a questão agrária brasileira e a atuação do mst para efetivação de direitos a luz do conceito...

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO MESTRADO

    JOS AUGUSTO GUTERRES

    A QUESTO AGRRIA BRASILEIRA E A ATUAO DO MST PARA EFETIVAO

    DE DIREITOS LUZ DO CONCEITO DE HEGEMONIA EM GRAMSCI

    CURITIBA

    2008

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO MESTRADO

    JOS AUGUSTO GUTERRES

    A QUESTO AGRRIA BRASILEIRA E A ATUAO DO MST PARA EFETIVAO

    DE DIREITOS LUZ DO CONCEITO DE HEGEMONIA EM GRAMSCI

    Dissertao apresentada no C urso de ps-graduao em Direito, do Setor de C incias Jurdicas e Sociais da universidade Federal do Paran, como requisito parcial obteno do grau de Mestre, sob orientao da Prof. Dra. Katie Silene Cceres Argello.

    CURITIBA

    2008

  • ii

    TERMO DE APROVAO

    JOS AUGUSTO GUTERRES

    A QUESTO AGRRIA BRASILEIRA E A ATUA O DO MST PARA EFETIVAO DE

    DIREITOS LUZ DO CONCEITO DE HEGEMONIA EM GRAMSCI

    Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre, no Curso de ps- graduao em Direito da Universidade Federal do Paran, pela Comisso formada pelos professores:

    ORIEN TADORA: Prof. Dra. Katie Silene Cceres Argello. Pro f. Pro f.

    CURITIBA, ______ de ________________ de 2008.

  • iii

    Senhor Deus da Libertao, Pai e me dos pobres e dos oprimidos, ns te bendizemos e te louvamos pela aliana que fizeste com teu povo, sempre mantendo a tua fidelidade, conforme prometeste aos nossos patriarcas e matriarcas. Renova conosco a aliana que fizeste com No sobre as guas do dilvio, dando-lhe o arco-ris como sinal. Renova Senhor com teu Esprito a aliana que selaste com o sangue de teu Filho, e mantenha-nos fiis aos pobres da terra, rumo libertao, que chega com a efetivao da Reforma Agrria, com poltica agrcola, educao e sade gratuita, pblica e de qualidade, condies de produo e comercializao, com proteo das guas, das sementes e da soberania alimentar, valorizando a identidade camponesa e incentivando a organizao dos pobres da terra, lutando contra o trabalho escravo, a violncia e a impunidade no campo. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, agora e sempre, amm! (Orao da 21 Romaria da Terra do Paran, 2006)

  • iv

    SUM RIO

    RESUMO .......................................................................................................................................v

    INTRODUO .............................................................................................................................1

    1 PROBLEMATIZANDO A QUESTO AGRRIA ...............................................................4

    1.1 A QUESTO AGRRIA NO PROCESSO DE TOTALIZAO DO CAPITAL ................4

    1.2 CONFLITOS NO CAMPO, ESTADO E LUTA DE C LASSES ............................................19

    2 INSTRUM ENTAL GRAMSCIANO ......................................................................................30

    2.1 GRAMSCI E OS CADERNOS DO CRCERE .................................... .................................30

    2.2 TEORIA AMPLIADA DE ESTADO E HEGEMONIA .........................................................36

    3 RAZES HISTRICAS DA QUESTO AGRRIA ............................................................49

    3.1 A HISTRIA DOS VENCIDOS AT A LEI DE TERRAS E AS O RIGENS DA

    REVOLUO BURGUESA NO BRASIL ..................................................................................50

    3.2 O NASCIMENTO DA RACIONALIDADE JURDICA PROPRIETRIA E O ADVENTO

    DA HEGEMONIA BURGUESA NO BRASIL ............................................................... .............59

    3.3 DA REVOLUO PASSIVA DE 1930 REDEMOCRATIZAO INSTITUCIONAL

    ........................................................................................................................................................69

    4 AGRICULTURA E REFORMA AGRRIA NO BLOCO HISTRICO BRASILEIRO

    CONTEM PORNEO .................................................................................................................80

    4.1 AGRICULTURA SUICIDA GLOBAL E SEUS EFEITOS NO BRASIL .............................83

    4.2 A QUESTO MERIDIONAL E O MODELO DE DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO

    ........................................................................................................................................................97

    4.3 REFORMA AGRRIA NO PROCESSO DE RUPTURA ESTRUTURAL E

    HERMENUTICA DOS ARTIGOS 184, 185 E 186 DA CONSTITUIO FEDERAL .........109

    5 O M ST E A LUTA HEGEMNICA CONTRA O CAPITAL PARA A CONSTRUO

    DE UM A REAL DEMOCRACIA ............................................................................................128

    5.1 O MST COMO INTELECTUAL COLETIVO : LEGITIMIDADE E LEGALIDADE DAS

    SUAS A ES .............................................................................................................................128

    5.2 O PRNCIPE MODERNO E A ORGANICIDADE DO MST (OU SEMENTES DE UM

    NOVO BLOCO HISTRICO) ...................................................................................................148

    CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................................168

    REFERNCIAS .........................................................................................................................175

  • v

    RESUM O

    Este trabalho faz uma anlise da questo agrria brasileira e da atuao do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra MST de um ponto de vista crtico, nos marcos tericos do marxismo. Problematiza, assim, a questo agrria a partir do princpio da totalidade, e, enfatizando seus aspectos polticos, prioriza algumas categorias do pensamento de Antonio Gramsci. As razes da questo agrria e sua configurao atual, bem como o surgimento, desenvolvimento e forma de atuao do MST so, ento, estudados luz de uma teoria ampliada de Estado e do conceito de hegemonia, principalmente. No obstante, parte significativa do trabalho se debrua sobre elementos jurdicos atinentes aos temas.

    RESM EN Este trabajo es un anlisis sobre la cuestin agraria en Brasil y de la actuacin del Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin-Tierra MST desde um punto de vista crtico, em los marcos tericos del marxismo. Se problematiza la cuestin agraria a partir del principio de la totalidad, y, enfatizando en sus aspectos polticos, prioriza algunas categoras del pensamento de Antonio Gramsci. Las races de la cuestin agraria y su configuracin actual, as como el surgimiento, desarrollo y forma de actuacin del MST son estudiados a la luz de uma teora ampliada de Estado y del concepto de hegemonia, principalmente. No obstante, parte significativa del trabajo se direcciona a los elementos jurdicos atinentes a los temas. Palavras-chave: QUESTO AGRRIA BRASILEIRA. MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM-TERRA MST. ANTONIO GRAMSCI. HEGEMONIA.

  • INTRODUO

    "E esta outra gente quem , solta e mida, que veio com a terra, embora no registada na escritura, almas mortas, ou ainda vivas? A sabedoria de Deus, amados filhos, infinita: a est a terra e quem a h-de trabalhar, crescei e multiplicai-vos. Crescei e multiplicai-me, diz o latifndio. Mas tudo isso pode ser contado doutra maneira.1

    O pargrafo assinala o momento em que, aps constatar a vastido, beleza e

    austeridade das terras portuguesas, divididas do maior para o grande, ou mais de gosto

    ajuntada do grande para o maior, Jos Saramago passa a discorrer doutra maneira sobre o

    latifndio, qual seja, narrando em forma de romance a dura saga dos desterrados do campo

    desde os tempos da Coroa at o momento em que estes, movidos pelos ventos das agitaes

    populares na Europa do sculo XX, tomam conscincia de que a penria por que passam no

    se alterar a no ser por iniciativa e luta prprias, quando, ento, num gesto de dignidade e

    recuperao de sua auto-estima, passam a ocupar as fazendas improdutivas para trabalhar e

    sobreviver.

    Conferindo especial ateno s geraes de sem-terra da famlia Mau-Tempo, e

    assim plasmando a implacvel realidade em bela literatura, dita narrao atravessa temas, a

    nosso ver, da mais absoluta importncia, como a concentrao fundiria e a excluso social

    dela decorrente, a explorao, as pssimas condies de trabalho e a supresso de direitos dos

    lavradores, as justificaes ideolgicas operadas para manter tais abusos, o conluio entre o

    latifndio e as autoridades, a corrupo e violncia policial no trato com os trabalhadores,

    entre outros, incluindo aquele que nos mais caro, qual seja o da organizao popular para a

    conquista/efetivao de direitos e para a emancipao do trabalho.

    Como se ver no presente estudo, tratam-se de temas importados para o Brasil-colnia,

    agravados pela constante condio de dependncia deste e que chegam aos dias correntes

    gozando de renovada pertinncia em face da globalizao econmica neoliberal, das novas

    tecnologias para a agricultura aliadas a vetustas concepes de desenvolvimento, e da

    politizao da luta pela terra. Portanto, embora longe da maestria artstica do autor de

    Levantado do Cho, aqui tambm se pretende, com o mesmo mpeto crtico e libertador,

    contar a histria de alguns Maus-Tempos (brasileiros), assim como do latifndio e das

    restritas elites que o dominam. A histria, portanto, dos dois vetores da questo agrria

    brasileira.

    1 SARAMA GO, Jos. Levantado do cho. p. 14.

  • 2

    No obstante, nas pginas seguintes esta histria contada doutra maneira ainda,

    qual seja, recorrendo-se aos recursos acadmicos disponveis (teorias, documentos histricos,

    dados estatsticos) e experincia militante adquirida no cotidiano do que hoje se o maior

    movimento social do pas, experincia que nos proporcionou viso mais acurada dos

    problemas do campo, revestiu-nos de empatia por aqueles que os sofrem, e, assim,

    comprometeu-nos com a incansvel luta pela soluo dos mesmos.

    Esta histria, portanto, contada em moldes acadmicos, mas passa ao largo de

    qualquer pretenso de neutralidade frente ao mundo, ao histrico e a valores, tanto por este

    proceder ser impossvel, quanto por denotar, no dizer de Paulo Freire, no mais do que o

    medo que se tem de revelar o compromisso, medo que quase sempre resulta de um

    compromisso contra os homens, contra sua humanizao, por parte dos que se dizem

    neutros.2

    Feitas estas consideraes, convm esboar um panorama do que ser apresentado ao

    longo do trabalho, salientando a costura entre cada um dos pontos. O primeiro captulo

    dedicado a desvendar por que e sob qual ponto de vista a questo agrria brasileira pode ser

    considerada de fato um problema. Para isso, a utilizao redimensionada do conceito de luta

    de classes fundamental, assim como outras reflexes oriundas do marxismo, especialmente

    a metodologia dialtica e a noo de totalidade. Com isso, pode-se depreender o carter

    classista do Estado brasileiro, e, ao mesmo tempo, apesar disso, seu carter de imensa

    complexidade.

    Vistos os aspectos gerais da atual questo agrria brasileira em referido quadro terico,

    o passo seguinte, a dar-se no segundo captulo, consiste na apropriao do instrumental que

    ser utilizado para aprofundamento dos objetos de estudo selecionados. Trata-se

    principalmente do conjunto de categorias elaboradas por Antnio Gramsci, sobretudo as que

    dizem respeito anlise e estratgias de transformao de formaes sociais de capitalismo

    avanado, ou, em seu dizer, de tipo ocidental.

    Munido desse arsenal gramsciano, no terceiro captulo o estudo pode ento se deter

    com mais acuidade no imprescindvel resgate histrico de alguns aspectos importantes da

    questo agrria brasileira, que continuam a influenciar o presente, com nfase na formao da

    oligarquia rural e burguesia agrria, assim como na passagem de uma mentalidade jurdica a

    outra no que tange questo da propriedade, sem olvidar, ainda, o surgimento da classe

    trabalhadora especialmente a do campo no cenrio poltico brasileiro, e sua trajetria.

    2 FREIRE, Pau lo. Educao e mudana. p. 19.

  • 3

    J, no quarto captulo, dedicar-se- a investigar os reais beneficirios da atual

    configurao agrria e agrcola vigente no Brasil. Isso nos conduzir discusso sobre

    diferentes noes e projetos de desenvolvimento nacional, bem como sobre os meios para se

    atingir aquele que nossas anlises tendem a apontar como o mais adequado para soluo dos

    problemas sociais, discusso esta que envereda tambm para o campo jurdico, que possui

    destacada importncia dentro das anlises aqui empreendidas.

    Finalmente, o quinto captulo dedicado ao estudo de um dos maiores frutos gerados

    pelos embates polticos da histria recente brasileira, que o Movimento dos Trabalhadores

    Rurais Sem-Terra MST. Juntamente com a observao emprica de seu funcionamento, que

    tivemos a oportunidade de realizar, e com a leitura de vrios de seus documentos, verificou-se

    que algumas categorias gramscianas tm especial relevncia para a anlise deste movimento

    social e de suas aes, pois atravs delas procedemos investigao acerca da consistncia do

    projeto poltico do MST, da medida mesma em que este pode ser inserido nas teorizaes de

    Gramsci, e, ainda, de que maneira concreta.

    Em apertada sntese, tais so os assuntos contidos no trabalho que segue. Como visto,

    ele decorrente de uma averso s injustias sociais agravadas pelo cinismo de uns e

    alienao ou desalento de outros, assim como de uma contumaz vontade de compreender os

    mecanismos de funcionamento do real, no intuito de, qui, contribuir para sua

    transformao.

  • 4

    1 PROBLEMATIZANDO A QUESTO AGRRIA

    1.1 A QUESTO AGRRIA NO PROCESSO DE TOTALIZAO DO CAPITAL

    A fim de estabelecer semanticamente o que se pretende expressar com o uso do termo

    questo agrria, considere-se que ele aqui utilizado como o conjunto de interpretaes que

    procura explicar como se organiza a posse, a propriedade e o uso das terras na sociedade

    brasileira,3 valendo considerar que os mais diferentes campos do saber tm muito a contribuir,

    cada qual sua maneira.

    Entre eles, cumpre observar tambm como a literatura poltica aborda a questo, vez

    que principalmente sob este vis que a questo agrria aqui estudada: Na literatura

    poltica, o conceito questo agrria sempre esteve mais afeto ao estudo dos problemas que a

    concentrao da propriedade da terra trazia ao desenvolvimento das foras produtivas de uma

    determinada sociedade e sua influncia no poder poltico.4

    H que se trazer tona, alm disso, uma diferenciao entre questo agrria e questo

    agrcola, pois importante que no sejam confundidas. Enquanto a primeira, como visto,

    constituda por indicadores relativos posse das terras, e tambm organizao do trabalho e

    da produo, nvel de renda dos trabalhadores rurais, produtividade das pessoas ocupadas no

    campo etc., a segunda teria mais a ver com o equacionamento de variveis acerca das

    quantidades e preos dos bens produzidos no campo, dizer, com questes de abastecimento.

    Pode-se dizer, em outras palavras, que a questo agrcola est preocupada com a produo

    em si mesma, e a questo agrria com as relaes de produo.5

    Entretanto, como adverte Jos Graziano, tal separao se trata simplesmente de um

    recurso analtico, vez que ela no se confirma na realidade objetiva, onde os problemas

    aparecem intimamente relacionados entre si:

    (...) a questo agrria est presente nas crises agrcolas, da mesma maneira que a questo agrcola tem suas razes na crise agrria. Portanto, possvel verificar que a crise agrcola e a crise agrria , alm de internamente relacionadas, muitas vezes ocorrem simultaneamente. Mas o importante que isso no sempre necessrio. Pelo contrrio, muitas vezes a maneira pela qual se resolve a questo agrcola pode servir para agravar a questo agrria.6

    3 STEDILE, Joo Pedro (org.). A questo agrria no Brasil: o debate tradicional: 1500-1960. v. 1. p. 15. 4 STEDILE, J. P. (o rg.). Obra citada. v. 1. p. 15. 5 GRAZIANO DA SILVA , J. O que questo agrria. p. 10-11. 6 GRAZIANO DA SILVA , J. Ibidem.

  • 5

    Como se perceber mais frente, esta ltima assertiva com grifos do prprio autor

    bastante acertada. Antes de analisar esta ordem de fenmenos, porm, ainda parece

    essencial problematizar, ou esmiuar um pouco mais, dita questo agrria. Melhor dizendo,

    cumpre especificar em que medida ela se constitui em problema para o Brasil contemporneo.

    Em busca de uma resposta a esta questo, depara-se com uma constatao que no

    deve ser posta de lado: muitas vezes o que se constitui em problema para determinados

    indivduos, no se constitui para outros (ao menos para estes no assim percebido ou no se

    evidencia diretamente), pelo que se faz necessria uma determinada tomada de posio e

    esprito crtico, no se podendo perder de vista um dos determinantes mais significativos da

    sociedade atual, que a existncia da luta de classes.

    Cabe o registro de que no foi Marx quem primeiro utilizou tal expresso, tampouco

    foi o primeiro a tratar deste assunto,7 porm referimo-nos aqui concepo de luta de classes

    peculiar ao marxismo, cuja expresso mais famosa a contida no Manifesto do Partido

    Comunista,8 que por ora serve de sntese. Isso no deve implicar, porm, um dogmatismo na

    leitura dessa categoria de modo a estancar sua re-significao com o decorrer do tempo. No

    se pode refutar imediatamente, dessa forma, polmicas decorrentes de sua anlise, como a que

    questiona sua efetiva existncia em sociedades ou situaes em que no haja uma

    conscincia de classe consolidada. Na mesma esteira, merece ainda uma maior relativizao

    a simplicidade da luta de classes exposta no Manifesto, bastante defasada atualmente, em face

    do atual contexto de imensa complexificao da sociedade capitalista global.

    Contudo, apesar de todas as ressalvas possveis, a negao veemente da existncia de

    uma estratificao social na atual sociedade em diferentes classes econmicas tanto em

    nvel nacional quanto global, com interesses irreconciliveis entre si (por maiores que sejam

    os perodos em que elas no tenham esclarecido este fato) pode resultar num erro terico,

    vale dizer, numa teoria social irremediavelmente incompleta, que certamente no ser til a

    um projeto social emancipador contrrio ao sistema hegemnico. Mais que isso, na prtica se

    revelar como um cinismo tpico dos que mantm seus privilgios sociais atravs da

    7 Conforme exp lica Leandro Konder, Marx no inventou a luta de classes: limitou-se a reconhecer que ela existia e procurou extrair as conseqncias da sua existncia. Antes de Marx, diversos autores j tinham enxergado a questo. James Madison, ex-Presidente dos Estados Unidos, por exemplo, escreveu em 1787: Proprietrios e no proprietrios sempre formaram interesses diversos dentro da sociedade (...). (KONDER, Leandro. O que dialtica. p. 31-32.) 8 A histria de toda sociedade at hoje a histria de luta de classes. (...) opressores e oprimidos sempre estiveram em constante oposio uns aos outros, envolvidos numa luta ininterrupta, ora disfarada, ora aberta, que terminou sempre ou com uma transformao revolucionria de toda a sociedade, ou com o declnio comum das classes em luta (...) A moderna sociedade burguesa, surgida das runas da sociedade feudal, no eliminou os antagonismos entre as classes. Apenas estabeleceu novas classes, novas condies de opresso, novas formas de luta em lugar das antigas. (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. p. 66-67.)

  • 6

    manuteno das desigualdades. Mostram-se vlidas, portanto, as consideraes de Tom

    Bottomore acerca da atual configurao da luta de classes:

    (...) tambm nos pases do Ocidente, nas ltimas dcadas, os conflitos sociais envolveram no s, ou nem mesmo principalmente, as classes, mas igualmente grupos nacionais, tnicos ou religiosos, bem como vrios movimentos sociais de carter amplo femin istas, ecolgicos, antinucleares. A tarefa da anlise marxista hoje enquadrar essas diversas lutas em uma teoria coerente e determinar empiricamente a importncia especfica das lutas de classes em condies estruturais e histricas diversas. Isso exige tambm, como demonstram vrios estudos marxistas recentes (por exemplo Poulantzas, 1974), um reexame da luta de classes no final do sculo XX, no mais em termos de uma confrontao exclusiva entre burguesia e proletariado, mas antes em termos de alianas entre grupos sociais que, de um lado, dominam e dirigem a vida econmica e social e, de outro, so subordinados e dirig idos.9

    J Ricardo Antunes,10 sem olvidar o relevante papel de movimentos sociais

    constitudos sem um recorte de classe declarado, refuta as teses (especialmente a da ao

    comunicativa de Habermas) que, retirando a centralidade da lgica do capital, negam a

    existncia de classes na contemporaneidade. A partir da anlise da atual ordem do trabalho

    mundial, marcada pela passagem do taylorismo/fordismo11 para a fase do toyotismo12

    (difundido como resposta crise estrutural por que passava o capitalismo no incio da dcada

    de 1970, aps as lutas travadas entre capital e trabalho nos anos 1960, que no foram capazes

    de instituir um projeto hegemnico do trabalho contra o capital),13 Antunes demonstra que

    bem ao contrrio de o sistema do capital contemporneo ter extinto a classe trabalhadora,

    ele a ampliou significativamente, motivo pelo qual prope um termo mais abrangente para

    design- la: classe-que-vive-do-trabalho.

    Tal conceito que, como dito, expressa a contemporaneidade da categoria marxista14

    de classe trabalhadora, adequando-a s caractersticas atuais do sistema do capital mais 9 BOTTOMORE, Tom. Luta de classes (verbete). In: BOTTOMORE, T. (ed.). Dicionrio do pensamento marxista. p. 224. 10 ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmao e a negao do trabalho. 11 Processo de trabalho voltado para uma produo homognea de larga escala, marcado pela estrita especializao de tarefas musculares repetitivas que demandava amplas massas de trabalhadores no cho de fbrica, estas inseridas num organograma extremamente verticalizado e cuja relao com o capital era intermediada pelo Estado. 12 Processo de trabalho que, com vistas nas alteraes das demandas do mercado, volta-se a uma produo mais heterognea e em boa parte terceirizada, sendo caracterizado principalmente pelo trabalho em equipe e aproveitamento polivalente do trabalhador, inclusive mediante seus caracteres de personalidade e intelectualidade, implicando desemprego em massa, flexib ilizao de d ireitos, precarizao de vnculos, fragmentao da classe trabalhadora, destruio ou docilizao do sindicalismo etc., efeitos catalizados por uma menor p resena do Estado na relao entre capital e trabalho. 13 ANTUNES, R. Obra citada. p. 36. 14 A fim de deixar claro quando se est a fazer referncia ao pensamento de Karl Marx especificamente, e quando se trata do pensamento de outros autores do marxis mo, optou-se por utilizar ao longo de todo o trabalho o termo marxista para o primeiro caso, e marxiano para o segundo.

  • 7

    abrangente na medida em que, apesar de manter a centralidade dos assalariados que direta e

    manualmente produzem a mais-valia (trabalho produtivo), estende-se a todos os demais

    assalariados que intelectualmente produzem valor ou mesmo aqueles cujo trabalho no produz

    riqueza (trabalho improdutivo), dizer, cujo trabalho consumido como valor de uso e no

    como valor de troca,15 alm, claro, dos que indiretamente esto subordinados ao capital

    (que compem a chamada economia informal) e dos desempregados, produto tpico da atual

    fase de gesto do trabalho, principalmente devido ao fenmeno da liofilizao

    organizacional (termo usado por Antunes para designar o incremento na produo a despeito

    da drstica reduo no nmero de trabalhadores nas empresas de hoje).

    Para os fins da presente pesquisa, ressalte-se que na classe-que-vive-do-trabalho

    inclui-se o proletariado rural, ou seja, os trabalhadores rurais que vendem, sob os mais

    diversos ttulos (diria, parceria, arrendamento, meao etc.) sua fora de trabalho para o

    capital. Ainda, embora Antunes no o evidencie, logicamente a est tambm o campesinato,

    classe que com dificuldades cada vez maiores ainda possui focos de resistncia ao avano do

    capital, classe esta caracterizada, em linhas gerais, pela produo familiar de subsistncia,

    com baixa integrao ao mercado. Por outro lado, da classe-que-vive-do-trabalho, diz

    Antunes, deve-se excluir os gestores do capital, seus altos funcionrios, que detm papel de

    controle no processo de trabalho, de valorizao e reproduo do capital no interior das

    empresas e que recebem rendimentos elevados (...), assim como aqueles que vivem da

    especulao de juros, os pequenos empresrios, a pequena burguesia urbana e rural

    proprietria.16

    Na esteira deste raciocnio, Antunes investiga a atual complexidade da classe

    trabalhadora, enveredando pelos seguintes campos: 1) da diviso sexual do trabalho, notando

    a que o trabalho feminino fruto de uma emancipao parcial da mulher, que o capital

    transformou em fonte de maior precarizao do trabalho ao explorar- lhe duplamente (por um

    lado, quando do trabalho produtivo da mulher no espao pblico isto , fora de casa; e por

    outro, a de, no mbito privado, manter a mulher no papel de garantir a reprodutibilidade do

    capital atravs de tarefas no diretamente mercantis, porm indispensveis reproduo

    cotidiana da fora de trabalho); 2) dos assalariados no recente setor de servios, do terceiro

    setor e das novas formas de trabalho em domiclio, todos decorrentes tambm do cmbio

    organizacional do mundo do trabalho, marcado pela privatizao de servios pblicos,

    flexibilizao de direitos e precarizao de vnculos trabalhistas, sendo que cada um cumpre

    15 ANTUNES, R. Idem . p. 102. 16 ANTUNES, R. Idem . p. 104.

  • 8

    um papel de funcionalidade em relao ao sistema, inclusive o chamado terceiro setor, a

    despeito de seu direcionamento resoluo de problemas sociais e ausncia de finalidade

    lucrativa; e 3) da transnacionalizao do capital e do mundo do trabalho, propiciada

    principalmente pela descentralizao e mesmo desterritorializao das atividades produtivas,

    mundialmente divididas em etapas diversas e interconectadas graas ao atual estgio de

    desenvolvimento tecnolgico.17

    Diante dessas anlises, e principalmente pelo fenmeno da transnacionalizao do

    capital (que altera a configurao no s do espao, mas tambm do tempo do trabalho), longe

    do fim da luta de classes, Antunes constata uma nova dimenso da mesma, por exigir uma

    resposta internacional por parte da classe trabalhadora que ainda se mantm

    predominantemente em sua estruturao nacional e cujos organismos sindicais internacionais

    mostram-se incapazes de oferecer um desenho societal alternativo e claramente contrrio

    lgica do capital.18 E dentro deste desafio de internacionalizao das aes da classe

    trabalhadora, outro que se impe, de suma importncia, o de unificar, partindo de dentro de

    cada pas, as inmeras clivagens entre os trabalhadores (estveis e precrios, homens e

    mulheres, jovens e idosos, nacionais e imigrantes, brancos e negros, qualificados e

    desqualificados, includos e excludos)19 em torno de um projeto contrrio lgica

    destrutiva do capital.

    A percepo da luta de classes no mundo contemporneo, portanto, obriga o

    pesquisador a uma tomada de posio quando da anlise de seu objeto de estudo, ou seja,

    impele-o a uma reflexo diante da qual no pode deixar de fazer uma escolha entre duas

    opes, que so, em ltima anlise, opes de classe. De um lado, o pesquisador pode se

    colocar ao lado da classe privilegiada com a configurao social posta, de modo que seu

    trabalho ser voltado a algum tipo de ocultao ou justificao das desigualdades constatadas.

    De outro, o pesquisador se colocar ao lado das classes subordinadas, na perspectiva de

    alterao da configurao social posta, o que resultar num trabalho cujo intento seja o de

    explicitao das situaes de desigualdade, compreenso de seus mecanismos, e proposio

    de solues, para o que sero imprescindveis as categorias elaboradas no mbito de um

    conjunto terico crtico, no qual

    (...) as categorias crticas interpretam a realidade mas, fazendo parte dessa mesma realidade, com ela interagem como categorias transformadoras. E o tempo e espao

    17 ANTUNES, R. Idem . p. 104-117. 18 ANTUNES, R. Idem . p. 116. 19 ANTUNES, R. Ibidem.

  • 9

    histricos a que se referem o mundo atual, com toda sua carga de sofrimento, a exig ir a tomada de posio por parte das pessoas que dele tomam conscincia e no se deixam seduzir pela seduo reacionria a uma ordem social que precisa ser transformada; e nem permaneam naquele estado de inconscincia social, em que o sujeito se deixa levar pela manipulao das idias em benefcio dos grupos privilegiados (...).20

    Uma vez que o presente trabalho se insere na segunda opo apresentada e procura

    fazer uso desse conjunto de categorias crticas, a questo agrria aqui conceituada a partir do

    ponto de vista do trabalho e no do capital, compartilhando da seguinte viso:

    Para este [o capital] inexiste no campo qualquer questo a resolver que lhe dificulte a acumulao. Ao contrrio, para as populaes exp loradas e empobrecidas do meio rural, expulsas ou no, a questo existe. No mundo gerado pelo capitalismo financeiro, marcadamente aqui na periferia subordinada do sistema global, no h lugar para a grande maioria dessas pessoas so as sobras do processo meros efeitos colaterais do progresso capitalista. Para elas a questo agrria real e significativa sobrevivncia.21

    Assentado, portanto, que s h sentido em se investigar a questo agrria partindo do

    ponto de vista do trabalho, dos povos marginalizados do campo, fica ainda mais evidente a

    necessidade de paut-la no mbito de um conjunto terico crtico, conjunto que, vale notar,

    no constitudo de simples negaes das teorias tradicionais. Tal como sempre empreendido

    por Marx, a teoria crtica nasce quando os resultados da teoria tradicional, o mais das vezes

    reconhecidos como pertinentes, so submetidos a dois crivos de avaliao: o da totalidade e o

    da historicidade, de modo que assim se pode (i) relacionar dialeticamente os objetos

    elaborados pela cincia particular com a totalidade social, mediatizando e desfetichizando tais

    objetos, fazendo com que deixem de ser meros fatos e se convertam em processos ou

    momentos de processos,22 bem como (ii) perceber que a totalidade que se tem em vista no

    uma totalidade fechada e definitiva, mas antes um processo de totalizao, no qual o todo

    compreendido como algo aberto e altamente dinmico, sendo que, com isso, os objetos

    analisados perdem a sua aparente naturalidade, convertendo-se assim em estados transitrios

    de um devir ininterrupto.23

    20 COELHO, Lu iz Fernando. Teoria crtica do Direito. p. 54. 21 CARVA LHO FILHO, Jos Juliano. A nova (velha) questo agrria e o agronegcio. In: SIDOW, Evanize; MENDONA, Maria Lu isa. Direitos humanos no Brasil 2007: relatrio da Rede Social de Justia e Direitos Humanos. p. 24. 22 COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e poltica: a dualidade de poderes e outros ensaios. p. 99. 23 COUTINHO, C. N. Obra citada. p. 100.

  • 10

    Diante disso, o conjunto terico que mais se mostra hbil a proceder criticamente o

    cotejo entre a totalidade e a historicidade dos fenmenos que se pretende analisar o

    marxismo, vez que este cotejo dialtico sua prpria essncia.

    No Prefcio Contribuio Crtica da Economia Poltica, Marx sintetiza suas

    incurses tericas realizadas at ento. Segundo ele, a partir de uma reviso crtica do

    pensamento de Hegel, a concluso a que chegou que a anatomia da sociedade burguesa

    deve ser procurada na Economia Poltica. Em outras palavras, so as relaes econmicas

    de produo e circulao de riquezas o principal determinante de todo o modo de ser da

    sociedade (incluindo a conscincia que tem de si mesma), que se transforma na medida em

    que se agudizam as contradies entre as foras produtivas sociais e as relaes de produo.

    Isso o que se v, aps tantos outros, no modo de produo burgus-moderno, que para ele

    seria a ltima etapa antagnica do processo social, pois portadora do embrio de um novo

    modelo produtivo apto a resolver as contradies do antigo. O centro das concluses de Marx,

    em suma, a existncia de uma infra e de uma superestrutura sociais, aquela determinante

    desta em ltima instncia.24

    Quanto a este ltimo ponto, preciso aclarar, por ser alvo de crticas muitas vezes

    infundadas, que isso no confere a seu pensamento um mecanicismo ou automatismo. A

    sociedade dividida por ele, no plano terico, por uma infra-estrutura, que o lugar onde

    ocorrem as relaes econmicas (produo e circulao), e por uma superestrutura, que seria a

    viso de mundo dessa sociedade, viso que se constitui em grande parte graas ao tipo de

    relaes econmicas que so travadas na infra-estrutura em grande parte mas no

    inteiramente, vez que os infinitos elementos e instncias da superestrutura podem se

    relacionar entre si sem qualquer relao com a infra, a qual nem por isso deixa de ser uma

    fonte constante de abstraes da superestrutura. Dentro da superestrutura estariam, assim, a

    religio, as artes, a filosofia, o direito, o conhecimento cientfico, o senso-comum etc.

    Entretanto, como se dizia, essa relao entre a infra e a superestrutura no capaz de

    imprimir em Marx traos de mecanicismo. E isso, como reiteradamente ressaltado por

    Gramsci, se d por causa do modo que dessas categorias Marx faz uso, dizer, segundo a

    metodologia dialtica, atento s mtuas implicaes entre as estruturas, valendo lembrar que o

    prprio Marx fazia aluso, por exemplo, ao carter objetivo (de efetivas foras materiais) que

    as crenas podiam tomar quando amplamente difundidas entre as massas.

    24 MARX, Karl. Prefcio Contribuio Crt ica da Economia Poltica. In : MARX, K. e ENGELS, F. (org. Florestan Fernandes). Histria. p. 231-235.

  • 11

    Cumpre observar que o conceito de estrutura que confere um carter cientfico

    teoria do marxismo, pois atravs de tal conceito que se pode distinguir os fenmenos

    principais dos secundrios, o que causa e o que efeito, bem como o que se pode constatar

    com reiterabilidade. Isso fundamental pois todo o conhecimento cientfico pautado neste

    critrio, o qual vai permitir a previsibilidade de fenmenos futuros. Com a reiterabilidade

    proporcionada pelo conceito de estrutura se abre a possibilidade de formulao de um modelo

    terico, uma abstrao cientfica, ou, no dizer de Marx, determinao abstrata, que ser o

    ponto de partida para compreender o concreto e para reproduzir na prpria conscincia a

    multiplicidade desse concreto.25

    No mais, Lnin j destaca que Marx percebe no ser suficiente a investigao da

    estrutura para se compreender o funcionamento de uma formao econmico-social, embora

    dela (da estrutura) se deva comear. A partir dela se consegue explicar os demais

    componentes, no de modo estanque, mas como coisa viva: a estrutura serve para explicar a

    riqueza da formao social, para dar coerncia a seus elementos no estruturais, que devem

    ser explicitados; caso contrrio, a estrutura encerra-se em si mesma e se torna um conceito

    idealista.26

    De fato, Marx demonstra em vrias oportunidades compreender a extrema

    complexidade que esta relao dialtica entre as estruturas confere sociedade, fazendo com

    que os acontecimentos no devam ser explicados por razes econmicas diretamente

    identificveis, sem mediaes. Quando ele prprio, em vez de expor seu mtodo, utiliza-o

    para realizar a anlise poltica de determinados contextos histricos, como o fez em As Lutas

    de Classe na Frana de 1848 a 1850, O Dezoito Brumrio de Lus Bonaparte e A Guerra

    Civil na Frana, por exemplo, torna-se insustentvel atribuir- lhe o rtulo de mecanicista ou

    economicista. Em tais escritos, seu interesse analisar sobretudo o carter autnomo que o

    Estado adquire em determinada etapa do capitalismo na Frana.27 V-se que, sem deixar de

    considerar as bases econmicas como determinantes para as relaes polticas e para a forma

    de enxergar o mundo, ele no olvida a complexidade e a grande parcela de autonomia das

    relaes polticas, movimentadas por uma srie de interesses das diversas foras sociais

    atuantes, de modo que se torna lcito afirmar que a superestrutura tambm pode exercer

    influncia na infraestrura, muito embora em menor escala do que o inverso.

    25 GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. p. 25. 26 GRUPPI, L. Obra citada. p. 25 -27. 27 SADER, Emir. Estado e poltica em Marx: para uma crt ica da filosofia polt ica. p. 61-62.

  • 12

    Como em vrios outros perodos histricos, incluindo o atual, naquele em que Gramsci

    vivia era fundamental desmitificar a ilao comumente realizada entre marxismo e

    economicismo/mecanicismo. O trecho seguinte, ento, ilustra este seu intento e corrobora a

    ordem de idias exposta acima:

    (...) A pretenso (apresentada como postulado essencial do materialis mo histrico) de apresentar e expor qualquer flutuao da poltica e da ideologia como uma expresso imediata da infra-estrutura deve ser combatida, teoricamente, como um infantilis mo primitivo, ou deve ser combatida, praticamente, com o testemunho autntico de Marx, escritor de obras polticas e histricas concretas. Para este aspecto, so importantes notadamente o 18 Brumrio e os escritos sobre a Questo Oriental, mas tambm outros (Revoluo e contra-revoluo na Alemanha, A guerra civil na Frana e menores). Uma anlise destas obras permite fixar melhor a metodologia histrica marxista, complementando, iluminando e interpretando as afirmaes tericas esparsas em todas as obras. Poder-se- observar quantas cautelas reais Marx introduz em suas investigaes concretas, cautelas que no poderiam encontrar lugar nas obras gerais (...).28

    Parece adequado, enfim, acenar que no pensamento de Marx vigora uma

    preeminncia ontolgica das bases econmicas sobre a esfera das representaes, dando

    consistncia ao chamado materialismo histrico, que sem dvida um dos mais profcuos

    mtodos de anlise existente nas cincias sociais.

    No obstante, nenhuma teoria teve a sua morte tantas vezes anunciada como o

    marxismo.29 Por bvio, os corifeus dessa morte dizem-se porta-vozes do conhecimento, da

    ilustrao, da verdade, do progresso social, ou, ainda, da imparcialidade da cincia.

    Porm, como analisado por Michael Lwy, uma grande contribuio de Gramsci denunciar

    justamente este tipo de falcia. Gramsci investiga a fundo a articulao entre ideologia e

    conhecimento cientfico, notando que ambos integram a superestrutura da sociedade a

    ideologia por motivos bvios, e a cincia porque em ltima anlise sempre revestida de

    ideologia, na medida em que a unio do fato objetivo com uma hiptese ou um sistema de

    hipteses que ultrapassam o simples fato objetivo.30

    28 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do crcere. v. 1. p. 238. Em determinada passagem, Gramsci identifica um relacionamento muito maior do economicis mo (que ele denomina tambm de sindicalis mo terico) com o liberalismo, do que com o marxis mo (a filosofia da prxis), pois (...) inegvel que, neste ltimo [no economicismo], a independncia e a autonomia do grupo subalterno que ele diz exprimir so sacrificadas hegemonia intelectual do grupo dominante, j que o sindicalismo terico no passa de um aspecto do liberismo [sic], justificado com algumas afirmaes mut iladas e, por isso, banalizadas da filosofia da prxis (...). (GRAMSCI, A. Obra citada. v. 3. p. 48.) A respeito, cf. GRAMSCI, A. Idem. v. 1. p. 266-267; e v. 3. p. 46-55; 67-68; 104-105. 29 Ed itorial Crt ica Marxista. Manifesto. In: Crtica marxista, n 1, ano 1994. 30 LW Y, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Baro de Mnchhausen: marxis mo e positivis mo na sociologia do conhecimento. p. 135.

  • 13

    A propsito, em recente obra, Giovanni Semeraro31 tambm ressalta este ponto do

    pensamento gramsciano. Segundo ele, Gramsci demonstra que a cincia uma categoria

    histrica, um movimento em contnuo desenvolvimento,32 de modo que no campo cientfico

    o que se verifica uma voraz luta pela objetividade, dado que se a um tempo a cincia recorre

    a representaes e teorias para se expressar, a outro, essas mesmas representaes so

    produtos humanos, construes histricas que nascem de prticas cientficas, sociais e de

    interesses polticos.33 Esse embate no campo cientfico mais bem visualizado mediante as

    palavras do prprio Gramsci, citado por Semeraro: Toda cincia est vinculada s

    necessidades, vida, atividade do homem. Sem a atividade do homem, criador de todos os

    valores, inclusive cientficos, o que seria da objetividade?.34 Diferentemente, portanto, de

    Weber e Durkheim, que separam fatos e valores, Gramsci defende uma relao dialtica

    entre eles (no uma identificao), uma vez que toda objetividade implica sempre uma

    subjetividade.35

    Considerando tais pressupostos epistemolgicos, observa-se claramente a

    superioridade da filosofia da prxis em face das demais concepes de cincia, por dois

    motivos principais, destacados por Lwy com base em Gramsci:

    1) As outras ideologias visam consolidar interesses opostos e contraditrios, sua historicidade curta, porque aps algum tempo as contradies aparecem superfc ie e se tornam irreconciliveis. A filosofia da prxis, pelo contrrio, precisamente a teoria das contradies, que ela assume integralmente. 2) A filosofia da prxis no o instrumento de grupos dominantes para assegurar a hegemonia sobre as classes subalternas o que implica necessariamente ocultao da verdade. precisamente a expresso destas classes subalternas que tm necessidade de conhecer todas as verdades, mesmo as mais desagradveis, para se educar e adquirir a arte de se governar. (...)36

    Posto isso, pode-se agora passar a fazer uso de alguns instrumentos dessa filosofia da

    prxis, mostrando-se pertinente destacar, por ora, o conceito de totalidade, a partir do qual

    ser possvel desvelar o carter funcional da questo agrria na formao econmico-social

    brasileira e no metabolismo de controle social global dirigido pela lgica do capital.

    Considere-se, assim, que o conceito de totalidade um dos pilares da metodologia

    dialtica marxiana, ou seja, da maneira de pensar elaborada em funo da necessidade de

    31 SEMERARO, Giovanni. Gramsci e os novos embates da filosofia da prxis. 32 SEMERARO, G. Obra citada. p. 27. 33 SEMERARO, G. Ibidem. 34 GRAMSCI, A. Apud: SEMERARO, G. Obra citada. p. 27. 35 SEMERARO, G. Idem. p. 27-28. 36 LW Y, M. Obra citada. p. 136.

  • 14

    reconhecermos a constante emergncia do novo na realidade humana,37 ou ainda, da cincia

    das inter-relaes das diversas partes da realidade, instrumento de compreenso das suas

    dinmicas e contradies.38

    De acordo com Lukcs, citado por Coutinho,39 a distino entre o marxismo e a

    cincia burguesa no o predomnio de motivos econmicos na explicao do social, mas

    sim o princpio da totalidade. De acordo com este princpio, recolhido da filosofia hegeliana,

    predominantemente dialtica, a realidade um todo complexo, formada por mediaes,

    contradies e processos,40 no devendo ser entendida, todavia, como um todo no qual as

    partes no sejam explicitadas e bem definidas, mas como uma totalidade constituda a partir

    da autonomia relativa de seus mltiplos momentos parciais (...) [e] por diferentes nveis,

    sendo assim uma totalidade hierarquizada, com momentos que possuem um peso ontolgico

    mais marcante do que outros.41

    Unindo tais concepes filosficas hegelianas com o materialismo, Marx destaca

    como possuidor de um maior peso ontolgico o momento material da sociedade (infra-

    estrutura), onde residem as foras produtivas e se travam as relaes de produo, que

    implicam, por sua vez, a diviso social do trabalho e, em conseqncia, a diviso de classes

    sociais. Segundo ele, os pensadores que se situam do ngulo de determinadas classes sociais,

    em determinado contexto histrico, tm mais possibilidades de assumir essa perspectiva

    globalizante, ou seja, de compreender a sociedade como um todo.42

    Isso fica bem claro ao se analisar a revoluo burguesa. Os tericos da burguesia

    colocavam-na como representante de toda a sociedade que se encontrava abaixo da nobreza e

    do clero. Suas reivindicaes eram apresentadas como as de todos. Uma vez feita a revoluo,

    permitiu-se uma liberdade e igualdade que antes era totalmente desconhecida. No obstante,

    do ponto de vista econmico, a diviso em classes continuou existindo, agora com a burguesia

    no ponto mais alto. Para defender seus interesses de classe, ento, os intelectuais burgueses j

    no podiam mais adotar o ponto de vista da totalidade, isto , apresentar suas demandas como

    universais; precisavam, sim, afirmar a naturalidade daquela situao social ento estabelecida.

    Diante disso, Marx percebe que a classe social portadora de uma perspectiva globalizante

    deixou de ser a burguesia e passou a ser o proletariado, o qual no defende apenas os seus

    interesses particulares enquanto classe, mas tem como misso histrica a construo de uma 37 KONDER, L. Obra citada. p. 39. 38 SEMERARO, G. Obra citada. p. 33. 39 COUTINHO, C. N. Obra citada. p. 91-92. 40 COUTINHO, C. N. Idem . p. 92. 41 COUTINHO, C. N. Ibidem. 42 COUTINHO, C. N. Idem . p. 93.

  • 15

    sociedade sem classes, efetivamente igualitria, capaz de produzir a verdadeira emancipao

    humana.43

    Totalidade, portanto, traz a idia de que qualquer indivduo, objeto ou ao jamais

    esto isolados. Ao contrrio, esto inexoravelmente interligados ao todo; qualquer problema

    interligado a vrios outros, sempre havendo mltiplos fatores a serem considerados. Assim,

    tanto mais completo ser determinado estudo quanto mais fatores da realidade e suas

    interconexes ele analisar, embora seja sempre provisrio o conhecimento que se tem da

    realidade, dada sua riqueza.44 Da a necessidade de, para solucionar um ou mais problemas,

    ter uma viso de conjunto deles. Foi o que Hegel sublinhou quando escreveu: A verdade

    o todo. Se no enxergamos o todo, podemos atribuir um valor exagerado a uma verdade

    limitada (transformando-a em mentira), prejudicando a nossa compreenso de uma verdade

    mais geral.45

    Destaque-se, ainda, que a totalidade mais do que a mera soma de suas partes

    constituintes. Por exemplo, o produto do trabalho de dez pessoas trabalhando juntas

    diferente do de dez pessoas trabalhando isoladamente,46 o que demonstra a necessidade de se

    considerar a interatividade entre os elementos da totalidade. Tambm, atente-se para a

    existncia de diferentes nveis de totalizao, mais ou menos abrangentes. Dependendo da

    anlise que se quer empreender, pode-se aument-la ou restringi- la, sendo o nvel mximo da

    totalizao dialtica a abstrao filosfica, que aspira apreenso do todo dinmico da

    realidade humana. E de forma menos abrangente, h as totalidades jurdico-poltica, scio-

    econmica e do modo de produo, sendo que cada uma delas possui um processo peculiar

    de alterao quantitativa e qualitativa.47

    Entretanto, na prtica no possvel separar inteiramente as questes que se

    apresentam num desses nveis das questes que se manifestam nos outros dois; afinal,

    43 COUTINHO, C. N. Idem . p. 94. 44 KONDER, L. Obra citada. p. 37. 45 KONDER, L. Idem. p. 36-37. 46 KONDER, L. Idem. p. 37. 47 Isso fica bastante claro com o exemplo do golpe militar contra Joo Goulart em 1964 e da edio do AI-5 em 1968. Nestes casos, nota-se que a totalidade jurdico-poltica sofreu uma significat iva mudana qualitativa. No entanto, essa alterao qualitativa da totalidade jurdico-poltica no foi acompanhada pela scio-econmica, vez que a estrutura de classes no Brasil no sofreu alteraes sensveis devido queles fatos; depois de decorrido muito tempo que se consegue hoje verificar a lgumas alteraes nesta totalidade, inclusive qualitativas, segundo Konder, alteraes que ocorrem, portanto, num ritmo muito mais lento que o da totalidade jurdico-poltica. E com relao totalidade do modo de produo, por sua vez, pode-se dizer que neste mbito as alteraes so ainda muito mais lentas que nas duas anteriores, no tendo havido, a despeito de todas as alteraes jurdico-polticas e scio-econmicas, uma alterao qualitativa nela, seguindo, por outro lado, com contnuas alteraes quantitativas que, por enquanto, vm fortificando cada vez mais o capitalis mo. (KONDER, L. Idem. p. 41-42.)

  • 16

    concretamente, elas so elementos de uma mesma realidade global (...).48 No caso da questo

    agrria isso por demais evidente, posto que os problemas sociais que lhes so intrnsecos

    refletidos tambm no plano legal decorrem, seno diretamente, em ltima instncia, do

    modo de produo vigente e de suas alteraes quantitativas.

    O que se pretende frisar, diante dessa breve explanao sobre a totalidade, que esses

    seus trs nveis que correspondem ao todo da realidade, interao dialtica entre as

    instncias materiais e imateriais, cuja compreenso pode ser buscada, em compasso com

    Gramsci, atravs da noo de bloco histrico so eminentemente esculpidos, como j

    afirmado, pelo sistema do capital, devendo-se advertir que o uso desta categoria (capital),

    aqui, no se resume ao significado que lhe empresta a economia clssica ou uma leitura

    obtusa da obra de Marx, isto , no se resume a uma riqueza ou a um bem que pode gerar um

    fluxo de renda para seu dono,49 tampouco simplesmente ao modo de produo capitalista.

    Muito alm disso, ou de outras leituras decorrentes de um marxismo vulgar,50 deve-

    se considerar tal sistema como um fenmeno complexo historicamente localizvel e que,

    segundo os estudos de Istvn Mszros, mais adequadamente denominado como uma

    forma incontrolvel de controle sociometablico, tendo a ver com um certo tipo de

    racionalidade que, a partir de um determinado perodo histrico, dada uma srie de condies

    objetivas, passa a permear praticamente todas as relaes sociais. Perante a centralidade dessa

    reflexo de Mszros sobre o carter totalizante do capital para o presente estudo vez que a

    estrutura agrria brasileira irremediavelmente continua sendo uma pea-chave de tal

    metabolismo social , segue um significativo trecho em que ele discorre sobre essa idia.

    (...) preciso insistir que o capital no simplesmente uma entidade material tambm no (...) um mecanis mo racionalmente controlvel, como querem fazer crer os apologistas do supostamente neutro mecanismo de mercado (...) mas , em ltima anlise, uma forma incontrolvel de controle sociometablico. A razo principal por que este sistema forosamente escapa a um significativo grau de controle humano precisamente o fato de ter, ele prprio, surgido no curso da histria como uma poderosa na verdade, at o presente, de longe a mais poderosa estrutura totalizadora de controle a qual tudo o mais, inclusive seres humanos,

    48 KONDER, L. Idem. p. 40. 49 MOHUM, Simon. Capital (verbete). In : BOTTOMORE, T. (ed.) Obra citada. p. 44. 50 Segundo Eric Hobsbawn, o marxis mo vulgar abarca vrias concepes equivocadas quanto ao pensamento de Marx, em geral decorrentes de uma relao simplista de dominncia e dependncia entre a base econmica e a superestrutura. (HOBSBAWM, Eric. Sobre histria: ensaios. p. 159-160.). No mes mo caminho, Luciano Gruppi trata da crtica gramsciana ao materialismo vulgar, que consiste numa reduo esquemtica da teoria marxista a relaes diretas de causa e efeito entre a base econmica e as demais instncias sociais em detrimento do mtodo dialt ico e da riqueza de mediaes que existem dentro das totalidades. Em certos momentos pode at ser til, por exemplo, para acalentar as massas aps uma derrota, caso em que se assemelha a uma religio, porm via de regra merece ser duramente combatido, j que geralmente se torna fonte de imobilis mo, na med ida em que leva concluso de que a histria caminha inexoravelmente ao socialis mo, a despeito da vontade e firme ao humanas. (GRUPPI, L. Obra citada. p. 76-78.)

  • 17

    deve se ajustar, e assim provar sua viabilidade produtiva, ou perecer, caso no consiga se adaptar. No se pode imag inar um sistema de controle mais inexoravelmente absorvente e, neste importante sentido, totalitrio do que o sistema do capital globalmente dominante, que sujeita cegamente aos mesmos imperativos a questo da sade e a do comrcio, a educao e a agricultura, a arte e a indstria manufatureira , que implacavelmente sobrepe a tudo seus prprios critrios de viabilidade, desde as menores unidades de seu microcosmos at as mais gigantescas empresas transnacionais, desde as mais ntimas relaes pessoais aos mais complexos processos de tomada de deciso dos vastos monoplios industriais, sempre a favor dos fortes e contra os fracos. (...) o sistema do capital , na realidade, o primeiro na histria que se constitui como totalizador irrecusvel e irresistvel, no importa quo repressiva tenha de ser a imposio de sua funo totalizadora em qualquer momento e em qualquer lugar em que encontre resistncia.51

    Com efeito, o capital se constitui numa fora totalizante de organizao e controle do

    metabolismo societal porque tende a expandir-se e acumular-se infinitamente, na medida em

    que sua lgica ultrapassa o atendimento das necessidades sociais, conferindo, portanto,

    centralidade ao valor de troca, e no ao valor de uso, dos bens. Essa lgica se revela

    altamente destrutiva na medida em que, se a produo no est mais ligada a necessidades, ela

    no possui limites, desencadeando uma taxa de utilizao decrescente do valor de uso das

    coisas (produzindo, consumindo e destruindo as mercadorias com rapidez cada vez maior),

    atravs da qual, junto com o ciclo reprodutivo do capital, aceleram-se a explorao do

    trabalho e, o que vem passando a ameaar no somente determinadas classes, mas toda a vida

    no planeta, a degradao da natureza.52

    Expansionista, (...) mundializado, (...) destrutivo e, no limite, incontrolvel, o sistema

    de metabolismo social do capital vem assumindo cada vez mais uma estruturao crtica

    profunda. Sua continuidade, vigncia e expanso no podem mais ocorrer sem revelar uma

    crescente tendncia de crise estrutural que atinge a totalidade de seu mecanismo.53 Com base

    nesta ordem de idias, pretende-se apresentar ao longo desta pesquisa algumas mediaes que

    relacionam dialeticamente a questo agrria, a formao econmico-social brasileira (vista

    luz do conceito gramsciano de bloco histrico) e o metabolismo social global dirigido pelo

    sistema do capital isto , metabolismo regido pela lgica descrita acima e estruturado no

    trip capital, trabalho e Estado. Neste primeiro captulo, tem-se por suficiente a exposio

    dessas bases, assim como a demonstrao de que a questo agrria analisada de um

    determinado ponto de vista consiste efetivamente num problema para o povo brasileiro.

    51 MSZROS, Istvn. Para alm do capital. p. 95-96. 52 ANTUNES, R. Obra citada. p. 20-28. 53 ANTUNES, R. Idem. p. 27.

  • 18

    De fato, outra concluso no possvel ao se cotejar dados que demonstram a

    instalao de uma verdadeira guerra no meio rural: milhares de pessoas assassinadas e

    escravizadas; milhes exploradas em condies subumanas, ou obrigadas a deixar seus lares,

    passando fome e sofrendo com a mais absoluta misria; no tendo outra opo alm da

    migrao para bolses de pobreza nos grandes centros, implicando aumento da violncia

    urbana. Somando-se a isso, impactos ambientais e a ameaa soberania alimentar de um pas

    de propores continentais. Tudo com o agravante de retroalimentar o processo de totalizao

    do capital.

    Para fins de ilustrao, o caso da monocultura da cana-de-acar (principalmente na

    regio sudeste do pas) bastante eloqente e proporciona a visualizao de todas essas

    mazelas. Trata-se de um caso bastante atual e que tende a se expandir cada vez mais devido

    ao novo ciclo da cana instalado sob a insgnia da crise energtica a ser solucionada com

    os agrocombustveis. Focalizemos, por enquanto, o problema da explorao intensiva da mo-

    de-obra: recente relatrio54 informa que alm de as condies de trabalho neste ramo serem

    marcadas pela exigncia de uma altssima intensidade de produtividade (no caso do corte,

    uma mdia de 10 toneladas por dia de cada indivduo), os trabalhadores praticamente no tm

    controle de sua produo, recebendo das usinas, via de regra, muito menos do que o

    combinado se as contas fossem efetuadas corretamente o que j seria nfimo, pois em mdia

    se paga R$ 2,20 por tonelada cortada , de modo que essas 10 toneladas na verdade so de 20

    a 30. Tanto na atividade de corte como de plantio, o dispndio de energia enorme, numa

    jornada que remonta aos primrdios da industrializao no sculo XIX. Os chamados

    profissionais do podo trabalham de 8 a 9 horas dirias normalmente sob sol forte e

    temperaturas acima dos 35 graus. Descrevendo o cotidiano desses trabalhadores, diz a autora:

    Logo pela madrugada, comeam a preparar a comida, pois h apenas um fogo para muitas marmitas. Por volta das 6h, os nibus partem em d ireo aos canaviais, numa viagem que pode durar mais de uma hora. (...) A cana deve ser abraada e cortada o rs-do-cho para facilitar a rebrota. Esta atividade exige total curvatura do corpo. (...) para cortar 10 toneladas de cana o trabalhador desfere quase 10 mil golpes. A elevao continuada da mdia induz ao sofrimento, dor, doenas e at mesmo morte. H ainda registros de uso de drogas, como maconha e crack, para o aumento da capacidade de trabalho durante o corte da cana. A frase No d para acompanhar o campo de cara limpa reflete a crueza e a brutalidade destas relaes de trabalho.55

    54 MORAES SILVA , Maria Aparecida. Trabalho e morte dos Severinos nos canaviais paulistas. In: SIDOW, E.; MENDONA, M. L. (org.). Direitos humanos no Brasil 2006: relatrio da Rede Social de Justia e Direitos Humanos. p. 53-60. 55 MORA ES SILVA, M. A. Obra citada. p. 57.

  • 19

    Na medida do necessrio, alguns dos elementos citados acima (violncia,

    marginalizao, xodo etc.) voltam a ser debatidos enquanto integrantes do problema agrrio

    brasileiro, sem, contudo, a inteno de exaurir o estudo sobre cada um. Por ora, como

    mencionado, basta evidenciar a relao dialtica entre a questo agrria e o metabolismo

    social do capital, assim como, principalmente, demonstrar que h um srio problema no

    mago de tal questo, o que implica a necessidade de anlise de suas mediaes e a

    proposio de solues.

    A respeito desse problema, Paulo San Martin afirma que

    (...) o Brasil foi enfiado num beco de horror. Mud-lo agora representa bem mais do que aparar arestas e atenuar tragdias: um modelo agrcola profundamente integrado a lgicas transcendentes de poder se implantou por todos os poros, intervindo diretamente na fragmentao da cultura e do processo social do Pas.56

    Tais palavras foram escritas h cerca de vinte anos, porm tiveram continuamente

    reiterada sua validade at os tempos presentes, em que foram preenchidas praticamente todas

    as lacunas que ainda existiam. No tpico seguinte, essa situao traduzida em nmeros e

    exemplos.

    1.2 CONFLITOS NO CAMPO, ESTADO E LUTA DE CLASSES

    Como aludido, no possvel refutar a severidade do problema agrrio brasileiro ao se

    deparar com alguns dados, que, entre outras coisas, revelam quem (ou que classe social) no

    cessa de perder essa verdadeira guerra instalada no campo: de 1985 a 2005 ocorreram 1.063

    conflitos com morte. Foram assassinadas 1.425 pessoas entre trabalhadores, lideranas

    sindicais ou de movimentos, agentes de pastoral e outras pessoas que apiam a luta e a causa

    dos trabalhadores. Entretanto, somente 78 destes homicdios foram julgados, com 67

    condenados, dentre os quais apenas 15 eram os mandantes.57

    A Comisso Pastoral da Terra CPT, que uma ao pastoral da Igreja Catlica com

    raiz e fonte no Evangelho e que tem como destinatrios de sua ao os trabalhadores e

    trabalhadoras da terra, registra com rigor cientfico e denuncia os conflitos do campo

    ocorridos no ano anterior, por fidelidade ao Deus dos pobres, terra de Deus e aos pobres

    56 SAN MA RTIN, P. Agricultura suicida: um retrato do modelo brasile iro. p. 9. 57 Centro de Estudos Bblicos CEBI. Os pobres possuiro a terra: pronunciamento dos bispos e pastores sinodiais sobre a terra. p. 35.

  • 20

    da terra.58 Seus cadernos, uma das poucas fontes sobre o assunto, portam informaes muitas

    vezes infelizes porm preciosas. E tambm muito precisas.59 Os dados estatsticos de todo o

    pas so minuciosos, especificando, por exemplo, cada uma das reas em conflito, sua

    situao jurdica, nmero de mortos, de feridos, tipo de violncia praticada, nmero de

    famlias envolvidas, expulsas, despejadas ou ameaadas, se h casas, roas e outros bens

    destrudos, tamanho das reas etc. Demais disso, os conflitos so classificados em cinco eixos

    principais: conflitos por terra, gua, trabalhistas, por violncia contra as pessoas, e decorrentes

    de manifestaes. Para os fins desta pesquisa, vale pr em relevo a tabela de Comparao

    dos Conflitos no Campo de 1997 a 2006, apresentada no Caderno referente ao ano de 2006.

    Com relao a este ltimo ano apenas, cite-se que foram registrados pela CPT 1.212

    conflitos de terra, com 384 ocupaes, 67 acampamentos, 35 assassinatos, 703.250 pessoas

    envolvidas. Conflitos pela gua foram 45, com 13.072 pessoas envolvidas. Esses dois tipos de

    conflitos, somados com outros, resultam num total de 1.657, com 39 assassinatos, 783.801

    pessoas envolvidas, em 5.051.348 hectares.60

    Por suas dimenses, o Massacre de Eldorado dos Carajs, no Par, que completou 10

    anos em 17 de abril de 2006, talvez seja o caso mais emblemtico da violncia recente no

    campo brasileiro. Nele se encontram os ingredientes tanto da truculncia da elite agrria,

    como da criminalizao da pobreza e movimentos sociais por parte do governo, e, ainda, da

    conivncia do Poder Judicirio. Nesse dia, na curva do S da rodovia PA-150, uma

    manifestao pacfica de trabalhadores rurais sem-terra foi brutalmente reprimida pela Polcia

    Militar, que assassinou 19 pessoas e feriu 69. A magnitude do caso fez com que a data fosse

    considerada pelos movimentos camponeses do mundo todo como o Dia Internacional de Luta

    pela Terra. A impunidade, ponto comum de crimes como esses, no foi aqui excepcionada:

    nenhum dos 155 policiais que participaram da chacina foi preso; um coronel e um major

    foram condenados a 228 e 154 anos de priso, respectivamente, mas os grandes responsveis

    polticos sequer foram indiciados, que seriam o ento governador Almir Gabriel e o secretrio

    de segurana, Paulo Sette Cmara.61 Alm disso, as duas condenaes podem ser

    58 CANUTO, Antnio et al (coord.). Conflitos no Campo Brasil 2006. p. 9. 59 A CPT desde sua criao se defrontou com os conflitos no campo e o grave problema da violncia contra os trabalhadores e trabalhadoras da terra. Esta violncia que saltava aos olhos comeou a ser registrada sistematicamente j no final dos anos 1970. Desde 1985 os dados comearam a ser publicados anualmente em forma de cadernos. (...) em 2002 comeou a registrar os conflitos pela gua. A CPT tornou-se a nica entidade a realizar to ampla pesquisa da questo agrria em escala nacional. (...). (CANUTO, A. et al (coord.). Obra citada. p. 9.) 60 CANUTO, A. et al (coord.). Idem . p. 14. 61 SYDOW, Evanize. Massacre de Eldorado dos Carajs completa 10 anos e movimentos lutam contra a impunidade. In: SIDOW, E.; MENDONA, M. L. (org.). Direitos humanos no Brasil 2006: relatrio da Rede Social de Justia e Direitos Humanos. p. 31-32.

  • 21

    consideradas pura pirotecnia para aplacar a opinio pblica, vez que at hoje o processo

    criminal perambula pelos tribunais do pas e os condenados continuam livres.62

    Apesar de o massacre de Eldorado dos Carajs ter trazido tona o debate, em nvel

    internacional, sobre a violncia no campo, esta se manteve constante nos 10 anos seguintes, a

    despeito da troca de governos. Em referido perodo houve o assassinato de 170 lideranas de

    trabalhadores rurais no estado do Par, onde, ademais, so registrados os maiores nmeros de

    casos de utilizao de mo-de-obra escrava. E dos 770 assassinatos de trabalhadores e de

    pessoas que os apoiavam ocorridos nos ltimos 34 anos (dados de 2006), somente em trs

    casos houve o julgamento dos mandantes dos crimes.63

    Foi no Par, tambm, na cidade de Anapu, que pistoleiros, a mando de grileiros e de

    grandes proprietrios de terra da regio que mantm milcias privadas armadas, assassinaram

    a missionria estadunidense Dorothy Mae Stang, que contribua na causa dos povos

    tradicionais da regio por terra e contra a degradao da Amaznia. Aton Fon Filho,

    advogado que atua como assistente de acusao no caso, em 2005 advertia para a grande

    possibilidade de que aquele brbaro crime se mantivesse impune graas s conhecidas e

    esprias manobras de defesa dos advogados dos latifundirios, manobras que cotidianamente

    encontram guarida num Poder Judicirio sensvel s causas de seus pares, integrantes da

    mesma elite. Constatando em 2006 que infelizmente sua profecia havia se cumprido, Fon

    inicia seu artigo64 repetindo o que havia inutilmente afirmado um ano antes:

    Advogados dos latifundirios tm recorrentemente traado como estratgia em casos de assassinatos de defensores de direitos humanos atuar com vistas a desmembrar os processos, de modo que os pistoleiros sejam ju lgados separados dos mandantes, e de que os julgamentos destes sofram a mxima delonga possvel. Com isso, encontram sempre algum magistrado, em alguma instncia que conceda habeas corpus aceitando a alegao de excesso de prazo, ainda que, jurisprudencialmente, essa alegao no se sustente quando os prazos so ultrapassados por culpa da prpria defesa.65

    Com efeito, a manobra de desmembramento dos processos foi levada a cabo, tal como

    previsto. E, tal como previsto, a estratgia tradicional dos defensores dos fazendeiros

    mandantes de assassinatos no Par, buscando postergar os julgamentos por meio da suscitao

    de incidentes e interposio de recursos processuais, mostrou-se ainda uma vez eficaz diante

    62 SAMPAIO, Plnio de Arruda; COMAPRATO, Fbio Konder; SILVA , Jos Afonso da. Uma justia de classe. 63 SYDOW, E. Obra citada. p. 32. 64 FON FILHO, Aton. Profecias no modificam o futuro. In: SIDOW, E.; MENDONA, M. L. (org.). Direitos humanos no Brasil 2006: relatrio da Rede Social de Justia e Direitos Humanos. p. 33-37. 65 FON FILHO, A. Obra citada. p. 33.

  • 22

    dos clamores pela cessao da impunidade.66 Isso apesar de, no processo que culminou na

    condenao de dois executores, ter restado suficientemente estabelecida a ligao entre eles e

    os fazendeiros. No obstante a presso exercida por vrios movimentos sociais e as vrias

    diligncias de comisses de defensores de direitos humanos e representantes polticos, os

    entraves processuais deliberadamente postos pelos procuradores dos rus e aceitos pelos

    juzes, desembargadores e ministros continuam impedindo o regular julgamento dos acusados

    de mandar matar Irm Dorothy.

    Os intentos de tais entidades foram, contudo, baldados, porque no apenas a mesma lentido se manteve, como as instncias superiores a ela aderiram, de modo que ainda hoje passeiam em Braslia recursos ajuizados visando nica e exclusivamente produo de mais delongas. (...) Ainda que os recursos interpostos recurso especial e extraord inrio pelas defesas de Bida e Tarado no tenham efeito suspensivo, isto , no impeam o julgamento de ambos pelo Tribunal do Jri de Belm, as autoridades judicirias dali se tm esquivado de designar data para os julgamentos de ambos os rus, no que no se pode sequer acus-las por aquiescerem vontade destes, uma vez que no chegou a ser formulado pedido com esse objetivo.67

    Indicando que os casos citados no so fatos isolados, tampouco a impunidade que os

    reveste, h considervel bibliografia relatando a opresso que mesmo em perodos recentes

    vem sendo perpetrada no campo brasileiro. Alm do j citado levantamento anual publicado

    pela CPT dos conflitos agrrios, separados por temtica, outro interessante instrumento de

    pesquisa de dados dessa ordem o relatrio vencido (graas a ardis da bancada ruralista) da

    CPMI da Terra, editado em forma de livro.68 J a obra Desterro,69 tambm publicada pela

    CPT, e os anais do Tribunal Internacional dos Crimes do Latifndio70 centram foco no estado

    do Paran, retratando a forma com que o governo Jaime Lerner tratava a questo agrria

    nos anos 1990, dizer, quando a violao dos direitos humanos dos trabalhadores rurais,

    principalmente os integrantes de movimentos populares, se apresentava como uma deliberada

    poltica de Estado. Entre vrias outras, merecem destaque tambm as publicaes da

    66 FON FILHO, A. Idem. p. 35. O autor re lata tambm a disputa entre os grandes escritrios para serem contratados para defender esses milionrios casos: A quantidade de advogados se oferecendo, quase se digladiando para assumirem as defesas de Rayfran, Clodoaldo e Tato [acusados da execuo do crime], gerou mes mo cenas deprimentes de trs ou quatro profissionais, no dia do julgamento, aguardando serem escolhidos pelos rus, como pretendentes s portas do castelo das princesas nbeis. (FON FILHO, A. Idem . p. 34.) 67 FON FILHO, A. Idem . p. 35 68 MELO, Joo Alfredo Telles (org.). Reforma agrria quando? CPI mostra as causas da luta pela terra no Brasil. 69 OLIVEIRA, Jelson; NUNES, Rogrio; BORGES, W ilton. Desterro: uma cronologia da vio lncia no campo no Paran na dcada de 90. 70 Associao Brasileira de Reforma Agrria; Associao Direito e Cidadania; Comisso de Direitos Humanos da Cmara Federal et al. Anais do tribunal internacional dos crimes do latifndio e da poltica governamental de violao dos direitos humanos no Paran.

  • 23

    Associao Brasileira de Reforma Agrria ABRA, instituio que desde 1969 trava dura

    luta contra a injusta concentrao fundiria brasileira, principalmente atravs de estudos

    bastante qualificados sobre a questo agrria brasileira.

    O Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada IPEA, por sua vez, aps apontar o

    quadro geral de conflitos agrrios no perodo de 1996 a 2005, constata que O resultado mais

    evidente dos conflitos os assassinatos tambm no arrefeceu71 e, como casos mais

    expressivos, destaca Corumbiara,72 Eldorado dos Carajs, Felisburgo,73 Dorothy

    Stang e Chacina de Una.74 Ao final, conclui que Os casos relatados constituem uma

    pequena parcela da violncia que ainda grassa no campo. A demora para que os culpados

    sejam levados a julgamento gera uma cultura de impunidade que s faz alimentar a lei dos

    mais fortes.75

    preciso ter claro que ao se fazer referncia impunidade que reveste os crimes

    contra a classe trabalhadora rural certamente no se pretende aqui advogar a idia de que o

    direito penal deva ser invocado como mecanismo de resoluo deste problema. Pelo contrrio,

    a inocuidade de tal medida patente. O intento restringe-se a demonstrar a disparidade do

    tratamento direcionado aos de cima e aos de baixo por parte de praticamente todas as

    esferas do poder pblico, saltando aos olhos a seletividade perpetrada pelo Judicirio, que

    71 INSTITUTO DE PESQUISA ECONMICA APLICA DA IPEA. Polticas sociais: acompanhamento e anlise. p. 331. 72 Em julho de 1995, um grupo de sem-terra ocupou uma rea da Fazenda Santa Elina, em Rondnia, municp io de Corumbiara, perto da div isa com o Mato Grosso e da fronteira com a Bo lv ia. Dias depois, foi exped ida liminar de reintegrao de posse, por presso de ruralistas da regio. Estabeleceu-se impasse nas negociaes pela desocupao da rea. Na madrugada de 9 de agosto, comeou o despejo pela PM de Rondnia e jagunos contratados por fazendeiros. Os acampados foram violentamente atacados. Segundo relatam lideranas dos trabalhadores sem terra, homens foram executados sumariamente, mulheres foram usadas como escudo humano pelos atacantes. O acampamento foi completamente destrudo. Pelo menos 12 pessoas foram mortas, 350 pessoas foram presas, dezenas foram feridas e inmeros casos de tortura e espancamentos foram registrados. Ningum foi responsabilizado pelos crimes e abusos cometidos. (IPEA. Idem. p. 332.) 73 Minas Gerais, 2004. As famlias que ocupam a Fazenda Nova Alegria, Municpio de Felisburgo, no Vale Jequitinhonha, em Minas Gerais, desde 1 de maio de 2002, foram surpreendidas em 20 de novembro de 2004 por rajadas de balas disparadas por 18 pistoleiros, trs deles encapuzados, fortemente armados, que assassinaram cinco trabalhadores e balearam outros vinte. Alm dos disparos, atearam fogo em todas as barracas. O Instituto de Terras de Minas Gerais (ITER) por meio do levantamento da cadeia dominial, constatou que a fazenda devoluta e, por morosidade do Poder Judicirio, o processo de assentamento das famlias continuava inconcluso. Depois de tanto tempo, apenas trs envolvidos esto presos. O mandante do crime continua em liberdade, assim como outros sete jagunos j identificados pelas vtimas. Eles convivem diariamente com os sem-terra atacados, mantendo o clima de terror na regio. (IPEA. Idem. p. 333.) 74 Em 28/01/2004, trs auditores fiscais do trabalho, ligados ao departamento regional de Belo Horizonte, e o motorista que os acompanhava foram mortos na rodovia vicinal MG-188, a 55 km de Una (MG). Os quatro receberam tiros na cabea. O objet ivo dos fiscais mortos era v istoriar as condies de trabalho, remunerao e acomodao das pessoas arregimentadas para colherem a safra de feijo, que acontece de janeiro at o fim de fevereiro na regio. Apesar de um dos fiscais ter recebido ameaas de morte, o grupo no tinha proteo policial. (IPEA. Idem. p. 334.) 75 IPEA. Ibidem.

  • 24

    apesar da relatada ineficincia e lentido no julgamento de crimes de polticos e latifundirios,

    rpido em atender a pedidos de reintegrao de posse contra coletividades marginalizadas

    (mesmo quando se est a tratar de reas com grave descumprimento da funo social do

    imvel), assim como volta lentido habitual quando se trata de processos de desapropriao

    de imveis para fins de reforma agrria, e assim por diante.

    Ainda com relao aos conflitos no campo, o relatrio de Antnio Canuto76 relativo a

    2007 aponta que apesar de estatisticamente o nmero de mortes ter diminudo em comparao

    com o mesmo perodo analisado (janeiro a outubro) do ano passado, os registros no do

    conta de todos os casos. Com relao ao trabalho escravo, por exemplo, de cada fato

    visibilizado, outros quatro jamais chegaro a conhecimento pblico. Sua concluso a de que

    a violncia no campo, longe de estar sendo vencida, tende a aumentar, dada a voracidade

    com que o capital se lana para ampliar seus lucros, estimulado pela prioridade reservada ao

    agronegcio na poltica do governo para o campo.77

    Estes dados gerais e exemplos provam o acerto do argumento desenvolvido, no

    sentido de a questo agrria ser um problema central no Brasil, ainda nos dias de hoje, cuja

    soluo passa pelo fortalecimento de uma teoria crtica a respeito e, principalmente, por uma

    prxis efetivamente contra-hegemnica da classe trabalhadora organizada.

    Mas para uma melhor compreenso dos conflitos no campo no basta sua exposio.

    Uma srie de elementos devem ser sistematicamente analisados para se vislumbrar sua gnese

    e, com isso, algumas possveis solues. Somando s estatsticas e exemplos explicitados,

    ento, parecem imediatamente essenciais os seguintes dados: estrutura e concentrao

    fundiria, trabalho escravo, e comparao entre as polticas de crdito destinadas

    agricultura familiar, de um lado, e aos grandes proprietrios, de outro. Com isso se pode

    perceber as pssimas condies em que so mantidos a classe trabalhadora do campo e os

    pequenos produtores, pelas classes dominantes, com o largo uso do aparelhamento estatal.

    O ndice de Gini, medida estatstica organizada internacionalmente, a metodologia

    utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE para analisar a

    concentrao fundiria no Brasil. Quanto mais prximo de 1 (um), mais concentrada a

    propriedade; quanto mais prximo de 0 (zero), melhor distribuda a terra. Em um estudo no

    ano 2001,78 o IPEA utilizou a tabela de Evoluo do ndice de Gini de 1950 a 1995. L se

    76 CA NUTO, A. O agronegcio avana sobre novos territrios e a limenta a vio lncia. In: SIDOW, E.; MENDONA, M. L. Direitos humanos no Brasil 2007: relatrio da Rede Social de Justia e Direitos Humanos. p. 31-38. 77 CANUTO, A. O agronegcio avana... p. 38. 78 IPEA. Acompanhamento de polticas e programas governamentais.

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    encontram os ndices separados por regio e tambm a mdia nacional. Desta, segue a

    evoluo de 1950 a 1995: 1950 0,840; 1960 0,839; 1970 0,843; 1975 0,854; 1980

    0,857; 1995 0,856.

    Constata-se, portanto, que no perodo abarcado pela pesquisa, no houve alterao

    substancial na estrutura fundiria brasileira, havendo, inclusive, uma leve tendncia a uma

    maior concentrao. O mesmo estudo citado (do IPEA) relata que no incio do ano de 2001, o

    Ministrio do Desenvolvimento Agrrio MDA afirmava efetiva reduo do ndice de Gini,

    de 0,848 para 0,802. Entretanto, o prprio IPEA (que um rgo ligado ao Poder Executivo)

    refutou os clculos do MDA, uma vez que a metodologia utilizada por este na poca

    implicava a retirada da base de clculo, no ano 2000, de grandes reas supostamente em

    mos de grileiros e, como essa imensa rea integrava a base anterior (1992), a comparao de

    resultados fica prejudicada. Alm disso, dizia que o MDA alterou, tambm, sua base

    cadastral com o fim de imputar os novos assentados e excluir as terras pblicas. Tpica do

    perodo de governo de Fernando Henrique Cardoso, quando a questo agrria e a insurgncia

    popular eram duas de suas grandes pedras no sapato, a maquiagem nos nmeros relativos s

    polticas agrrias continua infelizmente sendo prtica comum no Governo de Luiz Incio Lula

    da Silva, vez que a realidade do campo mantm-se predominantemente excludente.

    Pode-se ter uma noo da concentrao fundiria no Brasil por outras medidas

    tambm. Por exemplo, consta do II Plano Nacional de Reforma Agrria PNRA,79 de 2003,

    informao de que os 3.896.025 imveis com menos de 200 hectares, considerados de carter

    familiar, somam uma rea de 123 milhes de hectares, correspondentes a 29% da rea rural

    brasileira; enquanto isso, os 342.422 imveis com mais de 200 hectares, considerados de

    carter patronal, somam 297 milhes de hectares, o que equivalente a 71% da rea rural

    brasileira. Segundo informaes do Censo Agropecurio de 1995-96 realizado pelo IBGE,

    As propriedades com mais de 1 mil hectares eram 49 mil, representavam 1% do total e

    ocupavam 45% da rea.80

    79 Ministrio do Desenvolvimento Agrrio MDA; Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria INCRA. II plano nacional de reforma agrria: paz, p roduo e qualidade de vida no meio rural. 80 MORISSAWA, Mitsue. A histria da luta pela terra e o MS T. p. 115.

  • 26

    Sobre a existncia de trabalho escravo no campo em dias atuais,81 vale ter em conta

    que desde a criao do Grupo Especial de Fiscalizao Mvel do Ministrio do Trabalho

    MTE, em 1995, at o mais recente levantamento deste Ministrio, realizado em junho de

    2007, 23.405 trabalhadores escravos no Brasil haviam sido libertados, em 1.753 propriedades

    fiscalizadas.82 No Plano do MDA/INCRA para erradicao do trabalho escravo,83 so

    trazidas algumas caractersticas do trabalho escravo no campo de hoje, assim como seu

    mecanismo de funcionamento, que consiste normalmente na prtica da penoagem:

    Passados mais de 100 anos do anncio da Lei urea, a escravido continua sendo uma das maiores expresses de degradao humana e social que assolam o Brasil. Expressa de diversas formas e intensidades, a escravido em tempos recentes caracteriza-se pelo cerceamento da liberdade, pela degradao das condies de vida, pela vinculao financeira , pelo autoritaris mo nas relaes sociais e, fundamentalmente, pelo desrespeito e violao aos direitos humanos. Os dados mais recentes, segundo a Comisso Pastoral da Terra (CPT), indicam que podem existir no Brasil 25 mil trabalhadores e trabalhadoras rurais vivendo em regime anlogo ao trabalho escravo, em d iversos estados do pas, com nfase aos estados da Regio Norte. A escravido contempornea to perversa quanto a que existia at o final do sculo XIX (...). Para a escravido atual no existem cores, apenas miserveis. Independentemente de suas raas, todos so descartveis, pois laboram sob condies degradantes, em troca apenas de comida, sem o reconhecimento de seus direitos trabalhistas e de sua prpria condio de ser humano. Com uma taxa de desemprego alarmante e uma farta mo-de-obra, a forma de trabalho escravo mais freqente no Brasil a da servido (ou penoagem) por dvida (no dia do pagamento, a dvida do trabalhador maior do que o que ele teria a receber pelos servios prestados).84

    Sobre este assunto ainda, Ricardo Rezende Figueira traa o perfil dos novos senhores

    de escravos proprietrios de imveis rurais, denunciados em 2006 ou em anos recentes.

    81 Importa a esta pesquisa o trabalho escravo do campo no Brasil, porm necessrio registrar sua existncia tambm nas cidades, e, ainda, em outros pases. Ricardo Rezende Figueira traz o exemplo dos imigrantes bolivianos ilegais que so mantidos em condies de escravos no setor txt il de So Paulo, principalmente. Em nvel internacional, Figueira cita o informe Una alianza global contra el trabajo forzoso, da OIT, que revela a existncia de 12,3 milhes de pessoas em trabalho forado em todos os continentes. Alm disso, trata da interligao entre estes casos na economia g lobalizada: O t rabalho escravo repercute alm das fronteiras do estado ou do pas; envolve mo-de-obra nacional e estrangeira. A carne produzida no Brasil em condies de trabalho escravo poderia estar sendo comercializada e vendida na Gr-Bretanha; a confeco feita em So Paulo por bolivianos poderia estar sendo comercializada por fornecedores da multinacional holandesa C&A, como alertou o Ministrio Pblico do Trabalho; parte da cana-de-acar mato-grossense, fruto de mo-de-obra escrava alic iada em quatro estados do Nordeste, era vendida para destilaria de lcool e entrava no circu ito das redes de combustvel. (FIGUEIRA, Ricardo Rezende. A escravido por dvida: novidades e persistncias. In: SIDOW, E.; MENDONA, M. L. (org.). Direitos humanos no Brasil 2006: relatrio da Rede Social de Justia e Direitos Humanos. p. 63.) Para um relato mais minucioso do trabalho escravo nas cidades brasileiras: BA SSEGIO, Luiz; UDOVIC, Luciane. Migraes e Senzalas do sculo 21. In: SIDOW, E.; MENDONA, M. L. (org.). Direitos humanos no Brasil 2006: relatrio da Rede Social de Justia e Direitos Humanos. p. 137-146. 82 FIGUEIRA, R. R. O trabalho escravo e a promiscuidade de autoridades. In: SIDOW, E.; MENDONA, M. L. (org.). Direitos humanos no Brasil 2007: relatrio da Rede Social de Justia e Direitos Humanos. p. 57. 83 MDA/INCRA. Plano do MDA/INCRA para a erradicao do trabalho escravo. 84 MDA/INCRA. Obra citada. p. 9.

  • 27

    Segundo ele, tais senhores so predominantemente ligados ao agronegcio, misturando assim,

    a tecnologia de um mundo informatizado e globalizado com formas degradantes e

    coercitivas de trabalho.85 Demais disso,

    So empresrios modernos e, entre estes, alguns exercem ou exerceram, quando o fato se deu, cargos pblicos, especialmente no legislativo estadual e federal , incluindo o Senado. H, a inda, entre os denunciados, membros de outros poderes prefeito, min istro, secretrio de estado, juiz de direito e, recentemente, houve a denncia contra um reitor de uma universidade particular.86

    No relatrio de 2007, Figueira informa que a situao continua inalterada, vez que as

    fiscalizaes e libertaes evidenciam apenas uma parte do problema. O que marcou esse ano,

    porm, foram as articulaes de autoridades governamentais principalmente deputados e

    senadores ligados chamada Bancada Ruralista do Congresso Nacional voltadas a

    inviabilizar os trabalhos do Grupo Mvel de Fiscalizao, basicamente mobilizando o maior

    nmero de congressistas para questionar a seriedade dos trabalhos do Grupo e pressionando

    para que as penalidades nesses casos sejam as mais brandas possveis, alm de procurarem

    barrar quaisquer projetos de normas que prevejam medidas contrrias ao trabalho escravo.87

    A despeito do avano alcanado mediante vrias aes de enfrentamento realizadas

    pelo Estado, sociedade civil organizada e classe patronal nos ltimos tempos, avano

    reconhecido pela Organizao Internacional do Trabalho OIT, esta mesma entidade aponta a

    persistncia de velhos impasses, como a impunidade, a indefinio de competncia para se

    julgar os aspectos criminais, e a no aprovao da PEC 438/2001, relativa perda da

    propriedade nos casos de trabalho escravo.88 Figueira ressalta ainda mais duas falhas da

    poltica de combate ao trabalho escravo: falta de medidas ousadas de gerao de renda para a

    populao mais vulnervel ao aliciamento, e falta de implementao de medidas eficazes de

    reforma agrria.89

    Finalmente, preciso ter em conta uma comparao entre as polticas de crdito

    destinadas pequena agricultura (familiar e camponesa), de um lado, e aos grandes

    proprietrios, de outro. Dos quase R$ 60 bilhes de crdito rural anunciados no II PNRA,

    15% so destinados s pequenas propriedades (familiares), de at 200 hectares; 48%, s

    85 FIGUEIRA, R. R. A escravido por dv ida... p. 62. 86 FIGUEIRA, R.R. Ibidem. 87 FIGUEIRA, R. R. O t rabalho escravo... p. 54-56. 88 FIGUEIRA, R. R. A escravido por dvida... p. 65. At o encerramento desta pesquisa, tal Projeto de Emenda Constitucional ainda no foi aprovado. Seu trmite pode ser acompanhado em: lt imo acesso em: 17 de janeiro de 2008. 89 FIGUEIRA, R.R. Ibidem.

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    mdias propriedades, de 200 a 2000 hectares; e 37% s grandes propriedades, tpicas do

    agronegcio, com mais de 2000 hectares. Na safra 2005/2006, o crdito rural oferecido s

    mdias e grandes propriedades (acima de 200 hectares), que empregam 2,2 milhes de

    pessoas (13,4% da populao ativa do meio rural), foi de R$ 44,3 bilhes. Enquanto isso, no

    mesmo perodo, pequena agricultura, que emprega 14 milhes de pessoas (86,6% da

    populao ativa do meio rural), for