a prÁtica da vaquejada À luz do princÍpio da …

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http://dx.doi.org/10.35265/2236-6717-204-9084 FORTALEZA-CE. EDIÇÃO 204. V.9. ANO 2021. A PRÁTICA DA VAQUEJADA À LUZ DO PRINCÍPIO DA UNIVERSALIDADE [ver artigo online] Kalinca Gonçalves Leite 1 RESUMO Com o presente trabalho, busca-se analisar a prática da Vaquejada à luz do Princípio da Universalidade, no sentido de analisar a conflituosidade entre a universalidade e o multiculturalismo. Com efeito, a liberdade e a dignidade da pessoa humana conduzem a sua universalidade, entendida no sentido de existência de um núcleo mínimo de proteção à dignidade, que deve estar presente em qualquer sociedade, independentemente de suas características sociais. Não importa a sociedade, cultura, etnia. Essa característica é muito polêmica e costuma ser criticada por parte da doutrina. Alguns dizem ser uma tentativa de imposição da cultura ocidental, pois nós somos os responsáveis por apontar quais direitos seriam fundamentais. Há um conflito, portanto, entre a universalidade e multiculturalismo. Partindo disto, o presente estudo busca descrever o que estabelece a doutrina, legislação e jurisprudência sobre a vaquejada, além de tecer considerações sócio-histórico-econômico-culturais sobre ela. Palavras-chave: vaquejada, universalidade, multiculturalismo, direitos fundamentais. THE PRACTICE OF VAQUEJADA IN THE LIGHT OF THE PRINCIPLE OF UNIVERSALITY ABSTRACT With this work, we seek to analyze the practice of Vaquejada in the light of the Principle of Universality, in the sense of analyzing the conflict between universality and multiculturalism. Indeed, the freedom and dignity of the human person leads to its universality, understood in the sense of the existence of a minimum nucleus for the protection of dignity, which must be present in any society, regardless of its social characteristics. It doesn't matter society, culture, ethnicity. This characteristic is very controversial and is often criticized by the doctrine. Some say it is an attempt to impose Western culture, as we are responsible for pointing out which rights would be fundamental. There is a conflict, therefore, between universality and multiculturalism. Based on this, the present study seeks to describe what establishes the doctrine, legislation and jurisprudence on vaquejada, in addition to making socio-historical-economic- cultural considerations about it. Keywords: vaquejada, universality, multiculturalism, fundamental rights. 1 Assistente Administrativo na Universidade Federal do Rio Grande, Mestre em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande. E-mail: [email protected]. ORCID https://orcid.org/0000-0001-5858-2187.

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http://dx.doi.org/10.35265/2236-6717-204-9084

FORTALEZA-CE. EDIÇÃO 204. V.9. ANO 2021.

A PRÁTICA DA VAQUEJADA À LUZ DO PRINCÍPIO

DA UNIVERSALIDADE [ver artigo online]

Kalinca Gonçalves Leite1

RESUMO

Com o presente trabalho, busca-se analisar a prática da Vaquejada à luz do Princípio da Universalidade,

no sentido de analisar a conflituosidade entre a universalidade e o multiculturalismo. Com efeito, a

liberdade e a dignidade da pessoa humana conduzem a sua universalidade, entendida no sentido de

existência de um núcleo mínimo de proteção à dignidade, que deve estar presente em qualquer

sociedade, independentemente de suas características sociais. Não importa a sociedade, cultura, etnia.

Essa característica é muito polêmica e costuma ser criticada por parte da doutrina. Alguns dizem ser

uma tentativa de imposição da cultura ocidental, pois nós somos os responsáveis por apontar quais

direitos seriam fundamentais. Há um conflito, portanto, entre a universalidade e multiculturalismo.

Partindo disto, o presente estudo busca descrever o que estabelece a doutrina, legislação e jurisprudência

sobre a vaquejada, além de tecer considerações sócio-histórico-econômico-culturais sobre ela.

Palavras-chave: vaquejada, universalidade, multiculturalismo, direitos fundamentais.

THE PRACTICE OF VAQUEJADA IN THE LIGHT OF THE

PRINCIPLE OF UNIVERSALITY

ABSTRACT

With this work, we seek to analyze the practice of Vaquejada in the light of the Principle of Universality,

in the sense of analyzing the conflict between universality and multiculturalism. Indeed, the freedom

and dignity of the human person leads to its universality, understood in the sense of the existence of a

minimum nucleus for the protection of dignity, which must be present in any society, regardless of its

social characteristics. It doesn't matter society, culture, ethnicity. This characteristic is very controversial

and is often criticized by the doctrine. Some say it is an attempt to impose Western culture, as we are

responsible for pointing out which rights would be fundamental. There is a conflict, therefore, between

universality and multiculturalism. Based on this, the present study seeks to describe what establishes the

doctrine, legislation and jurisprudence on vaquejada, in addition to making socio-historical-economic-

cultural considerations about it.

Keywords: vaquejada, universality, multiculturalism, fundamental rights.

1 Assistente Administrativo na Universidade Federal do Rio Grande, Mestre em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio

Grande. E-mail: [email protected]. ORCID https://orcid.org/0000-0001-5858-2187.

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A PRÁTICA DA VAQUEJADA À LUZ DO PRINCÍPIO DA UNIVERSALIDADE

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INTRODUÇÃO

A vaquejada é uma prática cultural comum nos Estados do nordeste do Brasil, em espe-

cial no Ceará, no Rio Grande do Norte, na Paraíba, em Alagoas e na Bahia.

Na vaquejada, dois vaqueiros, cada um montado em seu cavalo, perseguem o boi na arena e,

após emparelhá-lo com os cavalos, tentam conduzi-lo até uma região delimitada, onde deverão

derrubar o boi puxando-o pelo rabo. Tal prática, muitas das vezes, leva-o ao desenluvamento –

nome técnico dado ao arrancamento do rabo pela retirada violenta da pele e tecidos da cauda.

Há quem defenda à prática da vaquejada como exercício de ato cultural. Há quem en-

tenda que tal prática revela somente maus tratos aos animais. Diante dessa divergência de opi-

niões, foi proposta a ADI n. 4.983, cujo objeto é a Lei n. 15.299/2013, a qual regulamenta a

prática da vaquejada como atividade desportiva e cultural no Estado do Ceará. Nesse ínterim,

foi promulgada a EC 96/2017, que acrescentou o §7º ao mesmo dispositivo da CF, considerando

não cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações cultu-

rais, as quais deverão ser regulamentadas por lei específica que deverá assegurar o bem-estar

dos animais envolvidos.

Em reflexo, houve a proposição das ADIs n. 5728 e 5772, cujo objeto de ambas é a EC

96/2017. Ainda, foi sancionada a Lei n. 13.364, a qual, dentre outras providências, elevou a

vaquejada à condição de manifestação cultural nacional e de patrimônio cultural imaterial. Ade-

mais, foi promulgada a lei n. 13.873/2019, a qual, dentre outros objetivos, reforçou que o Ro-

deio, a Vaquejada e o Laço são manifestações culturais nacionais e suas atividades são bens de

natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro.

Diante deste contexto, pode-se inferir a existência de uma dissonância no ordenamento

jurídico quanto à proibição ou não da prática, o que acarretou numa contradição dentro da pró-

pria Constituição Federal, dado que o mesmo dispositivo permite e proíbe a prática.

Ademais, assim como a briga de galo, sabe-se que a prática desportiva da vaquejada é

extremamente lucrativa. Aliás, tudo aponta que escolheram os animais para ganharem dinheiro

e se divertirem.

É nesse contexto que surge a relevância do presente trabalho, o qual buscará delinear,

desde a conceituação do princípio da universalidade, passando pela multiculturalidade, a lei da

vaquejada à luz do princípio da universalidade do multiculturalismo.

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1. UNIVERSALIDADE X MULTICULTURALISMO

A vinculação dos direitos fundamentais, a liberdade e a dignidade da pessoa humana

conduzem a sua universalidade, entendida no sentido de existência de um núcleo mínimo de

proteção à dignidade, que deve estar presente em qualquer sociedade, independentemente de

suas características sociais. Não importa a sociedade, cultura, etnia. Essa característica é muito

polêmica e costuma ser criticada por parte da doutrina. Alguns dizem ser uma tentativa de

imposição da cultura ocidental, pois nós somos os responsáveis por apontar quais direitos

seriam fundamentais. Há um conflito, portanto, entre a universalidade e multiculturalismo. Até

que ponto devem ser respeitadas as características culturais de um grupo? Qual é o limite de

intervenção?

1.1 O princípio da universalidade

Os direitos humanos podem ser entendidos como um conjunto de valores consagrados

em instrumentos jurídicos internacionais ou nacionais destinados a fazer respeitar e concretizar

as condições de vida que possibilitem a todo ser humano manter e desenvolver suas qualidades

peculiares de inteligência, dignidade e consciência, e permitir a satisfação de suas necessidades

materiais e espirituais.

Os direitos fundamentais são universais porque inerentes à condição humana. Três

fatores devem ser levados em conta para a aceitação de valores universais: a participação em

sua definição, a reconfiguração e atualização e a adesão/rejeição plenamente consciente.

Somente assim se obtém um conceito condizente com uma perspectiva multicultural.

Os direitos fundamentais devem zelar pelo respeito às entidades e diferenças, por razão

disso, é preciso evitar que o caráter universal dos direitos fundamentais sirva como vetor de

massificação e opressão, contra o reoconhecimento de grupos minoritários.

A universalidade tem um caráter abstrato que corre o risco de conter uma perspectiva

presunçosa e impotente, como se houvesse certos direitos absolutos. Porém, precavidos desse

risco, os direitos fundamentais podem trazer uma perspectiva emancipatória e igualitária, não

necessariamente presa a padrões fixos, mas que lhes permita ser reconfigurados conforme o

contexto cultural.

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Além disso, a universalidade é expressamente reconhecida como característica dos

direitos fundamentais pela Declaração de Viena, adotada por ocasião da Conferência Mundial

dos Direitos Humanos (ONU) de 1993.

Com efeito, tendo em vista que os direitos fundamentais vinculam-se ao princípio da

liberdade, conduzido pela dignidade da pessoa humanam os mesmos devem possuir como

sujeito ativo todos os indivíduos, independente da raça, credo, nacionalidade, convicção

política, a coletividade jurídica em geral, podendo pleiteá-los em qualquer foro nacional ou

internacional.

Conforme ressaltado por Manoel Gonçalves Fereira Filho (1999),

A ideia de se estabelecer por escrito um rol de direitos que seriam superiores ao

próprio poder que os conedeu e reconheceu, não é nova. Os forais, as cartas de

franquia, continham enumeração de direitos com esse caráter já na idade média.

Vale a pena esclarecer que nem todos os direitos fundamentais adequam-se permanente

a estas caracterísitcas, o que pode nos ser lembrado por Gilmar Mendes (2008, p. 240)

Não é imprórpio afirmar que todas as pessoas são titulares de direitos fundamentais e

que a qualidade do ser humano constitui condição suficiente para a titularidade de

tantos desses direitos. Alguns direitos fundamentais específicos, porém, não se ligam

a toda e qualquer pessoa. Na lista brasileira dos direitos fundamentais, há direitos de

todos os homens – como o direito à vida – mas há também posições que não

interessam a todos os indivíduos, referindo-se apenas a alguns – aos trabalhadores,

por exemplo.

1.2 A conflituosidade entre a universalidade e o multiculturalismo

A Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão de 1789 traz uma vocação de uni-

versalidade. De fato, os direitos humanos são para todos os cidadãos e por isso se fala na ideia

de intercionalização, na qual direitos de agenda doméstica passam a dominar a agenda interna-

cional.

A história dos direitos humanos é recente, com não mais de quatrocentos anos, o que

nos induz a uma afirmação sobre os direitos humanos: são uma formulação da cultura ocidental,

eurocêntrica.

Dessa forma, os direitos humanos são apresentados com a concepção individualista de

sociedade, característica da cultura ocidental, em que se pode falar de individualismo religioso,

político, moral, jurídico etc. Em culturas dominadas pelo caráter grupal, com preponderância à

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comunidade, a tribo, ao Estado, não seria possível o desenvolvimento de direitos considerados

inerentes às pessoas, que podem ser opostos a coletividade (FERNANDEZ GARCIA, 1998).

Essa perspectiva ocidental de direitos independente de deveres não se aplica a comuni-

dades em que direitos devem ser conquistados e são resultados de obrigações, como é o caso

do povo hindu (PANDEYA, 1985, p. 299).

Sendo assim, como se falar em direitos universais? Os direitos humanos são universais

sob qual ponto de vista? Claro que do ponto de vista ocidental. Mas como impor o ponto de

vista ocidental a outras culturas? Quem deu à cultura ocidental procuração para estabelecer

direitos em nome da humanidade?

No multiculturalismo existe a convivência em um país, região ou local de diferentes

culturas ou tradições. Há uma mescla de culturas, de visões de vida e de valores. O multicultu-

ralismo é pluralista, pois aceita diversos pensamentos sobre um mesmo tema, abolindo o pen-

samento único. Há o diálogo entre culturas diversas para a convivência pacífica e com resulta-

dos positivos a ambas.

Mas o multiculturalismo pode ser abordado de forma relativista e de forma universalista.

A abordagem relativista ocorre quando não se estabelecem critérios mínimos para o diálogo

entre culturas, ou seja, quando tudo é aceito, tudo é correto. Nessa concepção do multicultura-

lismo, não se pode falar em direitos humanos universais – e só aqui há que se falar em uma

conflituosidade entre a universalidade e o multiculturalismo.

O multiculturalismo também pode ser universalista, ou seja, permitir a propagação e

convívio de diferentes ideias, desde que seja estabelecido um denominador mínimo, comum

entre as partes para o início do diálogo (valores universais). Esse mínimo a ser respeitado são

os direitos humanos.

No multiculturalismo universalista, pode-se defender o caráter geral da declaração Uni-

versal de Direitos Humanos (para todos, em qualquer nação, a qualquer tempo). Esta seria a

base para o convívio entre os povos.

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Assim, a defesa dos direitos humanos universais é compatível com o pluralismo e com

o multiculturalismo universalista, mas é totalmente inviável em um ambiente de multicultura-

lismo relativista.

2. A PRÁTICA DA VAQUEJADA

A vaquejada é uma prática cultural comum nos Estados do nordeste do Brasil, em

especial no Ceará, no Rio Grande do Norte, na Paraíba, em Alagoas e na Bahia.

Na vaquejada, dois vaqueiros, cada um montado em seu cavalo, perseguem o boi na arena e,

após emparelhá-lo com os cavalos, tentam conduzi-lo até uma região delimitada, onde deverão

derrubar o boi puxando-o pelo rabo. Tal prática, muitas das vezes, leva-o ao desenluvamento –

nome técnico dado ao arrancamento do rabo pela retirada violenta da pele e tecidos da cauda

2.1 A vaquejada

A origem da vaquejada nos remonta ao sertão nordestino, por volta dos séculos XVII e

XVIII (CASCUDO, 1976), quando o gado era criado, marcado e solto na mata, ou seja, sua

origem encontra-se ligada às festas de apartação. Bezerra bem explica:

Na verdade, tudo começou aqui pelo Nordeste com o Ciclo dos Currais. É onde entram

as apartações. Os campos de criar não eram cercados. O gado, criado em vastos

campos abertos, distanciava-se em busca de alimentação mais abundante nos fundos

dos pastos (BEZERRA, 1978, p. 7).

Passados alguns meses, geralmente no mês de junho, época em que finda o período

chuvoso, os coronéis contratavam peões para entrar na mata e buscar o gado marcado, para

fazer a separação do gado. É o que Bezerra explica:

Para juntar gado disperso pelas serras, caatingas e tabuleiros, foi que surgiu a

apartação. Escolhia-se antecipadamente uma determinada fazenda e, no dia marcado

para o início da apartação, numerosos fazendeiros e vaqueiros devidamente

encourados partiam para o campo, guiados pelo fazendeiro anfitrião, divididos em

grupos espalhados em todas as direções à procura da gadaria (BEZERRA, 1978, p.

7).

Isso permite entender que era algo bem elaborado, com estratégias bem definidas para

garantir o sucesso da empreitada:

O gado encontrado era cercado em uma malhada ou rodeador, lugar mais ou menos

aberto, comumente sombreado por algumas árvores, onde as reses costumavam

proteger-se do sol, e nesse caso o grupo de vaqueiros se dividia. Habitualmente ficava

um vaqueiro aboiador para dar o sinal do local aos companheiros ausentes. Um certo

número de vaqueiros ficava dando o cerco, enquanto os outros continuavam a

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campear. Ao fim da tarde, cada grupo encaminhava o gado através de um vaquejador,

estrada ou caminho aberto por onde conduzir o gado para os currais da fazenda. O

gado era tangido na base do traquejo, como era chamada a prática ou jeito de conduzi-

lo para os currais (BEZERRA, 1978, p. 7-8).

Ademais, o objetivo era a manutenção do gado do fazendeiro, a exemplo do

beneficiamento, castração, ferra, tratamento das eventuais feridas, dentre outros.

Dentro deste contexto surge a figura do vaqueiro, tido como herói, pois enfrentava a

mata fechada na procura dos bovinos, fazendo verdadeiras acrobacias com seus equinos para

escaparem das eventuais lesões causadas pela mata cerrada, a exemplo das arranhaduras de

espinhos e pontas de galhos secos (OLIVEIRA, 2016).

Por conseguinte, sua raiz encontra-se diretamente ligada à procura dos animais na

caatinga nordestina para a reagrupação do rebanho. Andrade explica: “[…] o animal bravio

selvagem, o ‘barbatão’ que logo ganhava fama, atraindo os vaqueiros mais em sua perseguição.

Para a sua captura convocavam-se vaqueiros das várias ribeiras que em verdadeira festa iam

perseguir o animal bravio” (ANDRADE, 1986, p. 122).

Mais do que o festejo “mais tradicional do ciclo do gado nordestino” (CASCUDO, 1976,

p. 783), a vaquejada consiste em uma forma de viver de uma comunidade específica. Aires e

Assunção asseveram:

Há estilos de ser e de viver que se conectam à sociedade, bem como há

particularidades que são executadas cotidianamente em seus eventos. Na vaquejada

promove-se estilos de vida que se configuram pela maneira como atuam e representam

o mundo no evento, a saber: o tipo de vestimenta, o cavalo, as brincadeiras e as festas

(AIRES; ASSUNÇÃO, 2018, p. 6).

Então, verifica-se que as vestimentas também são partes importantes para a figura do

vaqueiro, pois se diferem das roupas comuns. Aires e Assunção explicam:

As vestimentas nas vaquejadas são compostas de acessórios que diferem desta

paisagística comum, embora seja comum às pessoas usarem bonés, calças jeans e

camisetas em seu cotidiano. As botas de couro, as perneiras, os chicotes dos vaqueiros

e dos patrões são instrumentos que demarcam referências para dizer quem é quem na

vaquejada (AIRES; ASSUNÇÃO, 2018, p. 6).

Em verdade, a gênese da vestimenta encontra-se ligada à gênese da prática. O traje era

uma forma de proteger-se das espécies espinhentas da caatinga (FELIX; ALENCAR, 2011).

Além disso, há ainda o aspecto da performance. O ato performático, nas palavras de

Paul Zumthor (2010, p. 166), “[…] implica competência. Além de um saber-fazer e de um saber

dizer, a performance manifesta um saber no espaço e tempo […] que é emanada no corpo”.

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Para Aires e Assunção (2018), esse é o ato pelo qual fazem o próprio marketing, usando de

quaisquer meios disponíveis, a exemplo: a tradição familiar, na qual demonstram a continuidade

de campeões que sua família pode oferecer, a posição social, na qual o locutor do evento realça

sua participação em determinado grupo empresarial, e a derrubada do boi, apresentando uma

habilidade diferencial ao derrubar o boi.

A performance é tão importante, que caso o vaqueiro não faça um show apropriado, a

plateia e os patrões começam a vaiar, como formar de demonstrar a falta de confiança e

insatisfação em relação ao competidor (AIRES; ASSUNÇÃO, 2018).

Não obstante, os cowboys dessa comunidade conseguem, através da vaquejada,

demonstrar que são verdadeiramente machos. O objetivo disto é demonstrar não somente ao

patrão, como ao público em geral, inclusive as mulheres, que o vaqueiro é mais apto, tenaz que

os demais (AIRES; ASSUNÇÃO, 2018, p. 9)

Portanto, vê-se a vaquejada como uma festa organizada pela população rural, de forma

a contribuir economicamente para a comunidade, formando uma tradição cultural. Giddens

(2000) assevera que as tradições consistem na repetição de rituais, os quais evoluem ao longo

do tempo. Isto é o que ocorre com a vaquejada, ano após anos a prática vem sendo reiterada e

torna-se parte da identidade daquele povo. Cascudo assim descreveu:

Os touros e novilhos se agitavam inquietos e famintos, tangiam, com grandes brados,

um animal para fora da porteira. Arrancava este como um foguetão. Um par de

vaqueiros corria lado a lado. Um seria o ‘esteira’ para manter o bicho numa

determinada direção. O outro derrubaria. Ao pôr-do-sol acabava-se (CASCUDO,

1976, p. 34)

Já por volta da metade do século XX, alguns destes vaqueiros iniciaram a exposição de

suas habilidades ao público, através da Corrida do Mourão, em Rio Grande do Norte

(OLIVEIRA, 2016). Com a repercussão desse “grande espetáculo”, a organização destes

eventos passou a ser organizada pelos senhores de engenho, os quais ofereciam aos vaqueiros

apenas um agrado (OLIVEIRA, 2016), pois à época o espetáculo ainda não almejava o lucro.

Porém, como é natural do ser humano almejar o lucro, o tempo foi passando e parte dos

fazendeiros começou a transformar a prática em um verdadeiro show, na qual cobravam uma

taxa de participação, com a reversão do monte em prêmio aos vencedores, retirada a parte da

organização do evento (OLIVEIRA, 2016).

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Atualmente, a vaquejada é completamente diferente do que fora outrora. O show

consiste em uma competição, com a figura de dois vaqueiros. Um deles, denominado batedor

de esteira, irá levar o boi para o outro, denominado puxador. Quando os cowboys se aproximam

um do outro, o boi ficará emparelhado até que seja derrubado, puxando-o pelo rabo, dentro das

duas últimas faixas de cal. Ao final, a dupla, agora montada em cavalos de linhagem, que

conseguir a maior quantidade de pontos recebe o prêmio (OLIVEIRA, 2016). De forma mais

técnica, Silva Júnior define:

Os cavaleiros competem em duplas, montados seus cavalos belos e com arreios

caprichados e bem cuidados, e disputam correndo em raia de aproximadamente 50,00

m a 80,00 m de comprimento, com terreno limpo e macio, onde procuram derrubar o

garrote ou touro que parte celeremente da porteira de saída buscando escapar da

perseguição dos cavalos. A derribada do boi é feita mediante puxada pelo rabo, a ser

realizada até o limite final da pista. Ao lado da pista, acomodam-se os expectadores

sentados em camarotes e nas bancos sobrepostas, onde ficam torcendo por seus

cavaleiros favoritos (SILVA JÚNIOR, 2016).

Ademais, a festa que outrora somente acontecia no fim da época chuvosa, agora possui

um calendário bem organizado, com os eventos marcados durante todo o ano, e, às vezes, até

mais de um por local e/ou dia.

Outrossim, encontra-se dividida entre duas classificações, quais sejam: profissional e

amador. São tidos como profissionais os contratados pelos parques dos respectivos eventos ou

por algum fazendeiro de bois ou dono de haras (FELIX; ALENCAR, 2011). Em seu turno, são

amadores aqueles que praticam apenas para matar o tempo livre, ou apenas por gostar, como

bem define o próprio significado da palavra.

2.2 Vaquejada: a lei e a jurisprudência

Ao longo da evolução da sociedade humana, em geral, esta optou por regulamentar o

uso dos animais. Para Lourenço:

O principal fator que motivou o surgimento de normas especificamente voltadas à

tutela e proteção dos animais reside na percepção, pertencente tanto à comunidade

científica como ao senso comum, a respeito da analogia dos processos anatômico-

fisiológicos relacionados à manutenção da vida e do bem-estar experimental existente

entre animais e homens (LOURENÇO, 2017, p. 4).

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No Brasil, a legislação somente se direcionou aos animais pela primeira vez em 10 de

setembro de 1924, através do Decreto Federal n. 16.590, o qual vedava concessão de licenças

para corridas de touros, garraios, novilhos, brigas de galo e canários e quaisquer outras

diversões desse gênero que causassem sofrimento aos animais.

Feitas as considerações iniciais, a legislação e jurisprudência mais atuais serão

analisadas de acordo com a ordem cronológica, como se segue.

Primeiramente, registre-se a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, de 27 de

janeiro de 1978, a qual já parte da premissa de que todo animal possui direitos e que o respeito

aos animais deve ser ensinado desde a infância. Logo em seu primeiro artigo já prega que todo

animal nasce igual “diante da vida” e tem “o mesmo direito à existência” (ONU, 1978).

A declaração prossegue proibindo os maus-tratos e atos cruéis, conforme art. 3, alínea

“a”(ONU, 1978), asseverando, em seu artigo 2, que o homem não deve explorar os animais,

tendo “o dever de colocar a sua consciência a serviço dos outros animais” (ONU,

1978). Inclusive, se for necessário matar um animal, o ato deve ser imediato, “sem dor ou

angústia” (ONU, 1978).

Em seu art. 10 estipula que, em hipótese alguma, qualquer que seja o animal, o homem

poderá submetê-lo para o próprio entretenimento, pois tais atos não são compatíveis com a

dignidade do animal (ONU, 1978).

Por fim, as cenas em que haja a violência contra os animais estão proibidas em qualquer

meio audiovisual, salvo se o objetivo for expor uma afronta aos direitos dos animais, nos termos

de seu art. 13, alínea “b” (ONU, 1978).

Ora, vê-se a vaquejada como um completo desrespeito à convenção em tela, ao qual o

Brasil é signatário.

Mais adiante, a Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei de Crimes Ambientais –

LCA) considera crime a prática de maus tratos contra “animais silvestres, domésticos ou

domesticados, nativos ou exóticos”, conforme se extrai de seu art. 32 (BRASIL, 1998),

cominando a pena de “detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa” (BRASIL, 1998).

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Ademais, pelo texto da lei, nem mesmo os fins didáticos ou científicos extinguem a

tipicidade, desde que haja recursos alternativos, nos termos do §1º deste mesmo artigo

(BRASIL, 1998). Outrossim, aumenta-se a pena de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço) se o animal

vier a falecer, nos termos do §2º (BRASIL, 1998).

Vale ressaltar que a pena é muito branda e a efetividade acaba não sendo alcançada,

tendo em vista que nas penas privativas de liberdade de até 4 (quatro) anos, pode haver a

substituição pelas penas restritivas de direito, o que acaba não inibindo a prática da conduta.

Quanto aos maus tratos, o Decreto Federal n. 24.645, de 10 de julho de 1934, trazia um

rol exemplificativo de maus-tratos, a exemplo: atos de abuso ou crueldade em qualquer animal;

manutenção de animais em locais anti-higiênicos ou que impossibilite a respiração, movimento

ou descanso, ou os privem de ar ou luz, dente outras, vejamos:

“Art. 3º Consideram-se maus tratos:

I – praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal;

II – manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o

movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz;

III – obrigar animais a trabalhos excessívos ou superiores ás suas fôrças e a todo ato

que resulte em sofrimento para deles obter esforços que, razoavelmente, não se lhes

possam exigir senão com castigo;

IV – golpear, ferir ou mutilar, voluntariamente, qualquer órgão ou tecido de economia,

exceto a castração, só para animais domésticos, ou operações outras praticadas em

beneficio exclusivo do animal e as exigidas para defesa do homem, ou no interêsse da

ciência […] (BRASIL, 1934).”

Todavia, o que mais interessa é o inciso XXIX, do art. 3º, do decreto retro, o qual

delineia a realização ou promoção de “touradas e simulacro de touradas, ainda mesmo em lugar

privado” como maus-tratos (BRASIL, 1934).

Já em 3 de junho de 1997, demonstrando uma linha condizente com o ordenamento

jurídico brasileiro, o STF julgou como inconstitucional a farra do boi:

COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ESTÍMULO – RAZOABILIDADE

– PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – ANIMAIS – CRUELDADE. A

obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais,

incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da

observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que

veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento

discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’ (STF – RE: 153531

SC, Relator: FRANCISCO REZEK, j. 03/06/1997, 2ª Turma, DJe 13-03-1998 PP-

00013 EMENT VOL-01902-02 PP-00388).

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A PRÁTICA DA VAQUEJADA À LUZ DO PRINCÍPIO DA UNIVERSALIDADE

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A primeira desvirtuação ocorre com a Lei n. 10.220, de 11 de abril de 2001, a qual

estipula que os vaqueiros são atletas profissionais:

Art. 1o Considera-se atleta profissional o peão de rodeio cuja atividade consiste na

participação, mediante remuneração pactuada em contrato próprio, em provas de

destreza no dorso de animais equinos ou bovinos, em torneios patrocinados por

entidades públicas ou privadas (BRASIL, 2001).

Além disso, as entidades promotoras devem contratar um “seguro de vida e de acidentes

em favor do peão de rodeio”:

Art. 2º […]

1o É obrigatória a contratação, pelas entidades promotoras, de seguro de vida e de

acidentes em favor do peão de rodeio, compreendendo indenizações por morte ou

invalidez permanente no valor mínimo de cem mil reais, devendo este valor ser

atualizado a cada período de doze meses contados da publicação desta Lei, com base

na Taxa Referencial de Juros – TR (BRASIL, 2001).

Também estipula atualização anual do seguro, penalidades à entidade promotora que

não o fizer, especificações sobre a apólice, 8 (oito) horas diárias de jornada de trabalho,

“conforme os usos e costumes de cada região” (BRASIL, 2001). Igualmente, traz disposições

quanto ao contrato com menor entre 16 e 21 anos, o qual deverá conter o consentimento de seu

responsável legal (BRASIL, 2001).

Nesse intervalo, em 29 de junho de 2005, novamente o STF vem e declara

inconstitucional outra forma de maus tratos aos animais:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 11.366/00 DO

ESTADO DE SANTA CATARINA. ATO NORMATIVO QUE AUTORIZA E

REGULAMENTA A CRIAÇÃO E A EXPOSIÇÃO DE AVES DE RAÇA E A

REALIZAÇÃO DE ‘BRIGAS DE GALO’. A sujeição da vida animal a experiências

de crueldade não é compatível com a Constituição do Brasil. Precedentes da Corte.

Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente (STF – ADI: 2514

SC, Relator: Min. EROS GRAU, j. 29/06/2005, Tribunal Pleno, DJe 09-12-2005 PP-

00004 EMENT VOL-02217-01 PP-00163 LEXSTF v. 27, n. 324, 2005, 42-47).

Em seguida, em 14 de junho de 2007, reitera o mesmo posicionamento ao declarar

inconstitucional as rinhas:

INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 7.380/98, do Estado do Rio

Grande do Norte. Atividades esportivas com aves das raças combatentes. ‘Rinhas’ ou

‘Brigas de galo’. Regulamentação. Inadmissibilidade. Meio Ambiente. Animais.

Submissão a tratamento cruel. Ofensa ao art. 225, § 1º, VII, da CF. Ação julgada

procedente. Precedentes. É inconstitucional a lei estadual que autorize e regulamente,

sob título de práticas ou atividades esportivas com aves de raças ditas combatentes, as

chamadas ‘rinhas’ ou ‘brigas de galo’ (STF – ADI: 3776 RN, Relator: CEZAR

PELUSO, j. 14/06/2007, Tribunal Pleno, DJe DIVULG 28-06-2007 PUBLIC 29-06-

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2007 DJ 29-06-2007 PP-00022 EMENT VOL-02282-04 PP-00716 LEXSTF v. 29, n.

343, 2007, p. 104-109 RT v. 96, n. 865, 2007, p. 118-121).

Notadamente, a Corte tem entendido que tais práticas são incompatíveis com o ideal

adotado pelo ordenamento jurídico. É a mesma linha de pensamento de Steinmetz (2009),

segundo o qual os maus tratos estão para os animais como a tortura está para os seres humanos,

salientando que esta não pode ser ponderada e afastada por outro princípio. Em suma, o objetivo

é garantir o bem-estar animal, entendido como:

[…] a garantia de atendimento às necessidades físicas, mentais e naturais do animal,

a isenção de lesões, doenças, fome, sede, desconforto, dor, medo e estresse, a

possibilidade de expressar seu comportamento natural, bem como a promoção e

preservação da sua saúde […] (BRASIL, 2007).

Dentro deste contexto, encontra-se em fase de aprovação o Projeto de Lei n. 215 de

2007, o qual iria instituir o Código Federal de Bem-Estar Animal, de iniciativa do Deputado

Federal Ricardo Tripoli. É nesse mesmo sentido que tramita o Projeto de Lei n. 3.676 de 2012,

de iniciativa do ex-Ministro Eliseu Padilha, apensado ao projeto de lei retro, cominando penas

e estipulando que:

Art. 4º. O valor de cada ser deve ser reconhecido pelo Estado como reflexo da ética,

do respeito e da moral universal, da responsabilidade, do comprometimento e da

valorização da dignidade e diversidade da vida, contribuindo para livra-los de ações

violentas e cruéis (BRASIL, 2012).

Em continuação, o Deputado Federal deu iniciativa ao Projeto de Lei n. 6.799 de 2013,

aguardando apreciação pelo Senado Federal, o qual dispõe que:

Art. 3º – Os animais domésticos e silvestres possuem natureza jurídica sui generis,

sendo sujeitos de direitos despersonificados, dos quais podem gozar e obter a tutela

jurisdicional em caso de violação, sendo vedado o seu tratamento como coisa

(BRASIL, 2013).

Novamente em âmbito internacional, o Código Civil francês, em 1º de janeiro de 2013,

incluiu o art. 515-14 com a seguinte redação: “Os animais são seres vivos dotados de

sensibilidade. Sob a reserva das leis que os protegem, os animais estão submetidos ao regime

de bens” (FRANÇA, 2013). Entretanto, o que se vê à frente é um verdadeiro retrocesso

legislativo.

O movimento retrógrado ganha força em 8 de janeiro de 2013, com a Lei n. 15.299 de

8 de janeiro de 2013, a qual regulamentou a vaquejada como “atividade desportiva e cultural

do Estado do Ceará” (CEARÁ, 2013). Outrossim, conceituou a vaquejada como uma

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competição na qual “uma dupla de vaqueiro a cavalo persegue o animal bovino, objetivando

dominá-lo” (grifei). Os critérios de avaliação são a destreza e perícia, in verbis:

Art. 2º. Para efeitos desta Lei, considera-se vaquejada todo evento de natureza

competitiva, no qual uma dupla de vaqueiro a cavalo persegue animal bovino,

objetivando dominá-lo.

1º Os competidores são julgados na competição pela destreza e perícia, denominados

vaqueiros ou peões de vaquejada, no dominar animal […] (CEARÁ, 2013).

Dentre suas medidas, estabelece que os apetrechos necessários à prática do esporte

devem ser adequados para não prejudicar a saúde dos animais, excluindo, ainda, o vaqueiro que

ferir o animal de maneira injustificada e intencional. Já quanto ao local, ela estabelece os

seguintes requisitos: a) dimensões e formatos apropriados à segurança de todos os envolvidos;

b) isolamento da pista por alambrado (não farpado) e; c) sinalização indicando o local adequado

para o público acomodar-se.

Ainda dentro da ótica desta lei, a vaquejada qualificar-se-á em amadora e profissional,

através da inscrição patrocinada dos vaqueiros. Continuando, estabelece que os organizadores

do evento deverão adotaras medidas necessárias para proteger a saúde e integridade física de

todos os envolvidos. Inclusive, é obrigatória a presença de uma equipe de paramédicos de

plantão durante a realização das provas, mas nada diz sobre veterinários de plantão.

Em reflexo, em 17 de junho de 2013, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com a

Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.983, cujo objeto é a Lei n. 15.299/13. Aliás, seu

julgamento ocorreu em 6 de outubro de 2016. No acórdão, o relator Min. Marco Aurélio

ressaltou os precedentes supracitados, aduzindo que no Supremo Tribunal Federal (2016) vem

“predominando o entendimento a favor de afastar as práticas de tratamento inadequado a

animais, mesmo dentro de contexto culturais e esportivos”.

Ocorre que, mesmo tendo em vista os precedentes do tribunal, houve divergência entre

os votos, estando no palco o direito à manifestação cultural contra a o direito à proteção ao meio

ambiente. Em suma, 5 (cinco) votos foram favoráveis à vaquejada e 6 (seis) votos foram contra.

Segue a ementa:

VAQUEJADA – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ANIMAIS – CRUELDADE

MANIFESTA – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA –

INCONSTITUCIONALIDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno

exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das

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manifestações, não prescinde da observância do disposto no inciso VII do artigo 225

da Carta Federal, o qual veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade.

Discrepa da norma constitucional a denominada vaquejada (ADI 153531,

Relator(a): Min. FRANCISCO REZEK, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO

AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 03/06/1997, DJ 13-03-1998 PP-00013

EMENT VOL-01902-02 PP-00388).

Em seu voto, o Relator Ministro Marco Aurélio conclui que:

[…] a crueldade intrínseca à vaquejada não permite a prevalência do valor cultural

como resultado desejado pelo sistema de direitos fundamentais da Carta de 1988. O

sentido da expressão “crueldade” constante da parte final do inciso VII do § 1º do

artigo 225 do Diploma Maior alcança, sem sombra de dúvida, a tortura e os maus-

tratos infringidos aos bovinos durante a prática impugnada, revelando-se intolerável,

a mais não poder, a conduta humana autorizada pela norma estadual atacada. No

âmbito de composição dos interesses fundamentais envolvidos neste processo, há de

sobressair a pretensão de proteção ao meio ambiente. (ADI 153531, Relator(a): Min.

FRANCISCO REZEK, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Segunda

Turma, julgado em 03/06/1997, DJ 13-03-1998 PP-00013 EMENT VOL-01902-02

PP-00388).

Contudo, mesmo diante da reiteração do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal

Federal, o Congresso Nacional aprovou a Lei n. 13.364, de 29 de novembro de 2016, a qual

“eleva o Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-

culturais, à condição de manifestações da cultura nacional e de patrimônio cultural imaterial”

(BRASIL, 2016).

A lei, como reflexo dos princípios basilares do nosso Estado Democrático de Direito

não deveria ir contra os direitos dos animais, reconhecidos até universalmente.

3. VAQUEJADA: O DIREITO DOS ANIMAIS E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A Constituição, se não chegou a atribuir direitos aos animais, pelo menos impôs ao

Estado e à sociedade o dever de não praticar atos cruéis contra eles. Nessa linha de ideias, a

visão civilista que reputa aos animais a concepção de meros objetos do direito de propriedade

já está ultrapassada.

3.1 Entre a cultura e a crueldade

Como apontado, a vaquejada não é mais o que fora outrora. De prática necessária à

manutenção do gado, passou a um espetáculo cujo escopo é a exaltação do falso-herói vaqueiro,

desprezando o sofrimento do bovino.

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Hodiernamente, a vaquejada é vista como um grande empreendimento. O pesquisador

Cascudo (1976) aponta que a vaquejada deixou de ser uma prática cultural, para ser um

verdadeiro esporte da aristocracia rural, uma “festa pública, nas cidades com publicidade e alto-

falante, fotografias e aplausos citadinos” (CASCUDO, 1976, p. 29).

Ademais, segundo qualquer site especializado em vaquejadas, a exemplo do Portal

Vaquejada (c2014), a vaquejada é um evento milionário, atraindo grandes empresários. Assim,

levando em consideração o montante movimentado por ano, ou mesmo por evento, é inegável

a quantidade inumerável de pessoas que sobrevivem deste esporte. A parte mais absurda é ver

esses mesmos sujeitos ganhando dinheiro à custa do sofrimento alheio.

Portanto, de tradição só resta a atrocidade cometida contra o gado, qual seja: puxá-lo

pelo rabo para que caia no chão. Conforme Figueireiro e Gordilho (2016, p. 6), “os animais são

açoitados e violentados físico-psicologicamente, objetivando-se – deliberadamente – alcançar

seu desequilíbrio emocional e consequente arremesso desabalado no palco em que sofrerá a

inevitável queda”. Os autores asseveram que, embora não exposto ao público, durante o

confinamento, os bois são açoitados e insultados, levando choque e até mesmo sofrendo a

humilhação da inserção de pimenta e mostarda pelo ânus, dentre outras formas de maus tratos.

Mais uma prova da lucratividade da prática é demonstrada após a impetração da Ação

Direta de Inconstitucionalidade 4.983, pelo Ministério Público Federal (MPF) em 17 de junho

de 2013, o qual almejava a inconstitucionalidade da Lei n. 15.299/2013, quando o Governo do

Ceará salientou os proveitos econômicos que dela viriam.

É sabido que os animais possuem sensibilidade e, por isso, devem ter sua integridade

física resguardada. Mesmo com isso, Dias afirma:

Os animais usados em vaquejadas sofrem luxações e hemorragias internas, devido ao

tombo. E não é só o sertanejo que participa da derrubada do boi. Hoje em dia, já vêm

entrando em cena empresários, profissionais liberais e outras categorias profissionais,

como se essa prática fosse um esporte. Todo esse tormento que sofrem os animais é

para ganhar prêmios oriundos de rateio das inscrições pagas pelo vaqueiro (DIAS,

2000, p. 201).

Machado vai mais longe, enfatizando que tais atos devem ser punidos, inclusive em

coautoria:

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Atos praticados ainda que com caráter folclórico ou até histórico, como a ‘farra do

boi’ estão abrangidos pelo art. 32 da Lei 9.605/98, e devem ser punidos não só quem

os praticam, mas também, em co-autoria [sic.], os que os incitam, de qualquer forma.

A utilização de instrumentos nos animais, quando da realização de festas ou dos

chamados ‘rodeios’ ou ‘vaquejadas’, tipifica o crime comentado, pois concretiza

maus-tratos contra os animais (MACHADO, 2011, p. 885).

Trata-se de crueldade. A crueldade é sempre crueldade e isso independe da forma pela

qual é praticada, ou de quem é a vítima. O seu sujeito ativo poderá praticá-la de maneira sádica,

brutal, ou mesmo de forma passiva. Porém, independe disto, o sujeito ativado sempre

interpretará a situação diferente de quem a sofre. Isto quer dizer que o sujeito passivo

definitivamente irá fazer um juízo de valor completamente diferente de quem pratica. Por isso,

o próprio ato de perseguir o animal para derrubá-lo a fim de satisfazer o público já é, por si, um

ato extremamente cruel com o bovino.

Nesse ínterim, é oportuno esclarecer que a vítima não é somente o bovino, entrando

nessa posição também os cavalos utilizados pelos vaqueiros. Assim, não somente o boi poderá

sofrer uma lesão irreversível, o que acarreta no seu sacrifício, como também o cavalo está

sujeito a lesões como tendinites, miopatias focal, fratura e outras.

Não obstante, segundo o estudo publicado na Brazilian Journal of Veterinary Research

and Animal Science (2004), os equinos podem sofrer úlcera gástrica, refluxo gastresofágico e

desordens no intestino. Ademais, “a presença de gastrite quase sempre reflete um desajuste no

equilíbrio da fisiologia gástrica em decorrência de alguma inconveniência ligada às práticas de

manejo” (BUONORA, et al., 2004).

Nesse sentido, segundo uma pesquisa realizada por pós-graduados da Universidade

Federal Rural do Semi-Árido (LOPES, BATISTA, et al., 2009), as condições dos parques de

vaquejada são horríveis, e isso leva os equinos a apresentarem diversas alterações nos exames

físicos, bioquímicos e hematológicos.

Isto posto, Lourenço (2017) aponta em seu estudo que o objetivo deste esporte consiste

na submissão dos animais envolvidos a um estresse intenso, tanto em relação ao ambiente de

confinamento, quanto da angustiosa perseguição, finalizando com a brutal derrubada puxando

um de seus membros mais sensíveis.

Nesse seguimento, vale destacar o parecer da Professora Irvênia Prada:

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[…] a cauda dos animais é composta, em sua estrutura óssea, por uma sequência de

vértebras, chamadas coccígenas ou caudais, que se articulam umas com as outras.

Nesse gesto brusco de tracionar violentamente o animal pelo rabo, é muito provável

que disto resulte luxação das vértebras, ou seja, perda da condição anatômica de

contato de uma com a outra. Com essa ocorrência existe a ruptura de ligamentos e de

vasos sanguíneos, portanto, estabelecendo-se lesões traumáticas. Não deve ser rara a

desinserção (arrancamento) da cauda, de sua conexão com o tronco (LEITÃO, 2002,

p. 23).

A pesquisadora continua explicando que as lesões na cauda podem repercutir em lesões

ao longo da coluna:

Como a porção caudal da coluna vertebral representa a continuação dos outros

segmentos da coluna vertebral, particularmente da região sacral, afecções que

ocorrem primeiramente nas vértebras caudais podem repercutir mais para frente,

comprometendo inclusive a medula espinhal que se acha contida dentro do canal

vertebral. Esses processos patológicos são muito dolorosos, dada a conexão da medula

espinhal com as raízes dos nervos espinhais, por onde trafegam inclusive os estímulos

nociceptivos (causadores de dor). Volto a repetir que além de dor física, os animais

submetidos a esses procedimentos vivenciam sofrimento mental (LEITÃO, 2002, p.

23).

Todavia, engana-se quem acha que o problema está só na puxada. Dependendo do jeito

que um animal de grande porte cair ao chão, em alta velocidade, suas patas e pescoço podem

ser seriamente comprometidos, isso sem levar em consideração as feridas externas e outras

sérias lesões de ordem ortopédicas (LOURENÇO, 2017).

Em continuação, Lourenço (2017) afirma que existe uma regra de ouro para curar essa

hipermetropia existente nessa multidão que defende. Para o autor, basta trocar a figura do boi

por um humano e toda crueldade seria revelada. Ele assevera que a repugnância moral

equivalente que passará a existir após a substituição é a mesma que deve ser aplicada quando é

o animal que está sofrendo.

Voltando-se aos cavalos, também vítimas, um estudo realizado pela Universidade

Federal de Campina Grande concluiu que:

[…] nas condições da pesquisa, tendinite, tenossinovite, exostose, miopatias focal e

por esforço, fraturas, osteoartrite társica são afecções locomotoras traumáticas

prevalentes em equinos de vaquejadas; tendinite e tenossinovite são afecções

locomotoras traumáticas de maior ocorrência em equinos de vaquejadas; osteoratrite

társica primárias e secundárias, são mais ocorrentes em equinos adultos de maior

idade, explorados em vaquejadas e, conforme as evidências referenciadas; o

percentual das ocorrências de afecções locomotoras traumáticas em equinos de

vaquejada constitui-se um dano de conotação clínica relevante (OLIVEIRA, 2008, p.

51).

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Nesse diapasão, fica nítido os maus-tratos praticados contra os animais envolvidos tão

somente para o movimento deste negócio.

Além da questão da crueldade, propriamente dita, há também a questão ética,

indagando-se sobre a moralidade de divertir-se com o sofrimento alheio, o que,

inevitavelmente, leva ao questionamento do valor inserido na culturalidade da prática. A esse

passo, certo é o posicionamento de Cunha Filho:

Deste modo, as coisas do passado jamais podem ser consideradas como integrantes

do patrimônio cultural, apenas pelo critério de serem antigas; por tal razão isolada,

não adquirirem o direito serem reproduzidas como um encargo da tradição, sem que

sejam considerados os impactos que provocam nos projetos desenhados para o futuro,

previsto na Constituição Federal, esta que nos determina construir uma sociedade

livre, justa e solidária, em que se respeite a dignidade humana, dos outros seres e da

própria natureza (CUNHA FILHO, 2013).

Ao fim, a vaquejada ser ou não uma manifestação cultural, não impede seu julgamento

pelo viés ético, ou mesmo a responsabilização de quem a financia, inclusive de quem compra

os ingressos. Sua qualificação como manifestação cultural não a impede de ser caracterizada

como algo bom à sociedade, não garante sua preservação, ou mesmo a imunidade moral ou

legal.

3.2 A vaquejada à luz do princípio da universalidade

Quando se reconhece que a prática da vaquejada é uma prática cruel, está-se afirmando

que a vaquejada fere um direito fundamental, qual seja, ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado, a proteção dos animais e a vedação da crueldade.

O Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, editada pela

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), e como

tal, assumiu o compromisso de proteger os animais em seu território. Esse diplima preconiza

que:

Art. 1

Todos os animais nascem iguais perante à vida e têm os mesmos direitos à existência;

Art. 2

1. Todo animal tem o direito de ser respeitado;

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2. O homem, como espécie de animal, não pode exterminar os outros animais ou

explorá-los violando esse direito, têm o dever de por os seus conhecimentos a serviço

dos animais;

3. Todo animal tem direito à atenção, aos cuidados e a proteção do homem.

Art. 3

1. Nenhum animal será submetido nem a maustratos, nem a atos cruéis. (UNESCO,

2013).

No que tange ao ordenamento jurídico interno, os animais sejam eles silvestres, nativos,

exóticos ou domesticados, ganharam expressa proteção jurídica no artigo 225, parágrafo

primeiro, inciso VII, da Constituição Federal, que dispõe:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de

uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder

Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e

futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

[...]

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem

em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os

animais a crueldade. (BRASIL, 1988)

Nesse sentido, é inegável que se impõe ao Estado e à sociedade o dever de não praticar

atos cruéis para com os animais. Em suma, a Constituição Federal prescinde da associação entre

crueldade e sofrimento ao proibir práticas e comportamentos cruéis contra os animais. Pode-se

afirmar que tal concepção ajusta-se a concepção ecológica da dignidade humana.

Defende-se a concepção ecológica da dignidade humana, pois

Não se pode conceber a vida – com dignidade e saúde – sem um ambiente natutal

sauável e equilibrado. A vida e a saúde humana (ou como refere o caput do artigo 225

da CF/88, conjugando tais valores, a sadia qualidade de vida) só estão asseguradas no

âmbito de determinados padrões ecológicos (SARLET, 2011, p. 39)

Nesse sentido, conforme assinala Regan, a ideia de direitos humanos (e fundamentais)

ecológicos tem por objetivo,

[...] reconciliar a base filosófica dos direitos humanos com os princípios ecológicos,

conectando o valor intrínseco do ser humano com o valor intrínseco de outras espécies

e do ambiente como um todo. A partir de tal compreensão, os direitos humanos (como,

por exemplo, a dignidade humana, a liberdade, a propriedade e o desenvolvimento)

precisam corresponder ao fato de que o indivíduo não opera somente num ambiente

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social, mas também num ambiente natural. Assim como o indivíduo também deve

respeitar o valor intrínseco dos seres humanos, o indivíduo também deve respeitar o

valor intrínseco de outros seres, como animais, plantas, ecossistemas, etc., (sic)

consubstanciando a ideia de deveres ecológicos do ser humano para com as demais

manifestações existenciais (Regan, 2006 apud Fensterseifer, 2008, p. 40).

Com isso, o que se pretende afirmar é que a prática da vaquejad fere o direito a um meio

ambiente equilibrado e por mais que seja inegavelmente uma manifestação cultural, tal

manifestação viola a característica da universalidade dos direitos humanos e, sobretudo, a

perspectiva multiculturalista universalista, uma vez que extrapola padrões de conduta mínimas

que vedam a submissão de animais a crueldade.

Assim, em que pese a Emenda Constitucional 96/2017 ter acrescentado o parágrago

sétimo ao artigo 225 da CF, na tentativa de supressão legislativa da jurisprudência, ou seja,

como típico exemplo de efeito “blacklash” – reação conservadora de parcela da sociedade ou

das forças políticas diante de uma decisão liberal do Poder Judiciário em um tema polêmico - ,

a prática da vaquejada continuará sendo vista, sob o ponto de vista universalista, como uma

prática que afronta um mínimo razoável de dignidade humana, sob a perspectiva ecológica e

biocentrista.

Ademais, não há como negar que o parágrafo sétimo do artigo 225 da CF é

inconstitucional, uma vez que ofende cláusula pétral, ou seja, o núcleo inatingível da

constituição, pois, conforme explicitado, o direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado é um direito fundamental de terceira geração, que não pode ser abolido, nem

restringido, ainda que por emenda consitucional.

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A PRÁTICA DA VAQUEJADA À LUZ DO PRINCÍPIO DA UNIVERSALIDADE

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo teve como objetivo analisar a Lei da Vaquejada à luz do Princípio da

Universalidade, no sentido de analisar a conflituosidade entre a universalidade e o

multiculturalismo. Com efeito, a liberdade e a dignidade da pessoa humana conduzem a sua

universalidade, entendida no sentido de existência de um núcleo mínimo de proteção à

dignidade, que deve estar presente em qualquer sociedade, independentemente de suas

características sociais. Não importa a sociedade, cultura, etnia.

Essa característica é muito polêmica e costuma ser criticada por parte da doutrina.

Alguns dizem ser uma tentativa de imposição da cultura ocidental, pois nós somos os

responsáveis por apontar quais direitos seriam fundamentais. Há um conflito, portanto, entre a

universalidade e multiculturalismo. Partindo disto, o presente estudo buscou descrever o que

estabelece a doutrina, legislação e jurisprudência sobre a vaquejada, além de tecer

considerações sócio-histórico-econômico-culturais sobre ela.

Nesse sentido, chegou-se a concussão de que a prática da vaquejada fere o direito ao

meio ambiente equilibrado, e por mais que seja inegavelmente uma manifestação cultural, tal

manifestação viola a característica da universalidade dos direitos humanos e, sobretudo, a

perspectiva multiculturalista universalista, uma vez que extrapola padrões de conduta mínimos

que vedam a submissão de animais a crueldades.

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