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A R T I G O S A R T I G O S A R T I G O S A R T I G O S A R T I G O S SULIVAN CHARLES BARROS Resumo: as religiões têm sido responsáveis por manifestações acabadas de fanatismo e intolerância. Massacres, torturas, guerras, perseguições e outras atitudes e práticas têm testemunhado o que de pior o ser hu- mano apresenta, e muitas vezes tais atrocidades são feitas em nome de Deus. A este fenômeno, damos o nome de fundamentalismo. O funda- mentalismo sempre existiu nas tradições religiosas. Ele consiste em interpretar literalmente o texto sagrado, sem contextualizá-lo, extra- indo deduções alegóricas e subjetivas como a única verdade univer- salmente válida. Os oponentes de suas crenças e ideologias são acusados de conspirações fantasiosas que justificam ações drásticas como a “pu- rificação do mundo” pela destruição dos “agentes da corrupção” e mais que isso, seus oponentes são rotulados como os agentes de Satã e, portanto, devem ser exterminados. ENTRE A ESPADA E O SERMÃO: REFLEXÕES SOBRE FUNDAMENTALISMO E INTOLERÂNCIA RELIGIOSA s religiões, que, em princípio, deveriam servir para aperfeiçoar o ser humano, aproximando-o da divindade, têm sido responsáveis por manifestações acabadas de fanatismo e intolerância. Massacres, tor- turas, guerras, perseguições, violência e outras atitudes e práticas de- ploráveis têm testemunhado o que de pior o ser humano apresenta, e muitas vezes tais atrocidades são feitas e justificadas em nome de Deus. A Palavras-chave: intolerância religiosa, fanatismo, fundamentalismo

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A R T I G O SA R T I G O SA R T I G O SA R T I G O SA R T I G O S

SULIVAN CHARLES BARROS

Resumo: as religiões têm sido responsáveis por manifestações acabadas defanatismo e intolerância. Massacres, torturas, guerras, perseguições eoutras atitudes e práticas têm testemunhado o que de pior o ser hu-mano apresenta, e muitas vezes tais atrocidades são feitas em nomede Deus. A este fenômeno, damos o nome de fundamentalismo. O funda-mentalismo sempre existiu nas tradições religiosas. Ele consiste eminterpretar literalmente o texto sagrado, sem contextualizá-lo, extra-indo deduções alegóricas e subjetivas como a única verdade univer-salmente válida. Os oponentes de suas crenças e ideologias são acusadosde conspirações fantasiosas que justificam ações drásticas como a “pu-rificação do mundo” pela destruição dos “agentes da corrupção” emais que isso, seus oponentes são rotulados como os agentes de Satãe, portanto, devem ser exterminados.

ENTRE A ESPADA E O SERMÃO:

REFLEXÕES SOBRE FUNDAMENTALISMO

E INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

s religiões, que, em princípio, deveriam servir para aperfeiçoar o serhumano, aproximando-o da divindade, têm sido responsáveis pormanifestações acabadas de fanatismo e intolerância. Massacres, tor-turas, guerras, perseguições, violência e outras atitudes e práticas de-ploráveis têm testemunhado o que de pior o ser humano apresenta, emuitas vezes tais atrocidades são feitas e justificadas em nome deDeus.

A

Palavras-chave: intolerância religiosa, fanatismo, fundamentalismo

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O problema é que muitos dos que crêem acreditam serem os únicos a pro-fessarem a ‘religião verdadeira’: supõem acreditar no Deus certo, de-monstrar sua crença de forma certa e apoiar uma estrutura certa depoder religioso. Certezas, que segundo eles, teriam sido reveladas pelaprópria divindade, daí não poderem ser contestadas ou sequer discu-tidas.

Certezas que têm sido impostas aos ‘nativos’, aos ‘infiéis’, aos ‘hereges’, aosque se desviam do caminho da “Verdade”. Impostas a sangue e fogopelos cruzados, pela tortura e pela fogueira às “bruxas” ao longo dahistória, por homens-bomba muçulmanos aos ocidentais, pelo vene-no líquido e gasoso aos adeptos e vítimas de certas seitas modernasde caráter messiânico.

A este fenômeno, damos o nome de fundamentalismo. O fundamentalismosempre existiu nas tradições religiosas. Ele consiste em interpretarliteralmente o texto sagrado, sem contextualizá-lo, extraindo dedu-ções alegóricas e subjetivas como a única verdade universalmente vá-lida. É um movimento moderno por excelência que se configura comouma reação à cultura científica e secular que nasceu no Ocidente edepois se arraigou em outras partes do mundo.

A tentativa de compreender o mundo exclusivamente através do prisma dareligião pode desencadear um processo de limitação das liberdadesindividuais. E costuma surgir como resposta a alguma ameaça exter-na. Em meados do século XIX, alguns seguidores do Protestantismonorte-americano passaram a se sentir ameaçados pelo impulso demudança que tomava conta da sociedade. Em oposição aos protes-tantes mais liberais, eles começaram a defender uma interpretaçãoliteral da bíblia – ou, na visão daqueles, um retorno aos fundamentosdo cristianismo. Em 1915, um grupo de professores de Teologia daUniversidade de Princeton publicou uma coleção intituladaFundamentals: a testimony of the truth (apud ORO, 1996). A partirde então, os seguidores desse novo Protestantismo passaram a se de-nominar fundamentalistas. Atualmente o termo fundamentalista ro-tula desde grupos extremistas islâmicos até seguidores de seitasapocalípticas.

Os fundamentalistas acreditam que estão combatendo forças que ameaçamseus valores mais sagrados. Eles se acreditam possuidores das verda-des reveladas e os únicos administradores competentes do sagrado edo religioso. Geralmente todo fundamentalista é, a ferro e fogo, um

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‘altruísta’. Está tão convencido de que só ele enxerga a verdade quetrata de forçar os demais a aceitar o seu ponto de vista... para o bemdeles!

Todos os dias somos bombardeados com notícias sobre novos atentados emtradicionais zonas de conflito. Repetindo o eterno ciclo de violênciasque se arrasta desde as cruzadas, quando cristãos e muçulmanos digladiavam-se, facções religiosas pregam o ódio mútuo – muitas vezes com a ajudados meios de coerção de seus próprios Estados – como forma de defen-der seus dogmas e ideologias.

Em Israel, por exemplo, grupos judaicos fundamentalistas pleiteiam umEstado regido pelas leis da Torá em vez de um sistema de governolaico. A mesma lógica – de defesa dos fundamentos de sua fé – permeiaos ataques de fiéis evangélicos a cultos afros no Brasil. O argumentoé de que esses fiéis se sentiriam ameaçados pelos rituais praticados nocandomblé e na umbanda, que, na visão deles, estariam associados aobras do demônio e iriam contra a vontade de Deus.

Talvez ainda sejamos obrigados a conviver com a rotina diária da religião aserviço do ódio – ou vice-versa – durante um bom tempo. As per-guntas que ficam, e que irão permear todo o trabalho são: É possívelresgatar o passado sem aniquilar o futuro? Podemos lidar com a tra-dição sem violentar o presente? Que sentimentos e elementos consti-tuem o fundamentalismo e a intolerância religiosa?

Ao tentar responder estas questões, não estaremos querendojustificar tais fanatismos. Pelo contrário. O entendimento sobre estesfenômenos, poderá apontar alternativas de que dispomos para cons-truir uma sociedade que se proponha a ser no mínimo tolerante.

Podemos dizer de início que não é com violência que venceviolência, nem é com ódio que vence ódio. É com amor e respeitoque vence o ódio. É com diálogo incansável, com entendimento, coma negociação aberta e com a cooperação mútua que se tiram as basesde qualquer de qualquer ódio e fundam a paz.

A EXPERIÊNCIA DO SAGRADO E AINSTITUCIONALIZAÇÃO DA RELIGIÃO

Para introduzir a construção teórica, a partir da qual esta reflexão tomaforma, quer pelas aproximações, quer pelos distanciamentos de au-tores e debates, destaca-se o fato de que a preocupação com a experi-

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ência religiosa de indivíduos e grupos sociais representa tópico cen-tral em várias ciências dedicadas ao estudo do homem e na filosofia.

A reflexão sobre o sagrado envolve a consideração do profano. Ele se apre-senta absolutamente diferente do profano, isto é, o primeiro relacio-na-se a uma divindade e o segundo, não.

A palavra sagrado tem o sentido de separação e definição, implicando emmanter separadas as experiências sagradas das não-sagradas, isto é,profanas. O sagrado manifesta-se sempre como uma realidade de or-dem inteiramente diferente da realidade do cotidiano. O ato de ma-nifestação do sagrado é indicado pelo termo hierofania, queetimologicamente significa algo de sagrado que se revela. Do latimsacratu – aquele que recebeu a consagração – as coisas divinas.

Sagrado e profano não são propriedades das coisas. Eles se estabelecem pe-las atitudes dos homens perante coisas, espaços, tempos, pessoas, ações.O mundo profano diz respeito ao círculo das atitudes utilitárias e,portanto, cotidianas. O sagrado diz respeito ao centro do mundo, àorigem da ordem, à fonte das normas, à garantia da harmonia.

O ser humano, ao aceitar a hierofania, experimenta um sentimento religio-so em relação ao objeto sagrado. Não se trata de uma veneração doobjeto enquanto tal, e sim da adoração de algo sagrado que ele con-tém e que o distingue dos demais. A cruz de madeira, por exemplo,se revela para o cristão como sagrada e aponta para uma realidadesobrenatural, para algo que não está ali. Aparentemente, entretanto,ela continua de madeira, apesar de representar outra coisa que sim-bolicamente contém.

Há uma aptidão do homem em reconhecer o sagrado, como que uma dis-ponibilidade ao divino. O homem religioso busca um poder trans-cendente que o sagrado contém. Pode-se elaborar uma classificaçãodas coisas em: coisas do domínio do sagrado e coisas do domínio doprofano. As primeiras equivalem ao poder e constituem, por excelên-cia, uma realidade, conforme aponta Eliade (1996).

O homem tem necessidade de orientação, da ordem, do cosmo e, sendoassim, é fácil compreender que o ser religioso deseje profundamenteparticipar da realidade de existir num mundo sagrado. O poder é umatributo do sagrado e no discurso religioso significa força compulsi-va e imprevisível.

Desenvolvendo a idéia do sagrado como ordem, Eliade (1993; 1996) eDurkheim (1996) relacionam o momento religioso da consagração

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do mundo, isto é, o momento em que o território desconhecido,desocupado e na escuridão do caos, é transformado simbolicamentepelo homem em Cosmos, mediante a repetição ritual da Cosmogonia.

Observa-se que a palavra sagrado conota também certa idéia de totalidade.O simbolismo do Cosmos projeta uma imagem de completo, comoalgo que foi concluído. A totalidade é também ampliada para signi-ficar integridade no contexto social. Um empreendimento qualificadocomo importante que, uma vez começado, não deve ser deixado incom-pleto.

Por outro lado, o conceito de sagrado comporta, tanto a idéia de paradoxalcomo a de ambigüidade. “O sagrado é uma onda mansa de vida,induzindo no devoto um sentimento de serenidade e bem-estar”,conforme afirmação de Tuan (1979) e, de outra forma, “é uma força,violenta e imprevisível que causa terror” (GIRARD, 1998). O sagra-do pode ser tanto terrível quanto fascinante, as pessoas o temem e sesentem irresistivelmente atraídos por ele.

Segundo Chauí (2002), o sagrado pode suscitar devoção e amor, repulsa eódio. Esses sentimentos suscitam um outro: o respeito feito pelo te-mor. Nascem, aqui, o sentimento religioso e a experiência da reli-gião. A religião pressupõe que, além do sentimento da diferença entrenatural e sobrenatural, haja o sentimento da separação entre os hu-manos e o sagrado, mesmo que este habite os humanos e a natureza.

Em As formas elementares da vida religiosa (1996), Durkheim1 se propõe aestudar a religião mais simples que se conhece e a partir daí fazer suaanálise e tentar a sua explicação.

A escolha de Durkheim pelo estudo do totemismo australiano, que na suaconcepção seria a religião mais simples de que se tinha notícia, éjustificada sendo uma questão de cunho metodológico, pois, paraele, não haveria religiões falsas. Mesmo que algumas religiões empre-gassem funções mentais mais elaboradas que outras, ou fossem maisricas em idéias e em sentimentos e houvesse uma maior sistematiza-ção de seus ritos, para o autor todas elas são igualmente religiões,pois em suas respectivas sociedades elas “correspondem às mesmasnecessidades, desempenham o mesmo papel, dependem das mesmascausas” (DURKHEIM, 1996, p. VIII).

Por serem todas as religiões comparáveis e espécies de um mesmo gênero,haveria necessariamente elementos essenciais que lhes seriam comuns.Desta forma, o estudo de um sistema religioso primitivo permitiria

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não apenas destacar os elementos constitutivos da religião, mas tam-bém teria a grande vantagem de facilitar a sua explicação.

Ao exteriorizar sentimentos comuns, as religiões seriam também os primei-ros sistemas coletivos de representação do mundo, seriam cosmologias,isto é, narrativas a respeito da origem, da natureza e dos princípiosque ordenam o universo. Assim, “se a filosofia e as ciências nasceramda religião, é que a própria religião começou por fazer às vezes deciências e de filosofia” (DURKHEIM, 1996, p. XV). O interesse queo fez voltar-se às religiões era principalmente o de compreender ascategorias fundamentais do entendimento humano.

As categorias do entendimento humano, noções essenciais como as de tem-po, de espaço, de número, de causa, de gênero, de personalidadecorresponderiam às propriedades mais universais das coisas. São re-lações que existem entre as coisas e que, produzidas inicialmente nointerior do pensamento religioso, são expressas por meio de concei-tos e símbolos.

Segundo a teoria durkheimiana do conhecimento, as categorias do entendi-mento seriam instrumentos coletivos de pensamento que os gruposhumanos forjaram ao longo dos séculos e através dos quais as inteli-gências se comunicam. As categorias por serem representações coleti-vas, se tornam como: “hábeis instrumentos de pensamento, que osgrupos humanos laboriosamente forjaram ao longo dos séculos e nosquais acumularam o melhor do seu capital intelectual” (DURKHEIM,1996, p. XXVII).

Para a teoria durkheimiana, sagrado e profano não são propriedades dascoisas. Eles se estabelecem pelas atitudes dos homens perante coisas,espaços, tempos, pessoas, ações. O mundo profano diz respeito aocírculo das atitudes utilitárias e, portanto, cotidianas. O sagrado dizrespeito ao centro do mundo, à origem da ordem, à fonte das nor-mas, à garantia da harmonia.

Diferentemente da perspectiva de Durkheim, Karl Marx tende a insistirnum procedimento rigorosamente materialista de análise da religião.Para ele, a dialética da existência desenvolve-se no plano prático dasnecessidades materiais do homem e não no plano teórico-ideal.O econômico ou material é a infra-estrutura. O resto é subproduto oca-sional sobre o qual não exerce qualquer influência, e do qual é depen-dente, denominado de superestrutura. Matéria e consciência são apenasdois aspectos de uma e mesma realidade e atividade material.

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Na concepção do autor, a sociedade capitalista gerou duas classes sociaisantagônicas: a burguesia e o proletariado. Assim o próprio sistemacapitalista gerou sua negação, ou no dizer do autor “os seus próprioscoveiros”, isto é, os operários modernos. Marx acreditava que, pelarevolução comunista, criar-se-ia a sociedade perfeita, a sociedade semclasses. Nesta sociedade homogênea, não mais haveria exploração eseriam satisfeitas todas as necessidades materiais de todos. Com issoautomaticamente cessaria a alienação, não havendo, portanto, mais anecessidade da idéia de Deus. Terminaria então, desta forma, o pro-cesso dialético da história.

Na introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx (1983, p. 4)inicia o texto da seguinte forma: “Na Alemanha, a crítica da religiãochegou, no essencial, ao fim. A crítica da religião é a premissa detoda a crítica”. Para ele, a religião aliena o homem. A alienação religi-osa deve ser esclarecida a partir da situação histórico-social concreta.Mas a religião é a expressão da alienação do homem e não seu funda-mento. Antes, é o resultado.

A essência da alienação do homem encontra-se no contexto econômico, notipo de relações de produção geradas no mundo capitalista. Aí háduas classes sociais em oposição: de um lado, a burguesia que detémos meios de produção; do outro, o proletariado que detém apenas asua força de trabalho. Destruindo essa estrutura econômica tambémse destruiria a religião que seria o seu produto. Seriam as estruturaseconômicas que, segundo Marx, gerariam a falsa consciência, queseria a religião. Assim a idéia de Deus deveria ser entendida como oresultado de uma economia alienante. A religião era, antes de tudo, aessência desta sociedade alienada. Para ele,

A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, deoutro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida,o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situaçãocarente de espírito. É o ópio do povo (MARX, 1983, p. 5).

O que Marx quis dizer é que a religião funciona no sentido de pacificar osoprimidos e a opressão é definitivamente um erro moral. A religião –dizia ele – reflete o que faltaria na sociedade; seria uma “idealização dasaspirações” do povo que não poderiam ser satisfeitas de imediato. Ascondições sociais da Europa nos meados do século XIX tinham reduzido

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os trabalhadores a pouco mais que escravos; as mesmas condições pro-duziriam uma religião que prometia um mundo melhor na outra vida.

Ainda seguindo a perspectiva do autor, a religião seria apenas uma supersti-ção ou uma ilusão. Ela teria também uma função social: distrair osoprimidos da realidade de sua opressão. Enquanto os explorados acre-ditassem que seus sofrimentos lhes possibilitariam liberdade e felici-dade no futuro, estariam considerando a opressão como parte de umaordem natural – um fardo necessário e não uma coisa imposta pelosoutros homens. É isso o que Marx queria dizer ao chamar a religiãode “ópio do povo”: ela alivia a dor, mas ao mesmo tempo, tornaria oshomens indolentes, “obscurecendo” suas percepções da realidade etirando-lhes a vontade de mudança.

O que Marx queria então? Ele queria que as pessoas ‘enxergassem’ a durarealidade do capitalismo burguês do século XIX. Os capitalistas esta-vam extraindo mais-valia a partir do trabalho do proletariado, aomesmo tempo, que ‘alienavam’ os trabalhadores de sua auto-realiza-ção. O que os trabalhadores mereciam, e poderiam obter se acordas-sem de sua sonolência, era o controle de seu próprio trabalho, a possedo valor que geravam com esse trabalho e, conseqüentemente, auto-estima, liberdade, poder.

Para atingir esse fim, Marx clamava pela abolição da religião como felicida-de ilusória do povo. Ele queria que os trabalhadores buscassem a“felicidade real”, que na filosofia materialista do autor era a liberdadee a realização neste mundo. Já que os ricos e poderosos não iriamentregar isso de graça, as massas teriam de tomá-lo. Daí, a luta declasses e, conseqüentemente, a revolução.

É, sobretudo, no pensamento de Sigmund Freud que se manifesta uma crí-tica religiosa atéia. Para ele, o homem é um ser insatisfeito, que dese-ja sempre maior felicidade. Mas entre o seu desejo e a realidade háenorme distância. O infinito, contudo não passa de um produto dodesejo e da fantasia do espírito humano, pois é apenas uma idéia, ouseja, uma espécie de ilusão.

Freud dedicou alguns de seus estudos especificamente à religião: Totem etabu (1999); O futuro de uma ilusão (1997); O mal-estar na civiliza-ção (1997), Moisés e o monoteísmo (2001). Todas estas obras sãomuito ricas em hipóteses sobre a origem e a natureza da religião,baseadas sempre num ateísmo postulado e dogmático. Vale lembrarque o tema da religião é algo permanente na maioria de suas obras.

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Freud, dissertando sobre as idéias religiosas, mostra que estas são frutos detrês missões básicas: a) exorcizar os temores da natureza; b) reconci-liar os homens com a crueldade do destino; e c) compensá-los pelosofrimento e privações que uma vida civilizada lhes impôs2.

Dessa forma, Freud diz que a religião atendia, acima de tudo, a fortes eantigos anseios da humanidade: o anseio pelo pai, o anseio de defesacontra as forças esmagadoramente superiores da natureza e o anseiode retificar as deficiências da cultura. Com a religião, o homem rea-lizaria uma espécie de ‘intoxicação’, que o afastaria de parcelas inde-sejáveis da realidade, mas também da especificidade de seus desejos.

Freud incluiu a religião no rol das grandes ilusões. Uma ilusão, contudo,não seria um erro. Seria apenas algo que não precisaria se confirmar.Bastaria acreditar nela, independentemente de qualquer verificação.Ela ‘resolveria’ alguns problemas do homem e da civilização no mo-mento em que respondesse a enigmas da curiosidade humana taiscomo: a vida após a morte, o surgimento do universo... Além disso,constituiria alívio enorme para a psique do indivíduo se os conflitosde sua infância, que surgiram do complexo paterno, foram dela reti-rados e levados a uma solução universalmente aceita.

Para a crítica da religião, o conceito fundamental utilizado por Freud foi ode repressão, porque a religião para ele seria apenas neurose. O que aconsciência reprime para o inconsciente não se esquece, nem desapa-rece sem mais nem menos, mas continua operando no inconsciente einflui na vida consciente do homem.

As repressões realmente debilitantes na concepção freudiana ocorriam naprimeira infância quando a criança deveria exercer as primeiras re-núncias dos seus instintos e impulsos. A neurose se referia, portanto,a esta fuga do adulto ao mundo infantil. Aí os conflitos que nãoforam resolvidos na infância celebrariam sua ressurreição (DAVID,2003).

Freud via a religião como regressão do adulto ao mundo ideal da criança.A religião seria, portanto, uma neurose obsessiva universal da huma-nidade; tal como a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu a partirdo complexo de Édipo, do relacionamento com o pai.

Segundo a psicanálise freudiana, o complexo de Édipo representa fase decisi-va entre os 4-6 anos de idade. No seu relacionamento carinhoso com amãe, a criança sente o pai como rival. Divide o amor da mãe com opai. Por isso formam-se desejos agressivos em relação ao pai que, não

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raro, transformam-se no “desejo de matá-lo”. Mas, ao mesmo tempo, acriança sabe que necessita deste indivíduo paterno. Com isso, consti-tui-se na criança o conflito entre amor e ódio, afeição e hostilidade,admiração e medo do pai. Tais desejos negativos serão reprimidos noinconsciente. E a criança aprende o que se proíbe e o que se permiteem seu meio sociocultural, apropriando-se internamente desses pre-ceitos e proibições. Assim forma-se o superego.

Em Totem e tabu (1999), Freud afirmava que a vida religiosa do homemprimitivo girava em torno do totem. As tribos eram divididas emgrupos menores, ou clãs, tendo, cada qual, seus objetos materiais quese colocavam numa relação simbólica especial, que envolveria cren-ças e práticas específicas, variáveis conforme o grupo considerado.No começo era um animal (comível e inofensivo, ou perigoso e temi-do) e mais raramente um vegetal ou fenômeno natural (como a chu-va ou a água), que mantinham relação peculiar com todo o grupo eera visto como antepassado comum do clã.

Além da obrigação de respeitar a vida do totem observavam a exogamia,isto é, uma lei contra as relações sexuais entre pessoas do mesmototem e, conseqüentemente, contra seu casamento. Trata-se então daexogamia, uma instituição social relacionada com o totemismo.Esta proibição tornava-se algo notável por sua severa obrigatoriedade.A exogamia totêmica, ou seja, a proibição das relações sexuais entreos membros do mesmo clã, parecia, para Freud, ter constituído o meioapropriado para impedir o incesto grupal.

Enquanto a exogamia dava a impressão de ser uma ordenação sagrada de ori-gem desconhecida, a complicada instituição das classes matrimoniaisdos clãs totêmicos, com suas subdivisões e os regulamentos que a elasestavam vinculados, parecia mais o resultado de uma legislação delibera-da, que poderia talvez se ter encarregado de assumir a prevenção do in-cesto, em virtude do declínio da influência do totem (FREUD, 1999).

A este fenômeno de proibições e restrições distintas das proibições religio-sas ou morais, Freud cunhou o nome de tabu. As restrições do tabunão se baseavam em nenhuma ordem divina, mas se poderia dizerque estas se impunham por conta própria. A base do tabu seria, por-tanto, uma ação proibida, para cuja realização existiria forte inclina-ção do inconsciente.

Segundo a teoria freudiana o tabu se desenvolveu numa atitude emocionalambivalente: “sagrado” e “impuro”. Para Freud o tabu surgiu do con-

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traste existente entre o sofrimento consciente e a satisfação inconsci-ente em relação ao fenômeno que nele ocorreu. A esse respeito, asobservâncias do tabu, assim como seus sintomas neuróticos, teriamsentido duplo. Por um lado, em seu caráter restritivo, seriam expres-sões de pesar, mas, pelo outro, traziam claramente coisas que procu-ravam ocultar. Desta forma, pode-se dizer que a explicação do tabutambém lança luz sobre a natureza e a origem da consciência.

É possível, sem qualquer distensão do sentido dos termos, falar de umaconsciência tabu ou, após um tabu ter sido violado, de um senso deculpa tabu. A consciência tabu é provavelmente a forma mais remotaem que o fenômeno da consciência moral é encontrado.

Freud afirmou também que a consciência seria a percepção interna da rejei-ção de um determinado desejo a influir sobre os indivíduos. A ênfa-se, contudo, seria dada ao fato desta rejeição não precisar apelar paranada mais em busca de apoio, de achar-se inteiramente “certa de siprópria”. Isto se tornaria mais claro no caso da consciência de culpa– a percepção da condenação interna de um ato pelo qual realizou-seum determinado desejo.

Apresentar qualquer razão para isto poderia parecer supérfluo: quem querque tenha uma consciência deve sentir dentro de si a justificação pelacondenação, sentir a autocensura pelo ato que foi realizado. Essa mesmacaracterística poderia ser observada na atitude do selvagem para como tabu. Segundo o autor: “Trata-se de uma ordem emitida pela cons-ciência; qualquer violação dela produz um temível senso de culpaque vem como coisa natural e do qual a origem é desconhecida” (FREUD,1999, p. 76).

Tentando explicar o surgimento da religião, Freud partiu da hipótese dahorda primitiva e do assassinato do pai primevo. É a partir disso queFreud elabora uma teoria fazendo remontar a esse fato a origem daquase totalidade das instituições sociais e culturais posteriores.

Para ele, o homem primitivo vivia de maneira quase animal. As hordas demachos, na caça às fêmeas, tinham que se submeter ao mais poderoso(o pai) que exercia poder despótico. Segundo a interpretação de Freud,na horda primitiva, os filhos do patriarca uniram-se e o assassina-ram. Outro macho, o mais forte, o imita e lhe sucede. Repete-se ocrime. Assim conhecendo instituições como o respeito ao totem datribo, este os mantinha unidos. Reconheceram ainda a obrigação daexogamia para evitar a luta entre eles na conquista das fêmeas. Este

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seria o começo da organização social, baseada na renúncia ao com-portamento instintivo.

Contudo, uma vez consumado o crime, os irmãos se teriam dado conta deque nenhum deles poderia ocupar o lugar do pai, pois assim o ciclose repetiria indefinidamente. Para isso, celebravam um banquetesacrificial. Neste rito totêmico participavam todos os membros datribo. Sabendo que o animal sacrificado era considerado sagrado, estetinha o mesmo valor que o deus a quem se oferecia o sacrifício. Porisso, ao comer, aspirava-se à substância divina que protegia contra osperigos, fortalecendo a todos.

Como os irmãos já haviam assassinado o pai, este rito relembrava o antigohomicídio com sentimento de culpa e o animal sacrificado conver-tia-se na substância do pai. Se de um lado, o sacrifício totêmico unia-os com o pai primitivo, do outro lado, a morte do animal serviriapara recordar a unidade dos irmãos e seu triunfo sobre o pai tirano.

Este mesmo sentimento de culpa fazia com que os irmãos cumprissem umasérie de obrigações, as mesmas que antes haviam rejeitado. Compro-metiam-se a respeitar a vida do totem, que representava simbolica-mente a figura paterna; a respeitar as mulheres do clã por cuja possehaviam assassinado o pai. Desta forma, foi o sentimento de culpaque estabeleceu as proibições ou tabus do totemismo. A sociedadeestava agora baseada na cumplicidade deste crime comum.

Foi, portanto, no sentimento de culpa e no remorso a ele associado queoriginou, segundo Freud, os laços sociais. E o núcleo desta consciên-cia de culpa foi o complexo de Édipo, elemento constituinte das idéiasreligiosas. O pai simbolizava um tirano dominador que impunha leisaos seus filhos e estes o matam por ódio.

Em Moisés e o monoteísmo (1997), Freud descreveu a evolução do totemismoprimitivo até a chegada do monoteísmo. Como foi dito anteriormen-te, o animal totem seria a representação do pai divinizado. Este Deuspassaria a ter cada vez mais traços humanos e outros deuses foramcriados de acordo com as diferentes imagens de homens em suas situ-ações sociais, o que desencadeou o politeísmo. Deste, evolui-se até omonoteísmo quando Moisés converteu o pai tirano no Deus único.Isto desencadeou para o povo judeu de um lado, um sentimento desatisfação visto agora terem o Deus mais forte e, de outro, fazia comque estes proibissem a se fazer imagens deste Deus único, abrindo ca-minho para o que posteriormente se denominou de racionalidade.

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A religião se faz, sobretudo, com esperança e fé. Toda religião desembocanuma moral dogmática ou dela procede: o bem erigido em verdade,o dever em lei, a virtude em submissão. A religião se fundamentajustamente no esforço da humanidade para atingir uma clara e com-pleta consciência desses valores e metas e reforçar e ampliar incessan-temente o seu efeito.

Se as maneiras possíveis de entender a religião são muitas e nenhuma tem agarantia de ser a verdade definitiva, a religião não é apenas questãoteórica. É questão prática que envolve uma atitude de toda a pessoa.Por isso não podemos deixar de tomar determinada posição, enfren-tando o risco da crença ou da descrença. A própria indiferença étambém uma posição.

Embora filosofia e religião, sejam atitudes diferentes da consciência e doentendimento humano, cada uma delas não pode usurpar os modosde conhecer e agir nem as significações da outra. Compete ao filóso-fo da religião tentar compreender de que forma a fé reencontra seulugar na experiência do homem, pois quem está em jogo é o própriohomem e sua esperança na história.

FUNDAMENTALISMOS EM TEMPOS DE INTOLERÂNCIA

Historicamente, a intolerância está presente na esfera das relações huma-nas fundadas em sentimentos e crenças religiosas. É uma práticaque se autojustifica em nome de Deus; adquire o status de uma guer-ra de deuses encarnados em homens e mulheres que se odeiam e nãose suportam.

A história das grandes religiões monoteístas – cristianismo, islamismo ejudaísmo – indica momentos de convivência respeitosa, mas tam-bém períodos de intolerância entre as diversas religiões e a intra-reli-gião3. Os diversos fundamentalismos, cristão, judaico e islâmico,comprovam-no.

O fundamentalismo se caracteriza pela resistência aos processos de moder-nização das sociedades, em todas as épocas. Como já visto, os primeirosa utilizar este termo foram os protestantes americanos, os quais pas-saram a se autodenominar fundamentalistas com o objetivo de sediferenciarem do protestantismo considerado liberal.

Segundo os fundamentalistas, aqueles protestantes de cunho liberal “distorciaminteiramente a fé cristã. Eles queriam voltar às raízes e ressaltar o

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‘fundamental’ da tradição cristã, que identificavam como a interpre-tação literal das Escrituras e aceitação de certas doutrinas básicas”(ARMSTRONG, 2001, p. 10).

Na Idade Média, a intolerância religiosa se intensificou contra os judeus eos heréticos em geral. “Os inquisidores caçavam dissidentes e os obri-gavam a abjurar sua heresia, palavra que em grego significa escolha”,escreve Armstrong (2001, p. 24). A Inquisição na Espanha oprimiuos judeus, forçou-os à conversão ao cristianismo e, finalmente, ex-pulsou-os da península ibérica. Esta se tornaria uma prática comumem outras épocas e em outras nações.

Com a identificação entre religião e política, entre as diferentes facções do cris-tianismo (católicos, protestantes, anglicanos etc.) e os respectivos gover-nos representativos dos Estados-Nações, a perseguição aos dissidentes éintensificada e também motivada pelos interesses políticos em disputa.A inquisição espanhola, por exemplo, foi usada para “forjar a unidaderacional”. Mas a utilização deste recurso não se restringiu ao catolicismoromano. Como relata Armstrong (2001, p. 24): “Em países como aInglaterra seus colegas protestantes também foram implacáveis com osdissidentes católicos, tidos igualmente como inimigos do Estado”.

Com a formação e consolidação do Estados nacionais modernos, a intole-rância vincula religião à política, identificando uma à outra. O here-ge religioso passa a ser visto como um desafiante da ordem políticamonárquica; o dissidente político é encarado como um desafiadordo dogma religioso adotado pelo Estado-Nação. Dessa forma,

A intolerância religiosa assumiu formas especialmente virulentas, porquese julgava que a solidez do poder absoluto do rei dependia da aplicaçãodo princípio de que a religião do povo deveria ser a religião do príncipe.Desencadeadas por um massacre de protestantes ocorrido em 1562,as guerras de religião da França se caracterizaram por atrocidadessem precedentes, como a matança de São Bartolomeu (25 de agostode 1572), e só terminaram mais de 20 anos depois, quando Henrique4º assinou o Edito de Nantes, concedendo liberdade de culto aosprotestantes (1598). Mas a longa história da perseguição à religiãoreformada ainda não havia terminado, pois em 1685 Luís 14 revogouo Edito de Nantes, o que levou à demolição dos templos, à proibiçãodas assembléias e à imigração forçada de cerca de 300 mil protestantes.Mas estes eram tão intolerantes quanto os católicos. O teólogo Michel

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Servet foi queimado vivo [em 1553] em Genebra, por instigação deCalvino. Os católicos foram perseguidos na Inglaterra e até o século19 não gozavam de direitos políticos (ROUANET, 2003, p. 1-2).

Quando a intolerância religiosa parecia superada até recentemente, apesarde fatos isolados como o conflito entre católicos e protestantes naIrlanda do Norte, no fundo muito mais uma luta nacional do queuma verdadeira guerra religiosa. E eis que a intolerância religiosa voltaà atualidade, sob a forma de um novo fundamentalismo.

Em todas as situações, o fundamentalismo transforma a religião, vítimatradicional da intolerância, em principal agente da intolerância. Cu-riosamente, essa intolerância visa mais às correntes moderadas e se-culares dentro do seu próprio campo que às religiões rivais.

Na medida em que a intolerância se caracteriza pela incapacidade dedescentramento, de empatia com o ponto de vista do outro, da nãoaceitação da alteridade, o fundamentalismo tem sido um enorme obs-táculo à paz mundial, pois inviabiliza qualquer processo racional denegociação.

O grande perigo do fundamentalista consiste exatamente na certeza abso-luta e incontestável que ele tem a respeito de suas verdades. Deten-tor de uma verdade supostamente revelada especialmente para elepelo seu deus (portanto não uma verdade qualquer, mas ‘A Verda-de’), o fundamentalista não tem como aceitar discussões ouquestionamentos racionais com relação àquilo que apresenta comosendo seu conhecimento: a origem divina de suas certezas não per-mite que argumentos apresentados por simples mortais se contra-ponham a elas: afinal, como colocar, lado a lado, dogmas divinos eargumentos humanos?

A interpretação tradicional do fenômeno fundamentalista se dá a partir doentendimento deste como uma teodicéia destinada a explicar a perdade poder e prestígio das camadas tradicionais da sociedade e a disso-lução de seus sistemas valorativos e cognitivos, mobilizando estes seg-mentos a partir de uma volta aos sistemas tradicionais, o que implicanuma rejeição da modernidade, ou da Alta Modernidade como pre-fere Giddens (1991).

Em relação à modernidade, o fundamentalismo traz em si o discurso daafirmação e não da negação desta. Segundo Borradori (2004), estáequivocada a forma de compreender o fundamentalismo como o simples

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retorno a um modo pré-moderno de se relacionar com a religião, aocontrário, este fenômeno deve ser entendido como uma reação depânico à modernidade percebida mais como ameaça do que comooportunidade.

Segundo Lawrence (1999), há quatro condições essenciais para a caracteri-zação do fundamentalismo: um reforço recíproco entre crença e prá-ticas rituais; uma tradição articulada que deriva sua legitimidade daautoridade de textos religiosos; um líder carismático que lidere a for-mação institucional durante o processo, por vezes contestando a es-trutura vigente e, uma ideologia ligando o líder carismático aos gruposdispersos. Vale ainda lembrar, que os seguidores deste líder carismáticose apegam mais a um tratado atual dos textos sagrados feitos pelaslideranças do que ao texto sagrado propriamente dito.

A definição anterior atende, em parte, à questão de que o fundamentalismoé a afirmação da autoridade religiosa como holística e absoluta, nãoadmitindo crítica ou limitação; é expresso através da demanda co-letiva que aquelas ordenações doutrinárias e éticas derivadas dasescrituras sagradas deve ser publicamente reconhecida e legalmentereforçada. Neste plano as escrituras são o elemento legitimador daautoridade, aspecto que em si não é suficiente para enquadrar oconjunto dos fenômenos atualmente denominados de “fundamen-talismos”.

Em parte isso se dá porque as diversas fés tratam de forma diferente o papeldas escrituras. A substituição da escritura pela revelação, portanto alegitimação baseada numa transcendência é mais esclarecedora paracompreendermos o fenômeno contemporâneo da escalada dos dis-cursos religiosos no plano político. Um discurso convergente nestesfundamentalismos é, sem dúvida, o restabelecimento de um mundoperfeito, com o banimento das formas heréticas: os novos pagãos, anova magia, o esoterismo no campo da ciência moderna etc.

Contudo, é com o advento da república islâmica no Irã do Aiatolá Khomeinie com a consolidação de um discurso conservador nas esferas das trêsgrandes religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo),que o conceito de fundamentalismo adquiriu novas formas e cores,passando cada vez mais a significar movimentos de caráter conserva-dor e sectário. A idéia de que a vontade de Deus deve ser cumprida aqualquer custo ou sacrifício permeia muitas outras religiões, sobre-tudo o islamismo em épocas atuais.

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Na esfera interna, o fundamentalismo lido como movimento social, temcomo estrutura constitutiva dois elementos básicos: a rede de fiéis e aliderança religiosa (ORO, 1996). A legitimação da liderança religio-sa se dá por diversos fatores, mas é a obediência o vetor que dinamizaesta relação. Através de uma gestão autoritária e totalitária do sagra-do, da demonização do inimigo, do excesso de fanatismo e da ausên-cia de relativizações e de democracia, a liderança se impõe ao grupo,constituindo a coluna mestra de seu funcionamento. O poder da li-derança reside principalmente na recuperação e seleção de verdadesreveladas no passado.

Por outro lado, é impossível separar o fundamentalismo do discursomilenarista. Há no primeiro todo um suporte que defende o futurocomo o advento de um novo tempo de glória e remissão. O milena-rismo é, pois, produto das religiões abraâmicas, notadamente o ju-daísmo e o islamismo. São nestas religiões que a idéia de um tempode purificação é declaradamente manifestado em profecias e códi-gos de honra.

O milenarismo traz imbuída a idéia de história como um vetor. A linha dotempo, o tempo das tribos desde os mitos adâmicos, a gênese, o êxodo,até a nova aliança, chegam ao ocidente pelos ditos da razão iluminista.A contagem do tempo numa linha reta e sempre crescente é, assim, abase da história ocidental. A datação gregoriana (LEITE; WINTER,1999), por exemplo, estabelece uma uniformidade nos calendáriospara que o mundo caminhe em uníssono com a Igreja Católica.

Isto se dá por um controle discursivo de tamanha força por parte dos cris-tãos que a celebração do solstício de inverno no hemisfério sul – eseus cultos pagãos a Saturno e a Mitra – foi proclamada como cele-bração ao nascimento de Jesus Cristo. Em 440 d.C. a Igreja Católicadecide, então, impor a data de 25 de dezembro como sagrada para omundo cristão.

Milenarismo e fundamentalismo remetem ambos a uma espera: a espera donovo tempo, da volta ao estado de pureza original. É o tempo para-disíaco, o tempo dos que serão julgados e jubilados. Ao proclamar amorte aos satânicos, refletem a submissão deste outro à condição doexpurgo.

Ao analisar os elementos constituintes dos discursos fundamentalistas é possívelafirmar que a maior parte deles são permeados por algumas idéiasque podem ser assim descritas:

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• As cruzadas do bem contra o mal:

A dicotomia moderna do bem contra o mal é uma constante nodiscurso fundamentalista e milenarista. Para atingir o mundo novoé preciso que se descarte o antigo e seus pressupostos. Surgem daíbatalhas, as guerras, os enfrentamentos religiosos. São lutas querefletem de um lado a manutenção de um status quo e, por outro,o sentimento de ‘guerra santa’ justificada pela ‘limpeza’ para umnovo tempo. É um discurso bélico e ao mesmo tempo sagrado.Está cheio de batalhas imemoriais nas quais as legiões do mal cla-mam por sua derrocada a todo custo.

• A memória do massacre:

Os massacres e os sacrifícios desempenham papel fundamental nosditos fundamentalistas. Há que se renovar o período que se esgotae há que se rememorar a data em que se restabeleceu a nova ordemsagrada. Como o tempo é vetorial, para o discurso fundamentalista,deve haver, portanto, um marco que assinale a entrada do temponovo, da ordem nova, a era do sagrado.

• A visão das pestes:

O expurgo dos impuros, tese central do fundamentalismo, terá lu-gar numa época de agonia na qual as pestes serão o sinal mais visí-vel dos tempos vindouros. É bem comum esta imagem não só nasiconografias medievais, mas também nos discursos do final do mi-lênio. A partir dos anos 80 do século passado, por exemplo, a AIDSé anunciada como a nova peste, o castigo para os fornicadores.A toda hora se evocam as desgraças próprias do final de um milênio,as derrotas econômicas, o surgimento de seitas, o avanço de ten-dências religiosas e a emergência da magia antes banida.

• O Anticristo:

O mito do inimigo sedutor é o discurso mais presente nestes nos-sos tempos. Israel, Osama Bin Laden, Estados Unidos, Sadam Hussein,Palestina, Taleban, costumes modernos, entre outros tantos, apon-

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tam como um mal absoluto dependendo da tendência religiosa emtela. Sedutor, audaz, cruel, mágico e ardil estas são algumas dascaracterísticas do inimigo. Ele é a justificativa absoluta das práticasfundamentalistas de separatismo e rancor. Representa o anticristo,o avanço do outro no território do estabelecido, a intolerância àdiferença, o momento final do conflito do bem contra o mal.

• O julgamento:

O julgamento acabará com a velha dicotomia bem versus mal. Re-presenta um ato final, um ato de expurgação na qual a batalha últi-ma terá efeito. É também um ato inaugural que conduzirá os eleitosao paraíso, numa perspectiva espaço-temporal evolutiva. Serve esteato para estabelecer uma ordem perdida pela corrupção da moraldivina. É um julgamento, pois, sobre-humano, portanto, inquestio-nável e infalível.

• O livro da verdade:

As sagas das religiões abraâmicas, nas quais se registram os maisrefinados efeitos do fundamentalismo, estão povoadas de narrati-vas proféticas que detêm várias ordens. Uma ordem histórica, emforma de cosmogonia e mitos criacionistas; uma ordem mística,esta pouca explorada pelos fundamentalistas, uma vez que pressu-põe a transcendência e a iluminação do espírito; uma ordem mo-ral, que representam a unificação das ações num quadro geral denormas de conduta relacionada a hábitos religiosos, corporais e sociais;e uma ordem profética, direcionada a uma visão futurista do esta-belecimento de um plano final e natural dos acontecimentos.

• O caos e a restauração:

O profetismo se inscreve no campo das interpretações herméticas,obscuras. A linguagem que caracteriza este discurso contém ele-mentos enigmáticos que descrevem lugares e épocas os quaisfreqüentemente refletem um momento de caos no presente. É umdiscurso codificado, cuja elaboração pelos profetas é um lembretede que o caos está por se instalar e com ele o momento expurgo.

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Há uma característica própria nesta linguagem: o uso de imagenssimbólicas relacionadas a determinadas características da persona-lidade humana: serpentes, dragões, aves, feras, felinos, etc. Há ou-tras ligadas à personalidade divina: anjos, demônios, elementais,etc. A destruição pelo fogo marca o caos.Este caos resume o fim da impureza na batalha final contra os inimi-gos e a vitória final do bem sobre o mal. Após o caos uma ordem éestabelecida. É o discurso da restauração, estruturação de um tempomítico infinitamente duradouro. Para o fundamentalismo cristão ouislâmico, o restabelecimento da ordem divina se baseia na reconstituiçãoda Jerusalém Celeste. É o ideal de território sagrado, de retorno aocentro do mundo. Neste local dar-se-á a reunião daqueles que foramsegregados pelos pecados que culminaram no caos.

Estas características listadas a respeito do discurso fundamentalista apon-tam para o diabo como a explicação para os desastres de qualquernatureza nesta transição do segundo para o terceiro milênio. O pro-cesso de sujeição de pessoas e povos à imagem do diabo serve dejustificativa para atos de violência, uma guerra justificada pelo restabe-lecimento da suposta ordem natural do mundo.

Segundo Link (1998), as idéias sobre o diabo se derivam de três fontes: asinterpretações do Novo Testamento; o mito da queda a partir de umaleitura da literatura romântica e as tradições populares pagãs dos cul-tos de sabás.

Era preciso que se fizesse a representação pictórica do diabo para que estedeixasse de pertencer a uma ordem cósmica do não representável –como Deus abstrato – para uma ordem do representável. Desta ma-neira, as primeiras representações associavam o diabo a figurasantropozoomórficas ligadas a determinados animais como morcego,bode, serpente, mitos como o dragão, o unicórnio, portanto instru-mentos de tortura da época como foices, arpéus e forquilhas.

A literatura romântica dá um toque humano ao imaginário do diabo. Podeser uma mulher, um homem, mas sempre representado com atribu-tos como sedução, magia, luxúria, fornicação, orgia, beleza. Combase nestes modelos, em 1559 Christopher Marlowe escreveu A trá-gica história do Doutor Fausto, a qual inaugura uma série de relatosliterários românticos sobre a tentação do homem pelo diabo atravésda riqueza do luxo e dos prazeres da carne (LINK, 1998).

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Com a caça às bruxas, o diabo assume a forma de condutor das heresias.Os hereges eram, então, instigados pelo maligno se tornando seusadeptos mais fiéis. A heresia é tomada, assim, como a sujeição deindivíduos a práticas não cristãs. Esta idéia de pacto com o diaboserviu para justificar o assassinato de milhares de indivíduos acusadosde práticas associadas à adoração de imagens, blasfêmias, pecados dacarne, concupiscência, comunicação com espíritos imundos, cul-tos anímicos, conspiração, injúria, sacrifícios de crianças, entre outrasmais. Há sempre uma cultura do medo (DELUMEAU, 1989) nestesdiscursos fundamentalistas, daí a presença do mal como represen-tação da alteridade.

O imaginário de um império do diabo contra as nações cristãs não é propri-amente uma novidade. O império otomano passa a ser uma represen-tação do mal já no século XV. Mesmo após a queda de Constantinopla,a cultura mourisca foi alvo de investidas cujo objetivo era varrer daEuropa Central os resquícios da infidelidade muçulmana.

As novas formas de heresia – o modo de vida ocidental para os fundamentalistasislâmicos e o terrorismo mulçumano para os fundamentalistas cris-tãos – são formas de controle de discursos que representam um con-tradito no campo das religiões de origem abraâmica, presumidamenteuniforme, uma vez que tem sua origem num mesmo conjunto detextos.

Ao colocar os sujeitos como produto da articulação entre saber e poder,Michel Foucault (1982) descarta a possibilidade de que um processoracionalizador seja o condutor das mudanças sociais, como teorizavaMax Weber (1997), e, nesta perspectiva, busca uma forma de inves-tigação distinta daquela usada pelos cientistas sociais clássicos. Estaforma Foucault vai encontrar no procedimento genealógico elabora-do por Nietzsche4.

Neste sentido, Foucault trabalha com o conceito de invenção, uma vez quenão há uma verdade a ser descoberta pela investigação científica, ouseja, uma origem das coisas, e sim como estas coisas foram “inventa-das” a partir de um discurso já-dito. Em pensando-se assim, pode-seanexar à genealogia foucaultiana as propostas básicas da análise dodiscurso. Ora o discurso fundamentalista inventa seus inimigos paraque possa se realizar na sua suposta pureza. Inventar não significacriar a partir do nada, mas sujeitar o outro à condição de malignoneste caso em particular.

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A própria etimologia do termo discurso evoca a idéia do curso, do percur-so, do movimento. Assim entendido, o discurso seria o percurso dosvários sujeitos – o sujeito errante -, sua dispersão e conjunção emdados movimentos. Esta dispersão, no entanto, não é aleatória. Ela ésocialmente controlada por um corpo de interpretadores do discur-so, o qual, ao interpretá-los, atribui sentidos aos mesmos. As insti-tuições sociais administram os sentidos dos vários discursos com basenum jogo de saberes e poderes, estes também frutos de uma constru-ção discursiva.

Os fundamentalistas religiosos, com efeito, aparecem neste início de milê-nio como a maior explicação para os conflitos territoriais e políticosem curso. Não são as bolsas de valores, não são as crises econômicasque dominam o cenário dos discursos fundamentalistas, mas a reli-gião e seus modelos explicativos.

A partir das “dobras para fora”, expressão cunhada por Foucault (1982), éque se torna possível visualizar o que está fora do quadro, ou seja,analisar os lastros formadores dos fundamentalismos atuais. O visí-vel nos discursos fundamentalistas de Bin Laden ou W. Bush, porexemplo, é apenas uma pequena parte da rede interminável permeadapor idéias tão antigas quanto os livros religiosos de cristãos emulçumanos.

Da luta do bem contra o mal surge o caos, as pestes, os massacres e suasmemórias. Esta dura batalha termina com o restabelecimento da ver-dade única, o fundamentalismo no seu mais amplo espectro, verdadeesta que presume o fim das heresias e da maldade que se agregou aomundo.

Produzir discursos é produzir mediações. Um discurso é sempre uma interpre-tação ou uma pré-interpretação do mundo. Sua elaboração se dá apartir de uma trama de outros tantos discursos que se entrelaçam paraaparecerem com um discurso uniforme e coerente. Se o discurso,portanto, visa a compreensão das coisas do mundo, então ele almejatornar coerente o que lhe parece difuso, comum o que lhe é disperso,igual o que lhe chega diferente.

Por outro lado, é possível afirmar também que as práticas são reflexos deum discurso que clama, antes de tudo, por um controle de idéias,corpos, emoções e sociabilidades. O fundamentalismo atual signifi-ca, portanto, um controle discursivo baseado nas idéias do mal – odiabo – e do medo – o terror, evocados a partir de uma construção

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simbólica milenarista a qual toma o diferente como causador do mal-estar do mundo que ora se renova.

Os fundamentalistas internalizam em seus discursos e em suas práticas aaversão e ódio ao outro, ao que pensa ou manifesta sua fé de maneiradiferente da dele. E assim, ao lado da intolerância religiosa soma-sea intolerância política, cultural, étnica e sexual. As várias formas sutisde violência simbólica e manifestações extremadas de ódio, passam afazer parte do cotidiano das ações destes indivíduos.

A GUERRA SANTA CONTRA O DIABO: IGREJA UNIVERSAL,A PROTAGONISTA DA GUERRA SANTA NO BRASIL

Fundada pelo Bispo Edir Macedo Bezerra, no Rio de Janeiro, em meadosda década de 1970, a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), vemliderando uma campanha contra o diabo que, na concepção destareligião, seriam representados principalmente pelos cultos afro-bra-sileiros e espíritas. Segundo as palavras do seu fundador:

Se o povo brasileiro tivesse os olhos bem abertos contra a feitiçaria, abruxaria e a magia, oficializados pela umbanda, quimbanda, candomblé,kardecismo e outros nomes que vem destruindo as vidas e os lares,certamente seríamos um país bem mais desenvolvido (MACEDO,2000, p. 67).

Como foi exposto acima, para o Bispo Edir Macedo a origem da crise bra-sileira é, sobretudo, de ordem espiritual. É, portanto, o espiritualque deve ser tratado em primeiro lugar. No plano divino, a Iurdlegitimaa sua missão na identificação e eliminação do Mal por meio da ex-pulsão dos demônios. Daí a importância dada à obra da libertação:“Temos ministrado o Evangelho de Jesus Cristo na sua pureza e inte-gridade, e por obra do Espírito Santo, nossa igreja foi levantada paraum trabalho especial, o qual se salienta pela libertação de pessoasendemoniadas” (MACEDO, 2000, p. 21).

O objetivo principal desta “guerra santa”5 desencadeada pela Igreja Univer-sal é mostrar que toda religião mediúnica é demoníaca e que a cha-mada mediunidade é uma possessão demoníaca. No discurso e naconcepção de causalidade da Igreja Universal, a doença e os infortú-

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nios porque passam a maioria das pessoas, estão sempre relacionadosa este fenômeno.

Os neopentecostais crêem que o que se passa no “mundo material” decorreda guerra travada entre as forças divina e demoníaca no “mundo es-piritual”. Guerra, porém, que não está circunscrita apenas a Deus/anjos X Diabo/demônios. Os seres humanos, conscientes disso ounão, participam do seu livre-arbítrio. Voluntariamente engajados nolado divino, crêem deter poder e autoridade, concedidos a eles porDeus, para, em nome de Cristo, reverter as obras do mal. Isto é,acreditam-se capazes de alterar realidades indesejáveis do “mundomaterial” por meio de seu vínculo de fé com as forças divinas. In-cumbidos por suas igrejas (que se dizem erguidas por Deus para com-bater o diabo, atividade que vêem como precondição para evangelizarlugares e indivíduos submetidos a Satã) de se engajar no “bom com-bate”, os neopentecostais passaram a enfrentar agressivamente o ini-migo de Deus e da humanidade.

Em seu discurso proselitista, a Iurdpromete alívio à violência da sociedade– violência personificada pelo demônio – que se abate especialmentesobre os mais fracos e mais carentes. A Igreja Universal convoca to-dos para a caça aos demônios e promete milagres.

O diabo na pregação iurdiana está presente e ativo por toda parte. É, prin-cipalmente, na figura das “entidades” espirituais cultuadas em terrei-ros de umbanda e candomblé, que ele se manifesta, o que acaba porrevelar, segundo a Igreja Universal, uma demonização das religiõesafro-brasileiras. Os umbandistas passam a ser caracterizados comoprofanadores da verdadeira religião: “não são de Deus e, por isso, sópodem provir do “mal”, do demônio, da feitiçaria” (BRANDÃO,1988, p. 34).

A IURD é considerada por muitos protestantes como a “versão cristã damacumba”. Este rótulo serve para diferenciar esta igreja de outrasformas de religiosidade pentecostal. Ali o exorcismo é um dos tra-tamentos mais comuns oferecidos por ela no mercado de cura sim-bólica.

Considerada a “arte de libertar endemoniados”, o exorcismo era uma práti-ca bastante comum já no primeiro século da Era Cristã, tanto emIsrael como entre os gregos (OLIVA, 1997). Tinha por finalidadecurar doenças que se acreditava serem causadas pelos demônios –crença que remonta à mais alta antiguidade.

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Dentro da tradição cristã, os relatos de exorcismo e cura de ende-moniados estão presentes no Novo Testamento e apresentam o mesmopadrão: no encontro do possesso com Jesus Cristo o demônio mani-festa-se, Cristo ordena que ele saia do possesso. E a saída do demô-nio, em obediência à ordem de Cristo, é manifestada, suscitando areação dos espectadores.

Há os casos, por exemplo, do possesso mudo (Mt. 9, 32-33), do meninoepilético (Mt. 17, 15-18) e da mulher possessa de um espírito que atornava enferma (Lc. 13, 11) que Jesus cura expulsando o demônio.

Há também o célebre caso da cura do endemoniado geraseno, que habitavaos sepulcros e “que ninguém podia arrebentá-lo porque ele arreben-tava todas as correntes” – e para quem Jesus perguntou o nome e elerespondeu que era Legião, porque eram muitos os demônios. Ao verpassar uma manada de porcos, Cristo permitiu que estes “seres imundos”“incorporassem” nestes animais, “e a manada, que era cerca de doismil, precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do mar, ondese afogaram” (Mc 5, 1-13)6.

Os exorcismos e as curas relatadas no Novo Testamento são etapas do em-bate entre o Bem e o Mal, entre Deus e o diabo. O exorcismo, natradição cristã, obedece a um rito. E é aconselhável que se realizenuma igreja, ou num lugar consagrado por Deus e na presença detestemunhas.

Na IURD, cada dia da semana é um culto. Os cultos da Igreja Universalpovoam-se de feitiços e macumbarias, de exus e pombas-giras, detrabalhos de ‘esquerda’ e de ‘direita’, de orixás malévolos e falsos san-tos, de benzimentos, rezas e operações espirituais abortadas (MON-TES, 1998).

O culto mais procurado é o da ‘libertação’, onde o principal objetivo é aexpulsão dos demônios dos corpos das pessoas presentes. O PastorA., da Igreja Universal, fez o seguinte esclarecimento com relação aeste culto:

Na sexta-feira nós oramos só pela libertação. O culto da libertação éo culto mais procurado que nós temos. Nestes cultos nós libertamosas pessoas dos vícios, trabalhos de macumbaria, espíritos que cadavez mais fortes perseguem a vida das pessoas, que faz as pessoas beberem,que coloca a doença. É a libertação total da inveja, das portas fechadas,dos caminhos amarrados. Então nós oramos nos dias de sexta-feira

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pra Deus libertar toda essa obra maligna sobre as pessoas (Pastor A.,em entrevista, Codó (MA), ago/1999).

A sexta-feira é conhecida pela umbanda como o dia das “giras” de exus quese dão geralmente a noite. Segundo Soares (1990) é a meia noite,“hora grande” de sexta para sábado, o momento em que os exus semanifestam e “trabalham”. É, justamente nesta mesma hora que nes-tas Igrejas estão sendo realizadas as cerimônias onde estes mesmosexus são invocados para, logo em seguida, serem expulsos dos corposdas pessoas presentes.

Em si mesmo, o exorcismo consiste na afirmação da superioridade de Deussobre os demônios e na ordem “em nome de Jesus Cristo”, para quese retire da pessoa possessa. Desta forma, exorcismo e orações se al-ternam.

A demonização das “entidades” espirituais das religiões afro-brasileiras pa-rece refletir uma vontade de poder da Iurd que se poderia dizer opressora.Ou seria, na linguagem de Girard (1998, p. 178),

pura expressão do desejo mimético irreprimível que leva a destruir orival, para apoderar-se do comum objeto do desejo – no caso, a massade fiéis – e, assim, fundir-se com o outro e vir a ser o único? No fundo,é a mesma coisa: é a violência que valoriza os objetos do violento.

O Pastor A. diz que a Igreja Universal tem atuado ativamente, imbuída desua missão divina, de acabar com o domínio das trevas e com as“macumbarias”:

E eu sei que Jesus vai vencer o diabo em todo o lugar. Eu digo queacontece isso muito porque a maioria das pessoas estão cegas em relaçãoa Deus. [...] Tudo isso é uma ilusão, uma perda de tempo. Por causadessa cegueira espiritual é que há tanta pobreza, tanta miséria, tantadoença, tanto sofrimento. O diabo infelizmente tem cegado muita gente,mas o nosso trabalho é abrir os olhos das pessoas para ver o Deusverdadeiro, o Deus grande. Graças a Igreja Universal, muitas pessoastem despertado, tem saído da macumba e tem se convertido ao verdadeiroDeus, que é o Senhor Jesus. Existem as pessoas que se curvam a Deuse existem também as pessoas que se inclinam ao diabo. Aqueles sereshumanos que se inclinam ao diabo, e ao diabo é a macumba, porque a

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pessoa que se inclina ao diabo, ela se inclina a macumba e automaticamentepassa a estar nas trevas. Essas pessoas passam a viver é..., crendo naquelestrabalhos de sangue, naquelas velas, naquelas encruzilhadas, naquelascoisas que a gente não olha na bíblia. E quando aquela pessoa sai dessaescuridão, dessa ilusão e volta ao Senhor Jesus, então ela sai das trevase passa para a luz. E existe uma luta muito grande aqui e em todo olugar, ou em todo o mundo, que é da luz contra as trevas. Porque abíblia fala que não há união. Nós nunca vamos conseguir viver emunião. Luz e trevas. Então, nós sempre vamos lutar pra acabar comisso. A Igreja Universal, ela sempre vai lutar pra acabar é... com essastrevas que ainda há por aqui, apesar do número de luz estar crescendo.A nossa visão é que a macumbaria seja totalmente diminuída. Que nãohaja mais trevas, que as pessoas se libertem por completas. O diabo in-cita a cobiça, o ódio e a inveja, alimenta a fé negativa ou seja, o medo,as preocupações [...] Essas pessoas que buscam a macumbaria são pes-soas cegas, pessoas sem estudo, pessoas que não param pra pensar,pessoas que estão desesperadas, pedindo socorro e não sabem a quempedir socorro. Então ela, ela corre sem saber para onde vai chegar eentão ela corre imediatamente pra macumba, ali ela tem uma esperança,até na macumba. Mas é uma esperança que não vai trazer benefícios aela, até porque nós batemos que não há vários deuses. Aqui a IgrejaUniversal nos fala que só há um Deus e esse Deus está no céu. Entãoessa pessoa que, ela vai, ela é devota à macumba, ela está iludida, enganada,ela é tola. Mas é porque há uma cegueira sobre ela. No dia em que essacegueira sair, no dia que ela parar e se libertar daquele sufoco que ela távivendo, ela vai saber que ela perdeu tempo, ela vai saber que ela perdeuparte da vida dela sendo devota a macumba e a vontade que ela vaiter é de sair, de abandonar aquele caminho e procurar outro caminho.O outro caminho é o caminho que vai levar ela a felicidade, ao SenhorJesus no além (Pastor A., em entrevista, Codó/MA, ago. 1999).

A partir do presente relato, se pode notar que a “libertação” do indivíduodas “amarras do diabo” é visto pela Iurd como uma etapa anterior àsua conversão. Para que o indivíduo possa gozar de uma vida saudá-vel e livre das perturbações demoníacas, só existe um caminho paraisso: a sua libertação. Contudo, na Igreja Universal, assim como emoutras denominações neo-pentecostais, não se fala de início em con-verter, mas sim em libertar as pessoas do jugo do demônio.

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A conversão se daria, sobretudo, como reconhecimento desta graça recebi-da. Segundo Soares (1990) e Mariano o que acontece é que, geral-mente, a pessoa que passa pela experiência de ser “liberto” tende a seconverter, vendo neste caminho a única solução para o fim de todosos seus problemas.

Para a IURD, converter pessoas oriundas das religiões afro-brasileiras não éapenas uma questão numérica mas, sobretudo, uma questão simbóli-ca da maior importância na construção da própria visão de mundosubjacente a sua concepção religiosa. Os umbandistas aparecem comoprincipais alvos da conversão.

Seus orixás, caboclos e “guias” são vistos, pelos adeptos da Iurd, como mani-festações do Mal que penetra no corpo das pessoas. Os pastores falamcom eles, dão credibilidade também a existência destas “entidades”umbandistas. No momento em que o pastor invoca uma “entidade” eela se manifesta, isso demonstra que ele tem poder sobre esta entidade,um poder que, segundo a sua ótica, lhe é dado por Cristo.

O pastor não apenas se mostra capaz de invocar estas “entidades”, mas de obrigá-las a falar, confessar sua origem demoníaca e, por fim, expulsá-las. Assimao “incorporar” um demônio, a pessoa demonstra ter o diabo dentro desi. “No momento em que o diabo é expulso, essa pessoa está liberta e,portanto, pode se dedicar a Deus. A partir da ‘libertação’ pode vir aconversão e então o louvor” (SOARES, 1990, p. 87; grifos no original).

A libertação passa a ser entendida como a cura divina para as doenças doespírito. Desta forma, a Iurd passa a fazer uso de um simbolismomuito semelhante ao encontrado nas religiões afro-brasileiras7. Aqui,se pressupõe a presença do pastor-feiticeiro e do público, assim como ademonstração da expulsão do Mal. Ou seja, um mesmo modelo serveao feiticeiro, ao pastor e ao pai-de-santo, onde cada um deles o preenchecom conteúdos diversos.

O diabo é a macumba, a magia negra e todos os seus representantes, é assimque o pastor A., em sua fala, legitima a importância do campo deatuação da Igreja Universal do Reino de Deus. Tendo o aval de Cris-to para invocar e expulsar demônios, o pastor se vê como autoridadeno mundo dos homens e tenta, de todas as formas, acabar com as“obras” que julga serem causadas pelo diabo.

O combate à macumba, aos exus, “guias”, pretos-velhos e orixás se torna aprincipal missão de um pastor da Igreja Universal, uma espécie dequestão de honra, de ordem pessoal. Para o pastor:

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Não aceito a derrota, não aceito o fracasso, a doença e a macumba.Nunca vou aceitar viver uma vida de derrota, de miséria. Nunca vouaceitar isso. Vou sempre buscar a cura, a prosperidade. Até porque oDeus que temos conosco é grande e ele tem o poder de nos dar todasas coisas e de eliminar todo esse mal. Eu vou dar a minha vida paraeliminar a macumba e a sua legião de demônios (Pastor A., em entrevista,Codó (MA), ago. 1999).

Os “crentes” se enfrentam, então, com a umbanda e o candomblé não por-que as crenças destas últimas sejam falsas, mas porque elas são ma-lignas! O fiel ou o cliente pentecostal procura muitas vezes no temploevangélico uma defesa contra o que foi supostamente arquitetadoem um terreiro por um desafeto seu, por intermédio de um deter-minado demônio. Sua atitude em relação aos umbandistas não temum meio-termo: aqueles são escravos do diabo e devem ser liberta-dos!

Crentes de que só obterão prosperidade material, cura ou saúde e sucessocomo libertos do diabo e engajados na causa do Senhor, esses religio-sos não têm alternativa senão permanecer atentos e fortes na linha defrente da guerra contra o diabo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma conclusão expressada quase universalmente sobre o que venha a ser areligião é de que ela é uma força para o bem. Geralmente a religião ésaudada como o mais nobre empreendimento do espírito humano.Contudo, torna-se necessário retomar a primeira questão: a religião éde fato uma força para o bem?

A evidência da história e a evidência dos acontecimentos atuais lançam dú-vida sobre este truísmo. Em certa ocasião o filósofo Bertrand Russel(apud HAUGHT, 2003) escreveu que a religião é baseada principal-mente no medo e, sendo o medo o “pai da crueldade” não seria deadmirar que crueldade e religião tenham caminhado, ao longo dahistória, de mãos dadas.

Não raro no mundo de hoje são as notícias diárias que relatam infindavelmenteas selvagerias de combatentes religiosos. “Terroristas muçulmanos”,“agressores indus”, “atiradores cristãos” e “crentes fanáticos” são al-gumas das expressões habituais nas manchetes.

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Os fundamentalismos religiosos se tornam atraentes para muitas pessoasporque exacerbam a noção idealizada de comunidade, acenando coma possibilidade de uma reunião de iguais, capaz de propiciar aos in-divíduos uma identidade coletiva e de justificar uma ação radical emface dos outros e dos seus interesses diferenciados. Um grupofundamentalista, ao se autodefinir como comunidade, tenderá a en-xergar o “outro” ou “outros”, ou seja, os diferentes, os que não co-mungam os mesmos princípios e ideais, também como formadoresde uma “comunidade”, contra a qual se deve lutar.

Um caso extremo, mas não raro, é a demonização desses “outros” e de suacomunidade imaginária, caso em que as religiões organizadas podemoferecer um estoque significativo de nomes apropriados (o GrandeSatã, o Anticristo, a Besta, o demônio etc).

O Brasil, famoso pela boa convivência entre os credos, tem visto aumentarem seu território os casos de intolerância religiosa, principalmentecom ataques de evangélicos contra seguidores de cultos afro-brasilei-ros e espíritas.

Tudo o que os evangélicos repudiam nestas religiões com as quais se relaci-onam e concorrem visam a aclamá-los como detentores exclusivos daverdade e virtude bíblicas que conduzem à salvação. Mas, quando,para cumprir ordens pretensamente divinas e impor sua verdade, avan-çam destemidos como vimos, além das fronteiras dos templos, cor-rendo o risco de desencadear senão a ‘guerra santa’, mas ao menosuma perversa maré de atos de intolerância explícita.

Estes evangélicos e podemos dizer, os fundamentalistas de uma maneirageral vêem inimigos em todo lugar. Os oponentes de suas ideologiassão acusados de conspirações fantasiosas, que justificam ações drásti-cas como a “purificação do mundo” pela destruição dos “agentes dacorrupção” e mais que isso, seus oponentes são rotulados como osagentes de Satã e, portanto, devem ser exterminados.

Não é de admirar que este tipo de conduta, baseada na intolerância tem umfundamento irracional, mas também racional. Em nome de Deus,este homem religioso aceita racionalmente a intolerância contra aquelesque não comungam com os seus ideais e são tomados como inimigosque os ameaçam constantemente.

É profundamente desanimador que a religião – supostamente a cura da cru-eldade humana – muitas vezes seja apenas outro fundamento para amatança e a loucura. Podemos dizer que a religião não é apenas uma

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força para o bem, mas ela também possui um grande potencial para omal e esse potencial se realizou milhares de vezes através dos anos.

Eis que a construção de uma sociedade fundada em valores que fortalecema tolerância mútua exige o estudo das formas de intolerância e dassuas manifestações concretas, aliado à denúncia e combate a todos ostipos de intolerância.

Por outro lado, a tolerância pressupõe a intransigência das formas de into-lerância e fundamenta-se numa concepção que não restringe o pro-blema da tolerância/intolerância ao âmbito do indivíduo; esta não éapenas uma questão religiosa, mas também uma questão social, eco-nômica, política e de classe.

É preciso, antes de tudo, abolir a palavra ‘inimigo’. Afastamos o ‘inimigo’quando começamos a dialogar e no diálogo a nos conhecer e no co-nhecimento a nos aceitar e na aceitação a nos respeitar e a respeitar osoutros.

Não devemos ficar entre a espada e o sermão. Nem entre o ódio e a oração.Cada um de nós devemos cuidar de buscar formas de convívio napaz, na solidariedade e na justiça.

Notas

1 Embora haja uma infinidade de autores, tanto no campo das ciências humanas e

sociais quanto no campo da filosofia, que se preocuparam em compreender o

fenômeno religioso, optou-se pelas três principais paradigmas destas áreas (repre-

sentados pelo pensamento de Émile Durkheim, Karl Marx e Sigmund Freud)

visto que tais perspectivas acabam por delinear outras formas de compreender e

interpretar a instituição da religião.2 Consultar Freud (2007).3 Rouanet (2003, p. 1) enfatiza: “De modo geral, a intolerância religiosa era desco-

nhecida na Antiguidade clássica, politeísta e portanto hospitaleira aos deuses de

outras nações. A intolerância só se tornou possível com o advento do cristianis-

mo, que afirmava a existência de um só Deus e de uma só revelação para a huma-

nidade inteira”.4 Nietzsche, em sua obra O crepúsculo dos ídolos (1982), tem como finalidade

construir uma filosofia “a marteladas” que derrube os ídolos da modernidade.5 O pastor J. Cabral, no prefácio do livro de Edir Macedo (2000, p. 19-20) intitulado

Orixás, caboclos & guias: deuses ou demônios?, tece elogios sobre o bispo e faz as

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seguintes afirmações: “Este homem, que Deus levantou nesses dias para uma

obra de grande vulto no cenário evangelístico nacional e mundial, conhece

todas as artimanhas demoníacas. Seu freqüente contato com praticantes do es-

piritismo, nas suas mais diversas ramificações faz com que seja um grande co-

nhecedor da matéria. Através dos veículos de comunicação e das igrejas que

tem estabelecido pelos rincões de nossa pátria e no exterior, o bispo Macedo

tem desencadeado uma verdadeira guerra santa contra toda obra do diabo. Nesse

livro, denuncia as manobras satânicas através do candomblé e outras seitas si-

milares; coloca a descoberto as verdadeiras intenções dos demônios que se fa-

zem passar por orixás, exus, erês, e ensina a fórmula para que a pessoa se liberte

do seu domínio”.6 Ver também Lucas 8, 26-34.7 Segundo Benedito (2003, p. 197), a Iurd pratica uma incessante simbiose ou

hibridização ritualística com seus inimigos. Segundo o autor: “Ao contrário das

igrejas protestantes históricas que mantém grande parte de sua liturgia religiosa

ligada ao catolicismo original, os universais aplicam às suas práticas muitos dos

rituais e símbolos herdados dos afro-brasileiros”.

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Abstract: the religions have been responsible for finished manifestationsof fanatism and intolerância. Slaughters, practical tortures, wars,persecutions and other attitudes and have testified what of worse thehuman being it presents, and many times such atrocities are made onbehalf of God. To this phenomenon we give the fundamentalismoname. The fundamentalismo always existed in the religious traditions.It consists of interpreting the sacred text literally, without contextualizarit, extracting alegóricas and subjective deductions as the only universallyvalid truth. The opponents of its beliefs and ideologies are accused

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with fantasiosas conspiracies, that justify drastic actions as the “puri-ficação of the world” for the destruction of the “agents of the corruption”and more than this, its opponents are friction as the agents of Satãand, therefore, they must be exterminados.

Key words: religious intolerancy, fanatism, fundamentalism

SULIVAN CHARLES BARROS

Doutor e mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). Especialista

em Antropologia e Mundos Contemporâneos pela UnB. Especialista em Filosofia e

Existência pela Universidade Católica de Brasília. Professor nos cursos de Adminis-

tração, Direito, História, Letras e Pedagogia das Faculdades Espam. Coordenador

do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Diversidade e Cidadania das Facul-

dades Espam. Professor e pesquisador no Programa de Mestrado em Ciência Políti-

ca com foco em Direitos Humanos, Cidadania e Estudos de Violência e nos cursos

de Direito e Relações Internacionais do Centro Universitário Euroamericano.