a questão agrária no brasil - vol 1(2011)

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A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL O debate tradicional – 1500-1960 a questao agraria 1 - 2013.indd 1 22/10/2013 15:00:45

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A questão agrária - Vol I

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  • A QUESTO AGRRIA NO BRASILO debate tradicional 1500-1960

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  • A QUESTO AGRRIA NO BRASILO debate tradicional 1500-1960

    EDITORA EXPRESSO POPULAR

    Joo Pedro Stedile (org.)Douglas Estevam (assistente de pesquisa)

    2 edio

    So Paulo 2011

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  • Copyright 2005, by Editora Expresso Popular

    Reviso: Geraldo Martins de Azevedo Filho e Joana TavaresProjeto grfico e diagramao: ZAP DesignCapa: Marcos CartumImpresso e acabamento: Cromosete

    Edio revista e atualizada conforme a nova regra ortogrfica

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorizao da editora.

    2 edio: setembro de 20111 reimpresso: outubro de 2013

    EDITORA EXPRESSO POPULARRua Abolio, 201 Bela VistaCEP 01319-010 So Paulo-SPFones: (11) 3105-9500 / 3522-7516, Fax: (11) 3112-0941livraria@expressaopopular.com.brwww.expressaopopular.com.br

    A questo agrria no Brasil: O debate tradicional 1500-1960 / Joo Pedro Stedile (org) ; Douglas Estevam (assistente de pesquisa)--2. ed.-So Paulo : Expresso Popular, 2011. 304 p.

    Livro indexado em GeoDados-http:/www.geodados.uem.br ISBN 85-87394-68-1 1. Reforma agrria Brasil. 2. Brasil Polticasocial. 3. Questo agrria Brasil. 4. Movimentos sociais rurais Brasil. I. Stedile, Joo Pedro. II. Estevam,Douglas. III. Ttulo.

    CDD 21.ed. 307.2420981 Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

    Q5

    Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)(Biblioteca Central UEM, Maring PR., Brasil)

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  • A propriedade no tem somente direitos, tem

    tambm deveres () Se for eleito, no separarei mais

    as duas questes a da emancipao dos escravos e a da

    democratizao do solo. Uma o complemento da outra.

    Acabar com a escravido no nos basta; preciso destruir

    a obra da escravido.

    (Joaquim Nabuco, 1884, lder abolicionista)

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  • SUMRIO

    HISTRIA DA QUESTO AGRRIA NO BRASIL ..........................9

    INTRODUO ..................................................................................15Joao Pedro Stedile

    PARTE I O DEBATE NO PCB1. QUATRO SCULOS DE LATIFNDIO 1963 ..............................35

    Alberto Passos Guimares

    2. A QUESTO AGRRIA E A REVOLUO BRASILEIRA 1960 ...........................................79Caio Prado Jnior

    3. AS TRS FRENTES DA LUTA DE CLASSES NO CAMPO BRASILEIRO 1960 ....................................................89Alberto Passos Guimares

    4. FORMAO HISTRICA DO BRASIL 1962 .............................111Nelson Werneck Sodr

    5. PROBLEMAS AGRRIO-CAMPONESES DO BRASIL 1968 ....127Moiss Vinhas

    PARTE II O PENSAMENTO CEPALINO6. A QUESTO AGRRIA BRASILEIRA 1957-1986 .......................171

    Igncio Rangel

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  • PARTE III O PENSAMENTO DO PTB DE ESQUERDA7. DO CAMINHO BRASILEIRO

    DE REFORMA AGRRIA 1962 ....................................................233Paulo R. Schilling

    ANEXOSORIGENS HISTRICAS DA PROPRIEDADE DA TERRA 1958 ...............................................259Fragmon Carlos Borges

    LEI DE TERRAS N 601, DE 18 DE SETEMBRO DE 1850 ..........283

    EVOLUO DA POPULAO BRASILEIRA 1500-1990 .........293

    DADOS SOBRE OS AUTORES ......................................................299

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  • 9A HISTRIA DA QUESTO AGRRIA NO BRASIL

    Existem diversas formas para analisar e estudar a questo agrria no geral e no Brasil em particular. Nesta coleo, o enfoque principal est na economia poltica e na histria, utilizadas como instrumento cientfico de interpretao da questo agrria pelos autores e teses publicados. uma forma especfica de analisar a questo. Se quiser-mos mais abrangncia, poderemos buscar outras reas do conheci-mento, como a anlise da evoluo das classes sociais no campo, ou do desenvolvimento das foras produtivas, ou do desenvolvimento das lutas e dos movimentos sociais. Para todos esses vieses, existe uma ampla literatura de pesquisa e de estudos, realizados e publicados pelos nossos historiadores, cientistas polticos e socilogos.

    A questo agrria I O debate tradicional 1500-1960Primeiro volume da coleo, traz uma coletnea de autores,

    considerados clssicos, que se debruaram na pesquisa, durante a dcada de 1960, para entender a questo agrria brasileira no perodo colonial. Foram estes os primeiros autores que, do ponto de vista da economia poltica e da histria, procuraram interpretar as relaes sociais e de produo na agricultura brasileira.

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    A questo agrria II O debate na esquerda 1960-1980O segundo volume rene textos que aprofundam ainda mais os

    estudos, que chegam aos anos 1980 com a publicao do histrico documento A Igreja e os problemas da terra, uma anlise sociolgica da natureza dos problemas agrrios. Esta anlise representou um elo entre a polmica criada pelos estudos da dcada de 1960 at o fim da ditadura nos anos de 1980.

    A questo agrria III Programas de reforma agrria 1946-2003O terceiro volume uma coletnea dos diversos projetos e pro-

    gramas polticos que setores sociais, classes e partidos ofereceram sociedade brasileira como interpretao e soluo do problema agrrio. A opo pela publicao desses textos se baseou no fato de representarem vontades coletivas de partidos ou de movimen-tos sociais, e no simples expresses individuais. Assim, reunimos todas as principais propostas desde a do Partido Comunista do Brasil (PCB), na Constituio de 1946, at o programa unitrio dos movimentos camponeses e entidades de apoio, de 2003.

    A questo agrria IV Histria e natureza das Ligas Camponesas 1954-1964

    O quarto volume tem o objetivo de divulgar as experincias de luta e as iniciativas de organizao das Ligas Camponesas num perodo especfico da histria recente do Brasil, mobilizando, na luta direta, durante dez anos, milhares de camponeses.

    A questo agrria V A classe dominante agrria natureza e comportamento 1964-1980

    O quinto volume um profundo estudo realizado por Sonia Regina de Mendona sobre a natureza das principais organizaes polticas da classe dominante no meio rural, em especial a So-ciedade Nacional de Agricultura, Unio Democrtica Ruralista

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    (UDR), a Sociedade Rural Brasileira, bem como seus represent-antes. A autora analisa tambm as relaes promscuas entre as classes dominantes e o Estado brasileiro, particularmente no que se refere sua influncia nos rumos da poltica agrria e agrcola.

    A questo agrria VI A questo agrria na dcada de 1990O sexto volume foi inicialmente publicado pela editora da Uni-

    versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), de Porto Alegre, com o ttulo A questo agrria hoje. Como havia uma demanda da prpria universidade para atender s necessidades do intenso debate que houve naquele perodo permeado pela redemocratizao do pas, ele acabou sendo publicado antes dos demais. Foi um esforo para publicar anlises e polmicas de diversos autores, pesquisadores da questo agrria, que surgiram, ou ressurgiram, aps a queda da dita-dura, sobretudo com a reapario dos movimentos sociais no campo.

    A questo agrria VII O debate na dcada de 2000-2010O stimo volume resgata o debate ocorrido nestes anos de

    2000-2010, marcado pela derrota poltico-eleitoral do programa democrtico-popular que inclua a implementao de uma reforma agrria clssica no Brasil. Com essa derrota, implantado no pas um novo modelo de dominao do capital na agricultura, dentro da lgica do neoliberalismo, conhecido como agronegcio.

    A questo agrria VIII Situao e perspectivas da reforma agrria na dcada de 2000-2010

    O oitavo volume da coleo rene o debate havido, e que ainda est em curso, sobre as mudanas que tm ocorrido na natureza da reforma agrria. Aglutinam-se aqui diversos textos analticos de pesquisadores e representantes dos movimentos sociais que atuam no campo que procuram refletir sobre as diferentes interpretaes que ocorreram na natureza da reforma agrria a partir das mudan-

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    as estruturais analisadas no stimo volume. O debate central gira em torno do argumento da classe dominante de que no h mais necessidade de reforma agrria no Brasil.

    * * *

    Neste primeiro volume, o leitor encontrar textos e ensaios que explicam, de forma condensada, as principais teses defendidas por pensadores brasileiros na dcada de 1960. A sua maioria foi publicada na forma de livro. Assim, se o leitor tiver interesse em conhecer na ntegra o pensamento dos autores, dever necessa-riamente recorrer leitura completa de sua obra, pela indicao bibliogrfica. Esto aqui reunidos os principais pensadores que, de certa forma, debateram a questo agrria na dcada de 1960, aglutinados em quatro grandes vertentes do pensamento crtico.

    A primeira vertente a corrente de pensamento hegemonizada pelo PCB, na poca o principal partido de esquerda no Brasil e, qui, o mais influente partido, do ponto de vista ideolgico, que atuou em nossa sociedade no sculo passado. Entre os pensadores que defenderam a corrente oficial do partido esto Nelson Wer-neck Sodr, Alberto Passos Guimares e Moiss Vinhas. Outros intelectuais do partido tambm analisaram a questo agrria, ou produziram, em funo de sua militncia, textos mais polticos sobre o tema, mas foram esses trs intelectuais os mais importantes elaboradores tericos dessa vertente.

    A segunda foi a corrente dissidente do pensamento oficial do partido, representada pelas teses de Caio Prado Jnior. Caio Prado sempre foi um grande intelectual, membro atuante do partido, mas teve discordncias fundamentais na interpretao da questo agrria, na interpretao da formao histrica do Brasil e na ideia do que seria a revoluo brasileira.

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    A terceira corrente de pensamento foi a chamada escola da Cepal, ou escola cepalina. A Cepal (Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe) um organismo das Naes Uni-das para a Amrica Latina que, por influncia de seu fundador e principal intelectual, Raul Prebisch, transformou-se, nas dcadas de 1950 e 1960, num centro de pesquisa e de difuso de estudos e interpretaes do nosso continente. No Brasil, as duas figuras mais proeminentes desse rgo foram Celso Furtado e Igncio Rangel.H ainda seguidores de seu pensamento, na interpretao e na busca de solues para os nossos problemas, como Carlos Lessa e Maria da Conceio Tavares, entre outros.

    Para os nossos estudos da questo agrria, incorporamos diversos textos de Igncio Rangel, quem mais elaborou, na poca, estudos sobre a questo agrria, vinculando-a proposta de superao do subdesenvolvimento e da pobreza.

    Por ltimo, uma quarta vertente que, do ponto de vista da interpretao, era muito semelhante e sofria influncias da escola cepalina, mas, do ponto de vista poltico, estava articulada na chamada esquerda do Partido Trabalhista Brasileiro PTB, liderada pelo ento governador gacho Leonel Brizola. O texto incorporado de Paulo Schilling, um estudioso marxista que se afastou do PCB, na crise do estalinismo, e aderiu s correntes polticas da esquerda nacionalista.

    Finalizando, este o objetivo do livro: reunir os vrios textos e proporcionar aos leitores, estudantes e estudiosos, subsdios para uma melhor compreenso dos profcuos debates travados, naquele perodo histrico, sobre a questo agrria e suas interpretaes.

    Joo Pedro Stedile

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    INTRODUO

    JOO PEDRO STEDILE

    O conceito questo agrria pode ser trabalhado e interpre-tado de diversas formas, de acordo com a nfase que se quer dar a diferentes aspectos do estudo da realidade agrria. Na literatura poltica, o conceito questo agrria sempre esteve mais afeto ao estudo dos problemas que a concentrao da propriedade da terra trazia ao desenvolvimento das foras produtivas de uma determi-nada sociedade e sua influncia no poder poltico. Na Sociologia, o conceito questo agrria utilizado para explicar as formas como se desenvolvem as relaes sociais, na organizao da produo agrcola. Na Geografia, comum a utilizao da expresso questo agrria para explicar a forma como as sociedades e as pessoas vo se apropriando da utilizao do principal bem da natureza, que a terra, e como vai ocorrendo a ocupao humana no territrio. Na Histria, o termo questo agrria usado para ajudar a explicar a evoluo da luta poltica e a luta de classes para o domnio e o controle dos territrios e da posse da terra.

    Aqui, vamos trabalhar o conceito de questo agrria como o conjunto de interpretaes e anlises da realidade agrria, que

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    procura explicar como se organiza a posse, a propriedade, o uso e a utilizao das terras na sociedade brasileira.

    Portanto, o objeto principal da coletnea de textos que esto reunidos neste livro oferecer aos leitores as diferentes interpreta-es de como se desenvolveu a posse, a propriedade, o uso da terra e a organizao da atividade agrcola no Brasil.

    Os estudos acadmicos e cientficos da realidade agrria no Brasil lamentavelmente so muito recentes. Evidentemente, essa ausncia e verdadeira carncia de estudos sobre a nossa realidade, nos mais abrangentes aspectos, consequncia do longo perodo de escurido cientfica que nos impuseram nos 400 anos de colonialismo. Basta lembrar que a primeira universidade brasileira surgiu apenas em 1903, a Universidade Cndido Mendes, por iniciativa de uma famlia de verdadeiros iluministas, que quiseram se dedicar cincia. As universidades pblicas foram criadas no Brasil somente aps a revoluo cultural ocorrida em 1922, por ocasio da Semana de Arte Moderna, que projetou a necessidade do surgimento de um pensamento nacional, brasileiro, que se dedicasse s artes, cultura e cincia nos seus mais diferentes aspectos.

    A carncia e a ignorncia sobre as questes agrrias em nosso pas so frutos dessa submisso colonial, que impediu o desenvolvi-mento das ideias, das pesquisas e do pensamento nacional durante os 400 anos de colonialismo.

    A bibliografia brasileira sobre a questo agrria muito recente. A rigor, o primeiro grande debate de ideias e teses que interpreta-vam, de maneira diferente, as origens e as caractersticas da posse, da propriedade e do uso da terra no pas somente aconteceu na dcada de 1960. E aconteceu no pelo desenvolvimento da cincia nas universidades, nas academias embora as universidades tenham tambm sido envolvidas por esse debate mas, sim, pela necessidade poltica e sociolgica dos partidos polticos.

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    Antes da dcada de 1960, surgiram alguns estudos da realidade agrria, pelo vis da historia econmica. Alguns pensadores realiza-ram importantes pesquisas sobre a historia econmica de nosso pas e, nesse contexto, trataram do processo de evoluo da posse e da propriedade da terra no Brasil. O primeiro estudo mais sistemtico sobre esse tema foi realizado por Roberto Simonsen, professor da Universidade de So Paulo USP, um grande intelectual das elites industriais paulistas. Ele realizou um brilhante estudo da histria econmica.1 A obra um compndio de suas aulas de Histria, ordenadas em uma espcie de guia de estudo, com quase 500 pginas. No seu contedo, o livro nos mostra a interpretao de Simonsen sobre a evoluo da questo agrria no pas,2 defendendo a tese de que sempre predominaram relaes de produo capitalistas no desenvolvimento da agricultura brasileira.

    Mas foi apenas na dcada de 1970 que se publicaram diversos estudos sobre a evoluo da questo agrria no Brasil, construindo-se uma interpretao quase consensual do que havia sido a evoluo da posse, da propriedade e do uso da terra, desde o incio da coloni-zao aos dias atuais, em especial a obra que se transformou em um clssico, O escravismo colonial, de Jacob Gorender (Editora tica).

    UMA INTERPRETAO DA QUESTO AGRRIA BRASILEIRA

    Primeiro perodo: de 50.000 a.C. a 1.500 d.C.Partindo daquilo que hoje poderamos afirmar ser a corrente

    hegemnica de interpretao da evoluo da questo agrria no

    1 Publicado pela primeira vez em julho de 1937, com o ttulo de A histria econmica do Brasil 1500-1820, pela Companhia Editora Nacional.

    2 Outros estudos sobre a histria econmica do Brasil surgiram na dcada de 1950, com interpretaes mais apuradas e crticas, como as obras de Celso Furtado, com diversos livros que trataram da formao econmica do pas, e de Caio Prado Jnior, com seu clssico Formao do Brasil Contemporneo (Editora Brasiliense).

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    Brasil, vamos elencar alguns elementos para auxiliar o leitor a se situar no tempo e no espao e, assim, compreender e interpretar melhor o debate havido na dcada de 1960, apresentado em sntese neste volume.

    A primeira etapa da formao histrica do que Darcy Ribeiro chamaria mais tarde de civilizao brasileira tem seus primrdios na ocupao do nosso territrio pelas correntes migratrias que vieram da sia, cruzando o estreito do Alasca e ocupando todo o continente americano. Segundo pesquisas antropolgicas, h sinais comprovados da existncia de vida humana no territrio brasileiro de 50 mil anos atrs. Foram encontrados diversos ins-trumentos e vestgios de presena humana no Estado do Piau. Portanto, por ora, h fortes indcios de que a sociedade brasileira foi sendo formada e nosso territrio comeou a ser habitado h 50 mil anos. Desde os primrdios da nossa sociedade at o ano de 1.500 d.C., a Histria registra que as populaes que habitavam nosso territrio viviam em agrupamentos sociais, famlias, tribos, cls, a maioria nmade, dedicando-se basicamente caa, pesca e extrao de frutas, dominando parcialmente a agricultura. Ou seja, como a natureza era prdiga no fornecimento dos alimentos para necessidades bsicas, os povos de nosso territrio pouco de-senvolveram a agricultura. Domesticaram apenas algumas plantas existentes na natureza, em especial a mandioca, o amendoim, a banana, o abacaxi, o tabaco; muitas frutas silvestres tambm eram cultivadas. Essas tribos, em 1500, j cultivavam o milho, originrio de outras regies do continente, em especial da Am-rica andina e da Amrica Central, o que comprova a existncia de intercmbio e contato entre esses povos.

    Para efeito do estudo da questo agrria nesse perodo, sabe--se que esses povos viviam no modo de produo do comunismo primitivo. Organizavam-se em agrupamentos sociais de 100 a 500 famlias, unidos por algum lao de parentesco, de unidade idio-

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    mtica, tnica ou cultural. No havia entre eles qualquer sentido ou conceito de propriedade dos bens da natureza. Todos os bens da natureza existentes no territrio terra, guas, rios, fauna, flora eram, todos, de posse e de uso coletivo e eram utilizados com a nica finalidade de atender s necessidades de sobrevivncia social do grupo. E quando os bens da natureza se tornavam escassos em determinadas regies, os grupos se deslocavam para outros locais, o que caracterizava a sua condio de vida nmade.

    Segundo os estudos de Darcy Ribeiro, em especial os reunidos no livro O povo brasileiro (Companhia das Letras), quando os colonizadores europeus invadiram nosso territrio, estima-se que havia mais de 300 grupos tribais ocupando a regio, num total de aproximadamente 5 milhes de pessoas. Ou seja, uma populao razoavelmente grande para aquela poca.

    Segundo perodo: de 1500 a 1850H diversas teses e registros histricos de que misses de outros

    povos, seja dos fencios, dos rabes, dos africanos e at mesmo de europeus, haviam chegado ao nosso continente antes de 1500, alm do registro oficial de descoberta e apoderamento realizado por Cristvo Colombo, em 1492. Mas este um debate para os historiadores; a poca e os motivos do intercmbio entre os povos no , para a questo agrria, o aspecto principal.

    Os portugueses que aqui chegaram e invadiram nosso terri-trio, em 1500, o fizeram financiados pelo nascente capitalis-mo comercial europeu, e se apoderaram do territrio por sua supremacia econmica e militar, impondo as leis e vontades polticas da monarquia portuguesa. No processo da invaso, como a Histria registra, adotaram duas tticas de dominao: cooptao e represso. E, assim, conseguiram dominar todo o territrio e submeter os povos que aqui viviam ao seu modo de produo, s suas leis e sua cultura.

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    Com a invaso dos europeus, a organizao da produo e a apropriao dos bens da natureza aqui existentes estiveram sob a gide das leis do capitalismo mercantil que caracterizava o pero-do histrico j dominante na Europa. Tudo era transformado em mercadoria. Todas as atividades produtivas e extrativistas visavam lucro. E tudo era enviado metrpole europeia, como forma de realizao e de acumulao capital.

    No incio, iludiram-se na busca do ouro; depois, porm, segun-do nos explicam os historiadores, preocuparam-se em transformar outros bens naturais, como o ferro, a prata e outros minrios, em mercadorias. Mas logo perceberam que a grande vantagem compa-rativa de nosso territrio era a fertilidade das terras e o seu potencial para cultivos tropicais de produtos que at ento os comerciantes buscavam na distante sia ou na frica. Os colonizadores, ento, organizaram o nosso territrio para produzir produtos agrcolas tropicais, de que sua sociedade europeia precisava. Trouxeram e nos impuseram a explorao comercial da cana-de-acar, do algodo, do gado bovino, do caf, da pimenta-do-reino. E aproveitaram algumas plantas nativas, como o tabaco e o cacau, e as transfor-maram, com produo em escala, em mercadorias destinadas ao mercado europeu.

    Tal modelo de produo, sob a gide das leis do capitalismo, produzindo apenas produtos agrcolas e minerais para o abasteci-mento do mercado europeu, foi denominado pelos historia dores de modelo agroexportador. A amplitude desse modelo era tal que, segundo as primeiras estatsticas macroeconmicas organizadas pelo Banco do Brasil em meados do sculo 19, naquela poca, a colnia Brasil exportava mais de 80% de tudo o que era produzido no territrio.

    E, do ponto de vista da organizao da produo, qual foi o modelo adotado pelos colonizadores em nosso territrio? Durante muitos anos, houve grande polmica sobre esse aspecto. Mas, hoje,

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    j h consenso de que o modelo adotado para organizar as unidades de produo agrcola foi o da plantation, uma palavra de origem inglesa, utilizada por socilogos e historiadores para resumir o fun-cionamento do modelo empregado nas colnias. Jacob Gorender tentou aportuguesar a expresso, traduzindo-a para plantagem. Mas a traduo no se firmou e, na prtica, a maioria dos estudiosos segue utilizando a expresso original em ingls. O que caracteriza a plantation? a forma de organizar a produo agrcola em grandes fazendas de rea contnua, com a prtica monocultura, ou seja, com a plantao de um nico produto, destinado exportao, seja ele a cana-de-acar, o cacau, o algodo, gado etc., com o emprego de mo de obra escrava. Como a produo era voltada apenas para o mercado externo, sua localizao deveria ser prxima dos portos, para diminuir custos com transporte. Essas unidades de produo adotavam modernas tcnicas, ou seja, apesar de utilizarem a fora de trabalho da mo de obra escrava, do ponto de vista dos meios de produo, das tcnicas de produo, os europeus adotaram o que havia de mais avanado. Havia tambm, nessas unidades, a produo de bens para a subsistncia dos trabalhadores escravizados, visando reduzir o seu custo de reproduo, assim como oficinas para a fabricao e reparo de instrumentos de trabalho.

    Em relao propriedade da terra, a forma adotada pelos euro-peus foi a do monoplio da propriedade de todo o territrio pela monarquia, pela Coroa. Assim, o fato de a propriedade de todo o territrio ter sido exclusiva da Coroa, no havendo propriedade privada da terra, determina que a propriedade da terra no era capi-talista. Porm, para implantar o modelo agroexportador e estimular os capitalistas a investirem seu capital na produo das mercadorias necessrias para a exportao, a Coroa optou pela concesso de uso com direito herana. Ento, utilizando diversos critrios polticos e sociolgicos, a Coroa entrega, a capitalistas-colonizadores que dispunham de capital, enormes extenses de terra que eram

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    medidas em lguas, em geral delimitadas por grandes acidentes geogrficos. Assim, os capitalistas-colonizadores eram estimulados a investir seu capital no Brasil para a produo de alguma merca-doria para exportao, com a Coroa garantindo a posse de imensas extenses de terra para tal finalidade. O critrio fundamental para a seleo dos eleitos pela concesso de uso das terras era muito alm do que simples favores a fidalgos prximos a disponibilidade de capital e o compromisso de produzir na colnia mercadorias a serem exportadas para ao mercado europeu.

    A concesso de uso era de direito hereditrio, ou seja, os herdeiros do fazendeiro-capitalista poderiam continuar com a posse das terras e com a sua explorao. Mas no lhes dava direito de vender, ou mesmo de comprar terras vizinhas. Na essncia, no havia propriedade privada das terras, ou seja, as terras ainda no eram mercadorias.

    Terceiro perodo: de 1850 a 1930A Coroa, sofrendo presses inglesas para substituir a mo

    de obra escrava pelo trabalho assalariado, com a consequente e inevitvel abolio da escravido, e para impedir que, com a futura abolio, os ento trabalhadores ex-escravos se apossas-sem das terras, promulga, em 1850, a primeira lei de terras do pas. Essa lei foi um marco jurdico para a adequao do sistema econmico e de preparao para a crise do trabalho escravo, que j se ampliava.

    O que caracteriza a Lei no 601, de 1850?* Sua caracterstica principal , pela primeira vez, implantar no Brasil a propriedade privada das terras. Ou seja, a lei proporciona fundamento jurdico transformao da terra que um bem da natureza e, portanto, no tem valor, do ponto de vista da economia poltica em mer-

    * A Lei de Terras est publicada na ntegra nos anexos.

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    cadoria, em objeto de negcio, passando, portanto, a ter preo. A lei normatizou, ento, a propriedade privada da terra.

    Uma segunda caracterstica estabelecia que qualquer cidado brasileiro poderia se transformar em proprietrio privado de terras. Poderia transformar sua concesso de uso em propriedade privada, com direito venda e compra. Mas, para isso, deveria comprar, portanto, pagar determinado valor Coroa.

    Ora, essa caracterstica visava, sobretudo, impedir que os futu-ros ex-trabalhadores escravizados, ao serem libertos, pudessem se transformar em camponeses, em pequenos proprietrios de terras, pois, no possuindo nenhum bem, no teriam recursos para com-prar, pagar pelas terras Coroa. E assim continuariam merc dos fazendeiros, como assalariados.

    A Lei no 601, de 1850, foi ento o batistrio do latifndio no Brasil. Ela regulamentou e consolidou o modelo da grande pro-priedade rural, que a base legal, at os dias atuais, para a estrutura injusta da propriedade de terras no Brasil.

    Por outro lado, a histria das lutas sociais e das revoltas popula-res registra muitas mobilizaes nesse perodo. E um dos fatores de desestabilizao do modelo agroexportador baseado na utilizao da mo de obra do trabalhador escravizado a revolta deste em relao s suas condies de vida e de trabalho.

    Os trabalhadores escravizados continuaram fugindo, continua-ram se rebelando. Multiplicaram-se os quilombos. Multiplicaram--se, nas cidades, movimentos de apoio ao abolicionismo. O tema era a grande questo entre os partidos e as elites. Chegou a surgir o movimento dos Caifases, um movimento clandestino organizado entre os filhos brancos da classe mdia urbana, que ajudavam os trabalhadores escravizados a fugirem das senzalas.

    Finalmente, em 1888, com a promulgao da Lei urea, con-solidou-se legalmente aquilo que j vinha acontecendo na prtica. A demora para a abolio legal do trabalho escravo (o Brasil foi o

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    ltimo pas do hemisfrio ocidental a abolir a escravido) deveu-se aos debates que ocorreram entre os partidos da elite, no Congresso monrquico, que se reunia no Rio de Janeiro, para determinar se o Estado, se o governo deveria ou no indenizar os proprietrios de escravos por sua libertao!

    Muitos argumentos registrados nos debates sobre a libertao dos escravos e o direito absoluto que os fazendeiros tinham sobre eles nos fazem lembrar o atual debate que ocorre na imprensa brasileira, quando os fazendeiros argumentam sobre o seu direito absoluto de propriedade das terras.

    Com a libertao dos trabalhadores escravizados oficia-lizada pela Lei urea, de 1888 e, ao mesmo tempo, com o impedimento de os mesmos se transformarem em camponeses, quase dois milhes de adultos ex-escravos saem das fazendas, das senzalas, abandonando o trabalho agrcola, e se dirigem para as cidades, em busca de alguma alternativa de sobrevivncia, agora vendendo livremente sua fora de trabalho. Como ex-escravos, pobres, literalmente despossudos de qualquer bem, resta-lhes a nica alternativa de buscar sua sobrevivncia nas cidades porturias, onde pelo menos havia trabalho que exigia apenas fora fsica: carregar e descarregar navios. E, pela mesma lei de terras, eles foram impedidos de se apossar de terrenos e, assim, de construir suas moradias: os melhores terrenos nas cidades j eram propriedade privada dos capitalistas, dos comerciantes etc. Esses trabalhadores negros foram, ento, busca do resto, dos piores terrenos, nas regies ngremes, nos morros, ou nos manguezais, que no interessavam ao capitalista. Assim, tiveram incio as favelas. A lei de terras tambm a me das favelas nas cidades brasileiras.

    Aprofunda-se, ento, a crise do modelo agroexportador. O mo-delo plantation chega ao fim com a abolio do trabalho escravo. A ltima p de cal sobre o modelo agroexportador foi a ecloso da

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    3 Sobre o assunto, h uma vasta bibliografia sobre o tema organizada e/ou produzida pelo historiador Mrio Maestri.

    I Guerra Mundial, de 1914-1918, que interrompeu o comrcio entre as Amricas e a Europa.

    A sada encontrada pelas elites para substituir a mo de obra escrava foi realizar uma intensa propaganda na Europa, em especial na Itlia, na Alemanha e na Espanha, para atrair os camponeses pobres excludos pelo avano do capitalismo industrial no final do sculo 19 na Europa. E, assim, com a promessa do eldorado, com terra frtil e barata, a Coroa atraiu para o Brasil, no perodo de 1875-1914, mais de 1,6 milho de camponeses pobres da Europa. Como se pode ver no anexo, nas estatsticas organizadas por Darcy Ribeiro, h uma coincidncia histrica: o nmero de migrantes europeus praticamente coincide com o nmero da ltima estatstica de trabalhadores escravizados.

    Parte dos migrantes foi para o Sul do pas, pela maior disponibi-lidade de terras e pelo clima, recebendo lotes de 25 a 50 hectares; parte foi para So Paulo e para o Rio de Janeiro, no recebendo terras, mas sendo obrigados a trabalhar nas fazendas de caf, sob um novo regime denominado colonato.

    Todos os camponeses colonos que receberam terras no Sul tiveram de pagar por elas e isso os obrigou a se integrar imedia-tamente na produo para o mercado.3

    O regime de produo sob a forma de colonato, assim rotulado por socilogos, foi o estabelecimento de relaes sociais especficas na produo de caf, entre os fazendeiros e os colonos, no se tendo notcia de sua adoo em nenhum outro pas. Por esse sistema, os colonos recebiam a lavoura de caf pronta, formada anterior mente pelo trabalho escravo, recebiam uma casa para moradia e o direito de usar uma rea de aproximadamente dois hectares por famlia, para o cultivo de produtos de subsistncia, e de criar pequenos animais

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    logrando, assim, melhores condies de sobrevivncia. Cada famlia cuidava de determinado nmero de ps de caf e recebia por essa mo de obra, no final da colheita, o pagamento em produto, ou seja, em caf, que poderia ser vendido junto ou separado com o do patro. A esse regime de colonato sujeitaram-se milhares de famlias migrantes, em especial da Itlia e da Espanha.4

    A crise segue at 1930 e a migrao de camponeses europeus interrompida na I Guerra Mundial (1914), quando tambm interrompido o uso de navios para transporte dos migrantes.

    Nesse perodo de crise, nasceu, no campo brasileiro, o cam-pesinato.

    At ento, havia apenas trabalhadores escravizados, originrios da frica ou sequestrados das comunidades nativas, indgenas. Podemos observar nos quadros estatsticos anexos, organizados por Darcy Ribei-ro, como, do ponto de vista da populao, a adoo do modelo agroex-portador sob o imprio da plantation foi um verdadeiro genocdio para o povo brasileiro. A populao nativa que j habitava o territrio, em 1500, era de aproximadamente 5 milhes de pessoas. Acrescente-se que foram trazidos milhes de trabalhadores escravizados da frica e, depois de 350 anos de explorao, no fim do sculo 19, havia pouco mais de 5 milhes de habitantes. Ou seja, foi um grande massacre de nossa populao, indgena e negra, pelo capitalista colonizador europeu, que, sem sua presena, teria se multiplicado aos milhes no mesmo perodo. Alm do genocdio que representou a morte de milhes de pessoas escravizadas na frica, durante o transporte e pela no adaptao ao territrio.

    O surgimento do campesinato se deu em duas vertentes. A primeira, j mencionada, trouxe quase dois milhes de campone-ses pobres da Europa, para habitar e trabalhar na agricultura nas regies Sudeste e Sul.4 Tambm j h uma farta literatura acadmica com estudos de caso sobre o colonato,

    que pode ser pesquisada.

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    A segunda vertente de formao do campesinato brasileiro teve origem nas populaes mestias que foram se formando ao longo dos 400 anos de colonizao, com a miscigenao entre brancos e negros, negros e ndios, ndios e brancos, e seus descendentes. Essa populao, em geral, no se submetia ao trabalho escravo e, ao mes-mo tempo, no era capitalista, eram trabalhadores pobres, nascidos aqui. Impedida pela Lei de Terras de 1850 de se transformar em pe-quenos proprietrios, essa populao passou a migrar para o interior do pas, pois, nas regies litorneas, as melhores terras j estavam ocupadas pelas fazendas que se dedicavam exportao. A longa caminhada para o interior, para o serto, provocou a ocupao de nosso territrio por milhares de trabalhadores, que foram povoan-do o territrio e se dedicando a atividades de produo agrcola de subsistncia. No tinham a propriedade privada da terra, mas a ocupavam, de forma individual ou coletiva, provocando, assim, o surgimento do campons brasileiro e de suas comunidades. Produto do serto, local ermo, despovoado, o campons recebeu o apelido de sertanejo e ocupou todo o interior do territrio do Nordeste brasileiro e nos Estados de Minas Gerais e de Gois.

    Quarto perodo: de 1930 a 1964O ano de 1930 marca uma nova fase da histria econmica

    brasileira, com influncias na questo agrria. Com a crise do modelo agroexportador, h uma crise poltica e institucional no pas, afetando as elites abastadas, as classes dominantes ampla-mente hegemnicas j que a maioria da populao vivia em condies de escravido e uma outra parte estava isolada nos confins dos sertes que eram as nicas que tinham presena poltico-institucional. O resultado da crise provocou a queda da monarquia e o estabelecimento da Repblica, num golpe militar realizado pelo prprio Exrcito da monarquia, sem nenhuma participao popular. Produziu tambm um movi-

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    mento de protesto dos tenentes, o nico segmento social das classes menos favorecidas com acesso ao estudo nas academias militares. Depois, tivemos a coluna Prestes, como resultado do tenentismo. E, enfim, em 1930, setores das elites da nascente burguesia industrial do um golpe, fazem uma revoluo po-ltica por cima, tomam o poder da oligarquia rural exportadora e impem um novo modelo econmico para o pas. Surgiu, ento, o modelo de industrializao dependente, na conceitua-o dada por Florestan Fernandes, conceito esse derivado do fato de a industrializao ser realizada sem rompimento com a dependncia econmica aos pases centrais, desenvolvidos, e sem rompimento com a oligarquia rural, origem das novas elites dominantes. Alguns estudiosos chamaram esse perodo de projeto nacional desenvol vimentista; outros, de Era Vargas, pois o projeto poltico foi coordenado pela liderana poltica de Getlio Vargas, que governou o pas de 1930 a 1945.

    Do ponto de vista da questo agrria, esse perodo se caracteriza pela subordinao econmica e poltica da agricultura indstria.

    As oligarquias rurais continuam donas das terras, continuam latifundirias e produzindo para a exportao, mas no mais detm o poder poltico. As elites polticas a burguesia industrial, agora no poder fazem uma aliana com a oligarquia rural, tomam seu poder, mas a mantm como classe social, por duas razes fundamentais: primeiro, porque a burguesia industrial brasileira tem origem na oligarquia rural, da acumulao das exportaes do caf e do acar, ao contrrio dos processos histricos ocorridos na formao do capi-talismo na Europa e nos Estados Unidos. A segunda razo: o modelo industrial, como era dependente, precisava importar mquinas, e at operrios, da Europa e dos Estados Unidos. E a importao dessas mquinas s era possvel pela continuidade das exportaes agrcolas, que geravam divisas para seu pagamento, fechando o ciclo da lgica da necessidade do capitalismo dependente.

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    Surge, ento, um setor da indstria vinculado agricultura, as indstrias produtoras de insumos para a agricultura, como ferramentas, mquinas, adubos qumicos, venenos etc. E outro, da chamada agroindstria, que foi a implantao da indstria de beneficiamento de produtos agrcolas.

    Com esse modelo, comea a surgir tambm uma burguesia agr-ria, de grandes proprietrios, que procura modernizar a sua explo-rao agrcola e destin-la ao mercado interno. Nasce com o cultivo do trigo, no Sul, e com a cana, o caf, o algodo e outros produtos, tambm para o mercado interno. Foi um processo de modernizao capitalista da grande propriedade rural5 e, em relao ao surgimento dos camponeses, o perodo histrico em que eles so induzidos a se vincular totalmente s regras do mercado e a se integrar indstria.

    Porm, alm de seu carter de integrao no sistema capitalista da industrializao dependente, o modelo reservou aos camponeses, agricultores familiares, pequenos produtores, ou qualquer outro nome que a eles se d, algumas funes claramente determinadas:

    a) Os camponeses cumpriram o papel de fornecer mo de obra barata para a nascente indstria na cidade. O xodo rural era estimulado pela lgica do capitalismo, para que os filhos dos camponeses em vez de sonharem com sua reproduo como camponeses, em vez de lutarem pela terra, pela reforma agrria se iludissem com os novos empregos e salrios na indstria. Foi, assim, um perodo histrico em que praticamente todas as famlias camponesas enviaram seus filhos para as cidades, no Sudeste e no Sul do pas, para serem operrios nas fbricas.

    b) O xodo contnuo de mo de obra camponesa cumpria tambm o papel de pressionar para baixo o salrio mdio na indstria.

    5 Este tema foi muito bem pesquisado e descrito na tese de doutorado de Jos Graziano da Silva, publicado pela Editora Zahar, como A modernizao dolorosa.

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    Ou seja, havia sempre um exrcito industrial de reserva nas portas das fbricas, espera de emprego. A baixos salrios.

    c) Os camponeses tambm cumpriram a funo de produzirem, a preos baixos, alimentos para a cidade, em especial para a nascente classe operria. O Estado brasileiro administrava ri-gorosamente os preos dos produtos alimentcios, produzidos pelos camponeses, para que chegassem baratos na cidade. E, com isso, viabilizava a reproduo da fora de trabalho operria, com baixos salrios, garantindo que a industrializao brasileira obtivesse altas taxas de lucro e, assim, crescesse rapidamente. Por essa razo, existe at hoje uma relao direta entre o preo da cesta bsica dos produtos alimentcios de sobrevivncia da classe trabalhadora urbana e o preo da fora de trabalho, que fixado no salrio mnimo.

    d) Os camponeses foram induzidos a produzir matrias-primas agrcolas para o setor industrial. Surgiu e se desenvolveu, ento, o fornecimento de matria-prima para energia, carvo, celulose, lenha etc.

    Dessa forma, a lgica do modelo de industrializao dependente atuava permanentemente de forma contraditria e complementar, em que os camponeses, ao mesmo tempo em que se reproduziam e se multiplicavam enquanto classe, tiveram parcelas crescentes de seus membros migrando para as cidades e se transformando em operrios.

    Na estrutura da propriedade da terra, a lgica contraditria se repetia. Por um lado, havia a multiplicao de pequenas proprieda-des, pela compra e venda e reproduo das unidades familiares. E, por outro lado, em vastas regies, a grande propriedade capitalista avanava e concentrava mais terra, mais recursos. E, no geral, havia uma tendncia histrica, natural da lgica de reproduo capitalista, de que a propriedade da terra, que j nasceu em bases latifundirias, continuava na mdia se concentrando ainda mais.

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    Assim, chegamos dcada de 1960 num cenrio que apresenta uma agricultura modernizada, capitalista, e um setor campons completamente subordinado aos interesses do capital industrial. Hoje, com um maior distanciamento histrico daquela poca e com acesso a muitos estudos e pesquisas, podemos compreender melhor esse processo de evoluo histrica da questo agrria at 1964. Por outro lado, nos anos de 1960-1964 que eclode tambm a primeira crise cclica desse modelo de industrializao dependente. E, a exemplo de qualquer crise, sempre surgem perodos de mo-bilizaes sociais, disputas entre as classes, disputas entre as elites, assim como a busca de sadas, tanto para a acumulao de capital, quanto para a classe trabalhadora.

    E tambm nesse cenrio de crise cclica do modelo de in-dustrializao dependente que se situam a polmica e os debates realizados sobre a interpretao da questo agrria.

    Este livro procurou reunir os principais textos e ensaios que evidenciaram o intenso debate poltico que houve na dcada de 1960. Esse debate partia da crise que se vivia e procurava explicaes na formao econmica histrica, na situao da agricultura, para, a partir dessas teses, propor sadas.

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  • PARTE I

    O DEBATE NO PCB

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    1. QUATRO SCULOS DE LATIFNDIO 19631

    ALBERTO PASSOS GUIMARES

    O regime econmico colonial: feudalismo ou capitalismo?Portugal, poca do descobrimento, como de resto todo o

    continente europeu, achava-se em pleno florescimento do mercan-tilismo. O regime feudal desagregava-se, o poder absoluto da aris-tocracia agrria entrava em decomposio e os senhores de terras que escapavam runa buscavam, nas atividades urbanas, novos caminhos para a conservao de seus privilgios. A aristocracia rural trocava os poderes da nobreza pelos do dinheiro.

    Mas no se conclua da que, nas novas terras da Amrica, Portu-gal prolongaria ininterruptamente sua histria. Nesse erro incorre-ram muitos historiadores daqui e dalm-mar. Transplantando para o Brasil o quadro de fenmenos da sociedade portuguesa, foram levados a admitir o mesmo desenvolvimento aqui, sem qualquer interrupo no seu curso. A colonizao, como fruto da expanso

    1 GUIMARES, Alberto Passos. Quatro Sculos de Latifndio. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1968. O texto O regime econmico colonial: feudalismo ou capitalismo? corresponde ao captulo II da 4 edio, 1997, pp. 21-40.

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    do comrcio martimo e da desagregao do regime feudal, deveria, de acordo com esse ponto de vista incorreto, seguir aqui os moldes da nova sociedade que germinava na metrpole. Nesse caso, nas relaes sociais implantadas no Brasil haveriam de predominar no os traos da economia feudal decadente, mas os da economia mer-cantil em formao; e, por conseguinte, a explorao latifundiria, aqui, no teria as caractersticas fundamentais do feudalismo, mas as do capitalismo.

    Percebe-se o contedo apologtico dessa concepo errnea, pois com ela se admite que o sistema colonial, em vez de transportar para o territrio conquistado os elementos regressivos do pas dominante, como de fato inevitavelmente acontece, abandonaria sua sorte esses elementos, selecionaria os fatores novos determinantes da evoluo social e deles se serviria para fundar, onde quer que fosse, socie dades de um tipo mais avanado que as metropolitanas.

    Ao contrrio desse imaginoso quadro, incorporado ao fabu-lrio do colonialismo, a Histria nos mostra, no s em relao colonizao portuguesa como no que se refere a todas as outras, que as metrpoles exportam para as colnias processos econmi-cos e instituies polticas que assegurem a perpetuao de seu domnio. Por isso, sempre que a empresa colonial precisa utilizar processos econmicos mais adiantados, ela recorre, como contra-partida obrigatria, a instituies polticas e jurdicas muito mais atrasadas e opressivas. Desse modo, quando os instrumentos de coao econmica se mostram incapazes de atender aos objetivos preestabelecidos, o sistema de coao extraeconmica acionado com o mximo rigor e levado s ltimas consequncias.

    O exemplo brasileiro ilustra e confirma esse imperativo hist-rico. A despeito do importante papel desempenhado pelo capital comercial na colonizao do nosso pas, ele no pde desfrutar aqui a mesma posio influente, ou mesmo dominante, que havia assumido na metrpole; no conseguiu impor sociedade colonial

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    as caractersticas fundamentais da economia mercantil e teve de submeter-se e amoldar-se estrutura tipicamente nobilirquica e ao poder feudal institudos na Amrica portuguesa.

    Por conseguinte, o processo evolutivo em curso na sociedade lusa no veio continuar-se no Brasil-Colnia, onde o regime econ-mico instaurado significou um recuo de centenas de anos em relao ao seu ponto de partida na metrpole. Para que assim acontecesse, a classe senhorial, despojada ali de seus recursos materiais, empenhou--se a fundo na tarefa de fazer girar em sentido inverso a roda da Histria, embalada pelo sonho de ver reconstitudo o seu passado.

    A grande ventura, para os fidalgos sem fortuna, seria reviver aqui os tempos ureos do feudalismo clssico, reintegrar-se no do-mnio absoluto de latifndios interminveis como nunca houvera, com vassalos e servos a produzirem, com suas mos e seus prprios instrumentos de trabalho, tudo o que ao senhor proporcionasse riqueza e poderio.

    Cedo se desvaneceriam as esperanas nesta reconstituio inte-gral das instituies j caducas na sociedade portuguesa. A proprie-dade da terra era, ainda nesse tempo, um cabedal de nobreza, e a participao da Ordem de Cristo nos frutos da explorao vinha acrescentar aos dons nobilirquicos a origem mstica do direito dominial.

    Isso, porm, no bastaria, como no bastou, para que a empresa colonial produzisse os rendimentos que dela era lcito esperar. Da o fracasso das primeiras tentativas de colonizao, o qual poderia muito bem explicar-se pela impossibilidade de uma pura e simples transposio para o Novo Mundo de todos os componentes da estrutura produtiva da economia medieval.

    Onde no havia o servo da gleba a produzir renda com seus bra-os, seus animais e instrumentos de trabalho prprios, onde a mo de obra nativa se mostrava cada vez mais rebelde e reagia violenta ou passivamente contra o cativeiro, a explorao agrria exigiria

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    outros recursos de que a nobreza no dispunha. Naturalmente, em um mundo j invadido pelo poder da moeda, o domnio da terra, nobre, mstico, absoluto como fosse, no se transformaria em fonte de riqueza sem um complemento indispensvel: o capital-dinheiro.

    Os homens de calidades, provindos da fidalguia peninsular endividada ou arruinada, no estavam preparados para colher, sozi-nhos, os pomos de ouro que deveriam nascer da terra. Esses fidalgos escreveu Oliveira Viana vm de uma sociedade ainda modelada pela organizao feudal: s o servio das armas nobre, s ele honra e classifica. Falta-lhes aquele sentimento da dignidade do labor agrcola, to profundo entre os romanos do tempo de Cincinnatus.

    Mas o que lhes faltava, realmente, era dinheiro.Por todas essas razes, a empresa colonial teve de realizar-se me-

    diante a associao de fidalgos sem fortuna e plebeus enriquecidos pela mercncia e pela usura, mas sob uma condio: o predomnio dos homens de calidades sobre os homens de posses.

    Recordemo-nos de que na Pennsula, Portugal inclusive, mais que noutra qualquer parte, as formas polticas, os costumes, as ideias religiosas, todas as foras ideolgicas do medievalismo estavam profundamente arraigadas. As aventuras martimas, principal fonte de acumulao primitiva do capital comercial, tinham possibilitado a formao de uma burguesia j bem nutrida de recursos monet-rios, qual no se havia, contudo, transferido parcela substancial e decisiva do poder do Estado.

    Diogo de Gouveia, que tinha inspirado e formulado os planos da colonizao portuguesa da Amrica, no era, positivamente, um idelogo da burguesia, mas da nobreza. A verdade era dar, Senhor, as terras a vossos vassalos aconselhara ele em sua carta datada de 1532 a el-rei D. Joo III.

    A posio dominante dos homens de calidades na empresa colonial um fato bastante explcito em nossa Histria. Prova-o, sem deixar lugar a dvidas, o esprito de casta que presidiu a diviso

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    do vasto territrio conquistado ao gentio, particularmente daqueles quinhes maiores e melhores.

    Desde o instante em que a metrpole se decidira a colocar nas mos da fidalguia os imensos latifndios que surgiram dessa partilha, tornar-se-ia evidente o seu propsito de lanar, no Novo Mundo, os fundamentos econmicos da ordem de produo feu-dal. E no poderia deixar de assim ter procedido, porque o modelo original, de onde necessariamente teria de partir a ordem de produo peninsular no sculo da Descoberta continuava a ser, por suas caractersticas essenciais, a ordem de produo feudal.

    certo que o feudalismo do Portugal seiscentista no guarda-va mais o mesmo grau de pureza dos primeiros tempos: j havia passado do estgio da economia natural para o da economia mer-cantil. Mas nenhuma mudana na estrutura econmica se dera em Portugal que pudesse justificar sua assemelhao a outro regime historicamente mais avanado.

    Eis por que falharam irrecusavelmente alguns historiadores e economistas notveis ao classificarem como capitalista o regime econmico colonial implantado no continente americano.

    A extraordinria expanso do comrcio martimo e, como sua decorrncia, o enorme incremento da economia mercantil no seio do Portugal feudal do sculo 16 levaram o Sr. Roberto Simonsen a perfilhar to grave equvoco e a introduzir na historiografia brasileira a tese que influenciou numerosos setores de nossa intelectualidade:

    Na verdade afirmou Simonsen Portugal, em 1500, j no vivia sob o regime feudal. D. Manuel, com sua poltica de navegao, com seu regime de monoplios internacionais, com suas manobras econmicas de desbancamento do comrcio de especiarias de Veneza, um autntico capitalista.2

    2 SIMONSEN, Roberto C. Histria Econmica do Brasil, 1937, Editora Nacional, pp. 124 e seguintes.

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    E partiu da para as seguintes concluses:No nos parece razovel que a quase totalidade dos historia-

    dores ptrios acentuem, em demasia, o aspecto feudal do sistema das donatarias, chegando alguns a classific-lo como um retrocesso em relao s conquistas polticas da poca. Portugal, desejando ocupar e colonizar a nova terra e no tendo recursos para faz--lo custa do errio real, outorgou para isso grandes concesses a nobres e fidalgos, alguns deles ricos proprietrios, e outros j experimentados nas expedies das ndias. (...) Sob o ponto de vista econmico, que no deixa de ser bsico em qualquer em-preendimento colonial, no me parece razovel a assemelhao desse sistema ao feudalismo.

    Como se v, Simonsen no se contentara em negar o carter feudal do regime econmico implantado no Brasil-Colnia; e, indo mais alm, deu por extinto, j no comeo do sculo 16, o feudalismo em Portugal.

    No entanto, os argumentos aduzidos pelo eminente historiador so insuficientes para a comprovao de sua tese. A imagem por ele tracejada do Portugal quinhentista revela uma sociedade onde a produo comercial havia alcanado elevado nvel de evoluo, onde as trocas monetrias tinham atingido aprecivel desenvolvimento e onde era copioso o capital-dinheiro, condies essas peculiares, em propores crescentes, a toda a longa histria vivida pela economia mercantil, desde os primrdios da civilizao.3

    3 A tese de Simonsen sofreu judiciosas refutaes da parte de vrios pesquisadores de nosso passado. O Sr. Nestor Duarte, respondendo aos argumentos manejados pelo autor da Histria Econmica do Brasil, demonstra exaustivamente que as caractersticas feudais no apenas esto presentes no perodo inicial da colonizao de nosso pas, como se fixaram ao longo dos sculos seguintes: O sistema das donatarias nos trans-mitiu o estilo e a forma de uma ocupao do solo que uma das constantes de nossa sociedade e a prpria condio de suas lindes territoriais que ainda hoje perduram na configurao de muitos dos nossos Estados federados. (...) Donatrios, donos de sesmarias, senhores de engenhos e de fazenda e de currais, embora s os primeiros

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    No bastaria a presena de tais categorias econmicas, por maiores que fossem sua amplitude e significao na poca, para caracterizar como capitalista o regime econmico de Portugal. Se tomssemos como ponto de referncia, para definir e classificar os regimes econmicos, os fenmenos inerentes circulao, acaba-ramos por aceitar a absurda igualdade entre todos os sistemas sociais por que passou a Humanidade, a contar do momento em que abandonou a vida primitiva. No teramos, pois, como estabe-lecer distino entre os perodos correspondentes escravido, ao feudalismo e ao capitalismo, de vez que, em todos esses regimes, com maior ou menor grau, o sistema mercantil est presente.

    Acertara o Sr. Roberto Simonsen ao afirmar que no deixa de ser bsico em qualquer empreendimento colonial o ponto de vista econmico. Entretanto, se certo que o ponto de vista econmico

    detivessem, por outorga legtima, a jurisdio civil e a governana, continuaram a desenvolver longe e indiferentes, ou refratrios a um poder do Estado to distante, a ndole feudal ou feudalizante da sociedade (A Ordem Privada e a Organizao Poltica Nacional, Editora Nacional, 1939, pp. 43 e seguintes).

    Revela viso igualmente esclarecida do problema o Sr. Alberto Ribeiro Lamego: Roberto Simonsen opina que no o feudalismo, e sim o capitalismo caracteriza o sistema de donatarias no Brasil, desde os tempos mais remotos. Do ponto de vista financeiro, pode ser correto. Considerando-o, porm, integralmente, com toda a sua complexidade de repercusses sociais, mormente as compressivas do pequeno proprie trio que se proletariza e a crescente contrao do capital em meia dzia de mos afortunadas ante a grande massa pauperizada, o verdadeiro capitalismo um fenmeno que, particularmente em Campos, s penetra em nossa civilizao rural com o advento dos engenhos a vapor, e s atinge mesmo em cheio a indstria aucareira com a elasticidade artificial do crdito bancrio durante a Grande Guerra. (O Homem e o Brejo, Rio, 1945, p. 107.)

    Nelson Werneck Sodr, que em trabalhos anteriores admitira a tese do capitalismo colonial para classificar o regime econmico da Amrica Portuguesa (As Classes Sociais no Brasil, pp. 26 e 27), reformulou seu ponto de vista, aduzindo com admirvel luci-dez argumentos irrefutveis para comprovar a existncia das caractersticas feudais da economia e da sociedade do Brasil-Colnia, em seu magnfico livro Formao Histrica do Brasil, Ed. Brasiliense, 2a edio, 1963, pp. 27 e seguintes.

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    fornece a base para interpretao do colonialismo, o que que bsico para a classificao de um regime econmico?

    O bsico num regime econmico o sistema de produo, isto , o modo por que, numa determinada formao social, os homens obtm os meios de existncia. Assim, o modo por que os homens produzem os bens materiais de que necessitam para viver que determina todos os demais processos econmicos e sociais, inclusive os processos de distribuio ou circulao desses bens.

    No Portugal quinhentista, a principal fonte de produo de bens materiais era a agricultura, embora, como talvez sucedesse, fosse j superior dos senhores de terras a parcela da riqueza acumulada nas aventuras martimas pela burguesia comercial, que emergia da sociedade como uma classe de forte potencial econmico.

    Essa classe repartia com a realeza o poder do Estado, havia j mais de um sculo, mas no ocupava ali uma posio dominante e no dispunha de foras suficientes para destruir a ordem de pro-duo vigente, que continuava a ser a ordem feudal.

    Tal estado de coisas no era exclusivo da sociedade peninsular, onde, se por um lado, o capital-dinheiro abundava, por outro lado, a tradio exercia, como em nenhuma outra parte, o seu papel de grande fora retardadora de vis inertiae da histria.

    Em toda a Europa, altura do Descobrimento, ainda no alcanara sua etapa final e decisiva e no se colocara na ordem do dia a derrubada da ordem feudal, que demorou nada menos de trs centrias.

    A longa luta da burguesia contra o feudalismo disse Engels foi marcada por trs grandes e decisivas batalhas. A primeira foi a Reforma protestante na Alemanha. (Ao grito de guerra de Lutero contra a Igreja, responderam duas insurreies polticas: a insurreio da pequena nobreza dirigida por Franz de Sickingen (1523) e a grande guerra dos Camponeses (1525).) A segunda foi

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    a exploso do calvinismo na Inglaterra (1648). E a terceira, a Revo-luo Francesa (1789), que travou todas as suas batalhas no terreno poltico, sem as anteriores roupagens religiosas, e de que resultou, pela primeira vez, a destruio de uma das classes combatentes, a aristocracia, e o completo triunfo da outra, a burguesia.4

    A ordem feudal vigente na sociedade portuguesa de 1500 ti-nha sua base interna no monoplio territorial. E como a terra era, ento, indiscutivelmente, o principal e mais importante dos meios de produo, a classe que possua sobre ela o domnio absoluto estava habilitada a sobrepor s demais classes o seu poderio, por todos os meios de coao econmica e, notadamente, de coao extra-econmica.

    Quando a Metrpole decidiu lanar-se na empresa colonial, no lhe restava outra alternativa poltica seno a de transplantar para a Amrica Portuguesa o modo de produo dominante no alm-mar. E o fez cnscia de que a garantia do estabelecimento da ordem feudal deveria repousar no monoplio dos meios de produo fundamentais, isto , no monoplio da terra. Uma vez assegurado o domnio absoluto de imensos latifndios nas mos dos homens de calidades da confiana de el-rei, todos os demais elementos da produo seriam a ele subordinados.

    E assim aconteceu. O monoplio feudal da terra imps solu-es especficas para os problemas que teve de vencer, sem contudo perder as caractersticas essenciais da formao social que tomara por modelo.

    O feudalismo clssico havia dado um passo frente sobre o re-gime econmico que o antecedeu, com a transformao do escravo em servo da gleba e obteve deste, custa do estmulo proporcio-nado por sua condio mais livre, uma produtividade no trabalho bastante superior.

    4 ENGELS, Friedrich. O materialismo histrico, Londres, abril, 1892.

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    Na impossibilidade de contar com o servo da gleba, o feu-dalismo colonial teve de regredir ao escravismo, compensando a resultante perda do nvel de produtividade, em parte, com a extraor dinria fertilidade das terras virgens do Novo Mundo e, em parte, com o desumano rigor aplicado no tratamento de sua mo de obra. Teve, ainda, de dar outros passos atrs, em relao ao estgio mercantil que correspondia ao seu modelo, restabelecendo muitos dos aspectos da economia natural. Mas, em compensao, pde desenvolver o carter comercial de sua produo, no para o mercado interno, que no existia, mas para o mercado mundial. E, com o acar, vinculou-se profundamente manufatura.

    Nenhuma dessas alteraes, a que precisou amoldar-se o latifndio colonial, foi bastante para diluir o seu carter feudal. Muito frequentemente as formas escravistas entrelaaram-se com as formas servis de produo: o escravo provia o seu sustento de-dicando certa parte do tempo pesca ou lavoura em pequenos tratos de terra que lhe eram reservados. Desse modo, o regime de trabalho escravo se misturava com o regime medieval da renda-trabalho e da renda-produto, alm de outras variantes da prestao pessoal de trabalho. No faltava aos senhorios coloniais a massa de moradores livres ou de agregados, utilizados nos servios domsticos ou em atividades acessrias desligadas da produo, os quais coloriam o pano de fundo do cenrio feudal.

    Fruto dessa estrutura, o sistema de plantao, que vrios eco-nomistas e historiadores pretendem apontar como uma unidade econmica, do tipo capitalista, constituiu, de fato, e sem qualquer dvida, a expresso realizada do feudalismo colonial. Que o poderia configurar como capitalista? O carter comercial da produo? Certas formas atpicas de salariado?

    Mas, como j tivemos ocasio de ver, o carter comercial da produo no uma caracterstica do capitalismo, mas do mer-cantilismo.

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    O estgio da produo mercantil escreveu Engels com o qual comea a civilizao, distingue-se, do ponto de vista econ-mico, pela introduo; 1) da moeda metlica e com ela o capital--dinheiro, o emprstimo, o juro e a usura; 2) dos mercadores, como classe intermediria entre os produtores; 3) da propriedade territorial e da hipoteca; e 4) do trabalho escravo, como forma dominante da produo.5

    Data de cerca de 7.000 anos o reinado do mercantilismo: e em toda essa longa existncia os germes do capitalismo, na acepo moderna e cientfica deste, buscavam as condies necessrias para a sua concretizao histrica, que s se tornou plenamente possvel com o advento da revoluo industrial. A passagem do feudalismo para o capitalismo verificou-se quando a todas as condies acumu-ladas gradualmente, veio acrescentar-se aquela que possibilitou o salto qualitativo: o fim da coao feudal, da coao extraeconmica sobre o trabalhador, para que ele pudesse vender livremente sua fora de trabalho, como assalariado, ao capitalista.

    claro que o momento em que se efetivou esse salto de qua-lidade se entende ser aquele em que as formas capitalistas de pro-duo deixaram de ser excees na sociedade em causa e passaram a constituir a regra.

    Antes que isso se desse, as formas capitalistas de produo foram tornando-se, gradualmente, menos raras, at se transformarem em formas predominantes. O carter comercial da produo e as ocorrncias espordicas do salrio coexistiram com a escravido e com o feudalismo, mas somente adquiriram sua plenitude com o modo de produo capitalista, ou seja, com o capitalismo industrial.

    No sistema de plantao, como alis no conjunto de economia pr-capitalista do Brasil-Colnia, o elemento fundamental, a carac-terstica dominante qual estavam subordinadas todas as demais

    5 ENGELS, Friedrich. A origem da famlia, da propriedade privada e do Estado, cap. IX.

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    relaes econmicas, a propriedade agrria feudal, sendo a terra o principal e mais importante dos meios de produo.

    O fato de se destinarem ao mercado externo, sob o controle da metrpole, os produtos obtidos atravs desse mesmo sistema, s contribui para juntar quele um novo elemento: a condio colonial.

    Em trabalhos de Leo Weibel e Sergio Bagu, que tiveram signi-ficativa repercusso no Brasil, e nos quais foram analisados detida-mente os aspectos caractersticos do regime econmico colonial e do sistema de plantao, podemos encontrar argumentos objetivos que, se tivessem ocupado lugar de relevo na ordem de raciocnio por eles seguida, haveriam de possibilitar concluses muito diferentes daquelas a que chegaram.

    Weibel, por exemplo, depois de criticar as definies de Hahn e Weber e de reconhecer que o sistema no exclusivo das culturas tropicais, concorda em que esta grande participa-o das plantages na produo de matrias-primas estrangeiras e, de modo geral, das plantas cultivadas introduzidas, por si compreensvel e pode ser explicada pelo carter colonial desta forma de economia. Noutro trecho de seu estudo6, valendo-se de afirmaes feitas por Brentano e outros, estabelece que a forma econmica da plantage pode ser relacionada espacial e cronologicamente com o aparecimento do sistema na Mesopo-tmia, nos primrdios da Idade Mdia.

    Todavia, por no dar a essas suas prprias observaes a impor-tncia que mereciam, chegou apenas seguinte definio: Uma plantage um grande estabelecimento agroindustrial, que, via de regra, sob direo de europeus, produz, com grande emprego de

    6 WEIBEL, Leo. A Forma Econmica da Plantage Tropical, conferncia pronuncia da em 1932 na Alemanha e includa em Captulos de Geografia Tropical e do Brasil, Rio, 1958, pp. 31 e seguintes.

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    trabalho e de capital, produtos agrcolas valorizados para o mercado mundial.

    Em estudo posterior, Weibel, que, pelo visto, menosprezara o exame dos processos de produo e tambm se deixara impressio-nar pelo papel que nesse tipo de explorao desempenha o capital comercial, passa a conceituar a plantage como um sistema econ-mico capitalista.7

    Menos compreensveis e explicveis so as concluses do Pro-fessor Sergio Bagu8 que, partindo de premissas bastante lcidas e tendo admitido, relativamente colonizao do territrio america-no, que jamais as metrpoles se desligaram da ideologia feudal, chega, por fim, formulao da tese de que o regime econmico luso-espanhol do perodo colonial no feudalismo mas sim capitalismo colonial.

    Ao enumerar, com inegvel exatido, o que chama de ele-mentos de configurao feudal no processo de colonizao da maioria dos pases americanos, Sergio Bagu principia pela grande propriedade territorial apontando as semelhanas na formao da estrutura latifundiria em todo o novo continente. E acrescenta: O conceito feudal da propriedade do solo aparece to fortemente e talvez mais na colonizao britnica do sculo 17 quanto na luso-espanhola do sculo 16. Mas no confronto entre os vrios componentes feudais por ele examinados e o que chama de elementos de configurao capitalista, Bagu cai em evidente exagero e comete os mesmos equvocos de outros historiadores, confundindo as categorias econmicas do mercantilismo com as do capitalismo moderno. Para ele desde o sculo 16 circula nas colnias hispano-lusas um capital financeiro originado na acumu-lao capitalista produzida nas mesmas colnias, afirmao esta

    7 WEIBEL, Leo. As Zonas Pioneiras do Brasil, 1955, pp. 263 e seguintes. 8 BAGU, Sergio. Economia de La Sociedad Colonial, Buenos Aires, 1949, cap. V.

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    inaceitvel, quer do ponto de vista econmico quer do ponto de vista histrico. O que de fato circulava nas colnias era o capital comercial, em sua forma mais elementar, o capital-dinheiro acu-mulado por meios que se distinguem nitidamente dos processos de acumulao capitalistas, os quais s muito mais tarde, com o desenvolvimento industrial, iriam possibilitar o aparecimento do capital financeiro.

    Foram essas incompreenses que levaram Bagu, de analogia em analogia, a uma outra afirmao ainda mais absurda: a escravido no tem nada de feudal e sim tudo de capitalista, como acreditamos haver provado no caso de nossa Amrica.

    Deter-se nessa controvrsia em busca de um ponto de vista firmado sobre a classificao do regime econmico colonial pode parecer, aos menos avisados, uma intil perda de tempo e um esfor-o desnecessrio. Entretanto, no se trata de um debate meramente acadmico e desligado de qualquer sentido prtico. Nele esto en-volvidas questes de enorme significao para o desenvolvimento econmico e social de nosso pas, bem como interesses polticos da mxima relevncia, como iremos ver.

    A simples eliminao em nossa Histria da essncia feudal do sistema latifundirio brasileiro e a consequente suposio de que iniciamos nossa vida econmica sob o signo da formao social capitalista significa, nada mais nada menos, considerar uma excres-cncia, tachar de suprflua qualquer mudana ou reforma profunda de nossa estrutura agrria.

    Supondo-se inicialmente capitalista o regime econmico im-plantado no Basil-Colnia, estaria implcita uma soluo, inteira-mente diversa daquela preconizada pelos partidrios da reforma agrria. Se a estrutura agrria brasileira sempre teve uma confi-gurao capitalista, por que revolucion-la? Por que reform-la?

    Partindo desse ponto de vista, evidentemente falso, concebe-se uma estratgia poltica no reformista ou no revolucionria, uma estratgia

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    evolucionista: o desenvolvimento gradual, sem reformas. De acordo com ele, acrescentando-se atual estrutura agrria alguns ingredientes mais adubao, mais mecanizao, numa palavra: mais capital al-canaramos a frmula milagrosa para acelerar o progresso agrcola em geral, sem precisarmos apelar para qualquer reforma de base.9

    A teoria do capitalismo colonial no , assim, um achado histrico to inocente quanto parece. uma teoria conservadora, rea cionria que, bem arrumada, se encaixa perfeitamente nos es-quemas polticos mais retrgrados.

    A negao ou mesmo a subestimao da substncia feudal do latifundismo brasileiro retira da reforma agrria sua vinculao histrica, seu contedo dinmico e revolucionrio.

    Esse contedo dinmico e revolucionrio, na presente etapa da vida brasileira, expressa-se pelo objetivo principal do movimento pela reforma agrria, que o de extirpar e destruir, em nossa agri-cultura, as relaes de produo do tipo feudal e no as relaes de produo de tipo capitalista.

    Por a se v que, ao admitir-se que a estrutura agrria existente em nosso pas foi, desde os mais remotos tempos, e continua sendo, capitalista, est-se admitindo, por coerncia, a inoportunidade e a desnecessidade de uma reforma revolucionria, de uma mudana de-mocrtica dessa mesma estrutura. Que restaria por fazer, se se tratasse de tornar mais capitalista nossa estrutura agrria j capitalista? Deix--la como est, inalterada, e injetar nela mais dinheiro, mais capital.

    A experincia brasileira encarregou-se de demonstrar que tm sido infrutferas as tentativas de salvar nossa agricultura latifundi ria

    9 Essa frmula foi aplicada, como complemento do desenvolvimentismo, pelo gover-no do Sr. Juscelino Kubitschek. O conjunto de medidas que compunham a meta agrcola desse governo tinha por objetivo a expanso da produo e a melhoria dos nveis gerais de produtividade, como se dizia no Programa de Metas (tomo III, p. 10), para o que se previam macias injees de dinheiro na compra de tratores etc. Os resultados no se fizeram esperar: o fracasso da cultura do trigo e a crise do feijo.

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    da crise crnica em que mergulha h cerca de um sculo, custa de transfuses de recursos, privilgios e favores, de valorizaes artificiais, da fixao do homem terra, de reajustamentos eco-nmicos e outras panaceias do gnero.

    Agora, j penetrou na opinio nacional a conscincia de que h, no campo, relaes de produo caducas que precisam ser substitu-das por novas relaes de produo, sem o que as foras produtivas de nossa agricultura no estaro desimpedidas de desenvolver-se.

    Quais so essas relaes de produo caducas?Essas velhas relaes de produo que travam o desenvolvimen-

    to e nossa agricultura no so do tipo capitalista, mas heranas do feudalismo colonial. A primeira e mais importante dessas relaes de produo, cuja destruio se impe, o monoplio feudal e colonial da terra, o latifundismo feudo-colonial.

    O monoplio feudal e colonial a forma particular, especfica, por que assumiu no Brasil a propriedade do principal e mais impor-tante dos meios de produo na agricultura, isto , a propriedade da terra. O fato de ser a terra o meio de produo fundamental na agricultura indica um estgio inferior da produo agrcola, peculiar s condies histricas pr-capitalistas. medida que o capitalismo penetra na agricultura, vo-se desenvolvendo, e aumentando sua proporo no conjunto, os demais meios de produo, isto , os meios mecnicos de trabalho, as mquinas ou os instrumentos de produo, as construes, os elementos tcnicos e cientficos etc., de tal maneira que numa agricultura plenamente capitalista, esses passam a ser (e no mais a terra) os principais meios de produo. Quanto agricultura brasileira, fato comprovado pelos dados estatsticos que continua a caber terra aquele papel predominante no conjunto dos meios de produo.10 Por isso, na situao objetiva

    10 De acordo com o Censo Agrcola de 1950, a terra-capital representa 78% do total dos capitais aplicados na agricultura.

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    de nossa agricultura, dominar a terra, aambarc-la, monopoliz-la significa ter, praticamente, o domnio absoluto da totalidade dos meios de produo agrcolas.

    Acresce que o monoplio da terra, nas condies pr-capitalistas de nossa agricultura, assegura classe latifundiria uma fora maior do que o poderio econmico, uma outra espcie de poder que fre-quentemente supera e sobrevive quele o poder extraeconmico.

    O poder extraeconmico uma caracterstica e uma sobrevivn-cia do feudalismo. Ele se exerce, ainda nos nossos dias, atravs do governo das coisas e das pessoas dentro e em torno dos latifndios. Aquilo que Antonil recriminava no sculo 18 (Quem chegou a ter ttulo de senhor, parece que em todos quer dependncia de servos) e Koster observava no sculo 19 (O grande poder do agricultor, no somente nos seus escravos mas sua autoridade sobre as pessoas livres das classes pobres), revive, no sculo 20, sob a forma do coronelismo de antes de 1930 e, com algumas modificaes no estilo, no desapareceu at hoje.

    Graas a esse tipo de relaes coercitivas entre os latifundirios e seus moradores, agregados, meeiros, colonos, camara-das e mesmo assalariados, estendendo-se tambm aos vizinhos de pequenos e mdios recursos, alguns milhes de trabalhadores brasileiros vivem, inteiramente ou quase inteiramente, margem de quaisquer garantias legais ou constitucionais e sujeitos jurisdio civil ou criminal e ao arbtrio dos senhores de terras. Estes ltimos determinam as condies dos contratos de trabalho, as formas de remunerao, os tipos de arrendamento, as lavouras e criaes permitidas, os preos dos produtos, os horrios de trabalho, os servios gratuitos a prestar, ditam as sentenas judiciais e impem as restries liberdade que lhes convm, sem o mnimo respeito s leis vigentes.

    Todas essas e outras relaes extraeconmicas derivam do mo-noplio feudal da terra e correspondem a um tipo de explorao

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    pr-capitalista que consiste em coagir os trabalhadores a lavrarem a terra que no lhes pertence, por processos primitivos ou rotineiros e mediante uma nfima participao no produto de seu trabalho.

    Mas no pra a a configurao pr-capitalista do sistema latifundirio existente no Brasil. Nossa estrutura latifundiria se completa com uma conotao colonial, que parte integrante do sistema e uma das condies que respondem pela sua resistncia s transformaes de carter democrtico e sua evoluo para o tipo de produo capitalista.

    Quando o monoplio feudal da terra existe em funo do mercado interno, como no caso dos pases desenvolvidos da Europa e da Amrica (antiga Prssia, Sul dos Estados Unidos etc.), em virtude de ficar retida no pas a totalidade do excedente econmico obtido na produo e do prprio desenvolvimento industrial interno, o latifndio levado a incorporar processos tcnicos mais adiantados, a adotar formas de trabalho e de pro-duo do tipo capitalista, e tem condies para modernizar-se gradualmente, para aburguesar-se ou converter-se em grandes proprie dades capitalistas.

    Com o monoplio feudal e colonial da terra (ou semifeudal e semicolonial), de que o sistema de plantao a forma tpica, isso s pode acontecer muito lenta e dificilmente. Em primeiro lugar, porque o sistema latifundirio feudal-colonial est consti-tudo para exportar toda a sua produo, e ao faz-lo, por defi-nio, exporta tambm parte da renda e dos lucros produzidos, cedendo-os aos trustes compradores internacionais. Para que tal mecanismo de suco funcione sem prejuzo da parte que cabe classe latifundiria, esta transfere, para os seus trabalhadores e para a populao do pas onde se situa, os nus decorrentes des-se processo de espoliao. Em segundo lugar, porque o sistema latifundirio feudal-colonial exige, como pea inseparvel de seu mecanismo, a organizao de uma rede de intermedirios-com-

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    pradores e intermedi rios-usurrios que atuam no s no sentido de facilitar a transferncia da parte dos lucros especulativos para as mos dos trustes internacionais, como no sentido de ainda mais reduzir a remunerao dos trabalhadores agrcolas. Esse tipo de comercializao, vinculado ao sistema latifundirio feudal--colonial, corresponde aos antigos moldes do capital mercantil e exerce sobre o desenvolvimento capitalista semelhante influncia regressiva. E, em terceiro lugar, porque todo esse aparelho pr--capitalista de produo e distribuio, medida que promove a evaso de parte da renda gerada para o exterior, descapitaliza o pas e limita o desenvolvimento industrial; e, medida que comprime o poder aquisitivo das massas rurais, limita a expanso do mercado interno.

    Em suma, a condio colonial do monoplio feudal da terra acentua, fortemente, os fatores regressivos, os elementos de atraso inerentes quele. Com isso queremos dizer que no latifundismo brasileiro so mais fortes ainda os vnculos do tipo feudal, tais como as relaes de domnio sobre as coisas e pes soas, as interligaes com as formas primitivas do capital comercial, aos quais se acrescentam as particularidades da dependncia aos trustes internacionais compradores da produo latifundiria.

    Todas essas caractersticas, presentes em nossa atual estrutura latifundiria, so heranas diretas do regime econmico colonial implantado em nosso pas logo a seguir ao perodo da descoberta , ou seja, do feudalismo colonial.

    Evidentemente, ao nos referirmos s caractersticas feudais e coloniais do latifundismo brasileiro, no pretendemos asseverar que elas existem agora com o mesmo grau de intensidade em que existiam no Brasil-Colnia, nem que revestem as mesmas formas puras ou integrais. Pouco importa, para as concluses a que devemos chegar, o grau menos ou mais acentuado de suas mani-festaes; o que de fato importa reconhecer sua presena, sua

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    sobrevivncia, sua permanncia ainda que residual, como vestgios de um passado que deveria estar morto.

    Nossa atual estrutura latifundiria, verdadeiramente semi-feudal e semicolonial, apresenta as caractersticas fundamentais do pr-capitalismo. Tanto basta para que nos recusemos a aceitar como originariamente capitalista, no no sentido vulgar, mas no sentido moderno e cientfico do termo, a conceituao do regime econmico implantado no sculo 16 na Amrica Portuguesa. A no ser que endossssemos outra hiptese no menos absurda: a de que, devido, talvez, nossa incapacidade para o progresso, tenhamos regredido, em quatro sculos, do capitalismo, para o pr-capitalismo agrrio...

    Como vimos, a importncia dessas concluses no mera-mente conceitual; elas tm grande significao prtica, poltica, estratgica, para os destinos de nossa agricultura e de nossa eco-nomia em geral.

    Mostram-nos, tais concluses, que a redistribuio da terra, a diviso da propriedade latifundiria no uma simples operao aritmtica, uma reparao de injustias ou uma medida de assis-tncia social.

    Uma reforma agrria democrtica tem um alcance muito maior : seu objetivo fundamental destruir pela base um duplo sistema espoliativo e opressivo; romper e extirpar, simultaneamente, as re-laes semicoloniais de dependncia ao imperialismo e os vnculos semifeudais de subordinao ao poder extraeconmico, poltico e jurdico da classe latifundiria. E tudo isso para libertar as foras produtivas e abrir novos caminhos emancipao econmica e ao progresso de nosso pas.

    Seria indesculpvel que fssemos repetir hoje, em face dos problemas formulados pela exigncia da reforma agrria, o mes-mo erro em que incorreu o movimento abolicionista, ao deixar-se empolgar pela iluso de que o trabalho escravo era a causa nica e

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    determinante de todos os males que assolavam tanto a agricultura quanto toda a sociedade brasileira.

    Resultou desse imperdovel equvoco que, aps a extino da es-cravatura, as esperanas de muitos abolicionistas no fraciona mento da propriedade logo se desfizeram e, em vez disso, o latifndio no tardou a refazer-se do tremendo golpe recebido e encontrou, rapidamente, novas formas servis de trabalho para substituir o brao escravo.

    Tendo ficado intactos o monoplio feudal e colonial da terra e seu imenso poder de coao extraeconmica, o latifndio pde, mesmo desfalcado de seus anteriores recursos econmicos, prolon-gar pelo tempo a crueldade do tipo de explorao semies cra vista ou semisservil que era a nica compatvel com a sua estrutura. Catou em todas as partes do mundo devastado pela misria rural um tipo inferior na escala humana que viesse substituir o negro; experimentou os cules chins, tentou subjugar os imigrantes euro-peus e acabou por convencer-se que seus melhores servos da gleba seriam os prprios trabalhadores nativos, os caboclos que antes tanto desprezara. Os instrumentos jurdicos necessrios para essa reintegrao do sistema latifundirio em suas mais remotas tradies foram a lei de locao de servios e os famigerados contratos de parceria, uma ardilosa recomposio legal, instituda pelo senador Vergueiro, dos velhos costumes soterrados com a Idade Mdia.

    A histria deu razo aos abolicionistas mais esclarecidos, que no alimentaram aquelas iluses. Eis o pensamento de um deles Andr Rebouas que conserva a mais completa atualidade, expresso em cartas dirigidas a seus amigos: 12 de maro de 1897 Meu que-rido Nabuco: Produziram-me grata emoo estas doutas palavras de seu venerando Pai, citadas pgina 130 da Revista Brasileira, de 1 de fevereiro de 1897: A nossa propriedade territorial est to concentrada, to mal dividida, to mal distribuda que, neste vasto imprio, afora os sertes e os lugares incomunicveis, no h terras

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    para serem cultivadas pelos brasileiros e estrangeiros, que no tm outra esperana seno nas subdivises tardias que a morte e as suces-ses podem operar. Na verdade so estas palavras admirvel sntese que resume todos os males produzidos pelo monoplio territorial no Brasil. Quanta satisfao em reconhecer que exmios estadistas do Imprio precederam-nos na campanha contra o latifndio e na propaganda para a subdiviso da terra, para a pequena propriedade e para a Democracia Rural. Sempre e sempre, Andr Rebouas.11

    Suas so tambm estas palavras, extradas de outra carta a An-tonio Machado:

    Para quem estuda os fenmenos sociais no h crime maior do que o do monoplio da terra; o fator principal da escravido e da servido da gleba, disfarados atualmente em Sweating e num salariado forado; o produtor satnico da misria e de todos os horrores de anarquismo e desespero que ora afligem o Velho e o Novo Mundo.12

    A sesmaria13

    Dividiam-se as simpatias da Metrpole Portuguesa entre os homens de qualidade e os homens de posses, estes os mais desejados quando se tratava de fixar na agricultura os grandes interesses da explorao colonial.

    Na luta entre a decadente classe senhorial portuguesa, deten-tora de grandes poderes feudais, apoiada pela Igreja, herdeira das tradies mais vivas do medievalismo, e a burguesia nascente que se ligava por muitos interesses comuns realeza, nesse conflito que foi a caracterstica dominante do sculo 16, possvel encontrar mui-

    11 REBOUAS, Andr. Dirios e Notas Autobiogrficas, p. 442. 12 Idem, p. 416. 13 GUIMARES, Alberto Passos. Quatro Sculos de Latifndio. Rio de Janeiro, Editora Paz

    e Terra, 1968. O texto A sesmaria corresponde ao captulo III da 4 edio, 1977, pp. 41-59.

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    tos dos aspectos ainda obscuros de nossa histria. Eram interesses contraditrios os daquelas classes e por isso as concesses da realeza aos nobres feudais (em muitos casos sob o patrocnio da Igreja) e, vice-versa, as vitrias dos comerciantes sobre os interesses da nobreza, apareciam no cenrio da colnia como outras tantas contradies no muito fceis de explicar, se se afasta a concepo da luta de classes, se se toma uma sociedade, uma nao, como um todo indivisvel.

    No final do sculo 14, havia j em Portugal uma classe mer-cantil cosmopolita, rica e influente, com gostos e interesses opostos aos dos bares feudais. Embarcadores e comerciantes, unidos aos povos das cidades martimas, fizeram a revoluo de 1383 e 1385 recusando-se a reconhecer D. Joo de Castela, casado com a filha de D. Fernando, proclamando rei D. Joo de Avis, filho bastardo de D. Pedro. Com o rei de Castela estavam os magnatas e os grandes proprietrios de terras. Em Aljubarrota triunfaram os negociantes e embarcadores, o litoral e a poltica ocenica e de transporte, ao dominador dos campos; venceu o mar terra.14

    Da por diante, em todo o continente europeu, tendiam a agravar-se os choques de interesses, entre um mundo decadente o do feudalismo e o que nesse mundo se gerava como fruto de suas entranhas o mundo da burguesia.

    Haveria de corresponder aos interesses dos mercadores utilizar as colnias para fins exclusivamente de comrcio, tendo por base a riqueza extrativa, a preia de ndios, o trfico de escravos. Ao contrrio, os cavaleiros feudais miravam as colnias vendo-lhes principalmente o colosso territorial.

    Explica-se, pois, por que, servindo mais aos fins mer cant