a província do guairá

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a. a. de assis

A provncia do Guair(Um pouco da histria do antes de Maring)

2011 Copyleft 2011 Antonio Augusto de Assis (Autorizo cpia do todo ou de partes, desde que citem o autor e a fonte)

A gente nova do Paran precisa conhecer a histria desta terra. Bento Munhoz da Rocha Neto

Toda histria feita de muitas histrias, a partir de uma pr-histria. Para contar, portanto, a histria do Paran, preciso revirar as razes remotas da Amrica do Sul, recordar as origens da Provncia do Guair, rever enfim, pelo menos em parte, a formao da comunidade paranaense. Aqui se tenta faz-lo, sucinta e descontraidamente, em forma de hipottica entrevista com um contador de histrias. Primeiro fala-se dos ndios, dos colonizadores europeus e das redues jesuticas; em seguida entram em cena os mineradores e os tropeiros; finalmente aparecem os pioneiros do caf, que se instalaram no norte e noroeste do Paran a partir dos anos 1930. Com exceo de Bartolomeu Torales, que comprovadamente existiu, os demais Torales citados neste relato so fictcios, convivendo com personagens e fatos da histria real.

Calado em frente prefeitura, Maring, 1982, num domingo, manh de sol. O velhinho caminhava sem pressa, enrolando um cigarro de palha. Abordou-me perguntando as horas. Mas queria mesmo era puxar conversa. - Gosto muito desta praa, disse. Ela se comps de tal modo que pode ser considerada uma homenagem aos primeiros habitantes da regio. - O senhor fala dos pioneiros da cidade? - Falo dos ndios que viveram aqui por perto, nas redues implantadas pelos jesutas no incio do sculo 17. Repare bem: este conjunto uma rplica daquelas antigas redues. Eu estava, sem dvida, diante de um contador de histrias. Alto, magro, olhos de filsofo, cabelos lisos e negros com raros fios grisalhos, pele tostada. Apresentou-se: - Meu nome Rodrigo Antnio Torales, seu criado. Tenho um stio no municpio de Ivatuba, que agora os filhos tocam. Acho que com 83 anos nas costas j posso descansar. Moro naquele prdio ali, com uma filha. - Muito prazer. Mas o que tem a praa a ver com as redues? - O amigo j deve ter ouvido ou lido a respeito. As redues (do verbo reduzir, que na gria dos missionrios significava reunir para catequizar) eram aldeias nas quais os jesutas nucleavam os ndios. Em cada reduo havia uma grande praa, como esta em que agora estamos. No centro, a rea de festas e esportes. Em torno, a igreja, a escola, o gabinete do alcaide, a corregedoria, a casa de hspedes, e os grandes pavilhes residenciais em que cada famlia indgena tinha o seu aposento. - Comeo a perceber a semelhana. - Observe: temos ali a catedral, com uma escola ao lado (o Instituto de Educao); temos tambm a prefeitura (gabinete do alcaide), o frum (que corresponde corregedoria), a rea de lazer (centro de convivncia) e nas imediaes temos os hotis e os prdios de apartamentos. O quadro o mesmo, apenas com uma diferena: agora tudo de cimento. - O senhor tem imaginao frtil...

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- Meu mais antigo av, o ndio Catu, nasceu numa reduo jesutica, no muito longe daqui. - O senhor paranaense? - Nasci paulista, em Sorocaba. Cheguei ao Paran em 1932, exatos 300 anos depois que o ndio Catu deixou estas paragens. Fiquei 10 anos em Londrina; em 1942 me instalei em Maring e fui abrir o sitiozinho de que lhe falei, nas margens do rio Iva. Em Sorocaba fui oficial de farmcia. - O senhor me parece um homem instrudo. - Leitura e tarimba de vida. Escola mesmo foi pouca. Sempre gostei muito de ler e de conversar com os mais velhos. Meu av Joo Afonso, que era o dono da farmcia, tinha a estante cheia de livros e me ensinou a ser curioso. Foi tambm ele quem me contou as histrias de nossa famlia. - Mas o senhor falava de outro av, o ndio Catu... - Vou-lhe contar. Se o amigo tiver pacincia e disposio, pode tomar nota e at depois escrever um livro. - Pois ento me conte tudo, desde o comeo. - Para contar desde o comeo, eu teria que recitar o Gnesis... a histria ficaria muito comprida. Podemos partir do sculo 15, um pouco antes do descobrimento do Brasil. Percebendo que a prosa iria longe, sugeri ao velho Rodrigo que nos sentssemos num dos bancos da Avenida Getlio Vargas. Ele tomou flego, pediu a um passante que lhe acendesse o cigarro, acendeu junto a memria. E que memria!

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Naquele tempo...- Naquele tempo, esta regio toda era habitada pelos ndios: guaranis e outros grupos. Viviam da caa, da pesca, da colheita de frutos nativos e de algumas formas de agricultura. Um paraso, com a natureza lhes servindo permanente banquete. Nas horas vagas, divertiam-se com alguns esportes, dizem que at com um jogo parecido com o futebol de hoje. Dedicavam-se tambm a diversas modalidades de arte, no que, alis, suponho que s perdessem para os incas, os mais adiantados da Amrica do Sul. - Ah, os incas do Peru... Fale-me deles. - Se voc quer, vamos l: o fabuloso imprio inca desenvolveu-se nas grimpas dos Andes durante o sculo 15, com sede em Cuzco. Dominavam toda a cordilheira, desde o Equador at o Chile. Praticavam intensa agricultura, com eficiente sistema de irrigao e outras tcnicas surpreendentes para a poca. Exploravam minas, produziam excelente artesanato, sabiam tecer, tinham noes de medicina e astronomia. Realizaram tambm notveis trabalhos de engenharia e arquitetura: edificaes gigantescas, pontes, alm de muitas estradas... cerca de 20 mil quilmetros de estradas. Alcanaram nvel de tecnologia semelhante ao dos astecas do Mxico e dos maias da Amrica Central. - E qual era o sistema de governo? - Eram governados por uma espcie de imperador, tido como descendente do Sol, e um conselho de nobres. A sociedade era dividida em classes, que podemos chamar de nobres, militares, plebeus e escravos. - Escravos?! - Tinham escravos, sim. No eram to anjinhos como se poderia imaginar. Iam abrindo estradas e submetendo as tribos menos fortes. Punham os vencidos a seu servio nas minas e nas lavouras. - Chegaram a escravizar guaranis?

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- Os guaranis eram valentes e muito numerosos. Os incas no ousariam atac-los. H, porm, evidncias de que os dois povos se comunicavam e mantinham relaes comerciais e culturais. Pode ter sido graas a esse intercmbio que os guaranis aprenderam a trabalhar com cermica e a construir estradas.

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O caminho do Peabiru- J li alguma coisa sobre um tal Caminho do Peabiru... - Bem lembrado. Mas no era, na verdade, uma trilha nica. Era uma rede de caminhos, ligando o interior ao litoral atlntico. O tronco principal, a partir das proximidades do salto das Sete Quedas, passava perto de Campo Mouro, continuava at onde est hoje Fnix, chegava a Castro e ali se bipartia: um ramo se dirigia ao litoral de Santa Catarina; outro, o mais movimentado, seguia rumo a So Paulo de Piratininga e descia a serra para alcanar So Vicente. Na direo oeste, do outro lado do rio Paran, o caminho passava por Assuno do Paraguai e chegava s encostas dos Andes, fazendo conexo com a rede viria dos incas. - At o oceano Pacfico? - Veja que proeza: uma ponte transcontinental ligando o Atlntico ao Pacfico! - E por que se chamava Peabiru? Peabiru significaria Caminho da Montanha do Sol, aludindo, certamente, s serras andinas, descritas como resplandecentes pela existncia ali de muito ouro e prata. Outra verso diz que Peabiru vem de Tap Aviru, significando Caminho Fofo. Os ndios abriam a picada (com oito palmos de largura) e plantavam sobre o leito uma relva macia que assegurava a conservao, impedindo que naquele espao crescessem rvores ou espinhais. Dessa forma, coberto de relva, o caminho ficava realmente fofo, atapetado. Imagine o trabalho deles: s de So Vicente at as barrancas do rio Paran eram cerca de 200 lguas... - Utilizando machados de pedra, devem ter levado anos nessa obra... - Mas existe outro detalhe deveras interessante: os guaranis referiam-se quelas trilhas chamando-as tambm Caminho do Sum, ou Zum. Segundo os jesutas, era uma aluso ao apstolo So Tom, que teria andado por aqui.

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- E a ento... - Bem... no demorou muito e chegaram os europeus... - E o paraso perdeu a virgindade.

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Espanhis e portugueses

- No final do sculo 15, com o aperfeioamento da bssola, espanhis e portugueses lanaram-se ao mar procura de novas terras. Em 1492, o genovs Cristvo Colombo, a servio do rei de Espanha, desembarcou na Amrica Central. Dois anos depois, em 1494, Portugal e Espanha, vizinhos e rivais na pennsula Ibrica, assinaram o Tratado de Tordesilhas, dividindo entre si as terras descobertas e por descobrir no Novo Mundo, como se fossem herdeiros diretos de Ado e Eva. Em 1500, Pedro lvares Cabral ancorou na costa brasileira, ficando ali a bandeira lusitana.

- Onde ficavam exatamente as fronteiras? 7 - O Tratado de Tordesilhas baseou-se numa linha imaginria que passava onde est hoje Belm do Par e descia numa reta at Laguna, no litoral catarinense. O que houvesse a oeste da linha demarcatria seria da Espanha; o que existisse a leste seria de Portugal. - Mas assim o Brasil ficaria pequeno... - E foi justamente por isso que portugueses e espanhis brigaram tanto, por muitos e muitos anos, at chegar-se definio das fronteiras atuais. - O Paran era da Espanha?... - Correto. Aqui onde ns estamos era territrio espanhol, at as encostas da serra do Mar, aos cuidados de um governador sediado em Assuno do Paraguai, que por sua vez era subordinado ao vice-rei do Peru. - Que confuso! - Creio ser necessrio dar-lhe um resumo da histria da Amrica do Sul, para que voc entenda melhor o contexto. - Estou anotando. - Pois bem: no incio do sculo 16, enquanto os portugueses comeavam a colonizar o Brasil, os espanhis desciam da Amrica Central e expandiam seu domnio na banda ocidental da Amrica do Sul. Em 1532, numa expedio chefiada por Francisco Pizarro, chegaram ao Peru. Os incas, na poca, estavam envolvidos numa tremenda guerra civil e os espanhis aproveitaram para esmag-los. - Destruram toda aquela antiga civilizao? - Quase toda. Restaram apenas algumas runas, que hoje constituem a maior atrao turstica do Peru. Pizarro estabeleceu-se primeiramente em Cuzco. Em 1535, fundou a cidade de Lima, perto do mar, instalando ali o ponto de partida para outras expedies. Em 1542, foi criado o vice-reinado do Peru, com a capital em Lima e jurisdio desde o Equador at os confins do Chile e da Argentina. O Peru tornou-se logo uma das meninas dos olhos do rei de Espanha: pela existncia de numerosa mo de obra indgena (com os incas passando de senhores a escravos) e, sobretudo, pela fartura de minerais preciosos, a exemplo das minas do Potosi (hoje em territrio boliviano). - Se entendi bem, o Paran fazia parte desse vasto vice-reinado...

8 - O Paran sim, como extenso do Paraguai. Daqui a pouco voltaremos a conversar sobre isso. - Prossiga. - Os espanhis continuaram avanando em duas direes: de norte para sul, a partir de Lima; de sul para norte, a partir do rio da Prata, que eles haviam descoberto em 1516. Em 1536 j haviam fundado o ncleo inicial de Buenos Aires. Ao mesmo tempo, no lado brasileiro, os portugueses firmavam suas razes, agora sob o sistema de capitanias hereditrias. Em 1580, um fato novo: o soberano portugus Dom Sebastio morreu na clebre batalha de AlccerQuibir. Filipe II, rei de Espanha, herdou o trono de Portugal. Houve assim a unio dos dois reinos, at 1640. - Significa que, nesse perodo, o Brasil ficou sendo colnia espanhola... - Exatamente. Portugal, porm, embora sujeito ao trono espanhol, continuou como estado mais ou menos autnomo, de tal forma que os portugueses e seus descendentes permaneceram donos do Brasil, em constantes escaramuas com os colonizadores castelhanos. - At quando eles brigaram? - At 1777. Nesse ano Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Santo Ildefonso, que retocou o Tratado de Madri de 1750, reconheceu finalmente a expanso da fronteira oeste da Amrica Portuguesa e fixou novos limites. Mas ainda falta anotar alguns fatos importantes. - Diga. - Um ano antes do Tratado, em 1776, havia sido criado o vice-reinado do rio da Prata, com a capital em Buenos Aires e abrangendo a Argentina, o Uruguai, o Paraguai e o territrio que mais tarde viria a ser a Bolvia. Com isso Buenos Aires assumiu a liderana poltica e econmica da regio, enquanto o Chile, por sua vez, passou a ser uma capitania geral, subordinada ao vice-reinado do Peru. - E a, ao que me consta, comearam as lutas pela independncia... - Perfeito. Os ideais de liberdade que inspiraram a independncia dos Estados Unidos em 1776 e deflagraram a Revoluo Francesa em 1789

9 sacudiram a Amrica do Sul a partir do incio do sculo 19. Em 1810, os dominadores espanhis j haviam sido expulsos da Argentina e do Uruguai. Iniciaram-se assim as lutas pela libertao de todo o hemisfrio. Em 1811, o Paraguai conquistou a independncia em campanha chefiada por Jos Gaspar Rodrigues Francia, o famoso Dr. Francia. Em 1817, o general argentino Jos de San Martin atravessou os Andes a cavalo, libertou o Chile em 1818 e proclamou a independncia do Peru em 1820. Encontrou-se ali com o lder venezuelano Simn Bolvar, que em 1819 libertara a Venezuela e os territrios onde esto hoje a Colmbia e o Equador. Juntos, San Martin e Bolvar prosseguiram a luta at 1824, quando, vitoriosos na histrica batalha de Ayacucho, determinaram o fim do domnio espanhol na Amrica do Sul. Dois anos antes, em 1822, Dom Pedro I havia proclamado a independncia do Brasil, rompendo os laos com o trono portugus. - E a Bolvia? - A Bolvia a antiga regio do Alto Peru, que se separou do governo de Lima em 1825. O nome Bolvia uma homenagem ao libertador Simn Bolvar. - O senhor sabe das coisas! - Leitura, seu moo. Leitura e boa memria.

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A provncia do Guair- Conversa vai, conversa vem, parece que perdemos o fio da meada. Falvamos do seu av Catu... - Voltemos ento ao final do sculo 16. Estas terras, como lhe disse, pertenciam Espanha, aos cuidados do governador de Assuno, compondo o imenso vice-reinado do Peru. Os colonizadores espanhis, no ano de 1554, decidiram fundar povoaes na margem leste do rio Paran e aps paciente trabalho diplomtico firmaram um acordo de convivncia pacfica com o grande cacique Guair, a quem se deve o nome da regio. Os castelhanos enviados pelo governador Martnez de Irala fundaram primeiramente um vilarejo provisrio, Ontiveiros, pouco abaixo do salto das Sete Quedas. Em 1556, o povoado foi transferido por Ruy Dias Malgarejo para trs lguas acima, ode o Piquiri desgua no rio Paran, ganhando o nome solene de Ciudad Real del Guair. Vinte anos depois, em 1576, o mesmo Ry Malgarejo fundava na confluncia dos rios Corumbata e Iva a povoao denominada Villa Rica del Espiritu Santo, o mais avanado estabelecimento espanhol em sua expanso rumo ao Atlntico. No ponto onde existiu Villa Rica est atualmente a cidade de Fnix, assim chamada justamente por haver ressurgido das cinzas, como a ave mitolgica. Fnix a nova Villa Rica. - Restam vestgios daquelas cidades espanholas? - Umas poucas runas. Adiante explico. - Vamos l... - Os castelhanos tinham fartos motivos para se fixarem na regio do Guair. Um desses motivos era barrar o avano dos portugueses, que vinham de So Paulo pelo Caminho do Peabiru e sonhavam alcanar as minas do Potosi, descobertas nos Andes em 1545. Os espanhis pretendiam tambm, por sua vez, estender seu domnio at o litoral leste, visando a assegurar uma sada pelo Atlntico. Outra razo ainda era a oportunidade de explorar a agricultura, principalmente a erva-mate, naquelas terras to frteis, usando a mo de obra indgena em regime de escravido. Havia aqui cerca de 200 mil ndios...

11 - Era esse o acordo de convivncia pacfica firmado com cacique?... - Os espanhis traram o acordo, no que se refere escravizao dos nativos. Os guaranis, valentes e rebeldes, resistiram tanto quanto possvel. Poucos deles aceitaram a escravido. A maioria continuou enfrentando os invasores, chegando em vrias ocasies a atacar as povoaes espanholas. Foi por isso que o rei de Espanha, na poca Filipe III, acolhendo sugesto do governador de Assuno, decidiu confiar aos missionrios jesutas a pacificao dos ndios. - Quando foi isso? - No comecinho do sculo 17. Os jesutas j trabalhavam no Paraguai desde o final do sculo 16. Em 1602, chegaram ao Guair para os primeiros contatos. A esperana do rei era que os missionrios convertessem e serenizassem os guaranis, facilitando assim a penetrao espanhola. De sua parte, os padres traziam o projeto de nuclear os nativos em aldeias fixas, onde lhes pudessem dar assistncia material e religiosa, orient-los para um tipo mais sofisticado de sociedade e defend-los contra os que pretendiam escraviz-los. - Seriam as famosas redues, de que o senhor falava? - Exatamente. J chegaremos l. A Carta Rgia de 1608 criou oficialmente a Provncia do Guair, cujos limites eram, ao norte, o rio Paranapanema; ao sul, o rio Iguau; a oeste o rio Paran e, a leste, a serra do Mar. - O atual estado do Paran, quase todo... - Ficavam de fora apenas a faixa litornea e as terras entre o rio Iguau e a divisa de Santa Catarina. Pois bem: dentro da Provncia do Guair os colonizadores espanhis permaneceriam nas suas povoaes (Ciudad Real e Villa Rica), e os jesutas, com os ndios, nas redues, uns e outros acumulando a incumbncia de assegurar para a Espanha o domnio do territrio.

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As redues jesuticas

- E deu certo o esquema? - Nem tanto. Os padres chegaram com ordem expressa do governador e do bispo de Assuno para, em nome do rei, impedir a escravizao dos ndios. Isso irritou muito os colonizadores. Habituados a utilizar a mo de obra indgena, sentiram-se trados, passando ento a sabotar o trabalho dos jesutas. Apesar, porm, dessas dificuldades, foram implantadas as redues, umas vinte, ao longo dos rios. - Onde exatamente? - Distantes cerca de 45 quilmetros umas das outras, as redues eram uma espcie de municpios indgenas, formando uma confederao em que os administradores de Ciudad Real e Villa Rica no podiam interferir. As duas primeiras foram erguidas em 16l0: Nossa Senhora do Loreto e Santo Incio, na confluncia do Pirap com o Paranapanema. Em seguida formaram-se muitas outras, entre as quais se destacavam as de So Jos, So Francisco Xavier, Encarnao e So Miguel, no rio Tibagi; Jesus Maria e Santo Antnio, no rio Iva; So Tom e Sete Arcanjos,no rio Corumbata; e Santa Maria, no rio Iguau, perto das cataratas. Compunham, juntas, o que se sonhou ser a Repblica Teocrtica Guarani. - Comovente utopia! 13

- De fato. Mas vamos em frente: as redues, que como eu lhe disse obedeciam a um esquema semelhante ao da Praa Dom Pedro II, de Maring, tinham ao centro um grande largo para festas, esportes e outras atividades coletivas; em torno, a igreja, a escola, um salo de oficinas e artesanatos, o escritrio do alcaide e demais reparties pblicas (cabildo, armazm, enfermarias etc.) e, em fileiras, os pavilhes residenciais dos ndios, cabendo a cada famlia um aposento com divises internas feitas de couro e esteira. No ptio havia ainda um relgio de sol. Em algumas redues, mantinha-se tambm um alojamento para hspedes eventuais. Nas terras em volta formavam-se as lavouras e os pastos para criao de gado. - Quem administrava a aldeia? - Em cada reduo moravam dois ou trs padres, que era ao mesmo tempo sacerdotes, mdicos, professores, catequistas, contabilistas, engenheiros, veterinrios, agrnomos... A administrao geral, todavia, era exercida pelos prprios ndios, que escolhiam, por eleio direta, o alcaide (prefeito), o corregedor (encarregado dos assuntos judicirios) e os membros do cabildo (conselho de chefes setoriais). O regime poltico era uma forma primitiva de socialismo, preservando os costumes tribais. - Tinham tudo em comum? - Edifcios, ferramentas e outros bens pertenciam comunidade. A produo da terra e das oficinas era distribuda de forma equitativa entre as famlias. A produo excedente era exportada via Assuno, sobretudo a ervamate. Com os lucros desse comrcio, realizavam-se melhoramentos nas aldeias. - E os ndios se adaptavam facilmente a essa forma de vida? - Os jesutas eram muito hbeis. Sabiam como conquistar a simpatia dos nativos, a ponto de convenc-los a andar vestidos. Os homens usavam cales; as mulheres, longas saias, embora continuassem pintando o rosto e enfeitando os cabelos com charmosos cocares. Com os missionrios os ndios aprenderam tcnicas agrcolas e pecurias, aprimoraram-se na produo de tecidos, tornaram-se carpinteiros, ferreiros, fundidores, pintores, escultores. As crianas freqentavam a escola, aprendiam a ler e escrever, at em latim... - Como era o regime de trabalho? 14

- No se permitia a ociosidade, e a disciplina era rigorosa, mas ningum trabalhava mais que seis horas dirias, respeitando-se os domingos e os dias santos. Havia tempo para o lazer, para o estudo, para o namoro, para as oraes, como em qualquer sociedade organizada. - Muito bonito. Mas no teria sido uma forma de agresso cultura original dos ndios? - Esse um assunto bastante polmico. Discute-se sobre at que ponto teria sido vlida a ajuda dos jesutas. Talvez os indgenas tivessem sido mais felizes sem essa intromisso na vida deles. Quem sabe? Pode-se afirmar, contudo, a favor dos religiosos, que suas intenes eram honestas. A obra que tentaram realizar junto aos guaranis merece mximo respeito.

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Os caadores de gente- No deu certo, principalmente, por qu? - Durante alguns anos os aldeados prosperaram em relativa paz. Os espanhis de Ciudad Real e Villa Rica se conformavam em manter a seu servio uns poucos nativos preados nas matas e aos quais diziam remunerar na forma de alimentao e roupas... como se os ndios precisassem disso. Era um modo disfarado de escraviz-los. A maior ameaa, entretanto, eram os portugueses de So Paulo, que caa de ndios penetravam seguidamente a regio do Guair Vinham pelos rios ou pelo Caminho do Peabiru. - O Tratado de Tordesilhas no vigorava mais? - Portugal e Espanha estando na poca sob o mesmo rei, o Tratado foi mais ou menos esquecido. Alinha divisria era facilmente furada, de um lado e de outro. Os castelhanos tentando conquistar a costa leste e os lusitanos invadindo o serto. Em 1607, Manuel Preto, um terrvel sertanista, j estivera nas matas do Guair. Consta que at 1612 os paulistas j haviam levado daqui uns 5 mil nativos. - O senhor disse que havia uma lei proibindo a escravizao de ndios... - Ocorre que Madri estava muito longe para fiscalizar o cumprimento da lei. Por outro lado, os fazendeiros paulistas enfrentavam grave crise: sem mo de obra indgena, diziam sem impossvel prosseguir a colonizao. At ameaaram abandonar as terras. No litoral os ndios tornavam-se escassos: muitos deles fugiam para lugares distantes, os demais estavam envelhecendo e morrendo. Era urgente renovar a escravatura, e a soluo seria buscar nativos no Guair. - E foi assim que os bandeirantes se tornaram caadores de gente... - Os primeiros bandeirantes eram portugueses arrojados e ambiciosos que vieram para o Brasil atrados pelo sonho do enriquecimento rpido. Despertando neles a sede do ouro, Portugal usava-os para expandir seu domnio em terras brasileiras e conquistar parcelas do cho espanhol alm da linha de Tordesilhas. Como a essa altura j estavam todos desiludidos da 16

esperana de encontrar montanhas de ouro, prata e esmeralda nos sertes a sudoeste de So Paulo, a nova forma de lan-los mata adentro era incentivlos a caar outro tesouro, os nossos irmos ndios, altamente cotados no mercado de escravos. - Os donos da terra transformados em ferramentas de trabalho dos invasores... - Durante vrios anos os bandeirantes vasculharam as florestas do Paran. Nas primeiras incurses no lhes foi muito fcil prear os nativos: tinham de usar diversos artifcios, como, por exemplo, oferecer presentes, embebed-los com cachaa e depois acorrent-los. Passaram ento a botar olho gordo nas redues, em cada uma das quais viviam perto de 4 mil ndios. Bastaria aos caadores fazer o cerco em torno da aldeia e colher, numa s investida, milhares de peas. - Isso significa que os jesutas, nucleando os guaranis, sem querer acabaram facilitando o trabalho dos paulistas... - O diablico projeto foi discutido em So Vicente e So Paulo, formando-se na ocasio uma arrasadora bandeira, tipo arrasto, cujo comando foi entregue ao sanguinrio Antnio Raposo Tavares. - O Raposo Tavares que nome de praa em Maring? - Ele mesmo. Se eu fosse vereador trocava o nome da praa. Esse homem, a meu ver, no merece homenagem alguma. - Poderia ser Praa Montoya, como algum j sugeriu. Ou Praa do Trabalho. Ou Praa do Caf, lembrando o produto que deu o impulso inicial no desenvolvimento da regio. - Estou de pleno acordo. Mas voltemos histria. Raposo Tavares, ento com 30 anos, era um homem alto, arrogante, ambicioso e frio. Portugus nascido no Alm-Tejo, viera para So Paulo j fazia uns 10 anos. Tinha muitos inimigos, mas, pela sua fama de valente e pela capacidade de liderana em tarefas desse tipo, foi o escolhido para chefiar o ataque s redues, assessorado pelo velho e experiente Manuel Preto. Saiu de So Paulo no dia 18 de setembro de 1628, com 69 portugueses, 900 mamelucos (mestios de brancos com ndios) e 3 mil nativos aliados (na maioria escravos), dirigindo-se 17

regio do Guair. Sabiam que os espanhis de Ciudad Real e Villa Rica no lhes fariam oposio, interessados que estavam em tambm escravizar os ndios. Em defesa dos guaranis haveria, portanto, e to somente, a fora moral dos jesutas. - Foram chegando e destruindo tudo?... - No exatamente, Raposo acampou a tropa nas proximidades da reduo de Santo Antnio e, acompanhado de pequena guarda, fez uma visita de cortesia ao padre Mola, cura da aldeia. Almoaram juntos. Durante a conversa, afirmou cinicamente que seu propsito era colaborar na converso dos ndios levando-os para So Paulo a fim de viverem com famlias crists, que lhes ensinariam os bons costumes. O jesuta retrucou, argumentando que o Cristo no aprovaria tal mtodo de converso na marra, preferindo deixar os nativos onde estavam, confiados paciente e amorosa catequese dos missionrios. O pastor no escraviza as suas ovelhas, acrescentou. O bandeirante no se deu por vencido. Citou uma nova lei editada por Filipe III, na qual se mantinha a proibio de submeter os ndios a trabalhos forados, permitindo-se todavia a escravizao daqueles considerados turbulentos ou que fossem feitos prisioneiros em guerra justa. - Inventar uma guerra justa no deveria ser difcil... - Dou-lhe um exemplo: os caadores de gente erguiam cruzes ao lado dos seus acampamentos; dois dias aps, alegavam que faltava uma cruz e punham a culpa nos ndios, acusando-os de desrespeito religio. Era o bastante para iniciarem uma guerra justa, aprisionando centenas de inimigos da f. - E os padres no podiam fazer nada?... - Bem que tentavam, mas como? Naquele tal encontro com Raposo Tavares, padre Mola fez o possvel, porm o mximo que conseguiu foi obter do perverso a generosa promessa de que s levaria ndios pagos, deixando em paz os batizados. - Coitados dos pagos... - Era uma estratgia. O missionrio, sabendo que os arcos e flechas dos guaranis pouco valeriam contra a plvora dos agressores, aceitou o acordo como forma de ganhar tempo. 18

- Comeo a entender. - Enquanto isso, procuraria batizar o mximo possvel de nativos, aldeados ou no, e mandaria emissrios aos padres das outras redues sugerindo que tomassem a mesma providncia. - Os bandeirantes cumpriram o acordo? - O que voc acha?... Raposo era manhoso. Tambm ele estava querendo ganhar tempo, espera de um pretexto para atacar. O pretexto surgiu quando o sertanista ficou sabendo que o padre Mola andava a acolher em Santo Antnio escravos fugidos, que escapavam tanto dos paulistas quanto dos espanhis. - Ai ento...

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Sete horas de batismo- Dias aps, os jesutas deram asilo a um chefe indgena chamado Tataurana, fugido das garras do prprio Raposo. O sertanista foi l e exigiu o escravo de volta: ou devolviam Tataurana ou a misso seria invadida. Padre Mola endureceu, recusando entregar o nativo. - O p de briga que faltava... - Era o dia 28 de janeiro de 1629. Os bandeirantes, com seus mamelucos, cercaram Santo Antnio. Dentro da aldeia generalizou-se o pnico. Com os ndios reunidos na praa, os jesutas celebraram vrias missas, uma aps outra. Aumentava a cada momento o nervosismo. Padre Mola mandou ento que passassem sua frente todos os que no haviam sido batizados, mesmo os que no tivessem completado o catecismo. Durante sete horas seguidas, abenoou crianas e adultos. No final j estava quase sem voz, e to cansado que outros precisavam levantar seu brao para a bno. - Imagino o horror que se instalou ali. - Justamente naquele dia, chegara a Santo Antnio um amigo do padre Mola, chamado Bartolomeu. Morador em Ciudad Real, onde nascera, filho de espanhis fundadores daquela povoao, Bartolomeu Torales, 32 anos, exercia cargo de autoridade. Ao contrrio, porm, da maioria dos castelhanos, mantinha bom relacionamento com os ndios e com os religiosos e era muito respeitado pela sua generosidade. Ao ver na fila para o batismo um indiozinho que chorava muito, aproximou-se e soube que os pais do menino haviam sido capturados pelos paulistas horas antes, quando retornavam misso. Bartolomeu simpatizou-se com o garoto e se ofereceu para ser o padrinho dele. Mais ainda: iria adot-lo como filho. O indiozinho, de 7 anos, disse chamar-se Catu, que significa bom. - At que enfim vou conhecer o nosso Catu! - Que no batismo recebeu o nome de Francisco Torales, meu mais antigo av, como lhe falei no incio desta nossa conversa. - Agora estou comeando a entender. 20

O grande massacre- No dia seguinte, 29 de janeiro de 1629, logo ao amanhecer, os paulistas tomaram de assalto a reduo. L dentro, 4 mil ndios tentando desesperadamente se defender. Os invasores entraram atirando, incendiando casas, chutando porcos e galinhas, pisoteando mulheres e crianas; nem a igreja respeitaram. Em poucos instantes a aldeia inteira estava em chamas. Padre Mola, rouco e em lgrimas, procurava controlar o caos: Homens de So Paulo, vocs esto violando uma reserva de Deus!, dizia ele em tom dramtico. Insensvel, Raposo ordenava a seu bando que prosseguisse o massacre. Raposo Tavares, voc ser amaldioado por isso. Deus condenar sua alma s penas eternas pelo que voc est fazendo a essas crianas de Jesus!, insistia o sacerdote. Jesuta, saia da minha frente, rosnava o bandido, levantando a espada. - Quanta estupidez! - Morreram ali cerca de 500 ndios. Outros tantos conseguiram fugir. No final, os paulistas levaram uns 1.500 para serem vendidos em leiles de escravos. Deixaram para trs apenas as mulheres e as crianas. Os prisioneiros, atrelados uns aos outros, foram postos a caminho de So Paulo sob os aoites dos mamelucos. Muitos morreram durante a viagem, no suportando a fadiga, os castigos e a fome. Quando nem o chicote podia obriglos a seguir em frente, eram simplesmente abandonados sem a mnima compaixo. Chegaram vivos uns 1.200, logo vendidos aos fazendeiros do planalto e do litoral. - Barbaridade! Dois jesutas, os padres Mansilha e Maceta, seguiram de perto os ndios aprisionados: iam distribuindo a uno aos moribundos encontrados no caminho. Chegando a So Paulo, foram queixar-se s autoridades, que entretanto no lhes deram ateno. Os padres continuaram at o Rio de de Janeiro, onde o governador geral os recebeu com aparente boa vontade,

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mandando um comissrio acompanh-los a So Paulo para impor justia. O comissrio foi recebido pelos paulistas com uma saraivada de insultos e posto a correr debaixo de tiros. Acabaram prendendo os prprios jesutas. Libertados um ms depois, Manilha e Maceta, desconsolados, retornaram ao Guair. - O governo de Assuno tambm nada fez? - Nesse meio tempo, outro missionrio, o padre Tanho, foi a Assuno pedir ajuda ao governador, na poca D. Lus de Cspedes y Xeria, que alis era casado com uma sobrinha de Martin de S, governador do Rio de Janeiro. D. Lus limitou-se a comentar friamente: Os senhores levantam grande alarido por pequenas coisas e se tornam odiados onde quer que apaream. - Matar e escravizar indgenas eram pequenas coisas... - Segundo as ms lnguas, esse tal Lus de Cspedes teria um acordo com os paulistas: fecharia os olhos invaso das redues do Guair e receberia em troca boa parte dos escravos capturados. Os ndios seriam postos a seu servio num engenho que ele tinha no Rio de Janeiro. - Corrupo coisa antiga...

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A destruio total- A impunidade estimulou Raposo Tavares e seu bando a continuarem o massacre. Voltando meses aps regio do Guair, vasculharam as reas habitadas, arrasando uma a uma as redues e prendendo nativos. Em pouco tempo, das misses do Paran, restaram apenas runas. Nas proximidades da atual Guara e nas margens do rio Paranapanema existem ainda hoje alguns vestgios. Quanto aos ndios, h documentos segundo os quais, em trs anos, de 1629 a 1632, s nos mercados do Rio de Janeiro e do Nordeste foram vendidos mais de 60 mil escravos levados do Guair, sem falar dos que ficaram em So Paulo. Passaram-se muitos anos at que outros grupos indgenas voltassem a radicar-se nestas terras, estabelecendo-se principalmente nas margens do Tibagi. Tivemos aqui o longo tempo de silncio, aps a destruio das redues. - E o que aconteceu a Catu e Bartolomeu? - Durante vrias horas, no ataque reduo de Santo Antnio, o bravo Torales permaneceu ao lado do padre Mola, ajudando-o na intil tentativa de acalmar a fria dos paulistas. No final, por insistncia do prprio jesuta, Bartolomeu colocou nas costas o menino, abriu caminho entre os homens de Raposo Tavares e conseguiu escapar, alcanando a mata e retornando a Ciudad Real. Foram muitos dias de caminhada, ao longo da qual, a cada ndio que encontrava, ia recomendando que fugisse para bem longe. J em casa, entregou sua mulher Natividade o novo filho, o indiozinho Catu, e foi a Villa Rica na esperana de convencer os espanhis a enfrentarem os bandeirantes. Porm tudo em vo. Os castelhanos, no fundo, estavam gostando daquela desgraa. No apenas por ser uma forma de vingana contra os jesutas, mas principalmente porque, sem a presena dos padres, estariam vontade para tambm submeter os nativos. Chegaram a armar ciladas aos ndios fugitivos, de modo que os que escapavam dos bandeirantes iam cair nas malhas dos espanhis. 23

- As povoaes espanholas foram poupadas?... - H um ditado segundo o qual castigo vem a cavalo... Foi o que aconteceu: no havendo mais ndios para capturar, os paulistas invadiram Ciudad Real e Villa Rica, saquearam as casas e destruram tudo, expulsando os colonizadores castelhanos. Isso se deu no ano de 1632, e foi assim que a florescente Provncia do Guair deixou de ser uma extenso do Paraguai e passou a integrar o territrio brasileiro, incorporando-se a So Paulo. - Nesse aspecto os bandeirantes foram teis... - Pois : credita-se a eles o mrito de haverem conquistado para o Brasil as ricas terras do Paran. Pena que, nessa faanha, tenham praticado tanta crueldade contra os indgenas, os primeiros e verdadeiros donos destas terras. - Os ndios que conseguiram escapar, para onde foram? - Guiados pelo padre Montoya, cerca de 12 mil nativos puderam salvar-se, num doloroso xodo talvez somente comparvel ao liderado por Moiss na fuga dos hebreus do Egito. Reunidos na foz do Paranapanema, alguns migraram para o Mato Grosso, outros para o Paraguai e Argentina e a maioria para o oeste do Rio Grande do Sul, estabelecendo-se ao longo do rio Uruguai. Formou-se ali o novo Territrio das Misses, mas tarde tambm arrasado. - Pelos mesmos paulistas? - Sempre empenhados na caa aos ndios, e satisfazendo aos interesses de Portugal em expandir seus domnios, os paulistas continuaram nas pegadas dos jesutas. Nessa altura, desde 1640, Portugal j havia restaurado a independncia, acentuando-se ainda mais a rivalidade com os castelhanos. - O oeste gacho era espanhol ou portugus? - Pertencia Espanha, mas a conquista da rea era de decisiva importncia para os portugueses, que por isso insistiam em tom-la. Aquelas novas redues ofereciam, entretanto, melhores condies de defesa: as casas eram de pedra e os ndios haviam aprendido a utilizar armas de fogo. Em diversas tentativas de assalto, os paulistas encontraram resistncia e tiveram de recuar. E foi assim que as misses puderam seguir prosperando, com os ndios alcanando alto nvel de tecnologia, tanto na agropecuria como tambm na arquitetura, no artesanato, na medicina, na fundio de metais, na operao de moinhos e engenhos. 24

- At quando? - At 1750, quando os paulistas voltaram carga com fora total. Naquele ano foi assinado o Tratado de Madri, pelo qual os portugueses entregavam aos espanhis a Colnia do Livramento (hoje pertencente ao Uruguai) e recebiam em troca a rea gacha onde estavam as misses jesuticas. O marqus de Pombal era na poca o homem forte do governo de Lisboa e foi dele que partiu a ordem no sentido de que os nativos deixassem imediatamente aquelas terras. Trinta mil ndios impiedosamente condenados a abandonar casas, igrejas, escolas, oficinas, rebanhos, campos cultivados, tudo o que construram com tanto sacrifcio durante anos e anos. A fim de evitar violncia, os padres chegaram a insistir com os ndios para que obedecessem ordem de despejo. Eles, porm, revoltados, decidiram lutar at o fim. Foram covardemente esmagados, numa das mais perversas carnificinas que a nossa histria registra. - E o sonho acabou! - Inimigo mortal dos jesutas, Pombal lanou contra eles toda espcie de injria, terminando por expuls-los do Brasil. Das misses do rio Uruguai ficaram para a posteridade umas poucas runas, entre as quais se destacam as de So Miguel, perto de Santo ngelo. No lado argentino, onde os jesutas e os ndios foram igualmente perseguidos, so bastante conhecidas as runas de San Inazio Mini, a poucos quilmetros de Posadas, na provncia de Misiones. H tambm sinais daquelas antigas aldeias em territrio paraguaio. - Viraram atrao turstica?... - Mas constituem, sobretudo, um precioso campo de estudo para todos os que se interessam pela histria da Amrica do Sul. Vale a pena visitar o Territrio das Misses. D um n na garganta, porm o que se preservou um verdadeiro tesouro histrico, hoje em grande parte sob proteo da Unesco. - Foi o que sobrou de toda aquela comovente experincia de promoo do ndio... - Lamentavelmente, foi o que sobrou do choque entre os bons propsitos dos jesutas e as ambies de portugueses e espanhis. Uma epopeia que somente no Juzo Final ser devidamente avaliada em toda a sua dimenso. 25

A grande viagem- Com isso perdemos outra vez o fio da meada. Que destino tomaram afinal os Torales? - Voltemos a 1632. Arrasadas pelos bandeirantes as redues jesuticas e as povoaes espanholas do Guair, Bartolomeu Torales reuniu mulher e filhos, entre os quais Francisco (o nosso Catu), mais alguns ndios agregados famlia, e refugiou-se na ilha Grande, no rio Paran. - O velho Paranazo. Fale-me um pouco dele... - Em guarani, para rio e n significa largo. O rio Paran (ou rio largo) forma-se na confluncia de dois outros rios: o Grande e o Paranaba. O rio Grande nasce em Minas Gerais, na serra da Mantiqueira, a 14 quilmetros das Agulhas Negras, mil metros acima do nvel do mar. Aps percorrer 1.450 quilmetros, dividindo os estados de Minas Gerais e So Paulo, recebe o Paranaba, que nasce tambm em Minas, no municpio de Carmo do Paranaba, e separa o estado de Minas dos estados de Gois e Mato Grosso. A confluncia do Grande e do Paranaba ocorre no vrtice do Tringulo Mineiro, onde se forma o rio Paran, que por sua vez serve de limite entre os estados do Mato Grosso e So Paulo, at receber o Paranapanema, e do Mato Grosso do Sul e Paran, logo abaixo. Separa ainda o Brasil do Paraguai, e depois o Paraguai da Argentina, at receber o rio Paraguai; mais abaixo recebe o rio Uruguai e desce at a ponta de Maldonado, onde passa a chamar-se rio da Prata, banhando Montevidu e Buenos Aires. Sua extenso total de 4.290 quilmetros, e o quinto rio do mundo. - No era preciso dar tantos detalhes... O senhor dizia que os Torales se refugiaram na ilha Grande... - A inteno de Bartolomeu era atravessar para o Mato Grosso e alcanar Assuno. Todavia, durante a permanncia na ilha, mudou de planos. Concluiu que se o Guair passara agora a ser parte do Brasil, e se ali ele nascera, ento brasileiro era. O mais lgico, portanto, seria permanecer do lado de c. - Parabns para o Brasil, que ganhou um valente cidado! 26

- O pequeno grupo subiu de canoa o rio Paran at a foz do Iva, onde Bartolomeu teve notcia de que ainda havia paulistas patrulhando as margens do Paranapanema. Seu projeto inicial era alcanar o rio Tiet e prosseguir na direo de So Paulo. Querendo, porm, evitar encontros com os furiosos bandeirantes, mudou de rota, subindo com sua gente o Iva. - Percorreram ento a futura Hidrovia do Iva... - Isso a. E quem sabe algum dia aparea mesmo um governante peitudo capaz de tornar realidade essa obra to sonhada... Mas vamos l: enfrentando a correnteza, navegaram at o salto Bananeira, nas imediaes da atual Ivatuba, bem prximo de onde est o meu sitiozinho comprado em 1942. - Coincidncia, ou o senhor escolheu o local em homenagem aos seus antepassados? - Escolhi a propsito. Fui ao escritrio da Companhia Melhoramentos, pedi o mapa e pus o dedo no ponto onde os Torales acamparam. Pois bem: sendo difcil continuar rio acima, devido s cachoeiras, o grupo ergueu ranchos e permaneceu ali cerca de duas semanas. Segundo seus clculos, Bartolomeu concluiu que estava bem ao lado da linha do Trpico de Capricrnio. Assim, indo por terra em linha reta, chegaria ao destino pretendido: o planalto de So Paulo de Piratininga. - Nesse caso, passaram por aqui... - Estou convencido de que sim, uma vez que Maring se ergueu exatamente em cima da linha do Trpico de Capricrnio. - Talvez tenham acampado tambm neste lugar onde agora estamos... - Quem sabe? Com auxlio da bssola, seguindo sempre na direo leste, os Torales continuaram a grande caminhada aproveitando trilhas de ndios e abrindo picadas a golpes de faco. Passaram certamente por onde est Arapongas, l na frente Nova Ftima, Ribeiro do Pinhal, Carlpolis, atravessaram a rea onde se encontra hoje a represa de Xavantes. Chegando a Sorocaba, povoao j bastante movimentada, gostaram do lugar, fizeram amigos, decidiram ficar ali. - Quanto tempo durou a viagem?

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- Uns seis meses, no mnimo. Segundo histrias que meu av Joo Afonso contava, e que ele por sua vez ouviu de parentes mais antigos, os Torales chegaram a Sorocaba em 1633, integrando-se s famlias pioneiras da vila. Vinte e um anos depois, em 1654, Catu j homem feito, casado com uma portuguesa chamada Ana Manuela, a famlia deixou Sorocaba. O inquieto Bartolomeu ouvira falar das minas de ouro de Paranagu e, embora j estivesse com 57 anos de idade, mas ainda com sade de ferro, juntou outra vez mulher, filhos e agregados, vendeu tudo o que tinha e partiu para novas aventuras.

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As minas de Paranagu- A p?... - Os Torales viajaram a cavalo at Cananeia, no litoral, dali prosseguindo de barco rumo a Paranagu. As minas de ouro da costa paranaense no eram l essas coisas. Havia mais lenda do que metal precioso. De qualquer forma, Bartolomeu conseguiu acumular considervel fortuna e entrou na histria como um dos principais fundadores de Paranagu, ao lado de Gabriel de Lara, Heliodoro bano, Pedro de Sousa Pereira e outros. Morreu em 1668, aos 71 anos, deixando a famlia em boa situao. - Os herdeiros continuaram na minerao? - Bartolomeu tinha uma filha, que se casou com um paulista e foi para So Vicente levando consigo a me viva; e trs filhos homens, que pouco tempo depois migraram para Minas Gerais, atrados pelo ouro que comeava a ser descoberto por l. O filho adotivo Francisco, o Catu, ento com 46 anos, recebeu parte da herana e preferiu subir a serra para tornar-se criador de gado nos campos de Curitiba. - J existia Curitiba? - Estava comeando a formar-se a povoao, no local onde est hoje a Praa Tiradentes. Os mineradores do litoral, desiludidos do sonho do ouro fcil, foram mudando de atividade. Muitos deles se deslocaram para Minas Gerais, outros tantos buscaram o planalto. Subiam de canoa, pelos rios, at Morretes, e continuavam a p utilizando trilhas abertas pelos ndios. O roteiro era mais ou menos o que mais tarde viria a ser a Estrada da Graciosa. Em poucos anos Curitiba j rivalizava em importncia com Paranagu e havia intenso comrcio entre os dois ncleos: os curitibanos forneciam bois, cavalos, trigo e erva-mate; do litoral vinham mercadorias estrangeiras: tecidos, bebidas, vinagre, azeite. - O embrio da comunidade paranaense. - Correto. A serra do Mar, que antes era um muro entre o litoral e o planalto, passou a ser uma ponte. Catu estabeleceu-se duas lguas ao norte do ncleo pioneiro de Curitiba, numa grande casa de madeira construda em meio a solenes pinheirais. 29

- Pinheiro, d-me uma pinha; pinha, d-me um pinho... - Os botnicos chamam o nosso pinheiro de araucaria brasiliensis. diferente do pinheiro europeu. O da Europa cnico, tipo rvore de Natal. O nosso lembra uma grande taa. Cresce em linha reta, chegando em mdia a 30 metros de altura. Alguns atingem 50 metros. Naquele tempo, a araucria era uma rvore nativa, aparecendo em grupos, sem que ningum plantasse. Descobriu-se depois que o plantio era obra da gralha-azul, pssaro muito bonito que passou a ser um dos smbolos do Paran. A gralha tem no pinho o seu alimento favorito. Tira a casca, come a polpa e, previdente como a formiga, enterra boa quantidade de pinhes para serem consumidos na entressafra. No conseguindo comer todas as sementes escondidas, estas produzem novos pinheirais. Infelizmente, a imprudncia dos homens vai pouco a pouco acabando com as nossas preciosas araucrias. - Catu?... - Criando gado, cultivando erva-mate e comercializando seus produtos no povoado, Catu viu nascer e desenvolver-se a futura capital paranaense, onde morreu aos 73 anos, em 1695, dois anos aps a elevao do arraial de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba categoria de vila. - E acaba a a histria do nosso Catu... - A histria de um homem no acaba: desemboca, tal como um rio, na histria dos seus descendentes... Catu deixou nove filhos, um dos quais, Henrique Amrico Torales, saiu de Curitiba em 1705, aos 18 anos de idade, disposto a estabelecer-se num ponto qualquer ao longo do Caminho das Tropas, no comrcio de mulas. O caminho atravessava os Campos Gerais, passava por Itarar e continuava at Sorocaba e So Paulo. Vender mulas era timo negcio nessa poca. Em Minas havia necessidade de muitos desses animais para o transporte do ouro, e os mineradores vinham busc-los na famosa Feira de Mulas de Sorocaba, abastecida pelos criadores do Sul. Nesse enredo entrou o esperto Henrique Amrico.

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Os Campos Gerais- Esse Caminho das Tropas fez histria... - A atual rodovia Ponta Grossa-Itarar foi traada justamente nos rastros dos antigos tropeiros. Mas voltemos a Henrique: ele saiu de casa com a modesta herana deixada pelo pai, cavalgou pelos campos, permaneceu alguns dias em Vila Velha, no meio daquelas rochas cheias de mistrios, alcanou adiante as margens do rio Pitangui, gostou do lugar, parou ali. Comprou um pequeno stio e, enquanto construa o rancho, hospedou-se numa pousada de jesutas: um barraco onde os padres reuniam ndios para o catecismo e acolhiam viajantes. Nessa hospedaria ele ouviu dos jesutas muitas histrias, inclusive sobre as antigas redues do Guair. Ao revelar que era filho de um ndio nascido numa daquelas redues, seu prestgio subiu. Os religiosos passaram a trat-lo com especial carinho, a ponto de convid-lo a residir com eles. Henrique preferiu morar no rancho, mas com o compromisso de fazer as refeies na casa dos padres. - Moleza... - A pousada, aos poucos, tornou-se ponto de reunio de toda a vizinhana: fazendeiros, tropeiros, comerciantes, ndios. Foi numa dessas reunies que surgiu a ideia de formar-se o povoado que veio a ser Ponta Grossa. O mais interessante foi a maneira como escolheram o local: soltaram um pombo, combinando que onde ele pousasse seria construda a futura vila. O pombo pousou no alto da colina. E na colina Ponta Grossa nasceu. - Isso uma lenda, ou foi de fato assim?... - Pelo que me consta, a histria do pombo real. Pois bem: Henrique montou seu negcio de mulas, logo se casou, ganhou dinheiro suficiente para comprar outras terras e tornar-se prspero fazendeiro. Morreu em 1772, com 85 anos de idade. Morreu de alegria! - Com assim?... - Uma de suas netas, Jurema, de 16 anos, talvez por influncia do sangue indgena que carregava, fugira de casa para viver com uma tribo nos campos de Guarapuava. Ocorre que naquele ano de 1772 houve uma tremenda batalha 31

entre tropas curitibanas comandadas pelo coronel Afonso Botelho e os nativos da regio. A misso de Botelho era afastar dali os ndios para erguer fortificaes com o objetivo de impedir que os espanhis, anteriormente enxotados pelos bandeirantes, reconquistassem a rea. - A menina estava l?... - Chegou a Ponta Grossa a notcia de que os ndios haviam vencido bravamente a batalha de Guarapuava. Jurema, tendo entrado na briga ao lado dos guerreiros nativos, teria morrido com um tiro no corao. Dois meses depois, entretanto, ela reapareceu em Ponta Grossa, s e salva, acompanhada por um jovem ndio com quem se casara. O tal tiro, em verdade, causara nela apenas leve ferimento. - Ainda bem... - Mas o velho Henrique, ao ver a neta esbanjando sade, foi tomado de to forte emoo, que teve um infarto. - O corao explodiu de alegria! - Com o desaparecimento de Henrique, os negcios da famlia ficaram sob o comando do filho mais moo, Arnaldo Jlio Torales, pai de Jurema. Os quatro mais velhos viviam em Paranagu, trabalhando com exportao e importao. - Jurema ficou com o pai? - No quis ficar. Voltou para a tribo com o marido ndio. A ltima notcia que a famlia teve dela foi por uma carta datada de 1819, dando conta de que Guarapuava, j ento definitivamente conquistada pelos brancos, ganhara o ttulo de freguesia. Na mesma carta, dizia que a partir de Guarapuava prosseguia a expanso rumo oeste, na direo de Foz do Iguau; e rumo sudoeste, passando por Unio da Vitria, alcanando Palmas e penetrando no antigo territrio das Misses do rio Uruguai. Tenho c comigo o palpite de que a nossa indiazinha Jurema acabou se mandando para o Paraguai. - Retornemos a Ponta Grossa... - Arnaldo Jlio viveu at 1791, deixando como sucessor o filho Lus Pedro, que, como a irm Jurema, era rebelde, brigo, mas dotado de forte esprito cvico. Da dinastia dos Torales, foi o que teve mais intensa atuao poltica. Em 1821, aderiu clebre Conjura Separatista, que detonou a campanha 32

pela emancipao do Paran. Em 1822, organizou uma cavalgada que marchou at o Rio de Janeiro festejando a proclamao da independncia do Brasil. Em 1823, foi um dos maiores batalhadores pela promoo de Ponta Grossa categoria de freguesia. Em 1853, j velhinho, viveu a maior emoo de sua vida: a conquista definitiva da emancipao do Paran.

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A provncia do Paran- 19 de dezembro de 1853... Confere? - A Lei Imperial n. 704, que criou a provncia do Paran, foi sancionada no dia 29 de agosto de 1853. No dia 19 de dezembro, com a chegada de Zacarias de Gis e Vasconcelos, enviado como primeiro presidente e encarregado de organizar os servios administrativos, instalou-se oficialmente a nova provncia. - Paran, capital Curitiba! - Curitiba j havia sido elevada categoria de cidade desde 1842, sediando a 5 comarca da provncia de So Paulo. Pela posio geogrfica e por apresentar condies de rpido desenvolvimento, foi naturalmente escolhida para capital. O Paran abrigava na poca uma populao de 62.258 habitantes, dos quais 6.791 viviam em Curitiba. Paranagu contava com 6.533 moradores e Ponta Grossa com 3.033. - Lus Pedro, certamente, assistiu posse de Zacarias... - Estava l, capengando mas cheio de orgulho. Morreu dois anos depois, em 1855. A essa altura os Campos Gerais passavam por uma fase de extraordinrio progresso. O comrcio de mulas, cavalos e bois estava no auge. Os tropeiros iam buscar os animais no Rio Grande do Sul, no Uruguai e na Argentina, invernando-os nas imediaes de Ponta Grossa. Dali eram levados Feira de Sorocaba, onde eram vendidos aos fazendeiros de caf de Minas Gerais e do Vale do Paraba. Consta que a mdia de comercializao de animais em Sorocaba era de 100 mil cabeas por ano. Com isso, cresciam animadamente as vilas paranaenses do roteiro: Palmas, Guarapuava, Ponta Grossa, Castro... - Dizem que os cavalos de Palmas e Guarapuava eram de maior valor no mercado... - Famosssimos. - Me diga uma coisa: no se plantava trigo no Paran nessa poca?

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- Claro que sim. Mas trigo no se planta; semeia-se. Pelo menos o que se ensinava naqueles tempos. A tcnica utilizada nos Campos Gerais era a seguinte: comeava-se por fazer o gado estacionar na rea a ser cultivada, para esterc-la; depois trabalhava-se a terra com enxada e arado e em seguida semeava-se mo, cobrindo os gros e fazendo passar por cima, maneira de grade, a copa de uma rvore puxada por bois. Dizia-se que a colheita seria tanto melhor quanto mais fortes tivessem sido as geadas. Nas prprias fazendas moa-se e panificava-se o trigo. - Os Torales se dedicavam tambm lavoura de trigo? - O negcio quente deles era o comrcio de mulas. Lus Pedro deixou trs filhos homens, que se organizaram para expandir a rede. Um deles ficou em Ponta Grossa cuidando da invernada; outro viajava seguidamente ao Sul comprando mulas e cavalos; o terceiro, Fernando Paulo Torales, que veio a ser meu bisav, estabeleceu-se em Sorocaba: a ele cabia receber os animais enviados de Ponta Grossa e orientar a comercializao na feira. Dessa forma o negcio continuou de vento em popa, at 1874, ano em que morreu Fernando Paulo. - Os herdeiros no quiseram lidar com mulas? - Fernando morreu relativamente jovem, com 53 anos. Tinha apenas um filho, meu av Joo Afonso, do qual tenho falado desde o incio desta narrativa. Ocorre que nessa poca j corriam trens em vrias regies do Brasil, desvalorizando as mulas como meio de transporte. No vendo futuro naquele comrcio, Joo Afonso preferiu ento mudar de ramo. Abolicionista e republicano ferrenho, no fogo dos seus 22 anos, vendeu a pequena fazenda que herdara do pai nas vizinhanas de Sorocaba (onde eram invernados os animais antes de serem levados feira), alforriou os poucos escravos l existentes e montou uma casa de secos e molhados. Na cidade estaria dentro da lufa-lufa poltica que tanto o fascinava. Naquela casa meu pai Jos Francisco Torales cresceu vendendo feijo, cachaa e ferramentas. Em 1903, meu pai se casou com minha me Carmen, uma espanhola bonita e de gnio forte que ele conhecera em Santos. Como presente de casamento, Joo 35

Afonso lhe deu sociedade na firma e passou a cuidar mais de poltica do que de negcios. - E a tal farmcia? - A farmcia meu av montou dois anos depois, para continuar mantendo contato com o povo. Quando completei 15 anos, ele me colocou l como aprendiz, dizendo que o estabelecimento futuramente seria meu. Sei l por que razo, ele tinha um dengo todo especial por mim. Ensinou-me a lidar com remdios, fez-me frequentar a escola, conversava muito comigo, e foi nessas longas conversas que fiquei sabendo das aventuras dos Torales. O velho morreu em 1929, com 77 anos, deixando de fato a farmacinha para mim. - Mas o senhor no ficou l por muito tempo... - Na poca falava-se muito das terras roxas que comeavam a ser abertas no norte do Paran. Empolgado com aquelas notcias, e diante da oportunidade de retornar s origens da famlia, no resisti tentao. Em 1932 j estava morando em Londrina. - Famlia predestinada essa sua. Os Torales estiveram envolvidos em histrias de ndios, de mineradores e de tropeiros. Agora vo mergulhar na histria dos bandeirantes do caf... - Prefiro dizer pioneiros do caf. Pioneiro me parece uma denominao mais adequada a quem chega para ficar, produzir, sofrer, crescer com a terra onde se instala. Mas falemos do caf, que tem uma histria muito interessante.

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A bebida da moda- Tudo comeou com Melo Palheta... Correto? - No Brasil, sim, porm o caf muito mais antigo. Em 1500, quando Cabral chegou aqui, os bedunos j o conheciam havia 650 anos. No incio do sculo 18, o produto comeava a ser consumido intensamente na Europa, especialmente na Frana, onde ganhou status de bebida da moda, rivalizando com o ch. Os elegantes cafs de Paris so famosos desde aquela poca. Alm do sabor agradvel, o produto apresentava a virtude de combater o frio e curar as enxaquecas. - Ainda hoje ele tido como timo remdio contra ressaca... - Os franceses andavam procura de algo que substitusse o ch da ndia, ento monopolizado pelos ingleses. Decidiram por isso introduzir a cultura do caf na Guiana, por volta de 1710. Foi dali que a preciosa rubicea passou para o Brasil, trazida pelo comerciante portugus Francisco de Melo Palheta, em 1727. Consta que Palheta foi Guiana Francesa em misso especfica do governo de Lisboa: obter mudas de caf para iniciar o plantio em terras brasileiras. Portugal estava de olho grande no crescente mercado aberto para a nova bebida na Europa. O fato que logo em seguida surgiram nos quintais de Belm do Par os nossos primeiros cafeeiros, prosseguindo a expanso ao longo do litoral: Maranho, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Esprito Santo, Rio de Janeiro... - Em grande escala? - Ainda no. Plantava-se caf em chcaras e quintais para uso caseiro das famlias mais sofisticadas, que gostavam de imitar os hbitos europeus. O forte da agricultura brasileira continuava sendo a cana-de-acar, o fumo e o algodo. Somente a partir de 1820 surgiram grandes lavouras de caf, sobretudo em Minas Gerais e no Vale do Paraba. Em 1830, o produto j ocupava o terceiro lugar em nossa pauta de exportaes, alcanando em 1850 a liderana. - Nova era na histria do Brasil... 37

Rumo terra roxa- Foi nessa poca que o caf chegou a So Paulo, onde encontrou canteiro ideal: as prodigiosas terras roxas, cujas primeiras manchas encontravam-se na regio de Campinas. Era o ponto de partida para a mais significativa arrancada de que se tem notcia na histria da economia brasileira. Na terra roxa os cafezais passaram a produzir o dobro, muitas vezes o triplo daqueles cultivados em outros solos. - Como se explica essa fora da terra roxa? - Isso coisa para ser explicada por especialistas, porm j li que h cerca de 180 milhes de anos ocorreram derrames baslticos em vastas reas hoje pertencentes a So Paulo e ao Paran, dando origem a esse tipo de solo. A natureza costuma operar maravilhas em seus misteriosos laboratrios. O fato que essas terras, graas quele enxerto qumico, adquiriram nova colorao e extraordinria fertilidade. Pois bem: com tal canteiro sua disposio, os fazendeiros paulistas formaram um verdadeiro mar de caf, obtendo fartos, lucros cujos excedentes passaram a ser diversificados. Cresceu o comrcio, construram-se estradas de ferro e usinas de eletricidade, e surgiram as primeiras grandes indstrias. - So Paulo assumiu o papel de locomotiva... - Com dinheiro sobrando, So Paulo nunca mais parou de crescer, para tornar-se em menos de um sculo o maior centro social, poltico e econmico da Amrica do Sul. A locomotiva disparou! - Campinas disparou junto... - Campinas foi o marco inicial dessa nova era, passando a centralizar o comrcio cafeeiro, que antes dera vida s cidades do Vale do Paraba: Bananal, Parati, Queluz, Pindamonhangaba e outras. A partir de Campinas, seguindo os rastros da terra roxa, o caf expandiu-se para oeste e sudoeste. Tamanha era a produo, que no podia mais ser transportada em lombo de burro. Da a urgente necessidade de se construir ferrovias: a Sorocabana, a Mojiana, e a fantstica Santos-Jundia, que venceu o bloqueio da serra do Mar e passou a levar o caf diretamente ao porto. 38

- E o trem chegou ao Paran... - E me trouxe at Londrina. - J existia Londrina? - Estava ainda com cheiro de mato, porm j fervilhando. E como lhe disse no incio, em Londrina permaneci durante dez anos, dali partindo em 1942 para me estabelecer definitivamente em Maring. - E ento... - Ento testemunhei desde a primeira hora a fascinante histria desta cidade. Mas aqui podemos encerrar a conversa, visto que o que dali por diante aconteceu por demais conhecido de todos. Rodrigo acendeu outro cigarrinho de palha, despediu-se, e nada mais me restou seno agradecer e pr a fbula em ata.

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