedades humanas face do globo (2002:22). E um fenmeno recente1, porque diz respeito a um processo relacionado sobretudo com o sculo XX e marcado pelo desenvolvimento da estruturao do mundo como um todo (Robertson, 1990:20; Melo, 2002:24). A globalizao um processo complexo, que no independente de outros processos que ocorrem na sociedade na opinio de Anthony Giddens, uma das consequncias fundamentais da modernidade (1990:175). Roland Robertson prope um modelo minimalista da globalizao para explicar as principais tendncias que determinaram a ordem actual do mundo (1990:26-7). A primeira fase, denominada fase germinal, ocorreu na Europa entre o princpio do sculo XV e meados do sculo XVIII, sendo caracterizada por um crescimento incipiente das comunidades nacionais, pela crescente importncia das concepes sobre o indivduo e a humanidade, pela teoria heliocntrica, pelo desenvolvimento da Geografia moderna e pela divulgao do calendrio Gregoriano. A segunda, a fase incipiente, tambm se verificou na Europa, neste caso desde meados do sculo XVIII at dcada de 1870, e distinguiu-se pela formulao da ideia de um Estado unitrio e homogneo, pela cristalizao das concepes de Relaes Internacionais, do indivduo como cidado e de humanidade, pela preocupao crescente com a regulao e a comunicao internacional e transnacional, pelo incio do problema da admisso de sociedades no-europeias na sociedade internacional e pela tematizao das noes de nacionalismo e internacionalismo. A fase de descolagem teve lugar entre as dcadas de 1870 e 1920 e ficou marcada pelas crescentes concepes globais das linhas gerais da sociedade nacional, pela tematizao das identidades nacionais e pessoais, pela incluso de sociedades no-europeias na sociedade internacional, pela tentativa de implementar ideias sobre a humanidade, pelo grande desenvolvimento de formas globais de comunicao, pelo surgimento do movimento1

Apesar de se poder, at certo ponto, associ-lo histria da humanidade ver Melo, 2002:24. 9

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ecumnico, pela organizao de competies globais, pela implementao da hora mundial e adopo quase global do calendrio Gregoriano, pela I Guerra Mundial e pela Liga das Naes. A quarta fase foi identificada com a luta pela hegemonia e deu-se entre o princpio dos anos 1920 e meados da dcada de 1960, sendo associada a disputas e guerras internacionais, a uma conscincia crescente em torno da noo de humanidade (devido ao Holocausto e bomba atmica) e fundao das Naes Unidas. Por fim, a fase da incerteza comeou nos anos 1960 e manifesta as tendncias de crise vividas no incio da dcada de 1990, sendo descrita pela incluso do Terceiro Mundo, pela ida do homem Lua, pela acentuao dos valores ps-materialistas, pelo fim da Guerra Fria, pela disseminao do armamento nuclear, pelo crescente nmero de instituies e movimentos globais, pelos problemas de multiculturalidade e polietnicidade nas sociedades, pelos direitos civis, pela concepo da humanidade como a comunidade de uma espcie superior, pelo interesse na sociedade civil mundial e na cidadania mundial e pela consolidao do sistema global dos media. Por outro lado, o fenmeno da globalizao tem um carcter contraditrio. Como explica Melo, o adensamento das redes de interdependncia escala planetria produz fenmenos de integrao, aproximao e conciliao e, ao mesmo tempo, produz tambm fenmenos de hegemonia, dominao e ciso (2002:21). Segundo este autor, a globalizao possui trs dimenses: econmica, poltica e cultural (2002:26-39). Relativamente dimenso econmica, esta foi desencadeada pela dinmica de internacionalizao da actividade econmica situada entre finais do sculo XIX e meados do sculo XX e resulta da emergncia de um sistema unificado de funcionamento da actividade econmica escala mundial. Manuel Castells corrobora-o ao constatar a independncia global das economias, verificada principalmente no sculo XX (2002:1). Quanto dimenso poltica, a prpria caracterizao das duas grandes guerras do sculo XX como mundiais permite compreend-la e, ao mesmo tempo, pensar na eventual emergncia de uma nova instncia poltica: uma comunidade democrtica global. A dimenso cultural emerge da extenso planetria dos meios de comunicao social de massas (...) com a correspondente transformao de tudo em informao imediata e universalmente disponvel e com o aumento da quantidade de informaes semelhantes a que so expostos, em simultneo, grupos cada vez mais vastos de pessoas. Melo defende que a globalizao cultural no suprime as diferenas locais, mas sim um processo dplice de simultnea10

revelao/anulao

de

diferenas,

diferenciao/homogeneizao

e

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democratizao/hegemonizao cultural. Relativamente a esta questo, Mike Featherstone defende que dificilmente o fenmeno da globalizao conduzir a uma nica cultura global, mas sim a uma pluralidade de culturas globais. A intensidade e rapidez dos fluxos culturais globais tm contribudo para a noo de que o mundo um lugar nico, o que implica a proliferao de novas formas culturais (1990:10). Para Giddens, a globalizao consiste na intensificao das relaes sociais em todo o mundo que ligam localidades distantes de tal forma que os acontecimentos locais so moldados pelos eventos que ocorrem a muitas milhas de distncia e vice-versa (1990:64). Isto de acordo com quatro dimenses: a economia capitalista mundial; o sistema do estadonao; a ordem militar mundial e o desenvolvimento industrial (1990:70-8). Giddens traa alguns aspectos paralelos a Melo, nomeadamente a distino das dimenses econmica e poltica. Assim, para este autor, os estados-nao so os principais actores no seio da ordem poltica global, enquanto as empresas so os agentes dominantes dentro da economia mundial. E, se por um lado a aco concertada entre pases (...) diminui a soberania individual das naes envolvidas, por outro a influncia global de uma organizao como as Naes Unidas no alcanada somente pela diminuio da soberania dos estados-nao. Relativamente ordem militar mundial, Giddens assinala que a maioria dos pases mantm reservas de armamento tecnologicamente avanado e modernizou-se militarmente (at ao nvel das armas nucleares) e que as guerras so uma prova da tendncia globalizante do poder militar (tal como Melo indicou, com o exemplo das guerras mundiais). Por ltimo, o desenvolvimento industrial teve como consequncias a diviso global do trabalho e a difuso das tecnologias o impacto da industrializao no limita-se esfera de produo, mas afecta muitos aspectos da vida quotidiana, tal como influencia o carcter genrico da interaco humana com o meio material. O mundo industrializado , por isso, um mundo global, onde as alteraes ecolgicas, o surgimento de epidemias e outras situaes dizem respeito a todos os seres humanos. De uma forma geral, estas perspectivas so um ponto de partida para compreenso do fenmeno da globalizao, mas o trabalho de investigao em torno deste processo no est concludo. Na verdade, colocam-se vrios desafios, mobilizando meios acadmicos de todo o mundo. o caso da problemtica da distanciao espcio-temporal, que Giddens apresenta ao questionar as relaes complexas entre envolvimentos locais (circunstncias de copresena) e interaco atravs da distncia (as ligaes entre presena e ausncia) (1990:64).11

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Na era moderna, o nvel de distanciao espcio-temporal muito maior do que em qualquer perodo anterior e as relaes entre formas sociais e acontecimentos locais e distantes tornam-se paralelamente alargadas. A globalizao refere-se essencialmente a esse processo de alargamento, tanto quanto as formas de ligao entre contextos sociais e regies diferentes disponibilizada em rede atravs da superfcie terrestre como um todo. Outro desafio fundamental relaciona-se com as desigualdades da chamada aldeia global. Uma das peculiaridades que Arjun Appadurai associa globalizao o facto de ser um processo econmico desigual, que cria uma distribuio fragmentada e desigual dos recursos para aprendizagem, ensino e crtica cultural que so vitais para a formao de comunidades de investigao democrtica (2000:4). 1.2. Problemtica em torno da sociedade de informao Ser que o final do sculo XX ficou marcado pelo incio de uma nova era para alm da modernidade, proporcionada pela emergncia de um novo tipo de sistema social? Quem o questiona Anthony Giddens (1990:1)2 a propsito de, entre outras, a noo de a sociedade de informao. Para responder a esta pergunta, existem duas grandes posies: a primeira diz respeito aos autores que, como Manuel Castells, defendem o aparecimento de uma nova sociedade, associado a uma revoluo tecnolgica, centrada nas tecnologias da informao (2002:1) que lentamente penetra em todas as esferas da actividade humana. Um novo sistema de comunicao, que cada vez mais se expressa numa linguagem digital universal, tem integrado globalmente a produo e distribuio de palavras, sons e imagens da nossa cultura, personalizando-os ao gosto das identidades e humores dos indivduos. As redes interactivas de computadores crescem exponencialmente, criando novas formas e canais de comunicao, moldando a vida e, ao mesmo tempo, sendo moldadas por ela. As mudanas sociais so to grandiosas como os processos de transformao tecnolgicos e econmicos. (2000b:2-3) O que , ento, a sociedade de informao? Castells define-a como uma sociedade estruturada nas suas funes e processos dominantes em torno de redes (1996:408). Na sua opinio, o seu nascimento est relacionado com a conjugao de dois factores: a revoluo tecnolgica, que se constituiu como um paradigma na dcada de 1970, e o perodo de2

Ser importante referir que Giddens enfatiza, no seu trabalho, uma continuidade e no uma ruptura com a modernidade, optando por repensar a noo de estado-nao e a violncia na sociedade contempornea, sem, contudo, negar o papel fundamental desempenhado pela informao na actualidade. 12

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reestruturao global do capitalismo, que se deu nos anos 1980. Por isso, a nova sociedade que surge deste processo de transformao capitalista e tambm informacional (2002:15). Alm disso, os movimentos socioculturais que surgiram durante os anos 1960, principalmente feminista e ecologista, tambm tiveram um papel crucial no processo de interaco que tornou possvel o novo tipo de sociedade. Castells debrua-se, assim, sobre a emergncia (...) [da referida] nova estrutura social, manifestada sob diversas formas (2002:17). De uma forma geral, as principais caractersticas e processos da sociedade de informao so o informacionalismo, cuja fonte de produtividade encontra-se na tecnologia de produo de conhecimentos, de processamento de informao e de comunicao de smbolos, distinguindo-se de outros modos de desenvolvimento pela aco do conhecimento sobre o prprio conhecimento (2002:20); a economia global, ou seja, uma economia cujas actividades estratgicas tm o potencial de ocorrerem em tempo real numa escala planetria (1996:400); a empresa em rede, uma nova forma de organizao caracterstica da actividade econmica, cuja lgica cada vez mais adoptada noutros domnios e organizaes (1996:401); a transformao do trabalho e do emprego, marcada pela flexibilizao e individualizao (1996:401-2); a desigualdade, a polarizao e a excluso social (1996:403); a cultura da virtualidade real, devido crescente estruturao do ambiente simblico em torno das noes de interactividade e hipertextualidade (1996:403-4); os media como espao privilegiado da poltica (1996:404-5); o tempo indefinido e o espao de fluxos (1996:405-8). Contudo, alm do movimento a favor da sociedade de informao, existem tambm concepes cpticas sobre o nascimento de uma nova era e o prprio conceito de sociedade de informao. Um exemplo de uma abordagem desconfiada e precavida dado por Dominique Wolton (1999). Na sua perspectiva, a ideologia tcnica que est por detrs dos discursos inflacionistas sobre as tecnologias de informao e o aparecimento de uma nova sociedade utiliza uma aparente modstia para obter um maior impacto social, afirmando-se capaz de melhorar as relaes individuais e sociais (1999:257-8). A ideologia tcnica (...) terrvel, porque combina as trs dimenses de todas as ideologias: por meio dos fantasmas que projecta sobre a sociedade da informao, ela veicula um projecto poltico; pela sua dimenso naturalmente antropolgica, constitui um sistema de convico; pelas suas implicaes econmicas, uma ideologia de aco. (1999:259)

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De acordo com Wolton, o sucesso do tema da sociedade de informao justifica-se por cinco razes (1999:264-74). Em primeiro lugar, a ruptura com os media de massas, porque com a Internet o utilizador tem a sensao de se tornar activo e pode usufruir de uma comunicao imediata. Outro motivo o facto de tratar-se da aventura de uma gerao, que tenta distinguir-se das anteriores ao apostar nas novas tecnologias (estas so associadas a aspectos atractivos como a cultura da rapidez e do instante, o fim das distncias e o tempo indefinido). Por outro lado, entendido como smbolo da modernidade, porque as redes favorecem a iniciativa individual e o conhecimento. Em quarto lugar, pode ser visto como uma resposta a uma certa angstia antropolgica, uma necessidade de domesticar o medo que as novas tecnologias provocam e de superar o constrangimento da comunicao face a face. E, por ltimo, constitui a esperana do curto-circuito do desenvolvimento mundial, reduzindo a distncia entre os pases ricos e os outros e colocando o mundo em comunicao. Tambm Frank Webster revela algumas reservas em relao a esta problemtica, ao abordar a recente forma de conceber as sociedades contemporneas, que se centra na informao como principal caracterstica definidora (1995:1-5). Contudo, Webster verifica que existem diferentes interpretaes sobre a centralidade da informao nos actuais sistemas e a forma como afecta e se relaciona com a sociedade, a economia e a poltica. Por isso, decidiu reunir as principais contribuies tericas para a compreenso do papel da informao no mundo moderno, de forma a reflectir sobre elas e critic-las. Assim, analisa em simultneo as posies de autores que proclamam um novo tipo de sociedade emergente (Daniel Bell, Jean Baudrillard, Mark Poster, Manuel Castells) e os que, pelo contrrio, defendem continuidades relativamente ao passado (Herbert Schiller, Anthony Giddens, Jrgen Habermas). Paralelamente, interroga o conceito de sociedade de informao, levantando dvidas sobre a sua exactido. Para definir sociedade de informao, Webster encontra cinco hipteses analticas (1995:6-23). A primeira de mbito tecnolgico, ou seja, enfatiza a espectacular inovao tecnolgica e o autor contrape-lhe duas objeces, uma que questiona qual a forma de medir as tecnologias de informao e comprovar o estabelecimento da sociedade de informao e outra que se centra no facto do determinismo tecnolgico apresentar a tecnologia como um fenmeno associal, quando, na verdade, esta integra a sociedade. A segunda definio est associada economia de informao e consiste nas tentativas de analisar estatisticamente as indstrias de informao, o que leva Webster a interrogar-se sobre as interpretaes e os juzos de valor escondidos por detrs das tabelas estatsticas e a concluir14

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que este tipo de dados acaba por homogeneizar actividades econmicas distintas. Outra hiptese centra-se na predominncia de profissionais na rea da informao, o que levanta um problema metodolgico (associar determinados trabalhadores a certas categorias profissionais) e causa tambm uma homogeneizao de profisses com diferentes nveis de relevncia. Em quarto lugar, referida a definio que assenta nas redes de informao, as quais permitem, atravs das tecnologias de comunicao e dos novos media, estabelecer trocas a uma escala sem precedentes e em tempo real. Neste caso, Webster argumenta que o prprio conceito de rede indefinido (quando que uma rede uma rede?) e falta uma noo clara do tamanho, capacidade e utilizao das redes, porque no possvel quantificar o fluxo de informao necessrio para se justificar a emergncia de uma sociedade de informao. Por fim, a ltima uma perspectiva cultural, que reflecte sobre o aumento da informao que circula socialmente, chegando ao ponto de invadir a intimidade dos indivduos, ao mesmo tempo que investe a vida quotidiana de significado simblico uma alterao que alguns autores consideram justificar a emergncia da sociedade de informao, mas que Webster alega ser insuficiente. De uma forma geral, este autor acredita que, apesar do crescente interesse terico pela problemtica, h ainda uma dbil investigao emprica, o que se constata, por exemplo, nas abordagens que tentam comprovar uma mudana social qualitativa com dados meramente quantitativos. O prprio conceito de informao interpretado pela maioria dos autores inversamente ao seu significado semntico a informao tem sentido (1995:27) e deve-se tentar analis-lo qualitativamente. Por outro lado, Webster argumenta que as teorias a favor da sociedade de informao estabelecem a tecnologia como primeiro meio de mudana, ao mesmo tempo que pressupem a sua separao dos valores e crenas sociais. A teoria crtica de Schiller e Jrgen Habermas, tal como a sociologia histrica de Giddens, convencem-no mais. Por isso, entende que devemos perspectivar a informatizao da vida, um processo que tem estado em curso (...) h vrios sculos, mas que certamente acelerou com o desenvolvimento do capitalismo industrial e a consolidao do estado-nao no sculo XIX e que atingiu a velocidade mxima no final do sculo XX quando a globalizao e a difuso de organizaes transnacionais conduziram incorporao de domnios at aqui desconhecidos (...) no mercado mundial (1995:217). 1.3. Da galxia de Gutenberg era electrnica: novo paradigma comunicacional Segundo Ignacio Ramonet, o sistema de informao est actualmente submetido a uma revoluo radical devido ao advento do numrico e do multimdia, que certos [autores]15

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comparam inveno da tipografia, em 1440, por Gutenberg (1999:9). De facto, a inveno dos caracteres mveis e a criao dos sistemas interactivos de comunicao constituem dois momentos fundamentais do processo evolutivo da comunicao. Na passagem do sculo XX para o sculo XXI, opera-se uma transio revolucionria entre a galxia de Gutenberg e a era electrnica, numa perspectiva tecnolgica, ao nvel do tratamento e apresentao de contedos, e ainda ao nvel da interaco com os media3. Profeta da aldeia global, Marshall McLuhan desenvolveu, nos anos 1960, uma anlise das caractersticas histrico-culturais inerentes emergncia da escrita e da tipografia. Ns vivemos (...) numa poca em que duas culturas opostas se influenciam reciprocamente e La Galaxie Gutenberg pretende realar como o alfabeto fontico e a tipografia modificaram as formas da experincia tal como as atitudes mentais (1967:5-6). Na sua perspectiva, a inveno do alfabeto representou uma traduo ou uma reduo de um espao nico, onde se processava uma interaco complexa o alfabeto fontico reduziu a um simples cdigo visual a utilizao simultnea de todos os sentidos que constituem a expresso oral (1967:57). Fundamentando a sua anlise nos trabalhos do mestre Harold Innis, McLuhan define o medium na sua componente tecnolgica e nos seus prolongamentos, enquanto extenses dos sentidos e do humano. Francisco Rui Cdima salienta que McLuhan no se distingue neste ponto de Innis, para quem o advento e o declnio das grandes civilizaes, e as grandes mudanas culturais, deveriam ser entendidas, em primeiro lugar, em funo do meio de comunicao e das tecnologias predominantes (1996:124-5). Com efeito, McLuhan entende que o modelo das sociedades estruturado pela natureza dos meios de comunicao e no pelo contedo comunicacional. Segundo McLuhan, a era electrnica apresenta novas formas e novas estruturas de interdependncia humana, operando uma espcie de regresso da ordem visual. Esta era recupera formas antigas de percepo e julgamento e, na opinio do autor, a sua coexistncia com a galxia de Gutenberg gera uma tenso. Pioneiro nos estudos comunicacionais empricos, McLuhan formula uma previso de um eclipse do eu, uma crise de identidade, ao ocorrer o choque entre a cultura visual e a cultura electrnica, originando assim uma desintegrao dos grandes estados e um processo de retribalizao a era da electricidade, aH autores que vo mais longe, como John Perry Barlow Com o desenvolvimento da Internet e com a crescente difuso da comunicao entre redes de computadores, estamos no seio do acontecimento tecnolgico mais transformador desde a inveno do fogo. (1995:1)3

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instantaneidade prpria da coexistncia das nossas novas ferramentas so a fonte de uma crise sem precedentes na histria da humanidade (1967:10). Numa perspectiva distinta, Mark Poster (2000) analisa a alterao de paradigma comunicacional no sculo XX atravs da identificao de duas eras distintas no sistema dos media: a primeira diz respeito ao modelo de difuso das comunicaes, ou seja, baseada nos media unidireccionais (com poucos produtores e muitos consumidores); a segunda caracterizada como uma alternativa ao modelo (restritivo) de difuso e propiciada pelas auto-estradas de informao e novas tecnologias, media descentralizados e bidireccionais. Para Poster, a segunda era dos media vai implicar reorganizaes culturais massivas, porque, desde sempre, os media tiveram um importante papel na formao cultural dos indivduos: desde o papel dos media impressos no mundo moderno para encorajar e disseminar (...) formas urbanas de identidade profunda transformao da identidade cultural no sculo XX sustentada pelo telefone, rdio, cinema, televiso. Talvez esteja a surgir uma sociedade ps-moderna que alimenta formas de identidade diferentes, ou at mesmo opostas, s da modernidade e as tecnologias de comunicao electrnica aumentam significativamente estas possibilidades ps-modernas (2000:36). 1.4. Dos mass media networked communication A imprensa tal como a conhecemos, a rdio e a televiso so produtos do sculo XX, o sculo das massas, na medida em que a estratgia de comunicao que desenvolvem serve os objectivos das ideologias e da organizao social da poca. Estes media caracterizam-se por gerarem mensagens para o maior nmero possvel de pessoas, necessitam de ciclos curtos de actualizao sincrnica e praticam a comunicao interactiva em modo de banda estreita (formas de feedback minimalistas). Como descreve Pierre Lvy, so dispositivos comunicacionais estruturados com base no princpio um-todos um centro emissor envia as suas mensagens a um grande nmero de receptores passivos e dispersos (2000:67). Por seu turno, o computador (ou PC, expresso introduzida pela IBM que se tornou sinnimo de computador pessoal) assume no sculo XXI o papel de medium e no mera ferramenta (Brenda Laurel, 1993), porque nele que ocorre a grande revoluo: a absoro dos dispositivos tecnolgicos dos media preexistentes por um nico suporte. Esta perspectiva defendida por Laurel correcta se tivermos em conta uma mera viso tecnolgica, visto que possvel a agregao da informao oriunda dos vrios media (texto, imagem e som) em cadeias de bits. Contudo, aps a convergncia no denominador comum (o bit), o medium

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dever proceder a uma etapa de divergncia dos media, ou seja, ao fornecimento de produtos segmentados, direccionados a determinadas comunidades especficas. Existiam at agora, em matria de comunicao, trs sistemas de signos: o texto da escrita, o som da fala e a imagem. Cada um destes elementos era indutor de todo um sistema tecnolgico. Assim o texto fundou a edio, a impresso, o livro, o jornal (...); o som proporcionou a linguagem, o rdio (...), o telefone e o disco; a imagem (...) produziu a pintura, a gravura, a banda desenhada, o cinema, a televiso, o vdeo, etc. A revoluo numrica actual tem como principal efeito (...) convergir os diferentes sistemas de signos num sistema nico: texto, som e imagem podem (...) exprimir-se em bits; o que se chama o multimdia. (Ramonet, 1999:106-7) A plenitude de funcionamento do computador obtida pela conectividade reticular, representando assim a transformao referida por Ramonet: o novo media multimdia. Deste modo, associado ao dispositivo computacional, surge o ciberespao (termo introduzido pelo romance Neuromancer, de William Gibson) que, segundo Pierre Lvy, impulsionou o aparecimento de dois dispositivos informativos, originais relativamente aos media anteriores, nomeadamente o mundo virtual e a informao em fluxo, os quais tendem em reproduzir em grande escala e graas a suportes tcnicos aperfeioados uma relao no mediatizada com a informao (2000:67). Para Gustavo Cardoso, a Internet o elemento central dos novos media, que incluem ainda o telemvel, a televiso digital e as consolas de jogos. O que os distingue dos media anteriores o facto de combinarem um modelo de comunicao interpessoal e um modelo de comunicao de massas. Na sua opinio, a caracterstica bsica do actual sistema dos media (que se consolidou entre 1990 e 2001) , efectivamente, a interligao entre os media interpessoais e os mass media a networked communication (2008). A hiptese inicial para caracterizar o sistema dos media na nossa sociedade actual (...) no tanto a convergncia tecnolgica, mas a organizao em rede do sistema. Essa organizao ocorre em vrios nveis, desde a dimenso tecnolgica organizao econmica e apropriao social. (Cardoso, 2008:589) Neste modelo de comunicao, a organizao e o desenvolvimento do sistema dos media no depende exclusivamente dos grandes grupos de media nem do Estado, mas sobretudo da apropriao social das diferentes tecnologias existentes, que permite combinar dispositivos de18

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comunicao interpessoal, como o telemvel e o respectivo servio de mensagens escritas, com os mass media, como a televiso ou a rdio. Com efeito, as pessoas no lem apenas jornais nem se limitam a navegar na Internet, mas antes tendem a combinar vrios tipos de media no seu dia-a-dia, para alcanar objectivos diversos. Ns atribumos papis sociais de informao, entretenimento, aco e organizao a cada um dos media entre os quais concebemos redes de interdependncia (2008:589). 1.5. Internet, uma rede global Adriano Duarte Rodrigues define a rede como sendo um sistema constitudo por linhas e por pontos que definem circuitos e ns de conexo (1997:95). Segundo o autor, o modelo em rede tem como consequncia o facto da estrutura e o modo de funcionamento dos objectos tcnicos se assemelhar de tal modo ao funcionamento dos objectos naturais que se torna quase imperceptvel a sua distino. As redes podem assumir assim o lugar de extenses do ser humano, como Marshall McLuhan acentuara na sua definio do conceito de medium. Ao avanarmos rumo era da comunicao interactiva, reconhecemos a rede das redes na Internet uma rede global de computadores interligados (David Gauntlett, 2000:4). As suas origens remontam a 1969, ano em que (...) pela primeira vez se interligaram quatro computadores entre quatro centros de investigao, nos Estados Unidos da Amrica (Cardoso, 2003:12-3). Em plena Guerra Fria, a razo que levou sua criao foi evitar que, em caso de uma guerra nuclear desencadeada pelas foras soviticas, estas no acedessem ao sistema de comunicaes americano. Como explica Manuel Castells, o resultado foi uma arquitectura de rede que (...) no podia ser controlada a partir de nenhum centro, composta por milhares de redes de computadores autnomos com inmeras formas de interligao, contornando as barreiras electrnicas (2002:7-8). Alm da descentralizao que estrutura a sua configurao fsica, o que distingue a Internet a sua abertura ao nvel da arquitectura tcnica e da sua organizao social e institucional. Castells salienta que foi graas a ela que os utilizadores tornaram-se produtores da tecnologia (2001:26-9). Uma lufada de aplicaes no planeadas resultou desta contribuio mltipla, desde o email aos bulletin boards e salas de conversao, o MODEM e (...) o hipertexto. Est provado na histria da tecnologia que os utilizadores so produtores essenciais da tecnologia, ao adapt-la aos seus usos e valores, e no fundo transformando a tecnologia em si (...). Mas h qualquer coisa especial no caso da Internet. Novos usos da tecnologia, tal como as modificaes reais19

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introduzidas na tecnologia, so comunicados de volta a todo o mundo, em tempo real. Assim, o perodo de tempo entre os processos de aprendizagem atravs da utilizao e de produo atravs da utilizao so extraordinariamente encurtados, permitindo concluir que ns dedicamo-nos ao processo de aprendizagem ao produzir, num (...) feedback entre a difuso da tecnologia e a sua melhoria. por isso que a Internet cresceu e continua a crescer numa velocidade sem precedentes. De facto, a evoluo da Net marcada por um crescimento exponencial, duplicando anualmente o nmero de utilizadores. aceite por cada vez mais pessoas e por diversas razes, nomeadamente os j referidos princpios de abertura e de descentralizao. Pode at afirmar-se que h um movimento a favor da Internet. Gustavo Cardoso refere que mesmo aqueles que adoptaram posturas crticas face Internet no a rejeitaram, adoptando antes posies (...) de uso cauteloso e moderado, tentando regular acessos a determinados contedos e a frequncia de uso, a par de uma prudncia na utilizao e realando a necessidade de estender o policiamento e a aplicao da lei tambm a esta tecnologia de informao e comunicao (2003:11). Porqu? Numa perspectiva sinttica, resulta do interesse do pblico (...) na ideia de que esta tecnologia permitiria construir uma sociedade melhor. Ou seja, a viso da Internet como uma tecnologia que iria mudar a nossa forma de trabalhar, de nos relacionarmos, de nos divertirmos (2003:12). A rede das redes engloba um conjunto de servios ligados a protocolos tcnicos de comunicao, entre os quais a World Wide Web (WWW) o mais conhecido. Desenvolvida por Tim Berners-Lee a partir de 1990, possvel encontrar nela textos, imagens, vdeos e sons oriundos de computadores de todo o mundo, produzidos por indivduos, empresas ou outras organizaes. No centro da criao Berners-Lee, estavam duas ideias: o uso de hiperligaes e a colaborao entre os utilizadores (que, alm de lerem, tambm corrigem e adicionam pginas web). David Gauntlett explica que o sonho por detrs da Web um espao de informao comum no qual ns comunicamos ao partilhar informao (2000:4-5). Face vasta oferta de contedos na teia, Dominique Wolton prope quatro categorias de aplicaes disponveis online (2000:82-3): os servios (relacionados com informaes e transaces); aplicaes de lazer (jogos interactivos em rede, vdeos, etc.); a informaoacontecimento (fornecida por agncias noticiosas, jornais, meios socioculturais ou socioprofissionais); a informao-conhecimento (que se encontra nas bases de dados).

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Assim, atravs da WWW e das suas diversas aplicaes, a Internet pode tornar-se parte das rotinas da vida quotidiana (Sherry Turkle, 1997:12), porque permite a qualquer pessoa utiliz-la ( de domnio pblico) como ferramenta de trabalho ou como forma de distraco e entretenimento. Quando lemos o nosso correio electrnico, enviamos mensagens para um painel de notcias electrnico ou reservamos bilhetes de avio atravs de uma rede de computadores, estamos no ciberespao. No ciberespao podemos conversar, trocar ideias e adoptar identidades fictcias que ns prprios criamos. Temos oportunidade de construir novos tipos de comunidades, comunidades virtuais nas quais participamos juntamente com pessoas de todos os cantos do mundo. Ao ser utilizada de forma generalizada, a WWW cumpre a segunda parte do sonho de Tim Berners-Lee que, segundo Gauntlett, mais no do que tornar-se um espelho realista (...) dos modos como ns trabalhamos, divertimo-nos e socializamo-nos (2000:4-5). Alm do crescimento exponencial de utilizadores de Internet e do uso generalizado dos seus servios, h ainda que ter em conta o crescimento do espao na rede. Segundo Pierre Lvy, este fenmeno orientado por trs princpios. Em primeiro lugar, a ideia da interligao, porque, na cibercultura, a ligao privilegiada e o isolamento preterido. Assim, cada computador do mundo, cada aparelho, cada mquina, do automvel torradeira, deve ter um endereo na Internet (2000:132) para que se crie uma civilizao da telepresena. Como prolongamento da interligao, o segundo princpio o desenvolvimento de comunidades virtuais com base em processos de cooperao. Segundo o autor, essas comunidades so a expresso do desejo de construir um lugar social, que no seja baseado nem em posses territoriais, nem em relaes de poder, mas na reunio em torno de centros de interesses comuns, no jogo, na partilha do saber, na aprendizagem cooperativa (2000:136). Por fim, o terceiro princpio a inteligncia colectiva, que se baseia no facto de um grupo humano seja ele qual for no tem interesse em se constituir como comunidade virtual seno para se aproximar do ideal colectivo inteligente, mais imaginativo, mais rpido, mais capaz de aprender e inventar do que um colectivo inteligentemente dirigido (2000:136). Contudo, esta finalidade ltima da cibercultura proposta por Lvy constitui-se como um domnio problemtico. Autores como Dominique Wolton argumentam que a Internet e os novos servios de informao no visam a democratizao mas uma especializao das informaes em funo de diferentes contextos solventes (2000:87). Esta situao provoca21

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um renascimento das desigualdades socioculturais, principalmente devido ao nvel da procura de informao estar associado posio social dos indivduos. Como resultado, h uma segmentao e no o acesso a uma inteligncia social colectiva. 1.6. Comunidades virtuais Como explica Gustavo Cardoso, a denominao de comunidade, aplicada Internet, advm da constatao de que o acesso Internet , para muitos, um meio para encontrar outras pessoas (2003:84). As comunidades que nascem na Net podem, de uma forma geral, ser distinguidas de acordo com dois tipos: as comunidades online (ou seja, comunidades que existem na vida real e so recriadas no ciberespao) e as comunidades virtuais (que no tm qualquer correspondncia prvia fora do ciberespao). Howard Rheingold define as comunidades virtuais como agregaes sociais que emergem da Net quando pessoas suficientes conduzem essas discusses pblicas por tempo suficiente, com bastante sentimento humano para formar redes de relaes pessoais no ciberespao (1994:277). Estas comunidades podem, inicialmente, criar uma sensao de desconforto para quem nunca experimentou participar nelas, mas a verdade que continuam a desenvolver-se. Para aceder a uma comunidade virtual, necessrio apenas uma ligao Internet. A, basta procurar um newsgroup, integrar uma mailing list, entrar num canal de IRC e/ou registar-se num Social Networking Site (SNS) para comunicar com outras pessoas que partilham um mesmo interesse4 por exemplo, num SNS como o Hi5 possvel participar em grupos relacionados com temas, passatempos, cidades, escolas e universidades, entre outros. Ao longo dos anos, as comunidades virtuais reinventaram-se atravs de novos softwares, distantes das interfaces pouco evoludas dos primeiros programas de IRC ou MUDs, e atraem pessoas a integr-las. Porqu? Para Sherry Turkle, a razo principal talvez seja porque autorizam-nos a jogar, a experimentar novas coisas (1997:302). Inicialmente, a interaco nas comunidades virtuais realizava-se somente atravs de palavras, mas rapidamente criou-se um vocabulrio novo, surgiram emoticons (smbolos que expressam as emoes de quem comunica) e j h alguns anos possvel, com uma webcam e um microfone, ver quem est do lado de l do computador e conversar quase como na vida real. Atravs dessa interaco, as pessoas nas comunidades virtuais fazem tudo o que as pessoas fazem na vida real (Rheingold, 1994:275): trocam elogios e ideias, zangam-se,

Como salienta Gustavo Cardoso, um indivduo pode pertencer simultaneamente a um nmero indeterminado de comunidades virtuais (1998:2) e no exclusivamente a uma nica comunidade virtual. 22

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debatem assuntos de interesse comum, apaixonam-se, fazem amizades, namoram, brincam, aborrecem-se e divertem-se. Como que estas comunidades podem alterar as nossas experincias reais? Esta uma das questes que tm sido levantadas e que se confrontam com ns prprios, enquanto indivduos, e as comunidades reais que integramos. Turkle salienta que a tecnologia muda a nossa natureza enquanto pessoas, muda as nossas relaes e a percepo que temos de ns mesmos (1997:346). E o inverso tambm acontece: o uso que fazemos da tecnologia tambm a altera. Numa tentativa de resposta a esta questo, Rheingold apresenta trs potenciais formas de as CMC (computer-mediated communications ou comunicaes mediadas por computador) modificarem as nossas vidas (1994:282-4). Em primeiro lugar, as percepes, os pensamentos e as personalidades dos utilizadores das comunidades virtuais so afectadas pela utilizao deste media, que, de certa forma, apela a necessidades intelectuais, fsicas e emocionais. Segundo, as CMC permitem trocas de muitos para muitos e, se a utilizao interpessoal for bem-sucedida, permitindo estabelecer amizades e relaes estveis, poder influenciar a forma futura de como as comunidades vo ser utilizadas. Em ltimo lugar, as CMC podem ter um significado poltico e tornarem-se capazes de desafiar o estado actual da democracia, motivando os intervenientes de comunidades virtuais a participar activamente em aces polticas. Contudo, o papel das comunidades virtuais na vida real nem sempre entendido de uma forma to optimista quanto perspectiva Rheingold. Mark Poster salienta que existem vrias interpretaes que encontram no xito das comunidades virtuais um indcio do declnio das comunidades reais (2000:46-7). Mas este receio no se justifica, porque, por exemplo, as formas de estabelecer laos em ambas as comunidades so distintas. Enquanto os membros da comunidade real devem possuir identidades estveis, a experincia comunitria na Internet est interligada com uma certa fluidez da identidade (2000:48). Para Barry Wellman, a comunidade nunca se perdeu (1999:1) e o surgimento de comunidades online no implica o desaparecimento das comunidades reais, mas o seu reforo. Este autor defende a tese de que as comunidades online se assemelham s comunidades reais e ajudam frequentemente a manter relaes offline. A tendncia da comunicao mediada por computador enfatizar as relaes baseadas em interesses comuns em vez das relaes familiares ou de vizinhana por isso, os laos online so tambm especializados e transitrios23

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(dado que os interesses podem mudar). As redes de computadores tm o poder de alargar o alcance das redes sociais, porque online o tempo e o espao tornam-se menos importantes, torna-se mais fcil comunicar com vastos grupos de membros de comunidades e simples ligar entre si amigos de amigos. (1999:16-23) Por outro lado, Manuel Castells destaca que, em geral, a maioria das comunidades virtuais efmera e raro existir interaco fsica, alm da interaco online. Obviamente existem excepes, como o prprio Rheingold testemunha no seu artigo com o exemplo da comunidade WELL, mas a forma mais correcta de as caracterizar ser como redes de sociabilidade, com uma geometria varivel e composio mutvel, de acordo com os interesses em evoluo dos actores sociais e com o prprio formato da rede em si mesma (2001:130). Na opinio de Castells, as comunidades que nascem na Internet podem permitir trocas interpessoais baseadas em interesses comuns, mas dificilmente criam laos fortes entre os indivduos. De qualquer forma, a Internet , para este autor, uma extenso da vida tal como ela , em todas as suas dimenses e com todas as suas modalidades (2001:118) e, nestas comunidades, pessoas reais estabelecem formas de interaco online. Por isso, as comunidades virtuais proporcionam um novo e dramtico contexto para pensar acerca da identidade humana na era da Internet. So espaos para descobrir o significado experiencial duma cultura da simulao (Sherry Turkle, 1997:400). 2. Questes da identidade 2.1. Crise da identidade na sociedade contempornea Vivemos hoje num mundo de incertezas de vrias ordens: poltica, econmica, social... A identidade individual debate-se com as questes ecolgicas, os desafios da tecnologia e as crescentes desigualdades globais. Para vrios autores, a crise identitria que da emerge tem as suas origens na mutao histrica provocada pelo predomnio da civilizao ocidental a partir do sculo XVIII (Bloom, 2001:147; Maalouf, 2002:81-4) e na concepo individualista do Ocidente. Para o resto do mundo, para todos aqueles que nasceram no seio de culturas desfeitas, a receptividade mudana e modernidade coloca-se em termos muito diferentes. Para os chineses, (...) os africanos, os japoneses, os indianos ou os amerndios, assim como para os gregos e os russos, para os iranianos, os rabes, os judeus ou os turcos, a modernizao implicou constantemente o abandono de uma parte de si mesmos. Mesmo quando ela suscitava por vezes o entusiasmo, nunca se desenrolava sem uma certa amargura, sem um24

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sentimento de humilhao e de renncia. Sem uma interrogao dolorosa sobre os perigos da assimilao. Sem uma profunda crise de identidade. (Maalouf, 2002:84) O processo hegemnico que teve como plos originadores a Europa e os Estados Unidos tornou possvel a constituio daquilo que Wolton denomina como a sociedade individualista de massas, ou seja, um modo de socializao que caracteriza as sociedades democrticas desde o sculo XIX, e que cada vez mais confrontado e afectado por tendncias globalizantes. Na opinio de Gilles Lipovetsky, estas podem relacionar-se, por um lado, com a informao e a comunicao, que permitem a cada um de ns tornar-se locutor e ser ouvido (1989:15) e, por outro, com o consumo e a sua extenso esfera privada, imagem (1989:11). Como explica Alexandre Melo, hoje em dia, qualquer cidado tem um imaginrio e um horizonte cultural (...) cujas caractersticas e configuraes dependem, em larga medida, e numa percentagem que cresce cada vez mais depressa, de informaes, imagens, ideias e opinies que circulam e se geram na circulao escala global e no dependem das caractersticas eventualmente peculiares do territrio geogrfico em que o indivduo nasceu ou vive (...). (2002:47) Para Anthony Giddens, h uma relao directa entre estas tendncias e a transformao da intimidade na vida quotidiana dos indivduos, que pode ser analisada atravs da construo dos mecanismos de confiana, que por sua vez esto interligados com a construo do eu enquanto projecto reflexivo (1990:114). Segundo este autor, a vida social moderna caracteriza-se pela impersonalidade (em contraste com a comunho das sociedades tradicionais), motivada pela transformao da prpria subjectividade o indivduo deve encontrar a sua identidade entre as estratgias e opes facultadas pelos sistemas abstractos (1990:123-4). Isto implica o abandono da noo tradicional de identidade, defendido por Melo, na medida em que antes significava patrimnio, essncia ou raiz e agora deve ser substituda por uma experincia de prtica, processo, traduo, negociao (2002:52). Para Manuel Castells, a procura da identidade que se constata actualmente em todo o mundo assume, neste contexto de fluxos globais, o papel de fonte bsica de significado social (2002:3-4). A identidade est a tornar-se na principal e, por vezes, nica fonte de significado num perodo da histria caracterizado pela ampla desestruturao das organizaes, deslegitimao das instituies, enfraquecimento de importantes movimentos25

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sociais e pelas expresses culturais efmeras. Assim, o princpio organizador da sociedade de informao a prpria identidade, entendida por Castells como o processo pelo qual um actor social se reconhece a si prprio e constri significado (2002:26). Face a esta perspectiva, Dominique Wolton argumenta que, apesar do discurso da sociedade de informao incidir sobre um mundo dominado pelos valores da comunicao, que faculta s crescentes reivindicaes identitrias uma panplia de servios e de tcnicas susceptveis de serem utilizados como forma de expresso e racionalizao, o que acontece o inverso. porque h cada vez mais comunicao que a questo da identidade ganha fora, pois cada um receia perder a sua identidade num fluxo generalizado de comunicao (1999:289). Para Wolton, a informao e a comunicao no podem, ao mesmo tempo, ser o valor dominante da sociedade individualista de massas, da democracia de massas e constituir o sistema de representao da sociedade mundial do futuro (1999:290). Contudo, esta hiptese pessimista contrariada por estudos recentes. Gustavo Cardoso et altri (2005) defendem que a actual construo da sociedade em rede pode levar reconstruo das instituies sociais e, para alm disso, da prpria estrutura social, com base nos projectos autnomos dos sujeitos sociais (2005:319). Com efeito, a autonomia dos indivduos e da sociedade civil face s instituies do estado e s grandes empresas uma das caractersticas deste modelo de sociedade e a Internet surge como um dos instrumentos privilegiados de expresso dos projectos individuais e colectivos, desenvolvidos a partir dos interesses e valores dos seus protagonistas (2005:293). A Internet torna-se, assim, numa poderosa ferramenta de reconstruo social e no num pretexto para a desintegrao (2005:319-20), eventualmente provocada pela tendncia individualista. 2.2. Relao entre a identidade e a Internet Em meados dos anos 1990, Lee Sproull e Samer Faraj verificaram que havia uma perspectiva dominante em relao aos utilizadores de Internet processadores individuais de informao, que esto motivados para contribuir e beneficiar da exploso de informao encontrada na Internet (1995:62). Isto implicava uma concepo da Internet enquanto tecnologia da informao, que permite o acesso referida informao e a ferramentas de pesquisa. Contudo, para Sproull e Faraj, as pessoas na net no so apenas processadores de informao solitrios mas tambm seres sociais (1995:65). Ou seja, os utilizadores de Internet tambm procuram nela aspectos relacionados com a sua vida social, como pertena, apoio e afirmao. Assim, os autores propem uma abordagem da Internet como uma

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tecnologia social, que permite s pessoas com interesses comuns encontrarem-se, falarem e ouvirem, e manter ligaes ao longo do tempo (1995:65-6). Tendo em conta a proposta de Sproull e Faraj e a opinio de Joo Pissarra Esteves de uma forma geral, os media, enquanto dispositivos nucleares de socializao, de integrao social e de reproduo cultural, desenvolvem um trabalho activo em torno das identidades (1999) , torna-se pertinente perguntar qual o papel da Internet, enquanto tecnologia social e novo media, na reconstruo da identidade dos seus utilizadores. Sherry Turkle constata que hoje em dia o significado do computador na vida das pessoas distinto do que se previa na poca da sua inveno, sobretudo devido Internet os computadores no se limitam a fazer coisas por ns, fazem-nos coisas a ns, incluindo s nossas formas de pensar acerca de ns prprios e das outras pessoas (1997:37). Assim, nos mundos mediados pelo computador onde analisa relaes e comportamentos interpessoais, Turkle encontra um eu mltiplo, fluido e constitudo em interaco com uma rede de mquinas (1997:21), o que lhe permite concluir que a concepo de identidade inerente nova era digital evoca uma perspectiva ps-modernista os computadores encarnam a teoria ps-moderna e fazem-na entrar no nosso dia-a-dia (1997:25). Enquanto nos anos 1970 se teciam consideraes em torno de uma esttica computacional modernista, vendo no computador uma mera mquina de calcular, actualmente o computador visto como um objecto que expande a presena fsica dum indivduo (1997:29) e que possibilita a contemplao de uma vida mental que existe na ausncia dos corpos (1997:31). Este movimento duma cultura do clculo para uma cultura da simulao, onde a comunicao interpessoal na Internet se destaca5, teve consequncias profundas nas relaes entre as pessoas e nas formas que estas tm de se pensar a si mesmas. No passado, alternar entre identidades diferentes era, por um lado, uma experincia controlada pela sociedade e, por outro, uma experincia marginal. Hoje, na Internet, no limiar entre o real e o virtual, possvel experienciar o carcter mltiplo da identidade, porque cada pessoa pode assumir personalidades distintas no anonimato do ciberespao. Desta forma, quando atravessamos o ecr para penetrarmos em comunidades virtuais, reconstrumos a nossa identidade do outro lado do espelho (Turkle, 1997:261) e a Internet representa o nosso laboratrio social.

Como Gustavo Cardoso destaca, o maior fluxo de comunicao na Internet cabe no s compras electrnicas nem to-pouco busca de informao, mas sim comunicao interactiva entre sujeitos (1998:22). 27

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No quotidiano ps-moderno, Turkle defende que a sade mental se define na fluidez, na capacidade de mudana e de adaptao e no na estabilidade que caracterizou a poca moderna. Na cultura online, a projeco de identidades alternativas permite s pessoas trabalharem facetas de si prprias menos desenvolvidas, como uma terapia psicanaltica. A autora argumenta que subestimar as experincias pessoais no mundo das redes um erro, porque sem uma compreenso profunda das muitas vertentes da nossa pessoa que exprimimos no virtual, no poderemos usar as nossas experincias nesse domnio para enriquecer o real (1997:402). Como resultado do processo complexo proposto pela autora, o eu que emerge da era digital fragmentado, mas integrado. Mark Poster tambm reflecte sobre a influncia da Internet na constituio do sujeito. Este autor defende uma tese em torno do modo de informao, isto , a comunicao electronicamente mediada entendida como um fenmeno emergente que afecta aspectos (...) da vida quotidiana, cujas prticas do origem a um sujeito instvel, mltiplo e difuso (2000:45). A minha tese (geral) que o modo de informao decreta uma reconfigurao radical da linguagem, que constitui sujeitos fora do padro do indivduo racional e autnomo. Este sujeito familiar moderno deslocado pelo modo de informao em favor de um que seja mltiplo, disseminado e descentrado, interpelado continuamente como uma identidade instvel. (2000:71) Tal como Sherry Turkle, Poster defende que a Internet modifica o modo como pensamos acerca do sujeito e promove o indivduo (...) como um processo contnuo de formao de identidade mltipla (2000:72). Para o autor, este um dos factores que torna possvel pensar uma sociedade ps-moderna, em ruptura com o modelo da modernidade. Poster verifica que, nas comunicaes electrnicas, a linguagem desempenha uma funo performativa e retrica, assumindo-se como um veculo activo na construo e posicionamento do sujeito (2000:73). Ao mesmo tempo, a distncia espacial que separa o emissor e o receptor contrape-se ao imediatismo temporal que os aproxima estas distncias opostas (...) reconfiguram a posio do sujeito de uma forma to drstica que a figura do self, fixa no tempo e no espao (...), no consegue ser mantida (2000:74). Com o exemplo da escrita electrnica, o autor demonstra o distanciamento da cultura electrnica da cultura impressa, tal como as suas implicaes na reconstruo da identidade dos sujeitos (2000:83-5). Por um lado, a escrita electrnica rene caractersticas da escrita mo e impressa desde o facto de permitir a ausncia do autor do texto, armazenar e fixar a linguagem, promover a transmisso cultural possibilidade do leitor elaborar a releitura28

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crtica do texto , com a vantagem de ser um sistema de armazenamento mais eficiente, o formato digital da escrita ser copiado mais rapidamente e ocupar menos espao. Por outro lado, a escrita em processadores de texto mais voltil quando comparada com a rigidez da tinta no papel e possibilita criar textos com mltiplos autores; o hipertexto permite ao leitor organizar o texto de acordo com as suas opes pessoais; os servios de mensagens convidam os indivduos a comunicar com pessoas que no conhecem sem necessitarem de uma identificao real (basta escolher um nickname); e, as conferncias online estimulam a eficincia das comunicaes interpessoais. Em sntese, a resposta questo inicial parece ser que a Internet torna possvel, nas palavras de Mark Poster, a compreenso do self como mltiplo, mutvel, fragmentado (2000:91), caractersticas que os media anteriores ocultavam atravs do ideal do sujeito autnomo e racional, paradigma da sociedade moderna ocidental. 3. Construo da identidade, a interaco social e o fenmeno da Internet Enquadrado no mbito das cincias sociais, esta investigao baseia-se na definio adoptada por James Halloran para delimitar o campo das referidas cincias, ou seja, um estudo disciplinado e sistemtico da sociedade e das suas instituies, e de como e porqu as pessoas comportam-se de determinado modo, em simultneo como indivduos e em grupos dentro da sociedade (1998:11-12). E tal como Halloran explicita, entendido que a realidade social a vida real multifacetada. (...) O seu estudo apropriado exige vrias teorias e abordagens aplicadas em conjunto, e nenhuma abordagem isolada capaz de facultar mais do que uma imagem parcial da realidade social transmitida pelas suas prprias perspectivas reduzidas e limitaes conceptuais. Neste sentido devemos acolher o eclectismo (1998:29). Inicialmente, foram formuladas trs questes que se torna necessrio reequacionar: De que forma transpomos individualmente para a Internet os vrios papis que representamos no quotidiano? De que modo as possibilidades interactivas introduzidas pela Internet alteram a nossa vida? Que contributo pode a Internet ter na reconstruo da identidade individual? Em geral, estas perguntas colocam em relao o conceito de identidade individual com um fenmeno, um novo media, a Internet. E, a partir dessa relao, evocado ainda um outro conceito, o de interaco social, na medida em que, atravs da Internet, os indivduos interagem com outras pessoas e organizaes a perspectiva assumida no se limita 29

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definio da Internet como tecnologia de informao, mas antes abrange a sua vertente social. Assim, podemos consentir que o problema que se configura atravs destas interrogaes diz respeito aos efeitos da interaco social na Internet sobre a identidade individual. As interaces sociais que ocorrem no ciberespao assumem contornos e caractersticas diferentes daquelas que estamos habituados a presenciar no nosso dia-a-dia no mundo real e, portanto, podem realmente ser designadas, como refere David Lyon, por novas relaes sociais. No entanto, no representam uma completa novidade, no sentido em que sofrem tambm influncias da aprendizagem social ocorrida no mundo real (...). Estamos assim perante uma nova noo de espao, onde fsico e virtual so mutuamente influenciveis, proporcionando um campo frtil para a emergncia de novas formas de socializao, de modos de vida e de organizao social (Cardoso 1998:116). 3.1. Construo da identidade a partir da ideia de representao teatral Erving Goffman elaborou um estudo sobre o modo como o indivduo em situaes de trabalho habituais se apresenta a si prprio e sua actividade perante os outros, as maneiras como orienta e controla a impresso que os outros formam dele, as diferentes coisas que poder fazer ou no fazer enquanto desempenha perante os outros o seu papel (1993:9). A sua anlise baseia-se numa perspectiva teatral, ou seja, o indivduo entendido como um actor (e um personagem) que representa determinado papel perante outros actores (e, simultaneamente, personagens), que so, ao mesmo tempo, o seu pblico. Goffman verifica que, na interaco entre o indivduo e os outros, importante o acesso por parte dos outros a informaes sobre o indivduo. As informaes sobre o indivduo ajudam a definir a situao, permitindo aos outros saberem de antemo o que espera o indivduo deles e o que podero eles esperar do indivduo (1993:11). Para obter essas informaes, existem vrias fontes: o comportamento e a aparncia; a experincia passada; o que o indivduo afirma sobre si mesmo e as provas que apresenta para justific-lo; ou, suposies formuladas previamente interaco. Por outro lado, para causar impresso nos outros (sobretudo na primeira interaco), o indivduo usa a sua expressividade, que, de acordo com Goffman, pode ser de dois tipos: a expresso que transmite e a expresso que emite. No primeiro caso, refere-se utilizao de linguagem verbal, enquanto o segundo diz respeito linguagem no verbal. Atravs de ambos, o indivduo comunica falsas informaes, mas a dissimulao das expresses

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emitidas, mais prximas das expresses teatrais, que interessa ao autor. A aco do indivduo , nesse caso, calculada ao ponto de parecer aos outros no ser intencional. Apesar do contexto especfico a que aplicado este estudo e do facto da interaco analisada por Goffman se relacionar com uma situao de presena fsica e uma comunicao face a face, possvel extrapolar alguns aspectos desta perspectiva terica para a abordagem da reconstruo da identidade na Internet. Em primeiro lugar, o ciberespao pode ser observado como um palco, associando, desde logo, a metfora teatral ao espao onde a interaco decorre. Brenda Laurel defende que o teatro deve ser uma pedra basilar na concepo do design da interface utilizada no computador por dois motivos: por um lado, a interface representa uma aco com mltiplos agentes; e, por outro, o teatro sugere um modelo familiar, compreensvel e evocativo (1993:21). Note-se que a interface pode corresponder ao aspecto do sistema operativo que utilizamos, tal como ao software do nosso servio de email, dos chats em que participamos, etc. Assim, num mundo representacional, constitudo por janelas, que os indivduos vo interagir e, atravs dessa interaco, reconstruir as suas identidades. Por outro lado, Goffman considera que o indivduo representa um papel quando interage com os outros no seu ambiente de trabalho. Esta premissa pode ser aplicada a outras organizaes sociais e a outros espaos de interaco social, como o caso da Internet. Online, o indivduo pode estabelecer contactos profissionais ou pessoais e, em ambas as situaes, pode pretender causar diferentes impresses nos outros, usando para isso mecanismos e tcnicas de representao. A necessidade de informaes para se dar incio a uma verdadeira interaco tambm se verifica nas comunicaes interpessoais na Internet. Por exemplo, quem no passado frequentou salas de chat do IRC reconhece facilmente a abreviatura dd tc (de onde teclas), uma das primeiras questes que se colocavam a um novo participante. claro que o indivduo pode transmitir falsas informaes e, por no estar face a face com o seu interlocutor, pode ser mais fcil engan-lo, porque o outro no dispe dos mecanismos de controlo da comunicao presencial. Contudo, a coerncia do seu comportamento virtual (que tambm pode ser emitido na acepo adoptada por Goffman) um aspecto que vai ser observado pelos outros e, nesse caso, a fraude pode ser descoberta. Apesar disso, tal como na vida real, existe dissimulao. Um exemplo pode ser a troca de uma fotografia com outra pessoa: desde a forma como um indivduo prope ao outro o envio fotografia em si (o contexto, o enquadramento, a representao) pode existir uma31

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estratgia calculada para impressionar o outro, sem a informao emitida corresponder verdade. 3.2. Interagir atravs das janelas Para que as pessoas possam interagir com os computadores, necessrio uma interface. Este , nas palavras de Brenda Laurel (1990), o locus cognitivo da interaco humanacomputador, ou seja, o local onde o homem entra em contacto com o computador, apesar das diferenas que os afastam. Graas interface, o computador enquanto mquina complexa torna-se numa mquina simples de utilizar pelo homem. O sistema operativo do nosso computador , portanto, uma interface e permite-nos, recorrendo a vrios programas, realizar tarefas. Assim, quando navegamos na WWW ou comunicamos atravs de um Instant Messaging Service (IM), ligar o respectivo programa corresponde normalmente a abrir uma janela. Essa janela pode representar apenas mais uma aberta no desktop do computador, podemos voltar a fech-la, maximiz-la, minimiz-la, ajustar o seu tamanho ou arrast-la para qualquer parte do ecr. Para Sherry Turkle, as janelas so uma poderosa metfora para pensar no eu como um sistema mltiplo e fragmentado. De facto, o indivduo tem a possibilidade de, atravs das janelas, realizar vrias tarefas, relacionadas com dimenses distintas da sua existncia. O eu j no se limita a desempenhar diferentes papis em cenrios e momentos diferentes (...). A prtica vivida nas janelas a de um eu descentrado que existe em muitos mundos e desempenha muitos papis ao mesmo tempo (1997:18). Nicholas Negroponte explica que as janelas existem porque os ecrs dos computadores so pequenos. Assim, com este dispositivo, um espao relativamente pequeno pode ser usado para manter activos uma srie de processos diferentes ao mesmo tempo (1996:121). As janelas foram pensadas e criadas justamente para permitir realizar diversas aces em simultneo. Negroponte acrescenta ainda que nos habituamos s janelas de forma natural, comparando-o prtica de andar de bicicleta. Os utilizadores de computadores nem se quer se lembram de como aprenderam a faz-lo; fazem-no simplesmente. Na opinio de Turkle, o facto de cada uma das janelas ter um contexto especfico e cada actividade que o indivduo desenvolve ter lugar numa janela permite concluir que a identidade duma pessoa no computador a soma da sua presena distribuda (1997:17). Assim, se questionarmos quem somos quando estamos online, podemos responder que somos o jornalista que envia um email a solicitar uma entrevista para uma reportagem que est a desenvolver; o f de cinema que escreve diariamente no seu blogue sobre novos filmes ou

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festivais a decorrer; o amigo de uma pessoa que vive em Macau com quem troca mensagens num IM, entre vrias outras hipteses. Contudo, cada vez mais, as pessoas organizam o seu significado no em torno do que fazem, mas com base no que so ou acreditam ser (Castells, 2002:3-4). Como consequncia, o email que enviamos, o blogue que actualizamos ou as mensagens que enviamos pelo IM no constituem a nossa identidade, mas sim o facto de nos identificarmos como jornalista, f de cinema e amigo. Na Internet, a interaco com pessoas e organizaes feita atravs da tecnologia disponvel e as suas respectivas ferramentas (neste caso, email, blogue e IM), mas so as ideias que projectamos de ns, daquilo que consideramos ser, que operam uma reconstruo da nossa identidade. 3.3. Reconstruir a identidade mediante processos de interaco Antes de mais, importa justificar o porqu de se optar pelo termo reconstruo e no construo da identidade. Como foi explicado no segundo captulo, a noo de identidade hoje interpretada de uma forma diferente. O fenmeno da globalizao, nomeadamente a sua dimenso cultural, impede-nos de olhar para a identidade como algo fixo e rgido. A identidade resulta de uma construo e caracteriza-se no apenas pelos hbitos do pas onde nascemos nem pelas tradies religiosas que cultivamos. Dado que a Internet entrou nas nossas vidas somente a partir da dcada de 1990, a perspectiva aceite que, neste novo media, os indivduos podem reconstruir a identidade que, entretanto, construram nas suas prticas e rotinas quotidianas (apesar de eventualmente uma gerao nova estar neste momento a construir a sua identidade na Internet e, por isso, podermos imaginar o prefixo re entre parntesis). De acordo com Manuel Castells, a Internet foi apropriada pela prtica social, em toda a sua diversidade (2001:118). O autor conclui que, apesar de se argumentar que a Internet, por um lado, daria origem a um novo tipo de comunidade e, por outro, causaria alienao relativamente ao mundo real, o novo media no afectou de forma drstica o quotidiano dos indivduos, mas acrescentou a interaco online s relaes sociais existentes, o que , afinal, um efeito positivo. Por sua vez, James Slevin analisa trs tipos de interaco social que a Internet possibilita e cujas caractersticas altera, quando comparada s mediaes anteriores (2000:79-80). o caso da interaco face a face, que, apesar de no ser possvel num sentido tradicional, complementada com a interaco atravs da tecnologia o exemplo apresentado por Slevin diz respeito aos membros de uma equipa de um projecto responsveis pela criao de um stio33

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na Web que podem trocar emails entre si e, ao mesmo tempo, combinar encontros face a face para discutir o desenvolvimento do projecto. O segundo tipo de interaco evocado a interaco mediada. Tradicionalmente, esta ocorria atravs de cartas e telefonemas, envolvia o contacto especfico de um indivduo relativamente a outro e tomava uma forma de dilogo (caracterizado pela interaco perguntaresposta). Na Internet, as possibilidades deste tipo de interaco aumentam exponencialmente, porque, por um lado, existem ferramentas que permitem trocas comunicativas individuais entre pessoas que se conhecem (como o email, os servios que realizam chamadas telefnicas, os chats) e, por outro, esto tambm disponveis ferramentas que permitem comunicar com vrias pessoas em simultneo (nomeadamente os canais de IRC, os fruns de discusso ou os mundos virtuais como o Second Life). O terceiro tipo relaciona-se com quase-interaco mediada, que se diferencia do tipo enunciado anteriormente por se dirigir a um nmero indefinido de destinatrios e se baseia fundamentalmente num monlogo. Habitualmente, este tipo de interaco estava associada aos livros, jornais, rdio e televiso. No ciberespao, sofre drsticas alteraes, porque apesar de podermos encontr-lo nas homepages ou nos blogues, estes recursos esto no limiar entre este tipo de interaco e a interaco mediada. Efectivamente, a prpria construo de uma homepage ou de um blogue feita tendo em conta o contacto que vai estabelecer entre um indivduo e outros cibernautas e cada vez mais possvel interagir com os indivduos que produzem os seus espaos na Internet (por exemplo, nos blogues, a ferramenta comentrios). Para compreender as novas formas de interaco social existentes na Internet, Castells sugere a substituio da ideia de comunidade pela ideia de rede. As comunidades (...) baseavam-se na partilha de valores e da organizao social. As redes so construdas pelas escolhas e estratgias dos actores sociais, sejam eles indivduos, famlias ou grupos sociais (2001:127). Na opinio deste autor, o padro de sociabilidade que surge nas sociedades contemporneas , desta forma, caracterizado pelo individualismo em rede, combinando o crescente individualismo que se distingue na evoluo das relaes sociais com o novo tipo de relacionamento em rede. Neste padro social, os indivduos criam as suas redes, online e offline, com base nos seus interesses, valores, afinidades e projectos (2002:131). A interaco social online, graas flexibilidade e poder comunicativo da Internet, desempenha, assim, um importante papel na organizao social. As redes online, quando estabilizam a sua prtica, podem construir comunidades, comunidades virtuais, distintas das comunidades fsicas, mas no necessariamente menos intensas ou eficientes na unio e34

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mobilizao (2001:131). Para Castells, o suporte material do individualismo em rede o desenvolvimento deste hbrido comunicacional, que alia o espao fsico ao ciberespao. Com a ajuda das novas tecnologias, o novo padro de interaco social contribui decisivamente para o advento da sociedade de informao. 3.4. Concluso Nesta etapa, possvel a partir da reformulao das perguntas iniciais iniciar a definio do quadro conceptual da investigao. As trs noes fundamentais do problema interpelado nestas pginas so os conceitos de identidade individual e de interaco social e o fenmeno da Internet, a seguir definidos. Identidade individual entendida como o conjunto de caractersticas (fsicas e psicolgicas) que permitem distinguir e reconhecer uma pessoa em particular. Interaco social consiste no intercmbio comunicacional ou relao de comunicao que se estabelece entre indivduos ou grupos. Internet reconhecida como a rede das redes, um novo media que engloba um conjunto de servios que permitem aos seus utilizadores interagirem entre si. A partir do exame das dimenses que estas noes englobam, pretende-se formular as hipteses que permitiro responder, aps a observao e anlise das informaes recolhidas, pergunta Quais os efeitos da interaco social na Internet sobre a identidade individual? 4. Identidade e interaco na Internet Tendo definido as noes sobre as quais se debrua esta investigao, interessa agora pensar as dimenses que constituem os conceitos de identidade individual e de interaco social. Relativamente identidade individual, as dimenses que se revelam pertinentes para responder pergunta que serve de fio condutor da investigao so as seguintes: Dimenso pessoal rene as caractersticas que definem quem o indivduo na formulao que ele faz de si prprio. Dimenso interpessoal engloba os elementos que caracterizam o indivduo na relao social que estabelece com os outros, ou seja, atravs das impresses que transmite e emite (na perspectiva de Goffman). Dimenso profissional diz respeito s caractersticas que distinguem o indivduo na relao profissional que mantm com outros indivduos, representando determinado papel (mais uma vez, semelhana da abordagem de Goffman).35

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Para analisar estas dimenses, os indicadores disponveis so as rotinas e as prticas desenvolvidas em determinados contextos, associados a cada uma das dimenses isto , contextos de expresso pessoal (por exemplo, um blogue onde um indivduo fala sobre um dos seus hobbies), de comunicao interpessoal (como o uso dirio de um Instant Messaging Service) e de prticas profissionais (um exemplo habitual o uso de email profissional no emprego ou fora dele). Tal como exemplificado, os contextos dizem respeito utilizao da Internet, desde a troca de mensagens numa rede social construo de um blogue, entre outros. Contudo, como observar verdadeiramente a dimenso pessoal? Um blogue pode, partida, incluir informaes que esto relacionadas com esta dimenso, mas o indivduo est consciente de que, ao construir a sua pgina ou dirio pessoal, vai ter um eventual pblico, constitudo por pessoas conhecidas e desconhecidas, que necessariamente vai querer impressionar de determinada forma. Como esta dificuldade ser difcil de superar, considerase partida que os contextos de expresso pessoal contm traos da dimenso pessoal e sero as fontes mais eficazes para analis-la, no mbito desta investigao. No caso do conceito interaco social, sero retomadas as trs dimenses indicadas por James Slevin (ver subcaptulo 3.3). Interaco face a face Interaco mediada Interaco quase mediada

Apesar da interaco face a face no ocorrer, num sentido fsico, na Internet, importante verificar a forma como a interaco mediada ou quase mediada estabelece condies para a interaco face a face ter lugar, pelo que ser considerado um indicador desta dimenso a utilizao de determinado servio da Internet tendo em vista esse objectivo. Relativamente interaco mediada, ser analisada tendo como indicador a utilizao dos seguintes servios: Instant Messaging Services (IM), contas de email, sites de partilha e discusso, Social Networking Sites (ou redes sociais), servios VoIP e Second Life. Por ltimo, a interaco quase mediada vai ter como indicador a actualizao e manuteno de blogues. 4.1. Comunicar na Internet O que , ento, comunicar na Internet?, pergunta Gustavo Cardoso. fazer aquilo que aprendemos em sociedade, integrar diversas redes de relaes pessoais, profissionais, de amizade (...). criar novos limites que tm menos a ver com a distncia fsica e mais com a partilha de interesses comuns. , acima de tudo, comunicar, isto , trocar ideias, num espao

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mais vasto do que aquele a que tnhamos acesso antes do aparecimento da Internet (2003:95). Na rede das redes, estar online e comunicar com os outros pode ocorrer de vrias formas. A comunicao mediada por computador (CMC) consiste, nas palavras de Cardoso, no processo de envio de mensagens, em texto ou integrando imagem e som, atravs da utilizao directa por parte dos utilizadores de computadores e das redes de comunicao (1998:4). E, como foi referido anteriormente, existem diversos servios na Internet que permitem a CMC com os nossos amigos, familiares ou meros desconhecidos. Este tipo de comunicao tem caractersticas especficas, como Gustavo Cardoso salienta (2003:79-89). Por um lado, comunicar online , na maior parte dos casos, sinnimo de escrever da mesma forma que se fala, ou seja, uma escrita oralizada que recorre frequentemente a abreviaturas. No entanto, de notar que cada vez mais se utilizam outros recursos multimdia, nomeadamente o vdeo, quer para fazer videochamadas nos IM, quer para construir vlogs com excertos de imagens em movimento das nossas vidas. Outra caracterstica desta interaco que pode ocorrer em tempo real (isto , de forma sincrnica) ou em diferido (ou seja, de modo assincrnico). Antes da Internet, esta diferena verificava-se entre uma chamada telefnica e uma carta. Hoje, os seus correspondentes no ciberespao podem ser a utilizao de um IM e o envio de um email, porque este ltimo pode no ser recebido e lido pelo destinatrio de imediato, enquanto no IM a conversa processa-se quase ao mesmo tempo que se escrevem as palavras no ecr. 5. Observar a reconstruo online da identidade 5.1. Hipteses Pensar nas hipteses que vo conduzir a observao e anlise emprica , de certo modo, equacionar as respostas possveis para a pergunta Quais os efeitos da interaco social na Internet sobre a identidade individual? Nas perspectivas tericas, foram facultadas algumas possibilidades. Manuel Castells (2001) constata que a interaco online na Internet se tornou num complemento das relaes sociais existentes, hiptese que esta investigao poder tentar confirmar ao analisar como as interaces mediadas e quase mediadas proporcionam e estimulam a interaco face a face. Por sua vez, Nicholas Negroponte (1996) verifica que a utilizao do email num contexto profissional altera o ritmo do trabalho e do lazer, porque est acessvel no apenas no emprego, mas em casa ou durante as viagens (basta ter acesso Internet). Tambm interessa37

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neste projecto estudar esta hiptese, visto que incide sobre a alterao de uma dimenso da identidade dos indivduos. Consequentemente, importa perceber: Se a construo de um blogue (ferramenta que permite uma interaco social quase mediada) altera a forma como o indivduo se perspectiva em relao a si mesmo e o modo como se relaciona socialmente online e offline. Se a utilizao habitual de Instant Messaging Services (IM), Social Networking Sites (ou redes sociais) e de email pessoal modifica as relaes sociais dos indivduos e a maneira como se representam perante os outros. Se a utilizao de ferramentas interactivas como o email, o blogue, os newsgroups, o IM ou os servios VoIP no mbito profissional altera as prticas de trabalho e a relao com os colegas e as organizaes. 6. Diz-me como comunicas na Internet 6.1. Metodologia As entrevistas6 foram realizadas entre 17 de Maro e 14 de Maio de 2008 via email e atravs de uma aplicao online disponibilizada pelo site PollDaddy7. Os cibernautas portugueses convidados a participar foram escolhidos aleatoriamente, atravs de uma pesquisa atravs da blogosfera (recurso ao agregador de blogues em lngua portuguesa Blog.com.pt8), na sua maioria associada aos servios do Blogger9 e do Sapo Blogs10. Ao todo, foram contactados por correio electrnico ou via comentrio em blogues/perfis 42 utilizadores. Alm disso, os links para a aplicao online foram divulgados em 3 blogues portugueses, com autores distintos, e 1 perfil da rede social Hi5. 6.2. Caracterizao dos entrevistados Foram consideradas completas 13 entrevistas, abrangendo utilizadores dos 25 aos 61 anos. Trata-se, assim, de respostas de 7 internautas do sexo masculino e 6 do sexo feminino. A maioria tem formao superior (7) e os restantes frequentaram o ensino secundrio (6). Por regies, a maior parte reside em Lisboa (6), seguindo-se o Centro e o Norte com 3 utilizadores cada e, por ltimo, o Algarve com 1 utilizador. Quanto ferramenta utilizada para responder,Tendo em conta os resultados pretendidos, este projecto aplicou uma metodologia de natureza qualitativa. Como Jos Gonalves das Neves explica, trata-se de um mtodo que recusa a quantificao do objecto de estudo em nome da captao do genuno significado inerente ao objecto de estudo (2005:2). Por isso, a tcnica escolhida para recolha da informao foi a entrevista semi-estruturada, com recurso a um guio comum vide anexos. O tratamento da informao foi realizado atravs da anlise de contedo. 7 Acedido atravs do endereo www.polldaddy.com (Maio 2008). 8 Disponvel em http://blog.com.pt/ (Maio 2008). 9 Pgina inicial em www.blogger.com (Maio 2008). 10 Pgina inicial em http://blogs.sapo.pt/ (Maio 2008). 386

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7 entrevistados optaram pela aplicao do PollDaddy e 6 remeteram a sua participao via email. 6.3. Utilizao da Internet A maioria dos entrevistados acede diariamente Internet e apenas 1 respondeu navegar online apenas 3 a 4 vezes por semana. O tempo dessa utilizao varia entre um mnimo de 2 horas e um mximo de 10 horas. Em mdia, cada utilizador passa cerca de 4 horas a realizar as suas tarefas habituais na Net. O trabalho referido como principal lugar de acesso por 4 dos inquiridos, mas 3 afirmam ainda navegar a partir de casa. Este , de resto, o local preferido para aceder Internet, sendo indicado em primeiro lugar por 9 dos cibernautas (5 dos quais tambm possui essa ferramenta no trabalho). No que diz respeito a servios utilizados, o email o mais popular (mencionado por 10 entrevistados), seguido dos blogues (7) e do Instant Messaging Service ou IM (6). Entre as restantes referncias, destaca-se ainda a consulta de sites de informao (4 cibernautas), motores de busca (3), sites bancrios (2) e enciclopdias (2). Quadro 1: Caractersticas da utilizao de Internet realizada pelos entrevistadosFrequncia Entrevista 1 Entrevista 3 Diria Diria Durao + 5 horas 8 horas Acesso 1. Trabalho 2. Casa 1. Trabalho 2. Casa Entrevista 4 Entrevista 6 Entrevista 7 Entrevista 8 Entrevista 12 Entrevista 13 Entrevista 16 Entrevista 17 Entrevista 18 Diria Diria Diria Diria 3 a 4 vezes por semana Diria Diria Diria Diria 6-10 horas 3-4 horas 3-4 horas 4-5 horas 3 horas 3 horas 5-6 horas 3 horas 2 horas Casa 1. Casa 2. Trabalho Trabalho Casa 1. Casa 2. Trabalho 1. Trabalho 2. Casa 1. Casa 2. Trabalho Casa 1. Casa 2. Trabalho Email, blogue Blogues, sites de informao, sites oficiais 39 Email, IM Blogue, email Sites bancrios, email, motores de busca Email, site e.constroi, sites de informao, servios de lazer Email, IM Tipo de servios Email, enciclopdias, sites de informao Motores de busca, blogues, sites de informao, portais de vdeos, IM, agregadores de feeds IM, blogues, email Sites bancrios

A Reconstruo da Identidade na Internet _________________________________________________________________________________________ Entrevista 20 Diria 2 horas 1. Casa 2. Trabalho Entrevista 21 Diria 3-4 horas Casa Email, IM, blogues, enciclopdias, actividades multimdia na rea da educao Email, blogue, redes sociais, IM, motores de busca

6.4. Relao