a psicanálise face ao hedonismo contemporâneo

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(A psicanálise face ao hedonismo contemporâneo, Isabel Fortes) O Hedonismo Contemporâneo Hedonismo: busca excessiva pelo prazer como modo de vida. Observa-se na atualidade uma negação do sofrimento acompanhada da busca incessante de felicidade. A regra vigente é não sofrer, rejeitar qualquer espécie de dor, e a proposta que reina soberana é a de "pensar positivo", ou seja, ter a felicidade como o horizonte de todos os acontecimentos da vida. Hoje, aquele que não consegue ser feliz é visto como uma pessoa fraca e merecedora de culpa. Nos nossos dias "toda tristeza é vergonhosa, injustificada, e daqui por diante patológica". No entanto, a negação da dor não leva a que exista de fato menos dor. Uma das marcas do nosso tempo é o desamparo. Vivemos em uma era de incertezas que mudou a relação do sujeito com as garantias quanto ao seu futuro. Isso conduz à sensação de vazio e de desproteção, à descrença na política, à fragilidade dos laços sociais e ao enfraquecimento da figura da alteridade nas nossas vidas. Reconhecer a dor é permitir que não sejamos completamente tragados pela sociedade individualista do consumo. Identificar o caráter selvagem da natureza e nos reconhecermos como seres naturais é olharmos para nós mesmos, na tentativa de nos observarmos livres de todas as máscaras sociais. A mensagem que nos passam é que a felicidade é um bem a ser adquirido nas prateleiras dos supermercados. E dessa forma, acabamos comprando o que não precisamos, com o dinheiro que não temos. Nesta lógica, mesmo outro ser humano pode tornar-se objeto de consumo, servindo assim como mero instrumento para o prazer egoísta do sujeito. Como um objeto de consumo qualquer, o outro da relação pode ser também rapidamente descartável. Há, assim, uma relação predatória do outro, que só existe de forma "útil", na medida em que é fonte de prazer para o eu.

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(A psicanálise face ao hedonismo contemporâneo, Isabel Fortes)

O Hedonismo Contemporâneo

Hedonismo: busca excessiva pelo prazer como modo de vida.

Observa-se na atualidade uma negação do sofrimento acompanhada da busca incessante

de felicidade.

A regra vigente é não sofrer, rejeitar qualquer espécie de dor, e a proposta que reina

soberana é a de "pensar positivo", ou seja, ter a felicidade como o horizonte de todos os

acontecimentos da vida.

Hoje, aquele que não consegue ser feliz é visto como uma pessoa fraca e merecedora de

culpa. Nos nossos dias "toda tristeza é vergonhosa, injustificada, e daqui por diante

patológica".

No entanto, a negação da dor não leva a que exista de fato menos dor.

Uma das marcas do nosso tempo é o desamparo. Vivemos em uma era de incertezas que

mudou a relação do sujeito com as garantias quanto ao seu futuro. Isso conduz à

sensação de vazio e de desproteção, à descrença na política, à fragilidade dos laços

sociais e ao enfraquecimento da figura da alteridade nas nossas vidas.

Reconhecer a dor é permitir que não sejamos completamente tragados pela sociedade

individualista do consumo. Identificar o caráter selvagem da natureza e nos reconhecermos

como seres naturais é olharmos para nós mesmos, na tentativa de nos observarmos livres

de todas as máscaras sociais.

A mensagem que nos passam é que a felicidade é um bem a ser adquirido nas prateleiras

dos supermercados. E dessa forma, acabamos comprando o que não precisamos, com o

dinheiro que não temos.

Nesta lógica, mesmo outro ser humano pode tornar-se objeto de consumo, servindo assim

como mero instrumento para o prazer egoísta do sujeito.

Como um objeto de consumo qualquer, o outro da relação pode ser também rapidamente

descartável. Há, assim, uma relação predatória do outro, que só existe de forma "útil", na

medida em que é fonte de prazer para o eu.

A instabilidade do futuro leva à perda do sentimento de continuidade da história, do

sentimento de pertencimento à uma sucessão de gerações.

E se não há futuro, para que adiar a satisfação? Se não há amanhã, o prazer é a palavra

de ordem.

O fortalecimento do individualismo é hoje o grande adversário da cidadania, na medida em

que os interesses se voltam para os cuidados da vida privada, tendo os sujeitos perdido a

capacidade de compartilhar coletivamente seus temores frente aos riscos da própria

existência.

O espaço público tornou-se, portanto, palco para a promoção do espetáculo que visa a dar

vazão ao exibicionismo e à necessidade de exteriorização do eu.