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A quebra do elo... Lemos & Alves A quebra do elo: as consequências da reforma protestante para o fim das mediações sacerdotal Douglas L. Lemos 1 Adjair Alves 2 Resumo: A Reforma Religiosa do século XVI constituiu-se marco decisório na constituição do caráter de homens e mulheres, não apenas daquele período, mas da humanidade que a sucedera. Um contexto de profunda transformação da mentalidade europeia Ocidental, cujas consequências, fomentadas pelos ideais humanistas e renascentistas, podem ser encontradas em séculos posteriores.. Discutir, as consequências em termos das relações de poder encetadas pela fé religiosa (reformada), torna-se o objeto do presente artigo, que objetiva abordar o período do contexto da Reforma, em seus aspectos social, político e religioso. Identificar os desdobramentos do processo histórico desencadeado pela publicação das teses luteranas, tendo como principal foco de análise, o surgimento e DIÁLOGOS – Revista de Estudos Culturais e da Contemporaneidade – N.° 8 – Fev./Mar. - 2013 135 1 Graduando em História pela Universidade de Pernambuco. 2 Filósofo e Antropólogo – Professor Adjunto na Universidade de Pernambuco. Líder de Grupo de pesquisa credenciado pela UPE e com registro no CNPq por nome: ARGILEA – Antropologia, Religiosidade, Gênero, Interculturalidade, Linguagens e Educação Ambiental. Atualmente vem realizando pesquisas nos temas: Mudança Social, Religiosidade no meio urbano e Rural, Gênero, Etnicidade, Antropologia do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.

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A quebra do elo...  Lemos & Alves 

A quebra do elo: as consequências da reforma protestante para o fim das mediações sacerdotal

Douglas L. Lemos 1

Adjair Alves 2

Resumo: A Reforma Religiosa do século XVI constituiu-se marco decisório na constituição do caráter de homens e mulheres, não apenas daquele período, mas da humanidade que a sucedera. Um contexto de profunda transformação da mentalidade europeia Ocidental, cujas consequências, fomentadas pelos ideais humanistas e renascentistas, podem ser encontradas em séculos posteriores.. Discutir, as consequências em termos das relações de poder encetadas pela fé religiosa (reformada), torna-se o objeto do presente artigo, que objetiva abordar o período do contexto da Reforma, em seus aspectos social, político e religioso. Identificar os desdobramentos do processo histórico desencadeado pela publicação das teses luteranas, tendo como principal foco de análise, o surgimento e

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                                                            1 Graduando em História pela Universidade de Pernambuco. 2 Filósofo e Antropólogo – Professor Adjunto na Universidade de Pernambuco. Líder de Grupo de pesquisa credenciado pela UPE e com registro no CNPq por nome: ARGILEA – Antropologia, Religiosidade, Gênero, Interculturalidade, Linguagens e Educação Ambiental. Atualmente vem realizando pesquisas nos temas: Mudança Social, Religiosidade no meio urbano e Rural, Gênero, Etnicidade, Antropologia do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. 

 

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fortalecimento da doutrina do sacerdócio universal, que se constitui o cerne das análises, aqui apresentadas. Palavras-chave: Reforma, protestantismo, religião, sacerdócio, luteranismo.

A sociedade europeia do século XVI fora, forçosamente, retiradas de seu universo interior de acomodação cultural e intelectual, e expostas a novos valores que iriam produzir efeitos tão profundos que findariam em dividir uma Europa que antes estivera, ao menos no aspecto religioso, unida pelos laços comuns do cristianismo romano. A dissolução não era o objetivo de todos os reformadores, mesmo assim, tornou-se caminho inevitável ante o recrudescimento das práticas pouco ou nada espirituais da Igreja Católica Romana, evidenciadas nas atitudes de seus clérigos.

Os questionamentos que sobrevieram à religião não são obra de um só momento, mas o resultado de um acúmulo crescente de conflitos e discordâncias internas que surgiram durante os séculos anteriores ao XVI.

Os cátaros (ou albingenses), no final do século XII, maioria no sul da França, propuseram uma existência dualista em que o Deus bom, criador da alma humana, e o deus mau, criador do mundo visível, conflitavam permanentemente. Para eles a matéria era fruto do mal e tudo quanto estivesse ligado ao prazer da carne seria obra do maligno. A resposta da Igreja foi uma cruzada para a aniquilação dos albingenses. No mesmo período, os valdenses, com aproximadamente 35.000 crentes no norte da Itália, pregavam uma vida de pobreza e distante dos valores materiais, antecipando muitos dos valores dos

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reformados do século XVI, e acabaram sendo excomungados e perseguidos.

Em toda Europa surgiam grupos reacionários guiados por lideranças místicas que propunham uma nova experiência pessoal com a divindade e questionavam a pouca espiritualidade clerical. Catarina de Sena (1347-1380), com suas visões, persuadiu Gregório XI a voltar de Avignon para Roma em 1377; João de Ruysbroeck (1293–1381) influenciou o movimento místico na Holanda e integrava o grupo conhecido como Devotio Moderna, ou os Irmãos da Vida Comum. Além destes, reformadores como João Wycliffe (1328–1384) e João Huss (1373–1415), na Inglaterra, e Savonarola (1452–1498), em Florença, se empenharam em tentar levar a Igreja aos ideais do Novo Testamento, no que fracassaram. A resposta da Igreja a partir do século XII aos movimentos considerados heréticos foi a tortura através da Inquisição.

O colapso da irmandade universal – católica era iminente e daria origem a uma “nova” fé, a qual se atribuiria o valor de reformada. À frente dessa Reforma estava um monge agostiniano, Martinho Lutero, profundamente angustiado e afligido pela consciência de seus pecados, para os quais não via a possibilidade de perdão. A tensão espiritual interior de Lutero era, na verdade, um sentimento evidente em muitas pessoas. A prática comum, todavia, estabelecida pela Igreja para lidar com a questão do pecado e do perdão era a venda das indulgências. Quaisquer pessoas poderiam diminuir seu tempo de sofrimento no purgatório e encher-se de méritos que contrabalanceassem com suas faltas, a ponto de garantir-lhes, por fim, um bom lugar nas moradas celestiais.

A partir da publicação de suas 95 teses (1517), Lutero se indispõe publicamente contra a Igreja e demonstra a necessidade de mudanças, condenando veementemente a venda

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de indulgências. O Protestantismo emerge dando ênfase a três doutrinas principais: a justificação pela fé, o sacerdócio universal, a infalibilidade apenas das Sagradas Escrituras; a Bíblia. As repercussões dessas pregações seriam tão contundentes, que dividiria a Europa entre Protestantes e Católicos, motivo pelo qual, manifesta é a necessidade de uma sempre nova, aprofundada e investigativa análise do seu contexto e desdobramentos.

Discute-se aí, a participação do indivíduo na construção de sua própria identidade e realidade espiritual, o que inevitavelmente repercute nas questões políticas daquele tempo. Colocada ao alcance de cada homem e mulher, o guia da fé cristã – a Bíblia vai dar a cada um deles a oportunidade de investigar e questionar o papel dos sacerdotes e reis no contexto da vida cotidiana.

I. O cenário da Reforma Protestante: uma igreja em controvérsias

Muito se discute sobre o caráter sócio histórico e

filosófico da Reforma Protestante. A questão é, sem dúvida, complexa. Reforma como assinala Keith Randel (1995: 8-9): foi o termo usado para descrever o “complexo conjunto de fatos que durou a maior parte do século XVI, pelo qual uma significativa minoria dos membros da Igreja católica foi perdida para as novas igrejas protestantes”. Já Earle E. Cairns (1995: 224) afirma que, “não é fácil aclarar o sentido do termo Reforma”, demonstrando que há que se levar em conta algumas particularidades, tais como a situação social e política do contexto histórico, que acabou sofrendo interferências do movimento não apenas religioso, mas filosófico, no momento que se busca sua melhor compreensão.

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Certo é que a Reforma Protestante possui várias causas inter-relacionadas, e nenhuma delas por si só pode dar uma explicação completa sobre o movimento. A multiplicidade de causas que deram força e forma à Reforma Protestante exige uma abordagem interdisciplinar, com a análise dos vários fatores relacionados. Essa é uma visão mais moderna que tem sido usada por historiadores que procuram enxergar os eventos de forma mais ampla e buscar compreender os diversos aspectos da vida social daquele período.

Segundo afirma Delumeau (1989: 60), “se tantas pessoas na Europa, de níveis culturais e econômicos diferentes, optaram pela Reforma, foi por esta ter sido em primeiro lugar uma resposta religiosa a uma grande angústia coletiva.” A religião, portanto, aparece aí, como característica principal do protestantismo e sobre ela recai o fardo histórico, sem que se deixe de observá-lo sob outros prismas.

O pensamento do século XVI contou com os elementos da incerteza e da dúvida, contrariamente ao pensamento medieval onde as verdades fixadas como eternas impunham limites aos homens. Mas o mundo medieval desfalecia ante o novo tempo, a era das grandes descobertas, do Renascimento italiano, do Humanismo, da ciência; urgia a necessidade de uma nova forma de lidar com as questões humanas, de uma nova concepção de existência e de relacionamento com a natureza, com o divino e com o próximo.

Do ponto de vista cultural, o século XVI, encontra-se marcado por uma intensa vida rural. A vida de homens e a mulheres europeias estava, essencialmente constituída pelas atividades econômicas ligadas ao campo; lavrando o solo e cuidando de animais para seu sustento. Um mundo, basicamente, dominado por superstições e demônios que viviam a espreita, vigilantes, pronto para se apoderar e

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escravizar a alma humana, levando-a às profundezas do abismo. Os grandes poetas como Dante, Virgílio, Cervantes, Bocage entre outros, expressam o caráter temerário que assolava aquele mundo. A morte era tema presente na musicalidade e encenações teatrais; era a senhora, onipotente, de quem nenhum ser humano poderia escapar o domínio.

O crescimento do comércio havia forçado o homem europeu a se lançar cada vez mais ao mar. O destino era o Oriente e suas desejadas especiarias. Assim, suas embarcações deixam a Europa e retornam com ratos infetados que flagelam o continente com a “Peste Negra”, desde o mar Mediterrâneo até o mar do Norte, levando consigo parte considerada dos habitantes. Vez por outra as pestes se repetiam.

No decorrer do século XIII e início do XIV a Igreja Católica estivera dividida. Clemente V havia transferido, em 1309, o papado de Roma para Avignon, onde permaneceu sob influência dos reis franceses até 1377, quando Gregório XI retornou a sede da Igreja para Roma, sob os apelos da mística Catarina de Sena, pondo fim ao período chamado Cativeiro Babilônico. Contudo, no ano seguinte, Urbano VI, não tendo entendimento com os cardeais, declarados inimigos seus, viu aqueles que o puseram no papado elegerem outro papa, Clemente VII, que imediatamente transferiria a sede para Avignon mais uma vez. Era o Grande Cisma, e agora a Igreja possuía dois chefes. Os europeus, atônitos, teriam que escolher a quem obedecer. A situação se agravou quando em 1409, no Concílio de Pisa, numa tentativa de unificar novamente o papado, os cardeais elegeram Alexandre V como papa legítimo. Benedito XIII, em Avignon, e Gregório XII, em Roma, negaram-se a reconhecer a decisão do Concílio e excomungaram seus membros. Três papas comandavam uma Igreja completamente dividida. Somente o Concílio de Constança (1414-1418) resolveria este grande impasse.

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Os acontecimentos denunciavam as consequências da triste condição pecaminosa de todos os homens. Assim eram vistos os grandes eventos que se desdobravam ante os olhos de pessoas quase totalmente desesperançadas. Não se podia resistir aos apelos da consciência e todos eram culpados. As pessoas estavam perdidas procurando um sentido para a vida. Precisavam de esperança, de alimento, de perdão, de disciplina e dos cuidados da Igreja. Ao invés de alento recebiam indulgências, penitências, excomunhão e interditos.

Quando o monge agostiniano Martinho Lutero iniciou suas pregações sobre a justificação pela fé, mediante a qual todas as pessoas poderiam alcançar a salvação pessoal exclusivamente pelo ato de crer no sacrifício de Cristo na cruz, afirmando que as obras (leia-se jejuns, peregrinações, martírios, aquisição de indulgências, etc.) para nada serviriam ao pecador quando apresentado diante de Deus, certamente as multidões encontravam-se preparadas para receber as suas idéias. Camponeses pobres, comerciantes ávidos pelo lucro condenado pela Igreja Católica, intelectuais ávidos de uma nova teologia, mais próxima dos ideais humanistas, nobres e príncipes ansiosos por verem-se livres dos tributos de Roma, todos poderiam ver na Reforma Protestante um motivo para aceitação, ante suas próprias necessidades. Assim, não demorou para que as idéias de Lutero deixassem sua mente afligida pela crueldade de seus pecados para alcançarem os corações de muitos cristãos igualmente contritos e aflitos.

1. Cenário teológico e controvérsias

Iniciava-se o século XVI e a Igreja Católica estava distanciada da essência cristã de irmandade, de seus fundamentos inerentes à entidade religiosa que rogava para si a responsabilidade da condução das almas dos homens ao

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contato com o divino para eterna redenção. Seu amontoado de dogmas e doutrinas que por vezes conflitavam entre si, em suas fundamentações; sua estrutura eclesiástica corrompida pela insaciável sede por riqueza e poder; a profanação das liturgias e do culto com elementos estranhos à igreja primitiva, além da distância imposta aos fiéis por suas regras, dentre as quais, a exigência do latim como língua oficial para reza das missas; além de uma forma arbitrária, mística e inconsistente de se interpretar os diversos acontecimentos da vida humana, dos fenômenos naturais, fez com que se levantassem por toda parte os clamores por uma reforma geral.

A verdade é que os problemas arrastavam-se e aprofundavam-se havia séculos. Os vários Concílios reformadores do século XV evidenciavam isso. Certamente que não era apenas contra a religião que se fortalecia o sentimento de revolta. Entretanto, a religião tomou o centro do sentido da existência e foi condicionante de todo o processo histórico ocorrido no ocidente europeu.

O poder papal pouco a pouco havia se fortalecido e desde o início do século XI, Hildebrando já havia reformulado a política papal, tendo influenciado cinco pontificados, até se tornar ele mesmo um deles. Poderia agora trabalhar diretamente pelo seu ideal de governo teocrático em que o poder temporal e espiritual deveriam ser exercido pelo Papa como vice-regente de Deus. “Ele não queria o poder civil dominando a Igreja Romana; ao contrário, era a Igreja que devia controlar o poder civil.”, afirma Earle E. Cairns (1995: 171- 2), o que está perfeitamente evidenciado no Dictatus Papae, documento que afirma que a Igreja deve seu fundamento somente a Deus, e que somente seu pontífice deve ser chamado de ‘Universal’, tendo o papa plena autoridade sobre todos os bispos. A pretensão máxima expressa no

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documento é dizer que jamais houve erro na Igreja, e que, de acordo com as escrituras, ela jamais errará.

A consolidação da supremacia papal – o papismo – sobre todos os homens era uma pretensão difícil de alcançar. Contra a Igreja levantaram-se muitos príncipes de Estados que não aceitariam estar absolutamente subordinados à Roma. É nesse contexto que surgem os primeiros pregadores reformadores de repercussão.

Na Inglaterra, o Parlamento pôs fim ao pagamento anual de mil marcos ao papado, por volta do ano 1353, pois desagradava ao povo ter que enviar dinheiro para um papado que à época estava em Avignon, sob influência do inimigo inglês, o rei da França. Com isso, o jovem pregador João Wycliffe (1328-1384) alcança grande prestígio em solo inglês, ao se opor à propriedade de bens por parte de líderes eclesiásticos. Segundo ele, Deus havia dado a posse e o uso dos bens para benefício de Sua glória, não para aumento da riqueza individual deles. Wycliffe encontrou apoio entre os nobres e contou com a ajuda deles. A partir daí sua postura era não somente contestatória, mas também revolucionária. Atacou a Igreja e o papado. Afirmou que Cristo, e não o pontífice romano era o cabeça da Igreja, e que a Bíblia, não a Igreja, era a única autoridade tendo todos o dever de voltar aos ideais da igreja do Novo Testamento.

Em 1382 Wycliffe entregou ao povo inglês uma tradução do Novo Testamento em sua própria língua, uma abominação para Roma, aumentada pela tradução do Velho Testamento, feita em 1384, por Nicolau de Hereford.

Um ponto doutrinário contundente pregado por Wycliffe era que durante a ceia não havia a transubstanciação do pão e do vinho, tornando-se literalmente o corpo e o sangue de Cristo, como ensinava a Igreja, mas que Cristo estava representado apenas espiritualmente no ato da comunhão.

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Entretanto, em 1382 as idéias de Wycliffe foram condenadas em Londres, mas ele, a “Estrela D´Alva da Reforma”, como mais tarde seria chamado, já tinha conquistado grande prestígio junto às camadas populares e já havia influenciado a Revolta dos Camponeses em 1381.

Aluno na Universidade de Praga, onde viria a ser reitor em 1404, propondo reformar a Igreja na Boêmia, João Huss havia se levantado contra o papado e assimilado bem as idéias de Wycliffe. Trouxe sobre si o ódio da Igreja ao não se retratar e foi condenado à fogueira durante o Concílio de Constança, embora tivesse salvo-conduto do imperador. Seu livro De Eclesia, continuaria postumamente sua obra.

Unindo-se a Wycliffe e a Huss, Savonarola, monge dominicano, propondo uma reforma na Igreja e no Estado na cidade de Florença, foi enforcado. O período do Cativeiro Babilônico havia despertado um sentimento nacionalista anti-papal e estava difícil conter a sublevação das vozes contrárias à Igreja, que parecia desdenhar disso.

2. O Nascimento A Europa, deslumbrada, via o florescer do século

XVI. Era o tempo da Expansão Marítima e da Revolução Comercial, adornadas pela Revolução Cultural, promovida pelo Renascimento.

O movimento denominado de Renascimento cultural que se estabelecera desde o século XIV havia dado aos europeus, ao findar o século XV, uma nova forma de ver o mundo. Este movimento cultural burguês enfatizava uma cultura laica, racional, científica, e sobretudo não feudal. O Renascimento constituiu-se numa eclosão de manifestações artísticas, filosóficas e científicas, que buscavam seus recursos

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na cultura clássica greco-romana. O homem passava a disputar com Deus os espaços e o antropocentrismo foi ponto fundamental no período, a contragosto da religião. Era uma resposta do novo mundo urbano-comercial aos entraves feudais e a ruptura incluía as concepções sobre o divino.

Os humanistas, deplorando a ignorância e exaltando o espírito humano instruído, também propuseram uma reforma, embora quase todos eles repudiassem Lutero. O mais famoso humanista foi Desidério Erasmo (1466-1536), de Roterdã. Na sua obra O Elogio da Loucura (1510), Erasmo satiricamente denunciou os abusos da Igreja. Contudo, era contrário à revolução que julgava ser pior do que o julgo dos tiranos.

Os humanistas tiveram em comum a contribuição que deram aos estudos sobre a Bíblia com o retorno aos textos em hebraico e em grego. Era a ‘reforma’ das Escrituras, baseada na filologia e nos métodos humanistas de se estudar os textos sagrados.

Erasmo publicou o primeiro Novo Testamento Grego em . Outro humanista, Johannes Reuchilin produziu uma gramática e dicionário do Velho Testamento, o qual deu o título de Rudimentos do Hebraico, permitindo que muitos se familiarizassem com a língua hebraica antiga, facilitando o estudo do texto original. Mais tarde, esses trabalhos de revalorização dos textos antigos acabariam por induzir alguns a traduzi-los em sua língua vernácula, dando ao povo a possibilidade de fazer leituras e cultos em suas próprias línguas, o que provocaria reações da Igreja Católica. Como poderia a gente comum ter boa compreensão dos mistérios da fé ocultos nos textos sagrados? O simples pronunciar do credo do “Pai Nosso” numa língua vernácula era considerado uma profanação.

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As queixas contra a Igreja avolumavam-se. As indulgências se tornaram o ponto de partida da contestação de Lutero à Igreja. Após entrar para o claustro agostiniano de Erfurt em 1505, onde havia se dedicado ao mais zeloso monaquismo, logo foi enviado a recém inaugurada Universidade de Wittenberg um território da Saxônia, governada por Frederico – o Sábio. Este era um dos sete eleitores do Imperador do Sacro Império Romano o qual desejava transformar a cidade no centro cultural da Alemanha. O Eleitor possuía uma coleção particular de relíquias sagradas, cerca de 17 mil que lhe proporcionavam boa renda, quando da distribuição de indulgências. Pessoas de todas as partes viajavam para a Wittenberg a fim de obter a absolvição de pecado.

O erguimento de outra basílica sob o túmulo de São Pedro, no Vaticano, havia sido ordenada pelo Papa Júlio II. Seu sucessor, Leão X, deu continuidade ás obras, publicando bula sobre indulgências para arrecadação de mais dinheiro para a conclusão. Pregadores ávidos passaram a proclamar a nova bula por toda a Europa, sob protesto de muitos príncipes que viam as escassas economias de seus territórios esvaírem-se para Roma. João Tetzel, frade dominicano, era um famoso e bem sucedido pregador de indulgências. Lutero contrariava a idéia da venda de indulgências como alternativa às penitências. Na verdade havia firmado convicção através de seus estudos sobre o Novo Testamento de que somente pela fé, e não por obras, chegar-se-ia à salvação que era gratuita e fruto da graça e dos méritos do Cristo.

Assim, em 31 outubro de 1517, véspera do ‘Dia de Todos os Santos’, dia especial em que a Igreja em Wittenberg abriria para receber os fiéis em busca das indulgências de Frederico, Martinho Lutero fixa nas suas portas as 95 Teses contrárias à venda e questiona o papa perguntando porque o

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mesmo, ‘sendo rico como Creso’, não construía a basílica de S. Pedro com dinheiro do seu bolso, ao invés de espremer o bolso dos pobres.

Em 1518, Lutero defendeu-se das acusações lançadas sobre ele perante sua ordem agostiniana, em Heidelberg. Àquele tempo, chegava em Wittenberg o homem que seria o considerado 'o teólogo da Reforma’ – Filipe Melancton. As idéias de Lutero tiveram rápida aceitação entre muitos professores de Wittenberg. Ainda em 1518, com o aumento das agitações, foi convocado a comparecer em Roma, o que causou protesto por parte de Frederico, que afirmou que um súdito seu deveria ser julgado em território alemão, e não por italianos, obtendo concessão papal. No outono daquele ano, compareceu na Dieta de Augsburg, e defendeu-se diante do Cardeal Cajetano, afirmando a autoridade final das Escrituras ante assuntos de fé e moral, em detrimento à palavra do Papa.

Em 1519 Lutero sofreu duro ataque ao enfrentar John Eck, poderoso na ortodoxia e grande orador, em Leipzg. Eck conseguiu tirar do reformador afirmações de que os concílios em geral são falhos; que ele, Lutero, não poderia aceitar as decisões papais sem questioná-las; e ainda apoio a muitas idéias de João Huss, ‘herege’ condenado pela Igreja havia cerca de 100 anos.

Lutero passou da crítica das práticas da Igreja à crítica aos dogmas. Combateu os sete dogmas estabelecidos reconhecendo apenas dois: o batismo e a comunhão (Ceia), em sua obra intitulada O Cativeiro Babilônico (1520), onde também declarava que depois de 1.000 anos em prisão de Roma, a religião cristã havia perdido sua pureza, corrompido a fé e perdido a moral.

O Papa havia demorado a reconhecer a força que as contestações ganhavam e em junho de 1520, quando publicou bula intimando Lutero a retratar-se em até 60 dias e

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condenando todas as suas obras, estudantes em toda Saxônia queimavam as obras anti-luteranas e a bula papal. Lutero reagiu radicalmente à bula declarando que ela seria a palavra de Satã, na boca de seu Anticristo. À Igreja Católica não restou mais nada senão a excomunhão.

Carlos V, Imperador do Sacro Império Romano convocou, então, a Dieta de Worms, em 1521, causando grande movimento entre autoridades seculares, religiosos e intelectuais da época. Frederico orgulhava-se do alcance publicitário que sua Universidade havia alcançado. Era crescente o medo de que os camponeses se levantassem em rebelião caso Lutero fosse condenado. Quando os representantes papais chegaram à Worms, espantaram-se juntamente com o Imperador da grande popularidade do monge agostiniano. Edith Simon(1971,p.43) cita que um representante do Papa lhe escreveu dizendo: “Nove décimos do povo gritam “Lutero!” e o décimo restante grita: “Abaixo Roma!””.

Em seu julgamento, quando lhe apresentaram vinte de seus livros e lhe perguntaram se ele se retrataria das heresias neles contidas, respondeu que ao menos que pudesse ser persuadido pelas Escrituras ou pela sua razão, não poderia nem desejaria retratar-se de coisa alguma, pois não seria correto agir contra a consciência. Lutero deixou a Dieta como um herói alemão e Frederico providenciou para que o mesmo fosse ‘raptado’ e ficasse escondido em uma fortaleza em Wartburg por quase um ano.

A Alemanha cedeu, e por fim cada príncipe pode estabelecer sua forma de culto, que agora estava subordinado ao poder temporal e à opção de cada governante. A teologia luterana transpassou e ultrapassou o Sacro Império Romano desaguando nos 13 cantões ou Estados suíços que juntos formavam uma confederação. Neles destacaram-se as pregações de Ulrich Zuínglio. Roma tratou-lhe com mais

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cuidado em virtude da experiência mal sucedida na Alemanha. Zuínglio acabou por envolver-se numa guerra civil na Suiça e foi morto. Depois dele, Genebra se tornaria baluarte da reforma sob o comando de Calvino.

II. O conflito entre as doutrinas Não era a vida desregrada dos que conduziam a

igreja o foco dos questionamentos e dos debates. A despeito do temor da morte e de uma angústia ante a severidade de um juízo divino que poderia estar prestes a acontecer, as pessoas viviam num estado de ‘apostasia’ geral. A vida incoerente com os princípios e dogmas da fé não incomodava tanto mais o homem do Renascimento.

As devassidões e a depreciação da espiritualidade da igreja não constituíam o cerne da questão da Reforma. Na verdade, no centro do debate e dos conflitos entre os reformadores e a igreja romana estavam as doutrinas. Elas expressavam o verdadeiro caráter da cristandade católica e eram facilmente distorcidas em favor de algum interesse particular, ainda que conflitassem entre si. A questão era a satisfação de quem detivesse o poder, em menor ou em maior grau.

Os esforços da Igreja de Roma de fundamentar-se e justificar-se com base nas bulas papais, nos concílios episcopais e na supressão das opiniões já não surtia o efeito de outrora. Lutero de logo apontara que os concílios haviam sido contraditórios e que se neles fossem reveladas as verdades eternas de Deus, não haveria a constante necessidade de um concílio ser convocado para debater a decisão de outro anterior.

A Reforma produziu a partir de suas novas doutrinas uma abertura no pensamento e uma transformação no

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comportamento dos reformados. Desde que Lutero apregoou a salvação exclusivamente pela fé, de logo Wittenberg sentiu o impacto da nova teologia, visto que tiravam do rei seus dividendos e da Igreja sua autoridade sobre a salvação. A pregação do uso da fé alimentou o espírito daqueles que despertavam do sono medieval, ansiosos por novas experiências e pelas aventuras. Eram os duros e incontroláveis efeitos de uma liberdade que ecoava em cada canto da vida social.

Contudo, a doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes parece mesmo ter promovido ruptura ainda maior, pois colocou o rei, o príncipe, o nobre, o artesão, o miserável mendigo urbano diante de Deus, para o desespero dos nomeados sacerdotes esvaídos de seus privilégios oficiais.

2.1. O ponto fundamental – A justificação pela fé

Lutero teve a força de um revolucionário no provocar a reforma a partir de suas convicções e necessidades pessoais de afirmação e consciência. Filho de pais camponeses (Hans e Margaret Luther), em 10 de novembro de 1483, véspera do dia de São Martinho, padroeiro da bebida e da alegria, Martinho Lutero nasceu na cidade mineira de Eisleben, na Saxônia.

Desde cedo os ensinamentos religiosos fizeram parte de sua formação. A vida cotidiana dos saxões era impregnada, como não poderia deixar de ser, dos valores religiosos de uma Europa dominada pela mentalidade cristã católica. Não havia espaço para outras manifestações religiosas senão por meio dos sincretismos. Lutero, como muitos outros, não escolheu sua religião. Nasceu nela e carregou consigo seus fardos e reflexos. Não se via fora do cristianismo e o levava em seu próprio nome. Cresceu sob uma disciplina dura, fundamentada numa moral que não permitia um mínimo

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vacilo, e foi ensinado que toda transgressão exige uma severa pena. Em sua mente estavam claras as consequências da desobediência. O castigo viria acintosamente sobre o corpo e sobre a alma; o sofrimento diário de uma vida limitada era nada perto das tormentas futuras que recairiam sobre os perdidos.

O contexto social em que Lutero nasceu era perturbador. De que valeria o gozo que uma vida volátil em que a maioria das pessoas raramente tinha sua existência contada em meio século, se a morte poderia ser passagem para uma realidade contada na casa dos milênios? Decepcionando o pai, após alguns meses de estudos jurídicos, Lutero entrou para um mosteiro onde passou a viver a realidade das penitências. Diz-se que após uma tempestade, temendo ser atingido por algum raio, fez promessa a Santa Ana afirmando que se sobrevivesse dedicaria seus dias à vida religiosa.

A partir de seus estudos de teologia, Lutero desenvolveu sua crescente preocupação com a salvação e com o julgamento de Deus sobre os homens. Dedicou-se rigorosamente à prática de orações, vigílias, jejuns e todas as formas de penitências. Confessava-se regular e minuciosamente. Tais perturbações fizeram com que seus superiores o mandassem estudar em Wittenberg. A paz que tanto buscava não seria encontrada no seu zelo para com as práticas dogmáticas mais sim em seus estudos sobre o Novo Testamento. A visita que fez a Roma durante o período que esteve no mosteiro o fez questionar a eficácia dos métodos adotados pela Igreja para a salvação, nos quais se incluíam as indulgências, substitutas das penitências. Lutero logo percebeu que as pessoas não estavam adquirindo indulgências por estarem de fato preocupadas com sua salvação, mas, ao contrário, sem arrependimento, adquiriam tais títulos como se a

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simples aquisição pudesse lhes garantir o livramento do purgatório e por fim a salvação.

Em 1511, Lutero era professor de Bíblia quando recebeu o título de Doutor em teologia. Aos poucos desenvolveu o princípio da sola scriptura - apenas a Bíblia era autoridade em se tratando de assuntos de religião, fé e moral.

Ao estudar as cartas do apóstolo Paulo, a frase que lhe tomou a atenção foi: “O justo viverá pela fé”. A partir de então a mente do monge agostiniano começava a mudar. O entendimento que teve foi de que a salvação era possível aos homens única e exclusivamente pela fé, e não pelas obras, fossem quais fossem. Era a gênese da doutrina da “justificação pela fé”, a qual passou a defender arduamente em suas obras.

Para a Igreja, a salvação era uma dádiva adquirida através da confissão, do arrependimento e da expiação, mediante penitência. Não era possível encontrar-se a graça de Cristo fora da Igreja, pois esta, mediante estabelecimento do Cristo, era a única representante legítima de Deus na terra. Seu era o dever de mediar o encontro entre os homens e Deus. O dever de todo homem era reconhecer na igreja universal o único caminho para se obter eterna redenção.

Lutero combateu todos esses pressupostos. Todo grande esforço, ainda que sincero, não era suficiente para que o homem se preparasse para o julgamento. Nem a Igreja, nem seu Papa, nem os santos poderiam intervir pela salvação humana senão a fé que cada um individualmente tivesse nos méritos de Jesus Cristo.

2.2. A quebra do elo – o sacerdócio universal

Ao erguer-se a Santa Hóstia, dar-se-ia a

transubstanciação. O padre detinha, então, em suas mãos, literalmente, o corpo de Cristo, um milagre que se dava em

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todas as missas. À frente de todos estava aquele que era o elo, a ligação entre este mundo e o divino, entre a realidade humana e a transcendental – o padre. Os sacerdotes, bispos, arcebispos, cônego, monges, etc. eram homens de estirpe privilegiadíssima. Sobre eles recaía a missão de conduzir os homens até o Deus Supremo, tornando-se mediadores.

A figura do sacerdote no cristianismo evidencia sua herança judaica. Moisés, o maior e mais eminente profeta bíblico, em sua condução do povo pelo deserto, estabeleceu um sistema de rituais para o culto a Jeová, as chamadas ‘Leis Cerimoniais’, que organizavam a religião de um povo nômade em busca de sua ‘terra prometida’ - Canaã.

A função sacerdotal teve grande importância e reconhecimento em toda a história do povo de Israel. Eles eram os responsáveis pela manutenção do Santuário, que nos tempos do Rei Salomão, tornou-se um edifício imponente e central na organização do Estado e na vida das pessoas. Nele se concretizavam as formas de adoração e os sacrifícios diários, além de outros rituais e festividades, sendo o Sumo Sacerdote o maioral entre os demais, visto que ele, e somente ele, poderia adentrar num compartimento do Santuário chamado ‘lugar santíssimo’ ou ‘santo dos santos’, onde Deus, em sua manifestação visível de forte luz, aparecia para julgar e salvar o seu povo.

O cristianismo, incorporando o sacerdócio judaico, deu-lhe em contribuição maior perspectiva. A partir da crença em Jesus Cristo e em nome dele, todo e qualquer discípulo poderia ter acesso direto a Deus. Ao longo do tempo, porém, a Igreja de Roma havia de certa forma retomado a característica mais forte do judaísmo de exclusivismo dos sacerdotes. O papa, então, tomou a condição de ‘pontífice’, ou seja, Sumo Sacerdote de todos os cristãos. Não obstante, o status acompanhou tal atributo e de certo o líder cristão do ocidente

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europeu concentrou poder e grande autoridade em nome de Deus.

Ainda que a vida pouco ou nada espiritual dos ‘homens de Deus’ não tenha sido motivo central para a Reforma, contribuiu para a depreciação do sacerdócio e deu grande força para o discurso protestante. Bebedices, glutonaria, avareza, porfias, lascívia, prostituição e os vícios mais diversos não eram características estranhas à classe sacerdotal àquele tempo. A desvalorização do sacerdócio era visível e contundente. Muitos leigos passaram a socorrer as igrejas nos locais onde não havia padres ou, por algum tempo, a serviço deles. Muitos se perguntavam se o homem comum de vida honesta e santa não seria mais autêntico do que um clérigo desregrado.

A descoberta ou entendimento do sacerdócio universal provocou o nascimento de uma convicção irreversível na mente do Reformador. O Cristo, e não o Papa era Sumo Sacerdote diante de Deus. Seus estudos sobre o Novo Testamento fê-lo descobrir a seguinte afirmação encontrada na Epístola aos Hebreus (cap. 10, versos 19 a 22): “Tendo, pois, irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne, e tendo grande sacerdote sobre a Casa de Deus, aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé...”. Lutero encontrava a base para sua doutrina do sacerdócio universal, alinhada à doutrina da justificação pela fé, e nunca mais o mundo seria o mesmo.

Removiam-se os entraves à libertação dos Estados dominados por Roma com o estabelecimento das afirmações laicas remodeladas pela própria religião. O Rei poderia, então, consultar o próprio Deus e a si mesmo, antes de tomar qualquer decisão sobre as questões de seu reino e dos seus súditos, sem estar limitado pelas decisões e interpretações da Igreja. No

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plano individual, liberavam-se as populações do arbítrio dos padres sobre as coisas de suas vidas.

III. Repercussões do sacerdócio universal

O sistema sacerdotal dominante impunha a todos a

idéia de uma hierarquia onde Deus havia estabelecido uma estrutura extremamente rígida de governo onde os sacerdotes e ministros religiosos estariam no topo, sendo a espiritualidade a base da vida de todos. O poder temporal, qual seja o dos governantes do mundo, estaria subordinado aos ditames do sistema espiritual, e na sua temporalidade deveriam proteger, respeitar e obedecer aos mediadores de Deus. Diversas manifestações populares e revoltas de sacudiram as estruturas estabelecidas havia muitos séculos.

Certamente que a crença numa relação mais pessoal com Deus não foi causa exclusiva de tais acontecimentos. O sacerdócio de todos os crentes supria, na prática e realidade diárias, muito mais as expectativas de rompimentos e alteração da realidade social perversa a que estavam submetidas a maioria das pessoas. Tal crença avantajava-se em influência sobre as mentes, pois envolvia o místico e a realidade visível e empírica. O que dizer da sensação de poder alcançar a graça divina indo pessoalmente até o céu, pela simples oração de fé?

O sacerdócio universal, proposto e defendido por Lutero e seus seguidores abalaria as estruturas da Igreja de Roma, poria em lados opostos reis e prelados, e atingiria a medula do poder – religioso e secular – na Europa. A salvação por meio da fé aliviava a tensão interior de cada homem e os libertava das muitas indulgências. A remoção da mediação ia muito mais além.

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O entusiasmo dos luteranos e de outros que a eles se associaram no movimento protestante sem dúvida promoveu grandes mudanças não somente na relação dos homens com as instituições religiosas, como também dos homens entre si. Ao se estabelecerem novas relações, inevitavelmente com elas vieram novos símbolos, signos, semióforos. Quando a pregação luterana difundiu um conceito de sacerdócio universal, verificou-se a quebra histórica de uma mentalidade que aceitava passivamente a idéia de que clérigos oficialmente ordenados eram, com exclusividade, os que possuíam acesso à Divindade. O que se constata nas obras relacionadas ao período é uma transformação no comportamento dos homens com as instituições sociais como um todo. Contudo, ao se estudar a Reforma Protestante, é necessário abster-se do dualismo e enfocar as mudanças em si.

A que se considerar para isso, também, que a Reforma não foi em si um movimento orquestrado e organizado, de forma a alcançarem todos os pregadores reformadores um mesmo propósito.

3.1 O cotidiano e a política

A crença de que todos os crentes tinham acesso à

Deus deu naturalmente origem a um sentimento de independência, que acabou por fazer surgir cristãos “independentes”. Não havia obrigatoriedade de se estar agregado a qualquer agremiação ou facção religiosa, uma vez que individualmente se podia viver uma vida espiritual, guiada pela consciência, vontade e entendimento próprios. Isso responde à questão do porquê tantas pessoas se engajaram particularmente no movimento protestante, passaram a pregar a reforma, assimilar as idéias dos líderes, e a buscar desenvolvê-las.

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De cedo, Lutero havia se empenhado na evangelização e sua forma mais comuns de divulgar suas convicções e sua teologia foram os sermões. Desse modo difundiam-se as doutrinas luteranas que foram rapidamente assimiladas pelos seus ouvintes fiéis. Lutero publicou em 1529 o seu Grande Catecismo, para os adultos, e o Pequeno Catecismo, para as crianças. Todos os domingos as famílias paravam para as aulas de religião, das quais surgiram as contemporâneas Escolas Dominicais, presentes em grande parte das igrejas evangélicas.

Se as idéias de Lutero foram rapidamente difundidas e aceitas entre os camponeses, igualmente moldaram as suas opiniões e fundamentaram muitas de suas reivindicações antigas. Questionou-se, então, o porquê da manutenção da obrigação de dar dízimos. Os homens simples do campo entenderam que aquela era uma oportunidade de transformação de suas próprias vidas. Como, porém, não havia uma organização dos revoltosos, os príncipes sem grandes dificuldades retomaram o controle de suas regiões, ao custo de cem mil camponeses executados (sic). As rebeliões são no plano macro, uma expressão do sentimento de independência fomentado pela quebra dos privilégios sacerdotais do clero ordenado. No âmbito do culto, as pessoas viram-se livres para manifestarem suas formas de adoração, o que causou uma incontável variedade de propostas de organização das missas.

A partir da quebra do exclusivismo sacerdotal, pessoas simples, homens ilustres, nobres, cavaleiros, todos puderam sentir-se habilitados para partilhar os elementos sagrados no momento de comunhão da Ceia, sacramento reconhecido pelas facções religiosas em conflito, e máxima expressão do cristianismo ocidental.

Muitos príncipes se puseram em guerra em defesa da sua fé. Os nobres protestantes reivindicavam direitos ao

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Imperador do Sacro Império. As lutas somente cessariam em 1555 quando foi assinada a Paz de Augsburgo, dando ao protestantismo igualdade legal com o catolicismo e estabelecendo que cada Príncipe determinaria a religião de seu território, havendo possibilidade de imigração dos súditos de confissão religiosa oposta.

Outra mudança diretamente influenciada pelas pregações do sacerdócio universal foi a forma como as pessoas passaram a lidar com as Escrituras. A partir da importante contribuição dos humanistas para a revisão dos textos sagrados nas línguas originais, e a conseqüente tradução nas línguas vernáculas, intelectuais de toda Europa puderam experimentar reflexões particulares sobre tais textos. A vida política dos europeus mudou completamente. Reis e príncipes estiveram divididos. Cada reino, província, território determinava sua fé, criando um imenso mosaico de influência religiosa.

Na Inglaterra, o rei Henrique VIII, então defensor da Igreja Católica Romana, ansiando divorciar-se de sua esposa Catarina de Aragão, que não lhe dava um filho herdeiro, foi excomungado, afastando-se em definitivo da Igreja. Henrique, então, não se importando com seus atritos com Roma, casou-se com Ana Bolena, e conseguiu com aprovação do parlamento tornar-se chefe supremo da Igreja na Inglaterra. Enquanto na Alemanha, o protestantismo havia se desenvolvido entre as camadas populares e tinha conquistado apoio entre os nobres até chegar ao Imperador, na Inglaterra o movimento foi estabelecido a partir da realeza até alcançar a população. Todos se sentiam árbitros de sua fé e o rei parece ter absorvido o conceito de liberdade do sacerdócio universal com o intuito de justificar seu divórcio.

3.2 A Fé

 

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Ao se analisar as repercussões da doutrina do sacerdócio de todos os crentes, uma das maiores evidências de sua magnitude está revelada no surgimento de idéias e conceitos divergentes entre os reformados. Nunca houve consenso entre os mesmos e isso é uma característica clara do individualismo alcançado à época, resultado de muitos fatores sociais e políticos, mas religiosamente representado pelo sacerdócio universal. A disputa teológica evidenciou a inquietude espiritual dos reformados e ainda no início do movimento, Lutero sofreu dura competição.

Carlstadt e Zwilling, discípulos seus promoveram um grande levante em toda a Alemanha. Carlstadt preferia as experiências místicas pessoais e um relacionamento mais direto com o divino que o aprofundamento da compreensão das Letras, dando as Escrituras importância secundárias. Ele insistia num movimento interior do espírito humano que transforma e leva o eleito pelo caminho da deificação, para o desespero de Lutero, para quem a salvação era alcançada por uma revelação e redenção exteriores.

Lutero, em 1522 fez com que os agitadores fossem expulsos de Wittenberg e com seus sermões conseguiu conter as violências. Considerava que as pessoas não estavam preparadas para mudanças radicais, pois não poderiam compreender bem os propósitos. Contudo, outros luteranos levaram a diante uma revolução não pretendida por Lutero.

Hutten e Sickingem, em 1522, iniciaram um levante por toda a Alemanha para difundir por todos os cantos aquilo que consideravam os valores da verdadeira fé. Tentaram tomar as terras do Eleitor de Treves, mas o movimento malogrou e ambos foram mortos. Ainda outros “profetas” se levantariam provocando grande agitação popular.

Os profetas de Zwickau são um dos exemplos mais notórios que podemos ter de como se processou na mente das

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lideranças que surgiram a idéia de uma autonomia religiosa e de uma compreensão particular de Deus. Esses pregadores que ensinavam um novo batismo, de adultos, ficaram conhecidos como “anabatistas”. Eles instavam o povo a rebelar-se e tomaram algumas cidades alemãs. A Alemanha foi tomada por camponeses, artesãos, padres e monges renegados.Lutero respondeu com um artigo nominado Exortação à Paz (abril de 1525).

Um anabatista chamado Melchior Hofman, pregou nos países do Báltico. Para ele, o fim do mundo estava às portas, marcou a data do grande acontecimento para o ano de 1533; contudo, Strasburgo seria a “Nova Jerusalém”. Dois discípulos seus empenharam grande esforço para aniquilar o mundo pecador. João Matthijs e João de Leiden tomaram o poder em Münter (Vestfália) no ano de 1534. Leiden se tornou “rei da nova Sião” e pretendia conquistar toda a terra. Foram torturados e mortos pelas tropas do bispo que retomaram a cidade em 24 de junho de 1535. A divisão protestante seguia e a proliferação de pregadores independentes esfarelou o movimento. Para Lutero, os líderes políticos deveriam conter as revoltas e fazer cessar as “abominações” que se faziam em nome de Deus. A liberdade cristã era substituída, assim, pela Igreja de Estado. Para Lutero só havia importância na “liberdade espiritual”.

Grandes líderes reformistas estavam, por vezes, em lados opostos. Lutero esteve sempre contido pelo seu temor e respeito para com as autoridades, reflexo, talvez, do grande conflito interno pelo qual passou grande parte de sua vida. Fez para si muitos amigos. Avolumaram-se, contudo, seus inimigos.

A teologia dividiu a Alemanha e o mundo europeu. O Imperador do Sacro Império havia alimentado a esperança de conseguir uma conciliação, na Alemanha, entre Católicos e

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Protestantes. Esperou chegar a um acordo em 1530, em Augsburgo. Lutero estava refugiado e Melanchton o representou. Apresentou uma Confissão protestante onde 21 dos 28 artigos falavam sobre pontos comuns da fé Católica e Protestante. Combatia, o papado, e os abusos e leis humanas. Melanchton fez concessões que foram desaprovadas por Lutero. Mesmo assim, Carlos V rejeitou as Confissões. A cristandade européia seguiria dividida. Aos poucos, muitos reinos e principados buscariam livrar-se de sua subserviência à Roma. A Inglaterra, adiante de todas, transformou a Igreja num braço do Estado, sendo o rei o líder dos cristãos em seu país. Outros, contudo, permaneceram fiéis ao Papa e ao Catolicismo.

A propósito da nova teologia desenvolvida por Lutero e seus associados, e ainda por muitos outros homens que vieram a ser lideranças religiosas e políticas em seus países, nunca mais a cristandade pode experimentar, ainda que externamente, uma unidade semelhante àquela expressada nos tempos feudais. A crença no sacerdócio universal foi, portanto, o meio que a Reforma encontrou para expandir-se e conquistar muitos corações e mentes ávidas por liberdade. A multiplicidade de conceitos teológicos cristãos advindos da liberação do pensamento resultou numa verdadeira renovação do cristianismo como um todo. Num mundo mutante a religião não poderia permanecer estagnada. A união, contudo, permanece como desafio ante o enraizamento do individualismo estabelecido em todas as sociedades modernas.

Num mundo de expansões territoriais, comerciais, culturais, científicas, etc., a religião cristã teve seu viés na doutrina do sacerdócio universal. Lutero foi expressão religiosa das mudanças que toda a sociedade européia vivia. Sobre os escombros do mundo feudal, ergueram-se novos pilares e uma nova sociedade foi preparada pelo espírito inquieto do ser humano. Lutero não era um herói. Era apenas um homem em

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expansão, de idéias em expansão, vivente num mundo exterior que o afligia e o condenava. No seu interior, somos levados a crer que pretendeu apenas sua salvação. Mas foi o arquiteto de uma obra muito maior que ele mesmo.

Afirma Delumeau (1989, p.113) que no enterro de Lutero (1546), Melanchton citou com um paradoxal a-propósito uma sentença de Erasmo: “Deus deu ao mundo um rude médico.” REFERÊNCIAS CAIRNS, Earle E.. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. Tradução de Israel Belo de Azevedo. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1995. 508p. DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da reforma. Tradução de João Pedro Mendes. São Paulo: Pioneira, 1989. 384p. (Série Nova Clio; 30). RANDELL, Keith. Lutero e a reforma alemã. São Paulo: Ática, 1995.112p. (Série Princípios; 248) SIMON, Edith. Reforma. Tradução de Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio, 1971. (Biblioteca de História Universal LIFE)

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