a provincia das trevas

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Daniel Arsand

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DADOS DECOPYRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizadapela equipe Le Livros e seusdiversos parceiros, com oobjetivo de oferecer conteúdopara uso parcial em pesquisas eestudos acadêmicos, bem como osimples teste da qualidade daobra, com o fim exclusivo de

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compra futura.

É expressamente proibida etotalmente repudiável a venda,aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente conteúdo

Sobre nós:

O Le Livros e seus parceirosdisponibilizam conteúdo dedominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmentegratuita, por acreditar que oconhecimento e a educaçãodevem ser acessíveis e livres atoda e qualquer pessoa. Você

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pode encontrar mais obras emnosso site: LeLivros.link ou emqualquer um dos sites parceirosapresentados neste link.

"Quando o mundo estiver unidona busca do conhecimento, e

não mais lutando por dinheiro epoder, então nossa sociedade

poderá enfim evoluir a um novonível."

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APROVÍNCIADAS TREVAS

Daniel Arsand

Tradução de MARCOS DECASTRO

Título original em

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francês: LA PROVINCE DESTÉNÉBRES

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte

Sindicato Nacional dosEditores de Livros, RJ.

Arsand, Daniel, 1950—A822p A província das

trevas / Daniel Arsand;tradução Marcos de Castro.—Rio de Janeiro: Record, 2003.

Tradução de: La provincedes ténebres

1. Romance francês. 1.

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Castro, Marcos de. II. TítuhCDD—843

CDU—821.133.1-3Todos os direitos

reservados. Proibida a reprodução,armazenamento ou

transmissão de partes destelivro através de quaisquer

meios, sem préviaautorização por escrito.

Proibida a venda destaedição em Portugal e resto da

Europa.Direitos exclusivos de

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publicação em línguaportuguesa para o Brasil

adquiridos pelaDISTRIBUIDORA

RECORD DE SERVIÇOS DEIMPRENSA S.A.

Rua Argentina 171 — Riode Janeiro, RJ—20921-380—Tel.: 2585-2000 que se reservaa propriedade literária desta

tradução

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Introdução

Eis aqui um romancefabuloso, em todos ossentidos. Cheio de peripéciasimaginosas, este A provínciadas trevas foi recebido comaplausos pela crítica francesae deu ao seu autor, DanielArsand, o Prêmio Femina de1998—e prêmio na Françasignifica sucesso de público.A qualidade justifica todo obater de teclas a seu favor.

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É um primor de narrativa,que flui a cada linha.Fluência, aliás, plenamentetransposta para esta traduçãobrasileira.

A história começa naArmênia em 1294, numséculo (o XIII) consagradoaos negócios e à fé ardente,quando um certo ou incertorei franciscano Hetum II, semsaber o que fazer diante dosnacionalistas que o acusavamde dobrar a espinha às ordensde um papa, teve a luminosa

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ideia de enviar uma caravanaa Pequim para levar acristandade ao império deKublai, que se considerava osoberano do planeta. Paratanto, ele nomeouembaixador do SumoPontífice Nicolau IV uminescrupuloso mercador deVeneza chamadoMontefoschi. Sua missão: ir àChina acompanhado de ummonge de 20 anos, VartanOvanessian, iluminador quetinha como única ambição

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pintar as maravilhas domundo. A eles se juntariamum malfeitor punido com acastração por suasladroagens, um charlatãofranco e mais uma tropa dearmênios, mongóis e judeus,que iria se revelar uma corjaordinária de devassos cruéis.

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A Nicole, Evy e KathyA Antonia.A Pascale G.

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PARTE 1 - OROMANCE DE

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MONTEFOSCHI

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Capítulo 1

Hetum II, rei da PequenaCilícia e rei franciscano,oscilou sem tréguas entre omosteiro e o trono. Em menosde doze anos, abdicará porduas vezes e por duas vezesvai apoderar-se do cetro. Eenquanto reinava, tinha orosto voltado para a cruz.

Numa noite do ano de1289, pedia a Deus quemantivesse ainda por muitotempo a amizade política que

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tinha estabelecido com Roma.Alguns de seus próximos,uma grande parte daaristocracia e o povo todocondenavam seussentimentos pró-latinos. Osnacionalistas armênios,criados no seio da Igrejagregoriana, julgavamduramente esse monarca quedobrava a espinha às ordensde um papa. A traiçãorondava as salas do palácio,espalhava-se pelas cidades,pelos campos e até fora das

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fronteiras do reino de Hetum:os francos sonhavamescravizar um Estado deportos florescentes; osmongóis da Pérsia, a ponto deconverter-se ao islam, dealiados poderiam sem dúvidatornar-se inimigos jurados.Hetum II, cansado dasintrigas e das guerras, rezava,naquela noite, ajoelhado e demãos postas. Em vão buscavapronunciar palavras deadoração. Longínquoscânticos de salmos e vozes

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que subiam das cozinhas odistraíam. Hetum, então,persignou-se e se levantou. Anoite começava a escurecer océu e persistia o doce calor defevereiro. Na sombra quedominava o cômodo, o rostomagro e barbudo do rei quasenão podia ser notado.Entretanto, se fosse possívelvê-lo, surpreender-se-ia emseus lábios um sorriso,porque Hetum pensava nummercador veneziano, VicenteMontefoschi, e pensar em tal

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homem o serenava. VicenteMontefoschi, no dia seguintecedo, levaria um dos maiscélebres pintores da Cilíciapara Pequim, a capital deKublai, o Khan dos khans. Orei também o esperava: emalguns meses, um mongeminiaturista pintaria sob osolhos do imperador dosmongóis um Cristo em suaglória e levaria a verdadeira féaos confins do mundo. Dessatrama, Hetum tinha sido oartesão. Confiante, em paz, o

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rei da Cilícia voltou a seajoelhar ao pé de um crucifixopara pedir ao seu deus que omantivesse acordado e alegreaté que o dia nascesse.

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Capítulo 2

Num quarto da fortalezade Sis, o palácio de Hetum II,Vicente Montefoschientregava-se ao repouso e nãose aborrecia com a insônia.No dia seguinte, faria suasegunda viagem à China. Aglória o espreitava, desde queum papa e um rei o tinhamdesignado embaixador juntode Kublai. E, entretanto, suafamília não tinha parentesconem com a dos Samudo, nem

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com a dos Querini ou a dosMorini, esses mestres dosnegócios venezianos: simplesfilho de um mercador cujafortuna e cuja celebridadenão podiam rivalizar com asdeles, era entretanto maisambicioso do que o pai e maisardiloso do que os ladrões ouos banqueiros de Veneza.

Adolescente, conhecera omar, suas tempestades e seuspiratas e até matara apunhaladas para salvar suavida. Com vinte anos, já

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avaliava com segurança acapacidade dos músculos deum escravo, a resistência deum tecido, a pureza do ouro.Dez anos mais tarde,murmurava-se que tinhaenvergadura para destronaros Samudo ou os Querini. Naverdade, tudo lhe saía bem,seu império se estendia daGrécia ao Mar Negro.

Mas um dia em quecaminhava pelos entrepostosde sua casa de Sudak, naCrimeia, teve uma revelação:

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nenhum mercador, que eleconhecesse, tinha conseguidoa imortalidade.

Porque, quanto a si,esperava desde a infância queseu nome atravessasse osséculos, essa descoberta oabalou. Homem de ação antesde tudo, Montefoschidemorou-se pouco a meditarsobre a fatalidade ligada aoshomens de sua profissão.Num olhar sobre o passado,certificou-se de que os quetinham se tornado notáveis

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eram quase todos príncipes,filósofos, santos ou generais.Como não era nobre, como demodo nenhum era dado àmortificação da carne e semostrava impermeável àsdoutrinas de Aristóteles oude Platão, o oficio das armaslhe pareceu o melhor paraconstruir um destino dignode escapar do esquecimento.Esse ideal passou aentusiasmá-lo de tal formaque ele negligenciava o fatode que guerrear requer um

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aprendizado e que antes deser promovido a oficial épreciso aprender a manejaruma arma. Imaginaçãoardente, sonhava com vitóriasque viriam rapidamente eperdia o sentido da realidadeque o tinha ajudado aacumular riqueza. Tinhaconfessado seus projetos aalguns amigos, e suaspropostas chegaram mesmo aseduzir gente como ele,exaltada diante da visão deterras fabulosas. Sua enorme

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estatura e seu talento detribuno convenceram essaspessoas de que cedo ou tardeele estaria sentado à direitade Kublai ou que devastariaplanícies e cidades,divinizado por suas façanhas.Tinham jurado segui-lo pelosterritórios segundo elepovoados de pássarosassassinos e de criaturas decoração insensível. A fim deevitar os rigores do inverno,decidira que a aventuracomeçaria na primavera.

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À frente de trinta homens,deixou para trás, numamanhã de março, suas lojas eseus navios, confiados àsupervisão de umadministrador.

De pouso em pouso, oveneziano manifestava cadavez mais sua personalidade:era homem talhado noorgulho e na crueldade.Cobria de sarcasmos oscompanheiros quemostravam fraqueza, fazendodeles alvo da chacota dos que

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conduziam jumentos.Numerosos deles haviam secansado de suas ofensas e deseu desprezo e tinhamretomado o caminho deBizâncio, de Sudak e de Aiás.A deserção deles não pareciacomovê-lo muito.Montefoschi continuava peloscaminhos do Oriente,confiava em seu futuro, comose o esperasse um mundo deprodígios no qual ele teriaseu lugar. E, seguramente, osdeuses de cada região

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atravessada o protegiam, poisele chegou a atingir Pequimsem ter conhecido o medonem os riscos familiares atodo viajante de seu tempo.

Kublai só lhe concederauma entrevista um mêsdepois de sua chegada.Elogiando o sistema postal,que se estendia por todo oimpério mongol, e o espíritode previdência que tinhalevado o país à construçãodos silos de grãos para o casode escassez, Montefoschi

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tinha conquistado seuinterlocutor. Sua bajulação foirecompensada.

Quando se despediu dosoberano, um ano mais tarde,foi feito portador de umacarta imperial endereçada aopapa Nicolau IV, pela qual sepodia supor que o khanestava prestes a se converterao cristianismo. Kublaiacrescentava que ficaria felizde acolher em sua cortesábios, artistas, teólogoscapazes de gravar na pedra,

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escrever sobre pergaminhoou exprimir pela palavra agrandeza do Ocidente.

Os deuses ainda velarampela segurança desseembaixador, mas desta vezprotegendo-o até Roma, ondeNicolau IV assegurou-lhe queatenderia a todas aspretensões do imperador.Acreditar nisso seria esquecerque o papa tinha adesconfiança no sangue. Nomomento de embarcar paraAiás, Montefoschi não levava

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consigo mais do que doismonges esfarrapados, e comoúnico tesouro a oferecer aKublai três gotas de óleoconsagrado no fundo de umagarrafinha. Jamais conseguiuobter uma segunda audiênciapapal e seus protestos porescrito semprepermaneceram letra morta.Apesar de seu desânimo e desua raiva, amaldiçoandoNicolau IV e praguejandocontra a Igreja e seusservidores, precisou raspar o

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fundo de sua bolsa paratransformar os dois pequenosmonges em bispos.

A nau que singrava emdireção à Cilícia tinhaenfrentado uma tempestadeao largo da costa grega.Apavorados com esseapocalipse, os dois bispos decomédia se refugiaram noporão, onde, sob o efeito dobalanço do navio, perdiam oequilíbrio, gritavam injúrias.Dir-se-ia que teriam contraídoa dança de são guido.

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Enquanto isso, Montefoschiajudava a marujada a soltar avela da verga, porque asborrascas ameaçavamdilacerá-la. Os marinheiros jánão tinham esperança deescapar do naufrágio, mas oveneziano não cedia ao temorque se espalhava, e até a fúriados elementos parecia exaltá-lo.

Quando o vento amainoue as ondas deixaram de sertão altas, quando, afinal, viu-se que o barco ainda teria

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bons dias à frente,Montefoschi comemorou avolta da tranquilidade: seufuturo, claramente, estavaabençoado pelos deuses.

No porto de Más, elefestejou como um velhomarujo a vitória conseguidasobre o mar. Foi visto aembriagar-se em todas asespeluncas da cidade, cobiçaras moças e entregar-se àscanalhices mais desprezíveiscom a rapaziada. Entretantonem o álcool nem os breves

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agarrões conseguiram fazercom que esquecesse damissão a desempenhar nacorte de Kublai. Até porque oridículo de seu séquito opreocupava. Comoimpressionar o imperadortendo como riqueza únicadois monges imbecis e umvidrinho de óleo? Seriapreciso mais. Foi ao fimdessas aventuras na cidadeque ele começou a pensar queo rei da Cilícia poderiaresolver o problema de sua

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miséria. Convencê-lo a obtersoldados e uma caravana, eaté mesmo, por que não, quese juntassem a ele artistas detodos os tipos, passou a seruma ideia fixa. Negociantes emilitares, taverneiros eprostitutas o repetiam,Hovsep também, este beloamigo que ele havia abordadono cais: Hetum desejavafirmar sua amizade com oKhan dos khans. A ocasiãofaria o ladrão: Montefoschiseria o homem para aquela

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situação. Foi assim que oveneziano viajou até Sis econseguiu audiência.

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Capítulo 3

Aos vinte anos, VartanOvanessian, monge e pintorde iluminuras do convento deSguevra, suscitou aadmiração de seus pares pelarealização de O Evangelho deLeão II. Mas essa obra queexaltava o divino e reconheciaa sabedoria de um rei atraiucontra ele ciúmes einimizades. O conventotransformou-se no teatro deduas facções rivais. A

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primeira não se cansava dever em Vartan um gênio, asegunda suspeitava de sua fé.O cabeça desta última era ummonge impetuoso queatendia pelo nome deArtavazd. Tornou cada vezmenos discretas suas dúvidasquando Vartan começou apintar alguns episódios davida da Virgem. Os traços deMaria lembravam o de umacriada amorosa ou ainda o deuma viúva comovida com alembrança de ternuras

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trocadas. Sob os véus e a sedaque a vestiam, palpitavam ascurvas de uma carne tenra epura.

E no céu e entre as dobrasdas vestes dos Reis Magoscorriam reflexos de umvermelho vinho. Talvermelho, decidiu Artavazd, éo vermelho da impureza. Essecensor convenceu muitosmonges de que Vartan era umsensual e um ímpio. Umacabala nasceu na capela e nosjardins do claustro. O censor

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chamou a atenção dosconjurados para a indolênciacom que Vartan dirigia-se aoofício e o sorriso de ironia friaque mantinha no instante dacomunhão.

Carregando umcandelabro, pálido earqueado, os olhos animadospor uma curiosidadedemente, o monge caminhouuma noite para o scriptorium.As mãos apertadas contra oventre, ele titubeava, poisuma cólica o incomodava

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desde a véspera. Quandochegou, foi direto àescrivaninha de Vartan ebaixou o candelabro até umpergaminho no qual, porefeito do tremor da chama edo seu pulso, parecia agitar-se uma miniaturarepresentando o batismo deCristo. Artavazd triunfava.Essa nova obra revelava comimpudência que Vartan eraum aluno e um admirador deEstratão de Sardes, esse gregosodomita. O Cristo e o santo

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não fixavam nem as nuvensnem as águas, mas se uniampelo olhar. A nudez convidavaa abraços. Seguro de poderafinal demonstrar a naturezaperversa de Vartan, o mongevoltou a sua cela. Mas tãologo estendeu-se no catre,entrou em convulsões. Aoamanhecer, foi encontradoafásico e com paralisia dosmembros superiores: a sortesorria para Vartan.

Algumas horas maistarde, um correio do rei

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ordenava que o iluminadorfosse a Sis.

Seis cavaleiros cavalgavampor uma estrada queserpenteava entre ruínas eextensões de relva baixa.Quatro soldados escoltavamVartan Ovanessian; omensageiro de Hetum osseguia. Os soldados iamcalados e esse silêncio erabom para Vartan, que podiaobservar à vontade apaisagem. A pequena tropapassou não muito distante do

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castelo de Lampron, feudo dadinastia hetúmida e fortalezatida como inexpugnável. Ojovem reconheceu o grandebosque, que tinhamcontornado havia pouco, dotempo de sua adolescência,quando seu pai às vezes olevava a passear pelasestradas da Cilícia. Sentiahoje como ontem umaviolenta impressão deliberdade.

Kevork Ovanessian eraaparentado com a família dos

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hetúmidas. Dono de magrafortuna, tinha uma casa deboas proporções, empregadose algum gado, comoarrendatário.

Era um homem amargo,de cóleras violentas, poucodado à conversa.

Entretanto, também erapiedoso. Tios e primos àsvezes faziam uma parada emsuas terras e à noite, em voltade um fogo, informavam-nosobre os negócios do reino,falavam da assinatura de um

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tratado, da obtenção de umaaliança, de uma guerraprovável. Em relação a essesvisitantes, ele guardavasempre uma certa distância.

Só com os filhos, Haik eVartan, o velho Kevorkdeixava de ser tão reservado,tentando transmitir-lhesespírito de prudência elealdade para com osoberano. Mas não secontentava em dar-lhes sábiosconselhos. À prática dasvirtudes, acrescentava a

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prática das armas. Depois deduelos com espadas, falava-lhes dos massacresperpetrados outrora pelosseldjúquidas sobre aspopulações armênias eexcitava-lhes assim aimaginação com visões defogo e de sangue.

Haik foi o primeiro adeixar o domínio paternopara se engajar como oficialno exército de Leão II, oantecessor de Hetum. Ainstrução da prática das

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armas teve um efeitocontrário sobre Vartan.Galopar através de um campode batalha era coisa que não oinspirava: sua única aspiraçãoera consagrar-se à arte dailuminura que descobrira,ainda criança, num livro deorações. E essa arte só podiaser exercida por trás dosmuros de um convento.Kevork aprovou o desejo dofilho. Advertiu-o, entretanto,para que não esquecessenunca de que o monge, como

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o soldado, deve sabermanejar o sabre e decapitarcom o machado, porque osclaustros, como os palácios,estão sujeitos a assaltosguerreiros.

Antes que as portas deSguevra se fechassem atrásde Vartan, Kevork fez com ofilho uma viagem através daCilícia. Queria que Vartantivesse de sua pátria umaideia concreta e que soubesse,ao pé de uma cruz, intercederjunto de Deus para que

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fossem protegidos deinvasões aquela terra e seusesplendores. Percorreramentão mil caminhos,alimentavam-se de frutassecas e de carne seca,enchendo seu odre com aágua dos regatos, dormindoem Tarso, Adana, Mopsueste,Sis e Más. Nos portos, Vartanse familiarizou com otumulto dos cais e os odoresmisturados do açafrão, dapimenta e do gengibre. Pertodas bancas de feiras, ouvia

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retalhos de conversas em quese lembravam os bordéis deTabriz, as fábricas de faiançade Kaxã, as altas dunas e anévoa amarela do Tarim, asestufas que toda aldeia doNorte tinha. Ao ouvir essaslembranças trocadas pelosmercadores, nasceu nele odesejo de explorar regiões decuja existência até então elenem sequer desconfiara.Também se deu conta de queo mundo não se resumia aosmuros de um convento, e

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duvidava então de poder secontentar com um únicolugar e se entregar a umaúnica tarefa. Mas nãoconseguiu confessar ao paique suas certezas começavama vacilar.

A viagem durou quatromeses. Pouco depois de suavolta à casa paterna, Vartanpassou a integrar acomunidade de Sguevra.

A pequena tropaaproximava-se de Sis. Vartannão pensava mais no

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convento onde tinha passadoquatro anos de sua vida. Suaatenção estava totalmenteabsorvida pela repetição oupela diversidade daspaisagens, pela batida doscascos sobre a areia, o saibroou as pedras, pelo incômodode uma roupa da qual umpano se atritava semprecontra a coxa, pelos músculosdo cavalo indo e vindo sob apelagem. Planejavarepresentar um dia com seuspincéis o efêmero movimento

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das coisas. E voltavam-lhe àmemória as discussões dosmercadores de Aiás. Emverdade, as lembranças deles,muito frequentemente,tinham ocupado suas noites esuscitado visões. Ao contráriodos outros monges, Vartanquase não se via em sonhos,depois de uma vida depenitência, ao lado dos santose dos arcanjos. Pecava porindiferença em relação a tudoque não fosse sua arte, e nãotinha nenhuma vergonha

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disso. Em sua cela ou em suaescrivaninha, atormentava-oapenas o pensamento de nãopoder reproduzir o verdepenugento da amendoeira ouum vermelho sanguíneo. EmSguevra, como na estrada deSis, tinha uma únicaobsessão: pintar asmaravilhas do mundo. Nessemomento é que a capital daCilícia se abriu diante dele,com seus casebres, suasresidências patriciais, seupalácio, seus jardins.

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Viu mulheres perto de umpoço e crianças rolando napoeira, homens quemendigavam e cachorroscochilando à sombra de umaárvore. E eis, dizia ele, ouniverso onde as coisasacontecem e onde se morre.

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Capítulo 4

A caravana estacionou emSis, onde Hetum II deu-lheum chefe na pessoa deVicente Montefoschi. O reiprovidenciou também umamilícia para velar pelasegurança de Vartan e dosmercadores pelo menos atéTabriz, porque, depois de lá,as estradas do impériomongol tinham a fama de serseguras. O único perigoprovinha dos demônios que

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povoavam os desertos e osvales. O aço mais bemtemperado, o coração maisimune às tentações nãoresistem à fulguração de seusassaltos. Mas às vezes essesincontáveis demôniosignoram os viajantes.Escondem-se nos céus ou nasfolhagens, invisíveis e mudos.O medo, porém, é o fielcompanheiro de quematravessa as planícies e sobeas montanhas. Todos—monges, mercadores e

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soldados—farejam o queinevitavelmente lhesreservam os caminhos daÁsia, esses caminhosbarrentos ou verdes de umarelva abundante, essescaminhos cercados de ruínas.Sonhos ou sinais celestes ostinham convencido de queseu corpo e sua almasofreriam uma metamorfose,fosse ela degradante ou não.E todos, apesar dos sonhos eavisos, partiam em busca deriquezas, dispostos a afrontar

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as trevas ou a luzdeslumbrante de uma regiãosem nome.

A caravana ocupava apraça do mercado de Sis etransbordava pelas ruasvizinhas. Aproximava-se ahora da partida. Uma poeiraáspera e incessante subia porentre os animais e os homens,fazia círculos em torno daspatas e das pernas comoamarelos e ardentes gasesvulcânicos. Numa progressãoirreprimível, cobria torsos e

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cabeças, formavarapidamente uma amplanuvem que se movia aosarrancos, vacilava, dissipava-se aqui e ali, mas nem porisso deixava de subir até ostelhados. A efervescência dosmercadores dava umaestranha impressão detempestade. Os cavalos, asmulas e os burrosarranhavam o chão com aspatas e escoiceavam, oscamelos mostravam-seirritados. Apertavam-se as

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correias dos fardos de panogrosseiro com cheiro de cal. Oforro das cinturas guardavaouro e pérolas. Nessaconfusão, estalavam ouurravam vozes: vozes agudas,roucas, engroladas pelovinho, vozes de espanhóis,francos, judeus e dosarmênios. Eram as vozes daexasperação e da impaciência.Também se gesticulava muito.Dedos indicadoresapontavam para uma rédea,para estribos, uma ferida em

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uma ilharga, uma arcafrouxamente amarrada, umaarma mal polida. Trêsintérpretes bebiam um vinhobranco num canto da praça,indiferentes ao barulho.Carregando cântaros eanunciando água ou algumabebida alcoólica, mulheresabriam caminho através damultidão. Um franco queamava as moças e previa aprópria morte—seu olhar jámostrava o brilho dos gelosque petrificam e o fogo dos

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sóis que incendeiam—marcou encontro com elaspara um século depois.

Vicente Montefoschiapareceu, enfim, seguido deVartan. O veneziano, sabia-se,impunha respeito ali por suaamizade com o rei da Cilícia,com o papa e com Kublai.

Sua chegada anunciavaque era tempo de deixar acapital e partir para aquelascidades onde se troca aesmeralda por peles deanimais, o garoto de prazeres

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pela mocinha.Os viajantes esperavam o

sinal de partida, febris eansiosos, infantis e brutais,carregados de preconceitos esedentos de aventuras,impregnados de sua fé e desuperstições, a imaginaçãocheia de contos deAlexandria, a cabeçatransbordante de cifras e decálculos complicados. Umaimensa onda de alegriapercorreu a praça quandoMontefoschi montou em seu

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cavalo. Por sua vez,mercadores e guias alçaram-se a suas montarias. Era umaimportante caravana de nãomenos de sessenta homensque deixava atrás de si Sis esua história.

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Capítulo 5

Montefoschi ruminavauma raiva violenta. Os doismonges—triste séquito quelhe legara o papa—tinhamfugido da cidade. Aquelesdois raquíticos tinham seapavorado com as históriasde terras devastadas e corpostorturados que lhes tinhamcontado os marinheiros. Masos dois poltrões eramardilosos e tinham o negóciono sangue: tinham levado

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com eles as ricas vestes queseu chefe lhes dera, pensandoem passar nos cobres omenor galão, o mínimobordado, o mais fino fio deprata. Montefoschi nãoduvidava disso e por issoqueria transformá-los emescravos. E sua cóleraaumentou porque VartanOvanessian tentava comobstinação entabularconversa com ele.

Fazia perguntas, citava emvoz alta o que via, um

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horizonte de brumas,campos, pantanais.Montefoschi detestava osjovens faladores. Afinal,Vartan se cansou de falar comum mudo e também sefechou no silêncio. Lembrava-se da véspera da partida, ojantar que tinha reunido ummonge, um mercador e umrei. Durante a refeição, tinhaobservado com calma oveneziano. Uma forçaimpositiva, inflexiva eperturbadora emanava

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daquele homem. No fim danoite, ele tinha aberto ummapa preparado por umespecialista do Cairo.Traçando com o dedo oitinerário que Vartan e elepercorreriam a partir do diaseguinte, designara cidades erios, maciços montanhosos edesertos. Quanto maisenumerava lugares, mais suavoz se apagava. Era a voz dequem se abandona a umsonho. A observá-lo, Vartanachou que Montefoschi tinha

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a estatura de um rei. Mas suaintuição lhe dizia comprecisão que ele seria rei deum reinado efêmero,cavalgando entre cidadesdestruídas pelo fogo e aolongo de lagos assoreados. Derepente, o venezianoinspirou-lhe um sentimentoaparentado com a amizade.Sentia-se prestes aacompanhá-lo no ponto emque uma dinastia nascia doacasalamento de um loboazul e uma corça, no ponto

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em que se erguem portas deouro, no ponto em que omundo se revelava talvezilimitado. E ele tambémnaquele momento se perdianum sonho.

À noite, junto de um fogo,Montefoschi sentou-se aolado de Vartan e, sempreâmbulo, determinou-lheque fizesse voto de silênciodurante o dia, porque falarsem medida aumenta a sede,os lábios se gretam e o peitologo começa a queimar. Desse

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modo, mercadores quefalavam sem parar eirrefletidamente foramobrigados a se calar, agarganta indócil. Tudo quelhes restava era o desejo damorte. E, como se se dirigissea si mesmo, Montefoschiacrescentou que háconfidências inúteis eentusiasmos vãos. Deu emseguida um rápido sorriso ese afastou.

Vartan ficou ainda muitotempo ao pé do fogo e só

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dormiu no fim da noite. Aoraiar o dia, Montefoschi osacudiu sem cerimônias.Algumas horas mais tarde acaravana entrava naTurcomania. Havia campos dealgodão e campos de trigo,bosques de carvalhos e umaextensão de água que seafilava bruscamente entrerochas como um fio de fogobaixo. Afinal, sob um céumuito azul e entre ummurmúrio de água demananciais, surgiu a cidade

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de Kaiseri.

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Capítulo 6

No pátio de umcaravançará de Kaiseri emque nossos viajantes estavamestacionados, degolavam-secordeiros e acendiam-sefogos. Um cheiro de pêloqueimado, de couro, desangue e de gorduraimpregnava os corpos, asárvores e a penumbra queenvolvia as bestas de carga.

O responsável pelocaravançará tratava aos berros

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uma coorte de empregados eauxiliares de cozinha. Tinhaencarado longamente Vartanà sua chegada. Inclinando-sediante dele, seu olhar se tinhadesviado do hábito de lã parademorar-se sobre o crucifixopreso ao pescoço por umacordinha.

Ao quarto onde agorarepousava o jovem, umadolescente levou um pratode carne, frutas e biscoitos.Fixou o monge cominsistência, como se examina

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o rosto de um inimigo. Derepente, inclinando-se demodo incisivo, tocou de leveno crucifixo. Vartan fez ummovimento instintivo derecuo. Jamais ninguém tinhatocado o humilde ornamentode madeira, quanto mais umestrangeiro. O gesto o tinhaexasperado, porque ele eraintolerante quanto a qualquerfamiliaridade a seu respeito.O adolescente oesquadrinhava de alto a baixosempre com o mesmo olhar

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hostil. Resmungou algumaspalavras num tom aparentede insulto, depois se afastou.Esse comportamentosingular, em si mesmo poucoimportante, fez aflorar emVartan uma inquietudeincubada nos últimos dias.Examinou o cômodo onde iadormir. Tudo, do catre àssombras, pareceu-lhe pesadode ameaças. Apertou ocrucifixo contra o peito. Masisso teve pouco efeito sobre omal-estar que o dominava. Nã

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Anatólia como em Sguevra,decididamente ele nãoconseguia se livrar dessesmomentos de angústia.

A visão de qualquer pratode comida o incomodava. Foià janela, respirou o fresco danoite. Mercadores discutiamnum canto do pátio. Os fogosassumiam tons avermelhadoscomo nas planícies em que osnômades se reuniam,barulhentos. Vartan seafastou da janela certo deestar sendo observado. Foi

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nesse momento queMontefoschi empurrou aporta do quarto. Observouque Vartan não tinha tocadoem sua refeição, que estavapálido e tenso. Mas não feznenhum comentário, pôs aolado da cama um fardo quedesatou no ato, mostrando asroupas que se espalharampelo chão e afirmando queeram roupas de mercador. Nodia seguinte, continuou ele,Vartan deveria trocar o burelpelo sobretudo grosseiro. Nas

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terras que iriam atravessar,prosseguiu, as guerras hámuito tempo eram a soberanaabsoluta. O menor doscamponeses adquirira umespírito belicoso. E osmaometanos cortavamfacilmente o pescoço dospadres e dos monges cristãos.Reinava a paz naquelemomento, mas um ódioancestral se dissimulava portrás das atitudes dehospitalidade, concluiuMontefoschi. Com essas

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palavras, invocando aprudência, despediu-se.

Quando acordou, Vartannão tinha de seus sonhosmais do que uma imagemnebulosa. Essa imagemlembrava-lhe uma pessoa eessa pessoa era seu pai. Nodia seguinte ao da suainstrutiva excursão através daCilícia, Kevork tinhaintroduzido novos hábitos:fazia a partir daquele dia suasrefeições no quarto, no qualproibia a entrada da mulher e

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dos filhos. Só Ripsimeia, umacriada, teria o direito deentrar lá. Vartan, intrigado,perguntava a ela todos os diassobre o estado de saúde deseu pai e sobre asnecessidades que amantinham por tão longotempo no quarto. A criadarespondia estaressencialmente ocupada emcuidar de uma feridasupurada no pé direito de seupatrão. E ia mais longe naresposta. Esfregar o pus com

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a esponja e remover com aajuda de uma faca as partesmortas não a repugnava. Umasemana se passara quandouma mulher que cuidava daroupa branca da casaespalhou a notícia de queRipsimeia tinha rompido como noivo. Vartan sentiaclaramente que todos essesacontecimentos se ligavam, eesse mistério ocupava seuspensamentos. Uma noite,entreabriu a porta do quartodo pai. O que viu o

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surpreendeu para além doque poderia imaginar. Nua,Ripsimeia abraçava Kevork.Ele gemia e a moça embalavasua lenta agonia. Panos ecobertas envolviam umaperna descarnada. Um cheirode carne putrefata saía do pétransformado em chaga.Diante de tal visão, Vartanfugiu. Um mês depois deestar integrado à comunidadede Sguevra, uma carta da mãeanunciou-lhe a morte do pai.Na mesma carta, falava da

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morte de Ripsimeia. A criada,cuidando de uma colmeia,tinha sido atacada pelasabelhas e não resistira àspicadas. A fim de apagar avisão daquele corpo nuabraçando o ancião, Vartanfizera a iluminura OEvangelho de Leão II.Deitado na cama ruim docaravançará em Kaiseri,revivia aquela noite em que, àcabeceira de um homem, aternura e a nudez tinhamacompanhado a morte.

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Chegara a hora depreparar a partida. MasVartan não se resolvia.Chorava silenciosamente alembrança de seu pai e deRipsimeia. A lembrançadaquele calmo abraço oconfrontava bruscamentecom a existência de umsentimento a que ele aindanão ousava dar um nome eentretanto esperava provarum dia. Quandodespontavam neles asemoções que o superior do

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convento condenava como asobrevivência do espírito daluxúria, os monges deSguevra entregavam-se amortificações. Vartan, aexemplo dos outros,impunha-se privações.

A mais dolorosa delasconsistia em deixar defrequentar o scriptorium.Rezando na cela, pensavainevitavelmente na felicidadede que poderia estardesfrutando a preparar ospigmentos ou a pintar o

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manto de São João, e à qual serecusava. Hoje ele se rebelavacontra essas macerações e arazão era simples: nada lheparecia mais comovente, maisnecessário do que o amor queunia Kevork e a criada.Invejava-os. E tinha pressa dedescobrir nas cidades persase nas cidades do Oriente, deconhecer enfim o que umamoça e um moribundotinham conhecido.

O dia estava brilhantecomo os seixos do leito seco

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de uma corrente de água. Nopátio do caravançará, umvento surdo e de uma tepidezarenosa sacudia a confusãode cordas e os arreiospendurados. O fedor dosexcrementos váriosmisturava-se aos eflúvios demadeira preciosa. Umsoldado esfregava seu cavalocom um punhado de palha.Um azul da cor do véu daVirgem Maria abria um corteno céu cinzento. Construções,animais e homens pareciam

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de vidro polido. O azul-celeste se fez mais azul ainda.Essa luminosidade era comoum apelo, um convite àaventura. Então, em seuquarto, Vartan tirou ocrucifixo do pescoço e vestiu-se como um mercador.

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Capítulo 7

Os seldjúquidas, há poucovencidos pelos mongóis,tinham abandonado asplanícies da Turcomania econtinuavam nas montanhas.Grandes rebanhos decarneiros pastavam uma relvadura de um verde-amarelado.Alguns pastores seperfilavam à beira dos pastos,enigmáticas silhuetas negras,fantasmas em pleno meio-dia.

Em Sivas o comércio era

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florescente, graças àtecelagem de tapetes e aospanos de seda. A caravana láficou por quatro dias. Depoisavançou sobre extensõesmornas onde abundava a caçae sob um céu de nuvens dealgodão em que ficavagravado o vaivém das águias.Entre Sivas e Erzincã haviatrapos azuis enganchados emcarcaças de cavalos. Lá setravaram batalhas, mas otempo tinha passado e a areiatinha bebido o sangue

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derramado. Fazia meses queos viajantes haviam voltado apassar por aquelas estradas.Sob árvores, à margem dascidades, as mulheresesmagavam grãos no pilão.Dir-se-ia que pareciamanimaizinhos indiferentes.Rapazes quase nus roçavamgramíneas altas cor de âmbarclaro. As campinasondulavam como monstrosmarinhos ondulam. Às vezesa caravana cruzava com umaoutra. Não se trocava uma

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única palavra.Os homens nem viravam o

rosto.As paisagens se repetiam.

Apenas uma muralha de umverde opaco, juncosparecendo zarabatanasplantadas na argila, umanuvem de insetos, ummenino subindo por umatalho chamaram a atençãode Vartan. A impressão que setinha é que ele recitavaalgumas orações, como semasca uma folha qualquer,

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mas quem o ouvisse saberiaque não era nada disso. Elemurmurava louvores aRipsimeia e Kevork, e entredois suspiros cantava alembrança do vestido azul dacriada e do olhar sereno deseu pai. Montefoschi às vezeso observava e se espantava dever que ele vestia seus novostrajes como se tivesse sidomercador a vida toda. Nofundo, Montefoschi alegrava-se de ser seu guia.

A dois dias de Erzincã,

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surgiu um homem como queexpelido de um trecho maisespesso de bosque.Gesticulava e gritavacondenações. Quando um dosmembros da caravana quis seaproximar dele, escafedeu-se.Em poucos segundos não eramais do que um ponto negrogemendo na campina. Vartano esqueceu, como tinhaesquecido das carcaças doscavalos e das águias no céu.Estava atento, nessemomento, à conversa de um

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dos homens da caravana comMontefoschi. Sabia dessehomem que se chamavaHovsep e que era de Adana.Vartan se aproximou: amaneira pela qualMontefoschi escutava aquelehomem o intrigava. Oveneziano se debruçava sobreele com gravidade, comexcessiva atenção até,indiferente ao fato de que seucompanheiro falava em vozalta, o que era espantosodiante de sua sensibilidade

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exigente em relação aosilêncio. Hovsep dizia que, ajulgar pelo homem que tinhasurgido do bosque, a pestegrassava na aldeia que se vianão muito longe dali.

Os cavalos estavamesgotados. Caía a noite. Umaparada era essencial.Montefoschi então mandouarmar as tendas a poucadistância da aldeia. Ossoldados se postaram aintervalos regulares diantedelas, a fim de prevenir a

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intrusão no acampamento deuma população que, fugindoda epidemia, tentasse serefugiar junto dos viajantes.

A refeição correusilenciosamente. Perguntava-se se Erzincã, a etapaseguinte, seria vítima domesmo flagelo. Mercadorescriticaram Montefoschi poracampar tão perto de umlugar amaldiçoado. Mas,segundo o veneziano, estavafora de questão viajar denoite, sobretudo com os

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animais cansados daquelejeito. Hovsep, pela primeiravez, estava sentado ao lado deMontefoschi e de Vartan.Fazia ponta, com uma faca,nos ramos finos de umarbusto que tinha arrancadodo chão. De tempos emtempos jogava uma dessasflechas ao acaso sobre um dosmercadores. Um encolher deombros ou protestos bem-humorados eram as respostasdos atingidos. Cansado defazer ponta na madeira e das

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ameaças que lançara sobre aepidemia, levantou-sedeclarando que a peste erapura invenção de sua parte, eem seguida deslizou até atenda de Montefoschi, que oalcançou pouco depois. Aestupefação e a ira foram asreações à sua confissão.Depois hoüve uma explosãode risos. Os homens pareciamhabituados àquelas mentirase gracinhas.

Vartan não ficou mais doque uma hora em sua tenda.

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A enigmática identidade deHovsep o mantinha acordado.Aquele homem não podia serum mercador: não tinha nemmula nem camelo e suabagagem se restringia a doispequenos fardos. A evidentecumplicidade entre ele e oveneziano não lançavaqualquer luz sobre o enigma,antes o tornava mais obscuro.Em presença dele,Montefoschi por vezes tinhaum olhar de inquietude e decontida aflição. Bem antes da

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aurora, Vartan arrastou-se atéa tenda do italiano. Só ouviu arespiração dos que dormiam.Ousou levantar a cortina daentrada: duas sombrasestavam deitadas à distânciauma da outra. Vartan ficoufrustrado. Mas, daí em diante,sempre tentaria decifrar ossegredos que envolviam oembaixador do papa eHovsep, aqueles homensmisteriosos. Vartan projetavapintar um dia a Paixão deCristo. Os dois ladrões teriam

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as feições de Hovsep e deMontefoschi. Quanto aoCristo, ainda não tinhaencontrado o rosto no qual seleria o sofrimento na últimaprovação.

Naquela mesma noite, ummercador tomou a decisão dese separar da caravana emErzincã. Muito jovem, deconstituição robusta, nem porisso podia ter certeza de quechegaria à velhice. Roger deNarbonne, esse o seu nome,cujo desapego e cujo

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comedimento tinham sidoadmirados inúmeras vezes,continha-se desperadamenteagora para não gritar ao ventosua angústia.

Desde a partida de Sis,tinha ele reconhecido emHovsep o futuro responsávelpor sua ruína. Havia dez anosHovsep nutria por ele umódio selvagem, tenaz,absoluto.

O testemunho de Rogerde Narbonne, quando daprisão por roubo do armênio

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e do processo que se seguiu,pesara decisivamente nadeliberação dos juizes e oslevara a decidir por umcastigo exemplar. Um mêsdepois Roger soube queHagop Karagueuzian—umparente de Leão II da Cilícia—tinha se empenhado, comsua fortuna, sua influência nacorte e sua reputação de altamoralidade, em convencer orei a libertar Hovsep. E oconseguira. O fugazprisioneiro empregou-se

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então como criado na casa deHagop. A demência real tinhadeixado Roger de Narbonnearrasado, porque a curto ou alongo prazo ele estaria sob operigo da faca do ladrão. Etambém abreviaria daí emdiante suas temporadas naCilícia, aonde transaçõescomerciais o levavamfrequentemente.

Por infelicidade, o homemjuntou-se à caravana de queRoger de Narbonne faziaparte. Logo que viu Roger,

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Hovsep lhe disse que omelhor para ele seriarenunciar à viagem. Naverdade, desde que talindivíduo tinha sido posto emliberdade, uma únicasensação dominava aexistência de Roger: o medo.Esse medo tinha assumido adimensão de seu corpo, deseus pensamentos, preenchiaseus sonhos. Mas algumacoisa também se rebelavanele. Um mago, outrora,previra-lhe exatamente que

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ele estaria no coração de umcombate. Deveria ele, dessemodo, submeter-se a seudestino, encarnado por umsinistro ladrão? Não saberiaele vencer esse medo infernal,a fim de que a predição setornasse uma mentira? Dequalquer maneira, desde Sisele suportava o medo edesafiava a ameaça.

Montefoschi, tanto quantoHovsep, não lhe tinhadirigido a palavra. Ao verrepentinamente os dois

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conversando, Roger ficaramais angustiado. Como emSivas, ele surpreenderafragmentos de uma conversaentre mercadores à sombrade uma folhagem. Soubeassim que uma conspiraçãose tramava contra ele,instigada por Hovsep. Pelaconversa, percebera queHovsep os tinha convencidode que ele, Roger deNarbonne, utilizaria toda asua fortuna para comprar emTabriz tantas peças de ouro e

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de panos de seda que issocausaria uma inflação depreços, o que seria a ruínapara muitos deles. Ao ouviressa mentira, o medo odominou como nunca. Masfoi impossível fugir, porqueos mercadores o espreitavama cada minuto. Restou-lhe aesperança de um eventualrelaxamento dessa vigilânciana etapa seguinte.

E sempre montanhascoroadas de brumas, esempre aquele tom violáceo

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adamantino dos fins de tarde;e sempre rebanhos decarneiros com seus pastores,sempre carniças sobre umaimensidão ondulada. Seriaassim até Erzincã.

Todas as noites, Roger deNarbonne se esforçava paranão dormir. Ansioso,estendia-se no chão, nãolonge dos soldados armênios,e não se afastava dasfogueiras a não ser para sealiviar. Por isso os soldadoscobriam de ironias esse

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homem que tinha de tirar ascalças diante deles.

Deu-se até, durante umaparada, que ele provocouHovsep com críticas acerbas,mas Hovsep bancou o surdo eRoger não obteve sucesso,voltando a ser objeto de umostracismo discreto mas realpor parte dos caravaneiros.Roger se perguntava seVartan tinha sido chamado aparticipar do complô que searmara contra ele, se o mongenão teria a alma negra dos

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mercadores, dos aventureirose dos embaixadores.

Às portas de Erzincã,Roger de Narbonne encheu-se de coragem e dirigiu apalavra a Vartan. Insistiu paraque Vartan lhe concedesseuma entrevista que lheparecia de importânciafundamental para suasalvação, O mongeinicialmente o tomou por umdesses tipos cuja imaginaçãoapavorada com o terror doinferno convertia o pecadilho

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mais leve em pecado mortal.Mas o homem, seduzido pelaesperança de encontrar neleum aliado, garantiu-lhe comum olhar que não havianenhuma loucura, nenhumpânico.

Vartan concedeu-lhe entãoa entrevista.

A conversa, ou antes, omonólogo do narbonense, foidentro de um caravançará deErzincã, no quarto de Vartan.Roger dominavarelativamente a Armênia.

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Sem preâmbulo, enumerou ascidades onde tinhaenriquecido e aquelas onde ostrapaceiros o tinhamenganado. Deu um sorrisomalicioso apalpando suaampla cintura. Nessa faixa detecido azul tinha costuradoum pequeno tesouro que logoespalhou pelo chão: pérolas,peças de ouro e um brochecom rubis engastados. Seacaso decidisse voltar aNarbonne, esse broche seriade sua mulher. Por ter ouvido

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as histórias dos mascates edos negociantes, histórias quefalavam de rios mais verdesdo que a esmeralda e que arelva da primavera, decidades brilhantes como oaço, tinha abandonado o leitoconjugal, sua casa e seupomar. Mas às vezes ficavaconvencido de que seu deverera voltar à província natal e,por consequência, à esposa eaos dois filhos. Não passavaisso, porém, de umpensamento furtivo, porque

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estava subjugado pela visãodas terras fabulosas quepercorria e nunca tinhacoragem de renunciar àcontemplação de um céu que,ninguém podia duvidar,inventara o raio, a peste e osanjos. Amava a poeira dasestradas e os estranhosanimais que povoavam osbosques e os desertos. Amavaos monstros dormindo entreas dunas e aquele cheiro deguerra que impregnava asárvores e o chão. Pérolas,

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ouro, o broche, lá estava todaa sua fortuna. E, como Vartanpodia ver, suas mãos tremiame de sua fronte corria suorabundante. Temores oatormentavam. As Fúrias operseguiam. Odiavam-no,tinham planejado sua morte.Insensatos gravitavam semcessar em torno dele. E,depois, havia Hovsep e suavingança.

“Hovsep?”A voz de Vartan era muito

doce.

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Roger de Narbonne fezsilêncio repondo na cinturaseus magros tesouros. Poralguns instantes, diante domonge impassível, lembrou-se de muita coisa e lamentouseu pomar, sua mulher e osdois meninos. Mas acuriosidade que a simplesmenção ao nome de Hovsepsuscitara em Vartan dissipounele o sentimento denostalgia. Uma presençainvisível, exatamente a deHovsep, tinha se infiltrado

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entre eles. Pelo menos foi issoque Roger sentiu. Tomado poruma vertigem, sentiu umcansaço profundo. O tempodas viagens estava seacabando. E, bem lá nofundo, Roger surpreendeu-sede novo ao aceitar a ideia damorte e a maneira pela qualela surgiria. Era um homemvencido, que bruscamente selevantou e, sem mesmo umpedido de desculpas, saiu.

Protegida por umamuralha onde pontificavam

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torres de vigia, Erzincãerguia-se à margem direita doKarasu (“Rio Negro”). Nomeio das vinhas querodeavam a cidadeanatoliana, um camponês,num dia de junho, tropeçouno cadáver de um homem, agarganta e o sexo cortados, acabeça reduzida a uma papavermelha de ossos e decarnes, O estado do rosto e aausência de qualquer roupatornavam impossível umaidentificação. O camponês

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tinha três filhos. Reuniu-secom eles para resolver o quefazer. Repugnava-lhes darciência de sua descoberta aogovernador de Erzincã.

Ainda tinham na memóriao caso de um de seus primosconfrontado com situaçãoidêntica. O rapaz alertou asautoridades da cidade sobre ocadáver de um homem quejazia num campo, o peitorachado, as pernas laceradas.Um seldjúquida conselheirodo governador acusou-o de

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ardiloso e impudente. Aschagas tinham sidoprovocadas por umapodadeira. E quem senão osvinhateiros trabalhavam comtal utensílio? Acusado deassassinato, o primo foidecapitado. O camponês esua descendência tinhamaprendido a lição.Carregaram o cadáver paracasa e à noite o jogaram naságuas do Karasu.

Ninguém deu parte àmilícia armênia nem ao

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governador da cidade dodesaparecimento de Roger deNarbonne. Mas uma manhãVartan surpreendeuMontefoschi, Hovsep e algunsmercadores em conciliábuloem volta das mulas donarbonense. Como umnegociante de muares,Hovsep apalpava as patas e osflancos dos animais.Repartiram-se entre eles porfim os fardos de pano e cadaum voltou a seus afazeres.

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Capítulo 8

Era o fim da tarde. O céuia ficando alaranjado e asneves, no pico dasmontanhas, pareciammadrepérola. No caravançará,abandonado pelosmercadores—os persastinham ido aos banhos, osjudeus e os francos trocavamseus panos de Flandres portecidos mais finos -, restavamapenas os soldados deHetum. Tranquilizados por

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uma brisa recendendo aforragem e a pedra calcinada,calculavam, num últimoesforço, quantos dias osseparavam de Tabriz equantas noites faltavam paraseu retorno à Pequena Cilícia.Seu comandante lhes contavasinuosas histórias nas quaisraptos de mulheres, cavalosmais rápidos que o raio egloriosos feitos d’armascompunham uma paisagemalexandrina.

Montefoschi e Hovsep

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tinham ido às ruas da cidadepara tratar de algum negócioou talvez simplesmente semisturar à multidão ecaminhar. Vartan quisacompanhá-los.

O veneziano o impediu desair, porque a palidez dominiaturista era indício deum cansaço próximo doesgotamento. Não queriaapresentar a Kublai ummonge exangue.

Na verdade, Montefoschiqueria iniciar, sem

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testemunhas, Hovsep nosesplendores de uma cidadeque tinha visitado outrora.

Frustrado, Vartan,sozinho, errou pelas salas ecozinhas, informou-se com ossoldados sobre a quantidadede alimentos necessária comoprovisão para chegar atéErzerummordiscou, por fim,pedaços de nozes confeitadosnum xarope de uvas, porquepor natureza era comilão. EmSguevra, afastava-sevoluntariamente da despensa

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para não ceder à tentação.Mas no caravançará, onde nãomais vigoravam as regrasconventuais, cevava-se no mele nos doces.

Ainda que se regalasse,estava sempre entediado.Deixou a penumbra doscorredores e a fornalha dospátios para largar-se em seuquarto, onde se entregava aoócio.

Do pequeno cômodo ondehavia da manhã ao fim datarde um frescor de outono,

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podia perceber a granderepercussão dos barulhos dacidade. Essas ondas ruidosasprovocavam seus sentidosconvidando-o a um passeio.Estendido sobre o catre, nãosentia cansaço e se revoltoucontra Montefoschi, queabusava de sua autoridadearrogando-se o direito dejulgar se ele era ou não capazde dar uma saída. Resolveuentão aventurar-se a umpasseio pela cidade. Decisãotomada, agiu rapidamente.

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De um baú, desenterrou seuhábito. Estava amarrotado,sujo, a bainha endurecidapelo barro seco. Sob o hábito,amarrou à cintura um cordãodo qual pendia uma bolsaarredondada com osdirhames que Hetum lhe derano momento da partida.Assim, graças à bondade deum rei, a indigência de Vartanera apenas aparente. Quandochegou à porta docaravançará, alegrou-se portransgredir as ordens de

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Montefoschi, por ser mongequando quisesse e tornar aser mercador quando voltasseà fantasia.

Erzincã se espalhava porterraços. Nos mais altosbrilhava uma luz cristalina, osmais baixos se amontoavamem meio a sombrascrepusculares. Apressado,Vartan passou pelos maisbaixos no rumo dos maisaltos, trocou um veludosombrio por uma apoteose delilases e azuis com nervuras

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de ouro. Evoluía em ummundo marinho, um espaçocintilante de reflexos.Admirava o esplendor do fimde tarde sobre a cidade, maso rosto de Montefoschi, àsvezes, flutuava às portas dopequeno comércio, sobre asparedes lisas, sobre as pedrasbatidas pela noite que vinhachegando. Buscava afastaressas visões para seabandonar ao desejo depintar Erzincã como novaBabel—ou como cidade

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celeste.Aqui, Vartan teve a

intuição de haver nascidopara a agitação do mundo eas oportunidades inúmeras.Deslizava com facilidade poraquele labirinto. Como Más,Erzincã era um grandealarido naquele fim de tardede premonições, depromessas e de ilusões.

Sentiu uma fraqueza ao seaproximar do último terraço.Apoiou-se contra umaparede, um braço em asa, a

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fronte sobre o antebraço.Com uma dor aguda nocoração, não teve força parase manter apoiado sobre aparede de pedra. Dobrou-sesobre o chão e assumiulentamente a posição dosoldado que com seu escudonão conseguiu se proteger deuma espada e se ajoelhou napoeira.

Curiosos se acotovelaramem volta desse mongedesfalecido. Do grupo decuriosos, três soldados de

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Hetum avançaram. Vartannão tinha percebido, noinstante em que cruzou aporta do caravançará, queesses três homens oseguiram, pois tinhamrecebido ordem deMontefoschi de velar por suasegurança, se acaso ele seentregasse ao desejo singularde se arriscar pela cidade. Ossoldados o ergueram comcuidado e iniciaram a descidados terraços para levá-lo devolta ao caravançará.

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Agora, uma mão seguravaa sua, sem apertá-la. A doçurado gesto não fazia com quecessassem as rudes pontadasde uma dor que parecia umaverruma furando-lhe o peito.Alguém se debruçou umpouco mais sobre ele, comose se esforçasse parasurpreender os ecos de umsofrimento que vinha dofundo de Vartan. Houve umestremecimento. Vartanreconheceu Hovsep. A mãodeixou a sua para agarrar-lhe

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o pulso. Sem razão, ficouapreensivo. Sentiu como queuma correia de fogo que lhequeimava o peito, da cinturaaos ombros. Gemeu, e a mãose retirou. O olhar de Hovsepnão revelava nenhumsentimento. Era o olhar domédico que avalia aresistência de seu próximoquando da expansão de umadoença.

Com um objeto quebrilhava, Hovsep tocou-lhe deleve o rosto. Havia letras

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gravadas naquele objeto, ouum sinal. O objeto cintilava àluz do fim do dia; uma antigamáscara ou um ornatopeitoral; ou o traço único deuma civilização desaparecida.Hovsep deu-lhe a informação:era um tijolinho de ouro queservia de salvo-conduto emtoda a extensão do impériodos mongóis. Kublai o tinhadado a Montefoschi. Peçagêmea estava guardada numcofrezinho. Valiam mais aosolhos das populações

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bárbaras e dos ladrões do queo brilho de uma lâmina ouque a milícia armênia.Garantiam proteção erespeito. Conferiam emqualquer hipótese a umviajante uma história, umaqualificação, um destino.Exibi-la era conseguir cavalosimediatamente. São peçasúteis num périplo tão longoporque no coração dosdesertos e nas cidadesbatidas pelos ventos quemteria conhecimento do reino

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da Cilícia e de seupiedosíssimo rei?

Hovsep aplicou o tijolinhosobre os lábios, as maçãs dorosto e a fronte do doente. Oouro era morno como umfruto debaixo do sol do meio-dia. Essa estranha imposiçãochocou o monge. Até entãoele só beijara crucifixos. Masa febre imperiosa fazia comque ele mergulhasse numapesada sonolência.

Hovsep depositou no chãoo tijolinho de ouro para

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contemplar livrementeVartan. Depois suas mãosapalparam o torso do rapaz,que parecia dominado porum estranho sono. Vartanfechou os olhos a esse toque,mas afastou com um braço asmãos que agora semantinham sobre seusombros. Hovsep não fez maisum movimento. Para surpresasua, Vartan o atraiu derepente para si. Então asmãos retomaram suaexploração. Um dedo

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redesenhou o contorno doslábios do doente, uma unhapressionou os dois planos dorosto, o fio do nariz, astêmporas. As mãosvagabundaram sobre as coxase o ventre, abandonaram porfim sua rota sobre a carne.Hovsep absolutamente nãodesejava aquele grande corposofrendo tremores.Simplesmente estavatranquilo: a nudez do jovemnão era daquelas quecomoviam Montefoschi.

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Vartan abriu os olhos eHovsep começou a desfiar umpouco das histórias de suavida. Não escondeu nada desuas pilhagens, mas calousobre seus crimes. Quasenum sopro, Vartan lhe pediuque saísse do quarto.

Os suores se produziamvinte vezes por dia. O estadodo doente desesperavaMontefoschi. Toda a suaatenção agora se concentravasobre esse monge cuja mortenão desejava, pois não podia

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imaginar-se diante de Kublaisem o miniaturista a seu lado.Sem isso, corria o risco de serpara seus contemporâneos—epara aqueles que redigiriamos anais de um séculoconsagrado ao negócio eimpregnado de uma féardente—apenas um vulgaraventureiro, um homem entreos homens loucos de ambiçãoe dominados por sonhosinsensatos.

Pequenas chagasavermelhadas apareceram

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certa manhã nos joelhos deVartan, de resto cada vez maissujeito a crises de tétano.Vartan não se queixava eMontefoschi nisso oadmirava. Mas as drogasadministradas e osemplastros aplicados pelosmédicos começaram a fazercom que os abcessosregredissem e a febre caísse.

A partida de Erzincã foiadiada por uma semana, umaordem do veneziano.Prolongar a parada lá até que

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um monge recuperasse asaúde exasperava osmercadores. Por prudência,eles ainda não se revoltavamabertamente contra essadecisão. Montefoschi era umprotegido de Hetum e ossoldados armênios nãodeixariam de denunciar ao reiessa cólera e essainsubmissão dos mercadores.O futuro comercial deles emMás poderia ficarcomprometido. E a maiorparte deles achava melhor

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continuar de boca fechadapor causa da lembrança desua participação noassassinato de Roger deNarbonne. Tinham pressa dechegar a Tabriz, de dedicar-sea seus negócios, de juntar-sea uma outra caravana que oslevaria de volta a um porto doMediterrâneo, onde seriam oque realmente são:gananciosos, manhosos,respeitáveis. Hovsep veio asaber da animosidadecrescente dos mercadores e

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sobre isso advertiuMontefoschi, tranquilizando-o: poderia conter-lhes airritação usando todos osexpedientes de que suaastúcia dispunha. Fora assimque subornara mendigos earmênios de Erzincã para queespalhassem uma notícia queaterrorizasse os viajantes.Contou-se então que poucodepois de Erzerum umahorda de cavalos carnívorosassaltava as caravanas. Ummago corrompido pelas

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moedas de Hovsepacrescentou que a hordasurgia a cada cem anos econsumava seus massacresnum período de dezoito diaspara em seguida se precipitarnum rio, e lá morrer porafogamento. A fábula,nascida da imaginação dosubornador, conseguiu osucesso esperado. Osmercadores resolveram termais paciência.

Montefoschi passou aesperar muito de um médico

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chegado havia pouco àcidade. Josué, um judeu deErzincã versado napreparação de xaropes, tinha-lhe garantido que tal homemtinha poderes para curarVartan Ovanessian.

Ao observar Arnaud deRoanne pela primeira vezMontefoschi viu nele umhomem frágil, enrolado numaampla tünica de seda azul, aface engolida por uma barbaexuberante e que estavapronto a dirigir a um jovem

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recomendações saídas deuma espécie de mochila decouro e de um cofre que tirarado dorso de um camelo.Parecia um homem detemperamento calmo e nãodava a impressão de ter maisde trinta anos. Depois de umlongo abraço em seu mestre,Josué o apresentou aMontefoschi, fazendo oselogios de um e de outro eexprimindo o desejo de que avinda de Arnaud a Erzincãfosse útil a todos, tanto aos

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doentes como aos queestavam bem. Montefoschinão tinha omitido a Josuénenhum de seus projetosbaseados numaextraordinária ambição e umadisposição de lutapermanente. Tinha sonhadoem voz alta diante de umdesconhecido, explicando aele longamente o papel queVartan teria na corte deKublai e, em consequência, anecessidade que tinha demantê-lo vivo. Josué repetiu

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palavra por palavra asconfidências do venezianomas as enfeitou comdigressões. Arnaud deRoanne não pareceuimpressionado com anarração e ostransbordamentos líricos deseu antigo aluno. Oveneziano, como tantosoutros cujas esperanças epretensões tinha ouvido, semdúvida vivia de ilusões.Montefoschi percebeu essadesconfiança quanto a seu

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fabuloso destino e seofendeu. Para não ceder àagressividade, o que poderialevar o médico a recusar-se acurar Vartan, levou a conversapara um terreno maisprosaico: revelou logo aquantia a ser paga, claro, se asmedicações se mostrassemeficientes. O prático francoignorou o que lhe foiproposto. Em compensação,perguntou se o armênio tinhaconsigo alguns livrossagrados cujas iluminuras

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houvessem sido feitas por ele.Montefoschi concordou

em liberar os livros para queo médico os visse.Contemplá-los será meusalário, foi-lhe respondido.

Josué tinha contado aMontefoschi que seuencontro com Arnaud deRoanne se dera em umcenário inacreditável dealambiques, garrafinhas,pequenos frascos coloridos egrandes colheres de formassingulares. Tinha sido seu

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aluno em Bizâncio duranteuma primavera toda. Dasbandas da Espanha às daItália, de Auvergne àAnatólia, dos confins domundo à Pérsia, o médico eraadmirado, invejado,provocava ciúmes pelosresultados obtidos ao fazercom que agonizantes e loucossorvessem um electuário desua composição. Osmoribundos, depois de teremengolido o opiato,levantavam-se para se

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entregar à jardinagem oumanejar a goiva, e os loucosnão davam mais sinal de suahabitual agitação. Essefrancês, nascido num vilarejoàs margens do Loire, nocoração de uma região emque as vinhas se misturavama urzes e giestas, eraamaldiçoado pelos sectáriosde todo tipo porque toda asua ciência provinha detratados redigidos porhereges, não fugindo àsperguntas que lhe faziam

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sobre a proveniência de suasfontes, muito preocupado queera de transmitir ao boticáriode Roma ou ao camponês doDa-núbio os benefícios desuas pesquisas feitas embibliotecas, entre os nômadesno deserto ou os feiticeiros daregião de Kiev. A essa ciênciafabulosa, acumulada emmenos de uma quinzena deanos, acrescentavam-se apaixão de tentar asexperiências mais ousadas e ogênio. Com um único olhar

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ele penetrava no interior doscorpos. Porém o que mais oexpunha às diatribes de seusinimigos é que não acreditavano castigo dos deuses. Nãosubscrevia a certeza ou ahipótese segundo a qual paraalém das estrelas existe umparaíso e nas trevas da terraavermelha-se um inferno.Josué, o judeu, negava queArnaud fosse aquilo que osignaros e os incapazes nelecensuravam. O óleomilagroso que seu mestre

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utilizava para curar ademência ou a morte decorpos supliciados pelosofrimento era—Josuéchegara a essa conclusão—tãoquente quanto as brasas e tãosuave quanto a pelagem deum animal.

Antes de visitar o doente,Arnaud de Roanne pediupara descansar. Num cômodoexíguo, bebeu vinho deChiraz e se regalou com meiofrango assado e tâmaras quemergulhara num pote de mel.

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Satisfeito, estendeu em tornodas pernas e da cintura atúnica de seda azul queparecia usar sempre. Aspequenas agitaçõesprovocadas por ummovimento circular, obarulhinho do pano e umasensação de brisa suavecontra suas ancas e suas coxasfaziam-no imaginar folhagens—sinais que vinham visitá-lona hora em que precisavaenfrentar o sofrimento e amorte. Mas essas visões não

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resistiam ao grito dospossessos e aos gemidos dosestropiados que carregava emsi. Voltava então a estemundo ardente de mulheresque definhavam ou homensarranhando incansavelmentesuas dermatoses. E essa lutaocupava sua vida.

Arnaud auscultou Vartanpor muito pouco tempo.Sobre um tripé de bronze,instalou um tacho de cobreno qual, quando o tocava deleve, ouvia-se retinir uma

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lanceta.Só utilizava esse

instrumento em último caso,quando os unguentos e asdrogas falhavam na tentativade baixar a febre e diminuiros batimentos do coração. Jáobservara quanto a visão dalanceta sempre tranquilizavaos doentes. Terminada aauscultação, tirava da mochilaum livro grosseiramenteencadernado de páginasvirgens. Entre as páginassecavam folhas de plantas

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medicinais e outras plantascolhidas ao acaso deandanças pelas matas doNorte ou pelas planícies daPérsia. O médico mais ignarosaberia identificar entre elaso hissopo ou a borragem, atussilagem ou a pulmonária.Arnaud esmagava talos,folhas ou flores numa panelacom água. Depois adicionavaa esse caldo cheiroso líquidosdas garrafinhas.Considerando a beberagempronta, administrava-a em

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pequenas doses ao doente.Entre uma ingurgitação eoutra, colava o ouvido àgarganta, à barriga ou aopeito do paciente. Ouviaentão o corpo combatendo omal, frequentemente aderrotá-lo. Ajeitava entãoentre as coxas do doente ocopinho onde o eletuárioengrossava lentamente. Ocopinho se embaçava com umsuor que respingavaabundantemente da carnedrenada. Arnaud de Roanne

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completou então com Vartano ritual de sua prática.Obrigou por fim o monge aengolir uma tisana lamacenta.Seus gestos eram autoritários,suas palavras eram suaves.Vartan logo passou domutismo ao delírio verbal.Palavras sem sequênciavoltavam continuamente aseus lábios: artemísia, urna,pé, coronha, bolha… Sualogorreia incoerente acabouno refluxo da dor que lhemoía o peito.

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Montefoschi e Hovseptinham assistido àsenigmáticas manipulações domédico. Se tivesse se voltadopara observar Hovsep,Montefoschi teria conseguidomedir com um só olhar odesastre que o espreitava. Atúnica de seda azul fascinavaHovsep. A alegria nascia nomais profundo de seu ser.Naquele quarto em queprovavelmente teria lugar acura de um monge, eleapagava da memória—ou,

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pelo menos, convencia-sedisso—um turbulentopassado que a humilhaçãoornava com uma rosáceanegra.

A cada cinco minutosArnaud acendia uma vela,ainda que em pouco mais deuma hora o quarto estivessebanhado por uma claridadede incêndio. Nessa luzquente, que criava umaondulação de sombras,Vartan voltava à vida.Montefoschi se sentia moído

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de cansaço, como depois deter enfrentado a tempestadeao largo da costa da Grécia.

Procurou reconfortar-sejunto de seu companheiro deviagem, mas Hovsep já nãoestava lá. Montefoschi nãodeixou transparecer nemcontentamento nemdecepção. Não chegara aindao tempo em que umaausência o espantasse,deixasse seu espíritorevirando indefinidamenteem busca de razões para isso,

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em que se chocasse com umabandono incompreensível.

Montefoschi ofereceu seuquarto para que Arnaud deRoanne o usasse para seurepouso. O médico aceitou.Não tinha dito ainda dezpalavras. Quando,combatente extenuado,Arnaud fechou a porta atrásde si, a mochila pendia de seuombro como uma lebremorta.

A primeira preocupaçãode Montefoschi foi assoprar o

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pavio de cada vela, porqueachava que a penumbra seriamelhor para o doente. Oveneziano estava ansioso paravoltar a ser aquele que decide.Estava impaciente por se tertornado apenas umespectador, enquanto ocurandeiro preparava suasmisturas. No quarto semiescurecido por uma noite quecaía suavemente, a presençados dois homens eradenunciada apenas pelarespiração compassada de

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Vartan e as violentas batidasdo coração de Montefoschi.

O veneziano puxou paraperto de si um banco e sesentou. Mãos juntas e joelhosapertados um contra o outro,aquele embaixador papaltomou a posição daempregada que noutrostempos velara o sono de suamãe. Todas as noites ela eravista numa vigília que atransformava em pedra,recurvada numa cadeira juntoda cabeceira de Lúcia de

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Montefoschi cujas noiteseram perturbadas por umaenxurrada de pesadelos. Naaurora de uma manhã deprimavera, Lúcia acordou emsobressalto, um gosto decinza nos lábios. Agitourepentinamente as mãos,gritou por ajuda, pronunciouo nome da empregada, mas aempregada jazia no chão,sangue escorrendo da boca.Então, Lúcia de Montefoschirepetiu os gestos vivos dasmoças e das camareiras.

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Enxugou o sangue com umpano branco pedindo pelasalvação daquela alma. Pelaprimeira vez tocou os cabelose a face de uma morta.Embolou o pano sujo desangue e percebeu que o diabrilhava. Quando o filho setornou adolescente, ela lhedescreveu aquela estranhamadrugada, uma poça desangue e o endurecimento docadáver. Emendou suanarrativa com a de seuspesadelos, nos quais voavam

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nuvens de pássaros brancos.Falou da gritaria dos pássarose das asas batendo em tornodela. Falou de seu terror.Desse dia em diante, quandoela presidia o almoçodominical na ausência domarido, o filho a via em meioa um turbilhão de penas e deberros de pássaros ereconhecia como procedentesda mãe os tormentos que àsvezes o levavam à cama dela,cheio de pavor e vencido porvisões de uma brancura

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agressiva. A mãe morrera nosprimeiros dias de um tórridomês de maio. Respeitaram-sesuas últimas vontades. Pelajanela de seu quarto moçasajudantes da cozinha jogavambraçadas de penugens.Parecia nevar muito sobre umchão que anunciava o verão.

Na cabeceira de Vartan ena dor dessa lembrança,Montefoschi se perguntava seo futuro não lhe reservaria asorte daquela empregada queadorava Lúcia, ou se acabaria

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retalhado em postas por ummongol ou um persa, depoisde ter combatido como umherói.

Fazia um calor de estufano quarto de Montefoschi,para o qual, de fato, Hovsepse tinha retirado. Todos osseus pensamentos seconcentravam em Arnaud deRoanne.

Enquanto o médico estavatrabalhando, ele tivera aimpressão de estar no limiarde um mundo que até então

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lhe tinha sido estranho. Era aprimeira vez que sentia porum único ser ao mesmotempo desejo, fascinação eamor. Ao olhá-lo, tinhaesquecido o processo de Aiás,o julgamento, o carrasco e ocastigo que seu corpocarregava depois dotestemunho. Mas houve uminstante em que recobrara aconsciência de que estavasentado ao lado deMontefoschi e que oveneziano, em algumas

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noites, insistia em ironizar arespeito de um amante quenão tinha sido mutilado emum harém. Para não dardemonstração diante deArnaud de Roanne do ódiocontra Montefoschi querepentinamente otranstornara, Hovsep fugira.

Hovsep naquele momentoesmagava entre as mãospedacinhos de madeiralevíssima, negra como umobjeto carbonizado e cheia dealvéolos como uma casa de

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marimbondos em miniatura.Escapava entre seus dedosuma poeira granulosa queficava na cavidade da palmade uma de suas mãos e queele se pôs a sugar com umaminúscula cânula fedorentacomo excremento de ave. Foinesse momento que a portase abriu e Arnaud apareceu.Surpreso com o fato de jáestar o quarto ocupado, ouviuentão de Hovsep queMontefoschi cedia-lhe seuleito para a noite. Durmo

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sempre aqui, declarou oarmênio, mas pode seinstalar. O quarto é grande.

Hovsep apressou-se,ajoelhou-se diante de Arnaudpara desatar suas sandálias,mas Arnaud não apreciavaque alguém chegasse àsubmissão servil. Tambémrecusou o jantar.

Estava tomado por uminsuperável cansaço. Asrecusas abalaram Hovsep,que fazia do amor uma ideiaingênua. Não entendia que se

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pudesse ignorar a submissãovoluntária.

Mas a atitude fria queArnaud mantinha em relaçãoa ele não o levou nem aoressentimento nem àcondenação.

Hovsep ia e vinha.Estendeu sobre a cama umamplo pano vermelho, varreuo chão, apanhou roupasjogadas aqui e ali. Arnaudpediu-lhe que cessasse talagitação. Mais espantado quemortificado, o armênio

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passou da inquietação àimobilidade e Arnaudagradeceu, depois o ignorou.Vestido com sua túnica deseda azul, pensava apenas emdescansar.

Hovsep continuou de pépor muito tempo, petrificadoe boquiaberto. Parecia degranito e seu rosto era umamáscara que não deixavatransparecer, com suarespiração lenta, se a pessoaestá à beira de um precipícioou de um rio de águas

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plácidas. Dobrou, afinal, osjoelhos e rastejou até umadas esteiras estendidas nochão. A noite caminhou atéque a escuridão diminuísse efosse possível entrever amaravilha que dormia.Hovsep temia o esplendor dodia e as previsíveis recusassecas do homem que ele játeimava em chamar de“amigo”. E o dia chegou, cor-de-rosa e logo de umvermelho ouro explosivo. Umraio de luz aproximou-se da

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esteira. Como sentisse umapequena ardência nostornozelos, virou a cama parao outro lado: uma claridadeacinzentada iluminou aqueleponto o suficiente para queHovsep observasse a pele desuas pernas onde a sujeiraformava pequenas crostasescuras. Com a unha, pôs-se adescascar essas escamas comaplicação.

No pátio do caravançará járessoavam ordens e gritosquando Montefoschi chamou

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o médico. Sua voztransportou logo Hovsep àlembrança daquelas noitesnas quais se tinha dobradosob o peso da carne de umhomem que o possuíainsultandoo, com ternura,talvez, como o fazem às vezesos amantes, mas tambémcom palavras que humilham.

O mesmo ódio da vésperavoltou, impetuoso e inflexível.

Montefoschi continuava achamar num tom simultâneode autoridade e de

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impaciência. Apesar disso,Arnaud de Roanne nãoacordava. Hovsep seaproximou dele, sacudiu-opelo ombro e o convidou apreferir a explosão do sol aseus sonhos. Montefoschireclamava sua presença, erapreciso ir.

O veneziano durante todaa noite tinha velado o sono deVartan, que, entre doismergulhos mais fundos nosono, falava de um dilúvioque inundaria o Inferno e o

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Paraíso e talvez o Purgatório.Visivelmente preocupado emsaber se a terra era infinita,ele não parava de questionarMontefoschi sobre esseassunto. O veneziano tinhade confessar suaincapacidade para respondersobre essas coisas. Mas, emcompensação, prometeu guiá-lo até as fronteiras que opróprio Alexandre, o Grandese tinha recusado aultrapassar, por pavor de seafundar nas trevas em que

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evoluíam deuses maissanguinários que os deusesdos bárbaros. Jurou-lhetambém que verificariamjuntos se o terror doimperador era justificado.Arnaud de Roanne entrou noquarto no momento em queVartan adormecia, fechandoos olhos e passando a veruma paisagem pantanosa naqual divindades davam saltosem focinho de touro. SeArnaud se mostrava satisfeitocom o estado do doente,

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Montefoschi era maisreservado, depois de ouvir ànoite o obsessivo discurso deVartan sobre o dilúvio e aimensidão do mundo. Omédico perdeu sua friezahabitual—sorriu e pontificou:a juventude é levada a seconfrontar com astempestades, imagina cenasem que o tumulto das águasse afina com a fúria dosventos; sonha comcarnificinas para não respiraro odor das cinzas que já as

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impregnam.Depois do sorriso, Arnaud

de Roanne deu um riso tristee, por fim, abriu umsemblante de solicitude paraMontefoschi, aconselhando-oa ir dormir por algumashoras.

Mas, irritado, o homemnegou qualquer cansaço,preferindo interrogar ocurandeiro sobre o estranhosalário exigido na véspera. Defato, confirmou Arnaud,estou interessado nas obras

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que o rei da Cilícia e seu povoadmiram.

Ao longo de uma tardetoda de fornalha, Arnaudestudou os manuscritosilustrados por Vartan. Overmelho dos panos, tãolouvado peloscontemporâneos, nãodespertou nele qualqueradmiração. Em compensação,os rostos dos santos e dosfiéis reunidos à margem doJordão o impressionaram. Aacuidade quase demoníaca

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daquele monge sabia fazercom que se pudesse ver lamana mais lisa das faces. Umaumidade deletéria banhava asmínimas cenas bíblicas.Arnaud conhecera vaidosos,avarentos, espertalhões, masnunca distinguira nos traçosde ninguém aquele abismo deperfídia.

Comoveu-o o pensamentode que o homem pudesseenfeixar em si tantas trevas.Então, a fim de tentar vermais fundo no coração dos

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homens, decidiu partilhar davida de uma caravana em umlongo trajeto, esperando queuma observação permanentedos seres pudesse revelar-lheo que aquele jovem pintor játivesse surpreendido nasalmas. Não precisou seinformar nem procurar muitolonge, porque Montefoschi, ànoite, certo de que Arnaud,com sua ciência,deslumbraria Kublai eaumentaria sua própriaglória, convidou-o a juntar-se

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a ele.Montefoschi mandou

preparar uma cama no quartode Vartan, do qual quase nãose afastava mais, porque arecuperação do miniaturistaera lenta. Quanto a Arnaudde Roanne, tinha se instaladonuma das salas comuns docaravançará. Lá davaconsultas aos doentes deescrófulas e dermatoses. Ospacientes se sucediam donascer do dia ao pôr-do-sol.Jamais o médico solicitava a

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assistência de Josué, que oaborrecia querendo sondar aforça de sua fé e de suadescrença.

O judeu de Erzincã não sequeixava de ser mantido forado lugar onde se produziammilagres mas mantinha, poroutro lado, a nostalgia dosprodígios diários de que foraespectador em Bizâncio e dasnoites durante as quaisArnaud e ele conversavamsobre os astros e asmaravilhas do universo.

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Saudoso disso, Josué setrancava em sua toca onderessoava um tilintar deaparelhos de vidro. Roía-lheas entranhas a melancolia,logo ele que era o único apoder se gabar de ter sido omelhor aluno daquele mestre.A todo momento provava osxaropes gordurosos comgosto de fumeiro e deflorações primaveris, dementa ou de salva, queenchiam as garrafinhas delongo gargalo estreito,

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espiralado. Virava na bocabicos de cristal e mamavauma beberagem enjoativa.Com tal procedimento, seucorpo inchou rapidamente demodo desmesurado. Sob suapele e no segredo de seusórgãos, cada xarope seconvertia em veneno. Empouco tempo, Josué jaziacomo um odre entrealmofadas e casacões. Suacarne amolecia como águamorta e sua pele seamarelava. Entre um gole e

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outro, ele se punha a dialogarcom Deus, interrogava-osobre a tentação do suicídio,sobre o rancor e o despeitoque levam o homem àsatitudes mais extremas. Deusreagia sempre comimprecações, até se fecharnum mutismo contra o qualJosué praguejava. Então Josuérevirava sobre os lábios ogargalo em forma de cisne deum frasco, aspirava comavidez um licor que se tingiade todos os reflexos

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produzidos pela luz do dia, eDeus suspirava.

Depois de um mês dessaembriaguez diária, sua pelese dilacerou sob umainchação de pus nas virilhas enas axilas e liberou ummaterial viscoso que fedia acarniça.

O corpo falava: não hárecuperação possível depoisde, estabelecida aaproximação com um homemcomo Arnaud, acabar sendoabandonado por ele. Josué

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morreu no início do verão—verão que viu Arnaud deRoanne entrar em Tabriz.

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Capítulo 9

No principal mercado deErzincã, Hovsep comprou umcarneiro cujas patas amarroue que carregou nos ombros.O animal, pesado, musculoso,berrava como se uma lâminalhe penetrasse o pescoço. Pormuitas vezes, Hovsep teve desocá-lo na ponta do focinho,O balido então cessava porum momento para voltar emseguida mais forte ainda. Ohomem tropeça debaixo

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daquela carga de carne, de lãe de susto. Três rugasmarcaram sua fronte, trêsrugas que nem o suplício naprisão de Aiás tinhaprovocado nele. Hovsepcaminhava como que emestado febril e a multidão seafastava à sua passagem, commedo daquela criaturagrudada com um animal.Durante esse percurso eleressuscitou entre oshabitantes da cidade temposantigo em que gigantes

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abatiam a socos mulheres ecrianças, em que um Titãdevorava sua própriafilharada, em que seresfabuloso nasciam das flores,dos rios e das florestas.Matronas rosnavamimprecações contra ele.Hovsep sofreu injúrias eescapou por milagre depedras que lhe jogaram. Elepróprio arrotava seu desprezopara os desocupados prontosa linchá-lo.

Ofegava, furibundo e

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decidido, numa nuvem depoeira. Era uma égua de raça,um demônio.

No posto fiscal, deixaramque ele passasse: ele eraconhecido por ter se tornadosimpático na hora da sestaentre os soldados e todos osmongóis subordinados. Eratolerado. Também caçoavamdele por andar sempre aossolavancos e pelo fel quedespejava sobre os mendigosnuma linguagem bombástica.Um capitão lhe perguntou se

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ele ia trocar seu carneiro poruma puta. Mas Hovsep,indiferente à ironia do oficial,prosseguiu seu caminho,procurando as sombras.Acelerou o passo e, assim,logo se viu fora dos muros dacidade. Diante dele surgiamas ondas dos camposcultivados e o verde dasvinhas, O carneiro pesavacada vez mais e seus berrosse tornavam roucos,transformavam-se num chorosurdo, o choro de um animal

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que caíra numa armadilha.Hovsep tomou um estreito

caminho que cortava umcampo. A poeira ali era maisdensa do que no coração dacidade. Um bambuzalprolongava o campo até oKarasu. Aves pernaltassobrevoavam as águas.Hovsep parou numa pequenapraia arenosa. Apertou comuma força convulsiva contra opeito as patas do carneiro, ecomeçou a torcê-las atéquebrá-las. O animal deu um

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berro e, num sobressalto,mordeu Hovsep no rosto. Aferida era séria, O homem seesconjurou e soltou suavítima, que rolou por terra.

Depois arrancou um galhoe vergastou o animal, quetremia de terror deitadosobre as ancas. Quando a lãnão era mais do que estriasvermelhas, Hovsep parou defustigar.

Então todo seu corpo sedistendeu. Ele se deixou cairperto do animal e soluçou.

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O rio corria majestoso, corde ferrugem, e Hovsep tinhasede. Mas não deu um passoem direção à água. Apalpoumaquinal-mente a ferida desua cara. Passou o indicadorentre os lábios do corte e olambeu. O sangue tinha umgosto de metal. Quando selevantou, foi para se despir.Pendurou as roupas nosgalhos das árvores raquíticasque lá cresciam, estendeu-ascomo peles para secar. Oanimal gemia. O homem

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afastou-lhe as pernas edeitou-se lá. Sentia sob acabeça os testículos doanimal. Depois se afastoupara se ajoelhar sobre ocarneiro. Com uma faca oemasculou e apertou oscolhões contra seu própriosexo. Então rezou por umaimprovável transferência demasculinidade.

O menino o surpreendeunu e chafurdando-se sobre oanimal. Carregava uma tocha.Perdido num plano onde uma

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esperança se abrasava deloucura, Hovsep não tinhaouvido o roçar das folhas nemo chiado da areia. Retirou-seda umidade animal quando omenino deu um grito. Estavacomo alguém que foge deuma multidão. A vergonha eo desespero o dominaram,porque o olhar primeiroapavorado, depois irônico deum rapazinho tão jovemlevaram-no a reconhecer suamiséria e a impotência emque se encontrava de escapar

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disso. E, pode-se dizer, essehomem singular tem amesma atitude que aspessoas comuns diante de ummonstro. Foi arrebatado poruma alucinação: o chão seabriu, o fosso se alargava, umprecipício o separava domenino. De espanto, ostestículos que seguravacaíram-lhe aos pés.

O menino já tinha vistohomens tirarem as roupas;seu pai, um tio, primosquando se banhavam no

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Karasu. Competiamalegremente, desafiavam-separa nadar ou se respingavamuns aos outros. Tinha invejadeles. Mas aquele que seerguia a dois passos dele eraum perturbado, mau,desvairado. Na defensiva, e aomesmo tempo fascinado pelohomem sujo de sangue,coberto por uma crosta delama, observava o troncoamplo, as ancas largas, todoaquele corpo grande um tantogordo agitado por espasmos.

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Hovsep, mal-humorado comaquele exame, transpôs comuma pernada o buraco queacreditava se tinha abertoentre eles dois, agarrou omenino pelo cotovelo eapoderou-se do facho, semmesmo se perguntar por queum garoto passeava com umatocha à luz daquele fim detarde. Ordenou-lhe que desseo fora, prendendo-o pelosbraços, como se hesitasseentre o perdão e o castigo. Omenino com um jogo de

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corpo se desvencilhou dasmãos do homem e fugiu parao mato.

Hovsep então ficou só edesamparado. Viu ostestículos no chão, esmagou-os sob o calcanhar, olhou orio e os pássaros quesobrevoavam as águas.Abandonou-se por algunsinstantes à desesperança,depois enfiou a tocha na areiae tornou a se vestir.

Afivelava o cinto quandoalguém lhe dirigiu a palavra.

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Ei!, gritaram do meio domato. Hovsep virou-se ereconheceu o menino querepetia sem parar, numaassuada: Ei! Ei! e enfimberrou: Capado! Ei! Capado.Hovsep pulou na direção domenino, mas o meninoescapuliu.

Na noite que avançava,Hovsep afastou os galhos,rasgou as roupas na mata.Seus braços se agitaram comose ele tivesse uma tesoura depoda. Também ia cuspindo

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insultos.Correu assim até um

descampado. A cidade seavermelhava distante. Asilhueta do meninoziguezagueava nas vinhas elogo não era mais do que umasombra que sumia e ia sereintegrar à multidão deErzincã. O homem não tentoumais persegui-lo.Amaldiçoou-se, mas semconvicção. Fez meia-volta,depois contornou o bosquehostil que acabara de

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atravessar, caminhando agoracom precaução num terrenolodoso, evitando trilhas eraízes que cobriam toda asuperfície de um complicadoatalho. Desembocou afinalnuma praia onde a tochaainda brilhava. Pensou emfazer uma fogueira. O animal,uma vez incinerado, estariacoberto pela cinza quente,que seria a única pista daimolação. Mas acabou secontentando em fazer a tochadeslizar ao longo da pele do

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carneiro, que não reagiuàquela língua de fogo: estavamorto. Entretanto, suabarriga se mexiaregularmente. Ratos tinhamcomeçado o trabalho de roerpelo ânus, que era um pratocheio. Hovsep vomitou. Umfacho na mão, arqueado,soluçando, dir-se-ia um heróitocado de um mal repentino.

Tinha-se afastado docadáver do animal e sentara-se a dois passos das águas doKarasu, do qual subia um

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frescor de limo.No rio, esverdeado aqui,

prateado acolá, rolavamfolhagens secas, tranças decapim, refletia-se o esplendorde um céu e como que agalharia de uma grandenuvem esfiapada.

Barcos desciam o rio comoilhas fantasmas. Entre ascintilações noturnas, pairavao silêncio. Nem mesmo seouvia mais o trabalho dosroedores. Hovsep evadiu-se,deixou-se viajar ao passado.

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Tinha percorrido cidades ecampos da Cilícia e vividodurante meses uma existênciaeremítica nas montanhas.Tinha sangrado lebres comoas sangram a raposa,entrando à luz da lua numgalinheiro tinha roubado umgalo, tinha invadido quintaisem pleno dia e sempredesafiava a sorte, porquegostava de roubar o machadoou a podadeira debaixo donariz dos proprietários.Roubava frutas dos pomares e

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dirhames dos quartos, eestava sempre preparado parao caso de algum roceiro osurpreender; matava depois atestemunha de seu furto. MasHovsep cansou-se doscampos de trigo e de algodão.Voltou as costas para asfazendas e vilarejos e foivagabundar nas ruas dascidades portuárias; lá, não ocansava nunca a visão dosnavios com as velas hasteadase coloridos de bandeiras.Aprendeu a distinguir as

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insígnias dos genoveses e dosvenezianos, os mercadoresárabes e os mercadorespersas, o perfume do âmbar edo nardo. Em Aiás,aperfeiçoou suas técnicas deroubo. Foi um pequeno sacode pérolas que causou suaperdição. O joalheiro osurpreendeu no momento emque ele enfiava na camisa abolsinha de pano. Na prisão,tomou nojo por qualquerpromiscuidade entre oscorpos. Depois de muitos

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dias ao longo dos quaissuportou ironias grosseiraspor haver declarado comorgulho que era virgem,jogaram-no numa sala ondeele acreditou que suaexecução era iminente. Masnão, sua cabeça não rolou denenhum cepo. A pena paraseu crime esteve longe de serleve: condenaram-no àcastração e imediatamente elefoi entregue ao carrasco.Entre os que assistiram aosuplício estava Hagop

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Karagueuzian, parentepróximo do rei. Hagopaplaudira pesadas sentençase punições a proxenetas esaqueadores reincidentes, Osangue e os urros dossupliciados até aquele dianunca o tinham comovido.Mas, sem mais nem menos,ele se tomou de piedade poraquele ladrão, levou-o a Sis eo apresentou a Mariam, suaesposa. Hovsep viveu trêsanos em uma vasta mansão,na qual suas tarefas

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consistiam em preparar boasbebidas, em trituraramêndoas, borrifar comessências florais um corpo demulher e abaná-lo nas tardesde sol forte. À noite, sentadona cama de pernas cruzadas,nu, punha entre as coxas umcaco de espelho e olhava oinchaço violáceo da cicatriz.

Ele, que não sentira omenor desejo sensual notempo de seus crimes,surpreendia-se agora alamentar-se por não ter sido

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mais sensível à beleza dosmarinheiros ou das moças. E,prisioneiro de suaslamentações, acariciava otriste estigma de uma carnemartirizada.

Naquele palácio de Sis, oeunuco se pôs a espreitar osamores que, em volta dele,começavam e acabavam, aseguir a evolução do ciúmenas reações de um rosto e ameditar sobre os atosimpensados a que a traiçãoamorosa arrasta. Sua patroa,

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no meio de um círculo deamigos, fez com que elecontasse como tinha sido suavida pelos caminhos daCilícia. Hovsep descobriu seutalento para transformar asvulgares aventuras de umacarreira de ladrão em umagrande epopeia colorida.

Certa manhã, HagopKaragueuzian foi tomado porsufocações. Ao meio-diaestava morto. Hovsep nãosoube definir o sentimentoambíguo que o dominou por

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ocasião da morte de seuprotetor. Recolhendo-o sobseu teto, Hagop o tinhalivrado das torturas que opovo inflige aos ladrõesemasculados, mas o eunucocensurava intimamente seuprotetor por não terabreviado uma existência àqual seria recusado dali emdiante o vulgar prazer dogozo. E, entretanto, ele estavaligado a um homem que lhededicava diariamente umagrande indulgência, uma

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enigmática bondade.Mariam Karagueuzian

comportava-se como umaviúva enérgica, decidida adirigir como dona absolutaseu patrimônio. Uma vez pormês ela visitava seusentrepostos de Aiás.Inventariava os tonéis e asreservas de especiarias,vendia peles, para adquirirdepois incenso, noz-moscadaou alguma seda. Enquanto elamergulhava no universo dasnegociações e dos

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entendimentos de todogênero, Hovsep ficava livrepelo bairro. Foiperambulando por um cais dacidade que ele encontrouMontefoschi. Trocarampoucas palavras e surgiuentre ambos umacumplicidade que um e outroquiseram prolongar, explorar,intensificar. Combinaramreencontrar-se e sereencontraram por váriasvezes tanto na cidade de Siscomo na cidade de Aiás.

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Montefoschi falava sempreem tom de discurso e seuscasos mexiam com aimaginação febril de Hovsep.Só os nomes de lugares que oamigo citava o faziam sonharcom desertos vermelhos eestradas sinuosas através deflorestas e pântanos.Montefoschi, consciente daascendência que tinha sobreaquele rapaz, achando graçano encanto que provocavacom histórias de príncipescegos e reis mais venerados

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do que deuses, fez com queele se tornasse um parceirode suas ambições e sedecidisse a segui-lo por terrasnas quais a conquista deriquezas seria uma certeza.Manifestou-lhe aconsideração que umimperador tem por umministro e o integrou a seuprojeto de retomar o caminhoda China sob os auspícios dopapa e do monarca armênio.

O rio estava negro eentretanto tinha um tom

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prateado bem no meio.Sussurrava como a folhageme brilhava como uma pele deraposa. Uivos advertiramHovsep sobre um perigo.Animais disputavam osdespojos da gordura docarneiro. Sombras se mexiamem volta de um monte deosso e carne, outras pareciamparalisadas, ostentando aimobilidade de magrasdivindades. As primeirascarregavam em cada um deseus movimentos um odor de

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corrupção. As sombrasfamélicas e que uivavamlutavam entre si, dilaceravam-se com todas as suas garras,perseguiam-se e semprevoltavam ao carneiro pouco apouco despedaçado. Hovsepobservou a raivosa atividadedas feras. As sombrasfarejaram a presença dohomem. Deixaram para asfêmeas e para os filhotes oprazer de refocilar sobre osrestos do ventre do carneiro.Quando os animais se

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aproximaram, Hovsep viu quese tratava de cães selvagensque, andando em bandos,atacam os rebanhos comolobos. Ganidos, agudos ouroucos, quebravam a bela pazestival encarnada pelo céu, obambuzal e o rio. Hovsep selevantou lentamente, rodoudiante de si a tocha quetraçou no espaço um círculode fogo. Sem pressa econtendo a respiração, desceuna direção do rio. Os cãestentaram várias vezes mordê-

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lo, mas sempre uma chama osameaçava a garganta ou osolhos. Fugiam então, comlatidos desesperados, depoisse lançavam de novo emdireção à água, onde ohomem agitava uma crinachamejante. Conseguiaatingi-los e a ribanceira fediaagora a pelo chamuscado e asuor animal. Tinham todosabandonado o trecho arenosoem que o carneiro não eramais do que ossos e farraposde lã. De repente, os cães

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pararam de avançar sobre aságuas. Sentaram-se sobre aspatas traseiras e ficaramolhando Hovsep queafundava no esplendor de umrio calmo. Dir-se-ia umacoluna decorativa de cérberosesperando o afogamento dapresa que lhes tinhaescapado.

O homem caminhou pormuito tempo ao longo do rio.O frio vindo das águasemperrava seus músculos econfundia seus pensamentos.

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A tocha pesava em seu braço.O rio fez um cotovelo eapareceu a cidade, rígidamassa de pedra que com todaa sua brancura fazia a noiterecuar. Em uma hora, a auroraazularia as muralhas. Hovsepabaixou a tocha que, como achama já vacilasse, salpicavade fagulhas as fracas ondasdo Karasu. Entre mil frisadosde platina, surgiam, docoração das trevas que semoviam, rostos, paisagens eanimais. Então, ele foi tocado

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de pavor. Levantou a tocha,num gesto enlouquecido,para que não pudesseidentificar na superfície daságuas aquelas cabeleiras dehomens e de mulheres que seembaralhavam, aquelescavalos e aquelas moitas deloureiros que se misturavam,aquelas rosas, aquelas águias,Montefoschi e Vartan, HagopKaragueuzian e o carrasco.Uma vida se esbatia sobre ele,envolvia as partes baixas deseu corpo, marulhava e

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assumia forma de polvo.Hovsep fez movimentosdesordenados de um felinoque caiu na rede. Disse a simesmo que o frio e alembrança dos cães é queprovocavam tais alucinações,só podia ser. Para expulsá-las,jogou a tocha no rio e assimdestruiu a visão daquelesvivos e daqueles mortos.Depois subiu a ribanceira,arriou o corpo no chão duro eadormeceu.

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Capítulo 10

O bispo de Erzincã,avisado pelos fiéis da dioceseque um monge cilicianoestava na cidade, doente etratado por um epicurista dapior reputação, quis ter umaentrevista com Vartan. Houveo encontro e Montefoschimontou guarda na porta doquarto durante todo o tempoque durou a conversa, mão nopunho de sua adaga e olharmais para o vazio do que para

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o indecifrável. O bispoabreviou o encontro que odeixou cheio de cismas e nãoquis de modo algumdemorar-se em conversa como veneziano. Aliás,Montefoschi não estava nemum pouquinho curiosoquanto às palavras trocadasentre Vartan e o prelado nemquanto às conclusões que ume outro tivessem tirado daconversa.

Naquela mesma noite, obispo sentou-se em seu

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escritório e redigiu uma cartaa Hetum II. Expressou suasdúvidas quanto à fé deVartan, descreveu-o como umrapaz esgotado por umestranho mal e sofrendoinfluência a um tempo de umveneziano sem escrúpulo e deum charlatão. Falousobretudo de Arnaud deRoanne, fazendo algumasreflexões ásperas quepoderiam arruinar qualquerreputação estabelecida. Deledeclarou estar

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irremediavelmente ligado àspropriedades luciferianas.Permitiu-se aconselhar ao reique organizasse uma segundamissão e esquecesse aprimeira, porque Vartanjamais conseguiria abalar ascrenças dos bárbaros sobre osquais reinava Kublai Khan.Vartan não era mais do quealguém dominado pelaincredulidade e pela fraquezamoral. Depois de ter assinadoa carta, considerou-se livrepara agir à sua maneira.

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O bispo de Erzincã tinhauma cúria composta depadres e de adolescentes aosquais fazia uma pregaçãotoda semana. Exortava-oscontra os cínicos que ousamvirar as costas para a cruz.Esses fanáticos mostravamtanta facilidade em manejar opunhal como em estudar ostextos sagrados. Traçou umretrato de Arnaud de Roanneque atemorizou aquelasalmas educadas para julgar eque sentiram a necessidade

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de mandar para o inferno ummédico tão escandaloso.

Quando feridas cobriramo pescoço e as costas deVartan, Arnaud anunciou aodoente que a cura estavapróxima. Levouo a uma fontequente cujas águas agiam nosentido da cicatrização.Mergulhado nos vaporessufocantes, Vartan seembriagava com a ideia deque em pouco estariaentregue a uma existênciaque desejaria tumultuosa.

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No dia seguinte ao do seubanho na fornalha de efeitoscurativos, as feridas de fatosecaram, como previra omédico. Se bem que louvassepara quem quisesse ouvir ostalentos do prático, Vartannão agia no sentido defavorecer o nascimento deuma amizade. Essa recusa,essa repugnância mesmo arelações mais estreitasoriginava-se doaborrecimento sentidoquando estava em companhia

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de Arnaud, porque o médicoàs vezes procedia como uminquisidor que esperadescobrir um segredo.Evitava-o, então, e assim sesentia bem. O que ambosignoravam, porém, é quealguns de seus sonhos eramiguais. Num deles, que serepetia sempre, ambosapareciam balançando à beirade um precipício no fundo doqual se acumulavam rochedosacolchoados de neve. Um solmenor do que uma romã

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alojava-se dentro do peito dosdois e os consumia lentamente. Vartan se recusava abuscar uma interpretaçãopara o sonho, enquantoArnaud tentava decifrarincansavelmente cadaimagem, ainda que oresultado dessasinterpretações o incomodassesempre. Todas as explicaçõeslhe pareciam grosseiras.Desprezou, a partir de então,sua intuição que acreditarainfalível e ironizava sua

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inteligência que, dizia, haviasuperestimado. Pela lógicadesse desprezo às suasfaculdades, passou a atribuiras curas—das quais,entretanto, tinha sido oartesão—à sorte e não maisao progresso da ciência.Odiou-se por defeitos quejamais tinham sido seus: ainsolência, a astúcia, avaidade. Certa manhã, fechousuas portas aos doentes e aosescrofulosos, e no pátio docaravançará esvaziou o

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conteúdo de suas garrafinhasao pé de um limoeiro dianteda multidão que secomprimia à espera de umaconsulta. Foi nesse dia queum velho deu-lhe o cognomede Arnaud, o Malvado.

Vartan ainda estava sujeitoa bruscas recaídas. O médicoafirmou que não podiaprevenir com uma medicaçãoapropriada aquelas vertigensseguidas de desmaios. Paranão deixar que Vartansentisse qualquer cansaço,

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Montefoschi pôs a serviçodele uma liteira coberta,atapetada de veludo eguarnecida de almofadas.Vartan não se escandalizoucom a ideia de assumir seulugar numa liteira ambulanteque na Cilícia só as mulheresutilizavam. O balançomonótono de um tal meio delocomoção combinavaperfeitamente com seuhumor do momento. Gostavada indolência e saboreava ashoras de preguiça que seu

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estado de convalescente lheproporcionava. O palanquimcom armadura de madeiraguarnecida de seda atraía osolhares e distinguia aquelacaravana dos austeros desfilesde camelos, de cavalos e dehomens.

Arnaud de Roanne selavasua montaria quando umhomem esbarrou nele.Depois de desculpar-se porsua falta de jeito, o homem seperdeu na confusão de umdia de partida.

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No momento do esbarrão,Arnaud sentira uma dor friano ombro que ainda persistia.Ficou nu da cintura paracima, então, e descobriu umminúsculo arranhãoavermelhado com sangue queaflorava ligeiramente.Recolheu uma gota com oindicador. Estava convencidode que o sangue de cada umtinha um gosto particular.Havia sangues amargos,açucarados, apimentados. Asensaboria que se atribuía a

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esse líquido devia-se apenas àfalta de sensibilidadegustativa da maior parte daspessoas. O sangue dasvítimas de bócio erainteiramente diferente dosangue dos imoderados oudas vítimas de gota, assimcomo o dos soldados nadatinha a ver com o dasmulheres grávidas, O deledesafiava qualquer análise.Tinha talvez um vago odor delâmina enferrujada, de palhaou de pano molhado. Mas

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afinal isso não tinhaimportância nenhuma! Comoele passara a duvidar daeficácia de suas drogas,também não acreditavanaquela medicina quedepurava o sangue. Quebrou,jogando-o contra uma pedra,o frasco no qual permaneciaem conserva o antídotosupremo contra todo venenoe subiu em seu cavalo.

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Capítulo 11

De Erzincã a Ercis aviagem correu na monotoniada planície. Em lentas ondas,rebanhos de carneirosvogavam sobre uma relvafarta. A caravana não entroupelo longo desvio que a fariapassar diante do monteArarat e a legítimacuriosidade de Vartan deconhecer o berço de seusancestrais não foi satisfeita.Montefoschi havia explicado a

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ele que tomar o caminho doArarat comprometeria atravessia do maciço de Pamirque tinha de ser feitaobrigatoriamente antes doinverno. Além do mais, paraevitar o excesso de emoçõesque enfraquece a vigilâncianecessária durante umaviagem, não seriarecomendável visitar umlugar grato desde a infânciaao mais profundo do coraçãopelas lendas e as lembrançasdos antigos. Você não sabe o

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que é o frio que grassa noPamir, acrescentouMontefoschi para dissuadirdefinitivamente Vartan de verde passagem o antigo reinode Urartu. Por trás das sedasde sua liteira, o jovem crioupara si uma visão da arcacélebre, que seria uma grandemassa negra projetando-sesobre a memória decivilizações desaparecidas,como um olho afogado deironia sobre os homens e suanecessidade de guerrear.

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Também nessa visão, aquelamassa, soberana eindestrutível, surgiaaureolada de brumas. Eracomo um monstro marinhoencalhado no cume de umgigantesco rochedo. Vartansubmeteu-se à decisão deMontefoschi e esperava agoraver o inverno na cadeia demontanhas de Pamir econhecer, apesar de tudo,emoções extremas.

A cada parada noscaravançarás, Hovsep

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continuava a dividir o quartocom Montefoschi. Aceitava astentativas e as carícias de seuamante com desenvolturadesinteressada.

Nessas noites tornadastumultuosas pela paixãocrescente que lhe votavaaquele homem ele se aplicava,afinal, a adquirir a ciência doamor para exercê-la maistarde na cama de Arnaud deRoanne. Mas eram noites emque ressoava apenas o roncode um Montefoschi vencido

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pelo cansaço das estradas.Hovsep deixava então o leitoquase conjugal trocando-opelo pátio do caravançará. Lá,triturava ervas e raízes numpilão ou misturava drogas emum vaso. Trabalhavapenosamente como umboticário sem perceber que àsvezes o outro, despertado porsua ausência, o observava.Claro, o venezianoconsiderou a hipótese de queligações estavam sendourdidas, ali, entre seu amante

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e o médico, mas essasuposição ainda nãodespertou nele o menorciúme. Dizia a si mesmo,simplesmente, que Arnaud,por bondade, tinha cedido auma mania de Hovsep. Sabiaque o eunuco era invejoso.Seria então provável quetivesse nascido nele a vontadede rivalizar um dia comArnaud de Roanne namanipulação de beberagens.

Essa ideia faziaMontefoschi sorrir

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maldosamente: achava seuamigo ridículo.

A um comerciante depanos de Ercis, Hovsep pediuque lhe recortasse de umapeça de seda vermelha umatúnica cujo modelo copiava ade Arnaud, porque eleimitava Arnaud em tudo.Afetava um modo de falarlento e suave, empregava umvocabulário elegante, gabava-se de uma sabedoria milenar.E, nas lojas ou nas ruas,mexia nas dobras de seu traje,

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como que a mostrarpreocupação. A ondulaçõesde fogo correspondiamondulações de um azul desafira, quando os doishomens passeavam na cidadeou presidiam comMontefoschi a umconciliábulo de mercadores.Mas Arnaud de Roanne oobrigava incessantemente asubstituir antigos hábitos pornovos. Desde Erzincã, nãotratava mais de doentes eagonizantes e não mais

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manipulava xaropes. Hovseptambém abandonavapomadas e unguentos.Arnaud voltava pouco apouco ao anonimato, e eraisso que ele queria. Desejavaesse estado para observarmelhor o mundo sem sersolicitado a todo momentopor doentes. E, afinal, sabiaque esse desejo logo seriarealizado, pois seu prestígiode médico não tinha atingidoas cidades da Ásia. Desfez-sede sua túnica com um

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comerciante de artigos desegunda mão e recebeu emtroca um punhado derebarbas de cobre que não lheserviriam de nada… Foiroubado, caçoavam dele.Hovsep, na esteira deArnaud, também se desfez desua túnica sem tirar proveitode seu valor. Só o que lheinteressava era a alegria deter alguma coisa semelhanteà de Arnaud. Contentava-sesimplesmente em ser asombra de um homem cuja

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aparência de repente setornou tão comum. Era,entretanto, mais facilmentenotado do que Arnaud,porque andava com a bocaaberta e os braços cruzadossobre o peito. Na intimidadede seus passeios, Arnaud ochamava de Papa Moscas, aomesmo tempo que seperguntava por que suportavaa presença dele. Lembrava-se,porém, de ter feito voto desondar todo rosto humano. EHovsep se revelava um bom

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campo de observação.Na verdade, na

companhia de Arnaud,Hovsep mantinhaaparentemente o mesmo arde admiração a seu respeito,sempre. Mas, sob essamáscara, era possíveladivinhar, às vezes, ainquietude, o medo, odesespero.

Arnaud não suportava afalta do que fazer, por se teracostumado durante muitotempo a manipular seus

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intermináveis preparadosmedicinais. Por isso não tinhaparada em Ercis, quepercorria em todos ossentidos, incessantemente.Em poucas horas, nenhumdos costumes da populaçãolhe era estranho, sabia dasespecialidades do artesanatolocal, sabia da cultura dolugar. Infiltrava-se nasgrandes aglomerações, ou,numa casa particular a que otivesse levado o acaso,informava-se sobre as

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histórias locais.Estava aqui e ali, sempre

se movimentando. De seupassado de estudioso nãorestava mais do que umaindomável energia. A tudoseu interesse se voltava:fachadas batidas pelo sol, umpedregulho que a luz do diatornasse brilhante, bestas decarga cansadas e ovelhaspastando, mulheresdepenando uma galinha oumexendo uma sopa. Emcompanhia de Arnaud de

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Roanne, a menor aldeota setornava um labirinto, o menordos acontecimentos ganhavasentido.

Em Ercis, certa tarde, umhomem de voz veludosa oabordou. Com modos deconspirador, o desconhecidofez ao médico uma propostaque o espantou, perturbou-o,deixou-o perplexo. Convidava-o para prazeres que haviamuito ele abandonara porqueprecisara se afastar dastentações da carne a fim de

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melhor se consagrar a suaspesquisas.

Em resumo, suaignorância e seudistanciamento das coisas doamor o tornavam, nesseponto, parecido com ummonge. Mas desde querenunciara à atividade deensinar e à prática da arte decurar, passara a cobiçarfrequentemente as moças. Oalcoviteiro sem dúvidaganhou disposição para lhefalar depois de ter observado

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os olhares significativos queele dirigia às moças quepassavam. Arnaud ensaiou ogesto de juntar as pregas desua túnica, mas se lembroude que a tinha trocado.Sentiu-se indefeso diante daoferta de seu interlocutor eacabou por balançar a cabeçaem sinal de aceitação.

Hovsep, como de costume,estava a alguns passos dali.Sem ter percebido comclareza as palavras, tinhaentendido o sentido da

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conversa. Imaginar Arnaudcom uma mulher era para elecoisa totalmenteinsuportável. De modo quesem refletir ele empurrouviolentamente o homem que,num reflexo defensivo,estalou um chicote cujo cabodesaparecia totalmente emseu punho, um chicote quepoderia ser um brinquedo decriança. Hovsep apalpou seuestilete. O homem deu umarisada. Então Arnaud seinterpôs entre eles e acalmou

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os espíritos.Quando viu o médico e o

misterioso desconhecido seafastarem, Hovsep mandou-se atrás deles, dizendo a sipróprio que era capaz de rolarna cama com uma prostituta.

Hovsep era incompetentepara julgar sobre a beleza oua feiúra das moças que iam evinham nessa enorme sala debordel. A quase nudez delas oincomodava. Teria oferecidouma fortuna, que nãopossuía, a um mago para

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devolvê-lo à época de suasladroagens, àquelaadolescência em que seusdesejos eram unicamente osdesejos de derramar sangue,na qual seu destino nãoestivesse marcado por ummédico que lhe dava menosatenção do que à própriasombra. Mas esse milagre nãose realizaria nunca. Insanos,para fugir de um tormento oudos perigos em que arealidade é pródiga, nãoconseguiam dos bruxos mais

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do que uma viagem de algunsinstantes ao país doesquecimento.

Quando Hovsep se achounum quarto, impediu que amoça que lhe coubera otocasse. Apesar disso, elapropôs que ele se deitasse nacama. Ele não respondeu.Aparentemente elaadormeceu, fechando osolhos. Mas era só fingimento,logo ele a ouviu renovandocom voz clara o convite.Confessou-lhe então ser

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vítima de um mal que lheimpedia qualqueraproximação. Diante dessaconfissão, ela sorriu de modoenigmático. Na companhiadela ele se sentia—e isso eraestranho em paz. Disse isso aela. Não houve qualquerreação por parte dela, quedeu a impressão de não terescutado suas palavras. Mas asensação de calma não duroumuito. Murmúrios chegavamdo quarto vizinho, o queimediatamente pôs Hovsep

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na defensiva. A moça pulouda cama, caminhou até otabique que servia de paredee mostrou-lhe uma aberturagradeada que ali era utilizada.

Hovsep pôde entãoobservar dois corpos nus quese confundiam. Enquanto eleobservava as brincadeiras dosdois, a mão da sua prostitutasegurou-lhe o sexo. Ele sevoltou para a moça e aesbofeteou. Bateu outra vez, eela berrou. Quando elaberrou de novo, a porta do

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quarto se abriu, Hovsep foiagarrado pelos ombros e foijogado na rua, indesejávelque era.

Aos primeiros gritosagudos que repercutiram noquarto, a companheiraefêmera de Arnaudempurrou o corpo que apossuía. Pulou para baixo dacama, depois se enrolou numvéu e se precipitou pelocorredor para não maisreaparecer. Sobre a cama queela tinha abandonado,

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Arnaud de Roanne maldisse acuriosidade das mulheres eaquela barulheira que tinhaousado interromper um atoincrível e afinal inacabado—voltar a praticá-lo de agoraem diante seria para ele maisimportante do que tudo, fossenum estábulo, debaixo deuma tenda ou num quartoidêntico àquele. A timidez deum homem virgem, que tinhasido sua atitude no prelúdiodaquele ato, cederia lugarpouco a pouco à brutalidade

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de um veterano grosseiro.Um rosto, por belo que fosse,teria menos atração do que acarne oferecida. A umidadedos lençóis favorecia ospensamentos sensuais.

O homem misteriosoirrompeu no quarto e oinformou sobre a condutainqualificável de Hovsep.Entre duas imprecaçõescuspidas com virulênciateatral, aconselhou-o aescolher melhor, dali emdiante, seus amigos ou seus

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criados. Não era homem dadoa gentilezas. Brutamontesfuribundo, expulsou Arnaudde Roanne do quarto debaixode pancadas.

E foi sob vaias e um ulularraivoso que o acompanharamaté a rua que Arnaud deixouo bordel. Levantando-sepenosamente, Hovsep oesperava. Diante docomportamento servil deHovsep, já inteiramenteentregue ao castigo que nãodeixaria de vir, Arnaud sentiu

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asco. Até então, essesentimento lhe era estranho.Assim como não existia neleo espírito de vingança. Masele se recusou a partir para aviolência contra um homemagora agitado por tremores,porque tinha decididoencarnar aquele que prefere aindulgência ao ódio. Envolveucom o braço o ombro deHovsep, garantindo-lhe nãodar maior importância aoescândalo havido entre asparedes de uma casa que se

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condenava de terfrequentado. De volta aocaravançará, Arnaud lavoucom cuidado o rosto inchadode Hovsep e aplicou umemplastro que rapidamentecuraria as equimoses. Essaescrupulosa solicitude deixouimpressionado o eunuco, queaceitou tudo como umpresente e um testemunho deamizade, ousando enfim sedeclarar.

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Capítulo 12

Era uma cidade a meiocaminho entre Ercis e Tabrizque um terremoto apagariado mapa nos primeiros anosdo século XIV. Nessa cidadeorgulhosa de seusmercadores e de seus vergéis,Montefoschi teve deprolongar por muitos diasuma parada que inicialmentepretendia curta: umadisenteria atacou muitoscaravaneiros.

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Diante dos gládios e dosarcos dos soldados de Hetum,os habitantes tinhamdesistido de expulsar parafora dos muros da cidade oshomens incapazes de semovimentar, espalhando-secom isso um fedor sóigualado pelo da proximidadede cadáveres de animais.

Inflexível em suasdecisões, Arnaud de Roannenegou-se a atender ao pedidode uma delegação demercadores que veio lhe

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pedir para aliviar comalgumas drogas os queestavam sofrendo de diarreia.Negou qualquerconhecimento na matéria.Acusaram-no de cruel eindiferente. Montefoschi osalvou do linchamentofalando de um mal quedevastava a boa ordenação desua inteligência. Acreditaramnisso e o incidente terminou.Mas, numa conversa violentacara a cara com Arnaud, ele ocondenou pela

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inconsequência de seuegoísmo. O médico quisentão esclarecer, através deconfidências, como lhecustava uma atitude quereconhecia condenável, Oveneziano discordou com umgesto nervoso das razõesdessa condutaincompreensível para dizer omínimo. Comparou-o a umasentinela culpada por deixar avigilância e ameaçoucondená-lo à canga se ele seobstinasse a omitir-se quanto

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a seus talentos de médico.Arnaud reagiu com altivasuavidade, agradecendo-lhepor ter-lhe salvo do furor dosmercadores e informando-ode uma verdade: suainteligência, de fato, sofriacortes dia após dia e suamemória já não passava deum reservatório vazio.Acrescentou, por fim, quesentia necessidade derepouso. Montefoschi,impressionado pela calma daconfissão, desculpou-se por

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suas invectivas e se despediu.Quaisquer que fossem

seus passeios Arnaudacabava sempre nasproximidades de umadeterminada casa. Seu portal,com painéis de madeira lisa ede um castanho avermelhado,abria-se a toda horamostrando empregadascarregadas de cestas. Por trásdessa monumentalausteridade, o rebuliço decozinheiras e criados, aplacidez dos matres e a

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turbulência dos cãesorquestravam um rumor deforo. A fascinação que essacasa exercia sobre Arnaudparecia mortal. Ele se viamonarca de uma numerosacriadagem e de um círculo demulheres atentas ao menorde seus movimentos e deseus caprichos. Tinhaautoridade bastante pararegular cada item de umavida cotidiana que nenhumtormento de ordem particularpoderia perturbar. Na luxuosa

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monotonia dos dias, ele seacostumaria recatadamente àideia de ter de fechardefinitivamente os olhos àbeleza de sua esposa.Chegaria ao orgulhosodesapego de todo luxo eprazer que, tinha lido,conheceram seudesenvolvimento e suaapoteose entre os Antigos.Mas, num campo de Castela,e sob um sol inclemente, eletinha tido a intuição de que avelhice jamais o venceria.

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Os habitantes dessa casatinham sido os últimos adeixar a cidade fúnebre.Cantos de pássaros e piossubiam de um pátio interior.Uma noite, Arnaud entrou noterreno da casa por um muroque em muitos pontos sedesfizera como pó. Foi até opátio, no qual havia, num doscantos, um viveiro depássaros e no centro umabacia. Alguns cacarejos ebatidas de asas o acolheram.Com as costas da mão,

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Arnaud limpou as roupas.Esse gesto, que nada tinha deextravagante, assustou as avespresas no viveiro.

Uma dança selvagemimpedia a aproximação juntoà tela. Arnaud, a quem oscazares, eminentes caçadores,tinham ensinado a arte deatrair a caça, arrulhou. Esseartifício funcionou: abarulheira cessou desde asprimeiras notas do canto dorapaz.

Arnaud visitou as salas de

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pompa e as salas de repouso,as cozinhas e o celeiro.Depois arrancou dos sofás edas camas os panos decobertura macios e sedosos e,carregando essa braçadafarfalhante, voltou para ocanto do pátio onde estava oviveiro. À sua aproximação, oberreiro dos pássarosrecomeçou. Ele estendeusobre a armação de vime ostecidos luxuosos. Uma noitede ouro e púrpura baixou ládentro, impondo a volta ao

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poleiro.Arnaud preferiu dessa vez

passar pelo portal do quepelo muro. A fechadura,pressionada pela lâmina deuma faca, pouca resistênciaofereceu. Ele deixou a portaentreaberta.

Pouco importava fechá-la:não haveria pilhagem na casa,uma vez que, por uma ordemde Montefoschi, a milíciaarmênia patrulhava todas asnoites as ruas paradesencorajar os ladrões.

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Estranhamente, a cidadenão dispunha de umcaravançará. Os mercadoresmontavam suas barracas nascavalariças ou nos apriscos.Hovsep apropriou-se de umadivisão num desses locais.Uma tosse seca e uma febreteimosa tinham-no obrigadoa ficar de cama havia algunsdias. Arnaud tinha lhepreparado uma camaimprovisada com colchão depalha. Um amontoado degalhos folhudos formava a

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base. Hovsep se eternizavanaquele ninho. Arnaud tinhalhe garantido que a seivaainda percorreria a madeiracortada de fresco vivificandoa atmosfera mais poluída. Noenquadramento de umalucarna, o céu, alternandoflocos de nuvens ou azul-escuro, lembrava para odoente o passar do tempo.

O meio ambiente silvestrecriado no quarto teve virtudessalutares. A febredesapareceu e os acessos de

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tosse foram se espaçando.Agora seria precisodesentorpecer aquele corpopor longo tempo relaxado napalha. Num fim de tarde,Arnaud propôs um passeio aHovsep. Levou-o ao acasopelas ruas e foi parar na casados pássaros.

Antes de ultrapassar asoleira da porta, disse-lhe quetinha lhe preparado umasurpresa e que, para que elafosse completa, tinha devendar-lhe os olhos.

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Conduziu o cego até oviveiro que pouco tempoantes tinha coberto comtecido furta-cor. Virou atranca e com um empurrão opôs dentro do viveiro.Aprisionado na gaiola devime, Hovsep tirou a venda.De joelhos, consequência doempurrão que levara,compreendeu em quearmadilha caíra. Quieto,desfrutando da solicitudecom que o amigo o vinhatratando, numa noite recente

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ele tinha desfiado, numestado de espírito de plenaconfiança, um rosário de suasvirtudes e de seus vícios, desuas manias e de suas fobias.A mais apavorante das fobiasera seu terror obsessivo pelospássaros. E agora aquelespássaros esbarravam nele,davam voos rasantes sobreele com pânico, furor, frenesi.Hovsep girou sobre simesmo, fugiu para a direita epara a esquerda para se livrardaquele turbilhão de asas.

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Penas maiores e menorescortavam como foices, e essasarmas tanto mais rígidasquanto mais sedosas abriamem sua carne penetrantescortes. Fera vencida pelonúmero dos assaltantes,agora ele rastejava pelo chão.A horda delirante das avesacelerava a cadência. Numsobressalto defensivo,Hovsep feriu com suas unhaso papo de uma das aves, e osangue dos animais semisturou com o sangue do

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homem, que se cansou,enfim, de lutar. Apoiou-se natela do viveiro e ficou firmecomo um refém que esperasua execução. As avesperderam então suaagressividade impetuosa.Nesse momento Arnaudreabriu a porta do viveiro. Ospássaros, um a um, depoisem bandos desorganizados,voaram para o poleiro maisalto. Depois, livres, o viveiroaberto, desapareceramsilenciosos como uma nuvem

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rumo ao céu da noite.Arnaud levou o comprido

corpo de Hovsep cheio deferidas até o beiral dopequeno açude. Sua vingançaconsumada, a lembrança doescândalo no episódio dobordel de Ercis se esfumou. Epareceu-lhe odioso tersucumbido a um sentimentosujo, para dizer o mínimo.Lentamente, Hovsep saiu dopesadelo em que Arnaud otinha mergulhado.

Recusou-se a ser ajudado

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para levantar-se. Como umagrande sede o torturasse,desceu os três degraus até aágua e bebeu entre as palmasdas mãos. A água tinha gostode água de charco. Lavou elepróprio suas feridas. De péno pequeno reservatório depedra cinzenta, Hovsep ficounu e ofereceu ao olhar deArnaud a evidência de suamutilação.

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Capítulo 13

Vartan tentava compensara inatividade e o tédio de umaviagem na liteira passeandopelas ruas das opulentascidades ou das aldeias, a cadaetapa. Seu direito à inérciareivindicado em Erzincã foraapenas a expressão de umasituação passageira. Em Ercis,ele tinha cruzado numerosasvezes com o inimaginávelcasal que formavam Arnaud eHovsep. A rapidez dos

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encontros não tinhaproporcionado a elecondições para adivinhar afrieza que um mantinhapermanentemente em relaçãoao outro e a submissão, quebeirava a insensatez, deHovsep em relação a Arnaud.Mas ele se dava o direito deimaginar hipóteses sobre asurpreendente visão domédico sempre junto com oequívoco armênio.Suspeitava, entre outrascoisas, que os dois estivessem

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ligados por algum negócioescuso que os levaria ao antrode um receptador ou de umfalsário. Na pequena cidadepara a qual afluíamnumerosos caravaneiros, oacaso fez com que Hovsepcruzasse de novo comcúmplices. Numa dessasoportunidades, Hovsep ficoupara trás em relação aArnaud. Andava lado a ladocom o antigo companheiro detrapaças, como quediscursando. Arnaud ia à

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frente, mas com apreocupação de acertar opasso com eles. Vartanobservava o conjunto, até queeles deixaram uma esplanadae entraram por uma ruela elogo depois dela saíram,entrando por um pequenobosque, à sombra do qualcaminharam. A conversaentre os dois velhoscompanheiros de tramoiaspouco a pouco deu lugar aum silêncio cúmplice. Vartanos seguiu até que eles

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voltaram às ruelas e Arnaudse separou de Hovsep. Aestreita ligação entre Arnaude Hovsep que aquele passeiotão amigável provava deixouVartan espiritualmenteferido, com inveja daquelamisteriosa amizade. Amizadeque lembrava a ele, mas demodo deformado, osentimento que ligava seu paià empregada. Um demôniolhe soprou nesse momentopara que desse fim àexistência. Para Montefoschi,

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ele fez um relatório de espião.Exagerou quanto aosignificado dos gestos,inventou uma história queteria nascido em Erzincã.Criou um repertório depequenos casos que punhamà luz a duplicidade de Hovsepe a corrupção de Arnaud. Asrevelações arrasaram oveneziano. Quando Vartan seretirou, ele era um homemcheio de furor e passou asentir um mórbido ciúme queaté então não sentia. Mas, no

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dia seguinte, nada deixoutransparecer do despeito e daloucura que iam reduzir acinzas suas ambições e seussonhos de glória.

Os doentes, dois diasdepois, estavamrestabelecidos. A caravana sepôs em movimento e seafastou da cidade quefermentava num fedorpestilento. Para osmercadores, tornou-seeternamente um lugar sobreo qual pairavam os espíritos

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do mal, cujo bafo, como umvento deletério, envenenava oar e penetrava até as vísceras.Embora criado na fé cristã,Montefoschi sempre securvara, desde sua primeiracavalgada por aquelas terrasdesconhecidas, aos preceitosreligiosos do local. Tinhadepositado oferendas ao péde estátuas de deuses cujosdesígnios ignorava. Antes doadeus à cidade na qual não seouviam mais gemidos, naqual uma calma morna

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passara a dominar as ruas eas casas, despejou sobre apalha de uma cavalariça umavasilha de mel a fim de que osespíritos se embriagassemcom aquele perfume.

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Capítulo 14

Nos mercados de Tabriz,os tabuleiros transbordavamde rolos de seda, de algodão ede tafetás, ofereciam âmbar ealmíscar. A lactescência daspérolas e o verde dasesmeraldas irisavam dereflexos a noite dos quartospor trás das lojas. Desde osaque de Bagdá pelosmongóis, Tabriz tinha setornado a capital dosnegócios na Pérsia.

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Nestorianos e jacobitas láconviviam sem animosidade.Mas a religião iconoclasta dosmaometanos opunha seusfanáticos aos loucos de umdeus crucificado eressuscitado dos mortos. Asguerras santas espreitavamno horizonte.

Em Tabriz, os caminhos deMontefoschi e os da maiorparte dos mercadores deviamse separar. Só os de espíritomais aventureiro entre elescontinuaram a caminhada

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para o Oriente, para osdesertos que eram descritoscomo a boca do Inferno, paraas neves do Pamir e as cortesprincipescas em que, segundose dizia, as mulheresutilizavam-se de sortilégiospara reter junto delas oshomens rudes vindos daFrança ou da Itália. Assim,acompanhariam Montefoschipelas estradas de um mundoque nem mesmo oscartógrafos árabes tinhamconseguido reproduzir ainda.

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A autoridade natural doveneziano e sua familiaridadecom as terras inexploradasque ele se gabava de terpercorrido como pioneiroeram uma garantia desucesso para esse périplo. Sóde pensar nesse mundotremiam os covardes e osdesdenhosos de um universoindecifrável e múltiplo.Entretanto, os mercadoresnão apreciavam asfanfarronices de Hovsep, nemMontefoschi e suas reações

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de bugre, nem Arnaud deRoanne e suaimpassibilidade, queconsideravam suspeita; mastinham esperança de queesses três seres escolhidospara transmitir aos bárbarosa grandeza de uma civilizaçãofariam com que setransformassem, vivos oumortos, numa lenda. Seriamtestemunhas de três destinoscuja trajetória, em cadasegmento, teria o fulgor deum sol.

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Na cidade de Tabriz viviaum grego que tinhaabandonado os negócioshavia muitos anos.Frequentava com assiduidadeos banqueiros mais influentesda Pérsia—e com issoconseguia regularmente queseu capital aumentasse. Masnão consumia todo seu tempotratando de finanças. MarcosTrabukis tinha pretensões deconhecedor nas áreas defilosofia e teologia.Pensadores eruditos o

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informavam sobre as práticasde purificação dos brâmanese falavam da edificanterenúncia a todas as coisas aque Epíteto tinha consagradoa existência; à sombra de seujardim, zoroastrianosevocavam por metáfora acidade das profundezas queAfrasiab edificara em temposimemoriais; sacerdotes comuma cruz peitoral repetiam osacontecimentos marcantes dacurta vida de Cristo.

Ouvindo esses homens,

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Marcos se orgulhava de saberreunir em torno de sirepresentantes de todas asreligiões e conversar comeles, como o fazia Kublai.

Quando de uma viagemde Marcos Trabukis àGeórgia, um homem tinhatratado de seu cavalo—e otinha salvado dos cães quemorderam as patas do animalatingindo-o nos tendões. Essehomem era Arnaud deRoanne. Entre eles nascerauma amizade. Numa pousada

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da aldeia, tinham conversadosobre suas experiências. Umadisputa oratória dispuseraseus saberes em camposopostos; o grego distraía seuinterlocutor iniciando-o nasmanhas dos mercadores;Arnaud de Roanne exumavados livros de magia cemproposições de feiticeirospara curar as doençasconvulsivas dos carneiros. Degeneralidade emgeneralidade e de observaçãoem observação instrutiva

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sobre suas atividadesrespectivas, acabaramdescobrindo os segredos umdo outro. E de segredo emsegredo decidiram continuarjuntos sua jornada até asfronteiras orientais da Pérsia.

Lá se separaram, porqueArnaud precisava subir rumoao Norte para ver com seuspróprios olhos éguas de raçaque suavam sangueabundantemente e paracolher no vale do Narin floresazuis que só germinavam com

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esterco de lobo. Quanto aTrabukis, voltava para aPérsia a fim de lá escolheruma esposa.

A mansão de MarcosTrabukis não ficava longe domercado de especiarias. Osmuros que a cercavam delasrecebiam perfumes.Contornando-os, ocaminhante viajava, pelosodores que a pedra exalava,até as regiões maislongínquas descritas só noscontos. Marcos entregava-se a

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longas sestas, e suas flores,suas árvores e seus chafarizesdavam a seus sonhos corescintilantes.

Desde sua chegada aTabriz, Arnaud,acompanhado de Hovsep,visitou seu amigo. Os doisnão se tinham revisto desdeseu adeus numa estradaamarela pela poeira quecegava. O reencontro tinha aalegria de uma esperançarecompensada. Bebeu-se ovinho branco de Chiraz e

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almoçou-se arroz compássaro ao vinho, marmelosrecheados e uma terrina defrutas em conserva emvinagre. A esposa de MarcosTrabukis tinha se retiradopara seus apartamentosdesde o início do almoço.Marcos se queixava por nãoter um herdeiro. Era uma dorpermanente que fazia comque considerasse suasriquezas coisa de poucaimportância. Tratava-se deuma das manhãs em que a

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insignificância das coisas seimpunha a seu espírito.Médicos tinham auscultadoErietta e não encontraram emseu organismo nada quepudesse impedir a gravidez.Um astrólogo tinha projetadoseu horóscopo. Descobrirainfluências astrais de cujodesenho se podia deduziruma característicanitidamente maternal; aconjunção dos planetasprometia a ela um lar em quehaveria lugar para um berço.

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Mas um adivinho veria umespectro do lado de Marcos.Sua interpretação a respeitodessa presença macabraconcluía pela impossibilidadede seu hóspede assentar aprimeira pedra de umadinastia. Marcos tinhapensado em repudiar suaesposa estéril, mas não levouavante essa solução: um amorabsoluto o ligava a Erietta.Apesar da força dessesentimento, ele seduziaburguesas de Tabriz e

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frequentava a cama de suascriadas. Não engravidounenhuma.

Veio-lhe então a aversãopor ventres sempre estéreis.Depois, revolvendo amemória, fez umlevantamento de seusinimigos. Uma dezena defaces rubicundas ou pálidaslhe lembraram que ele tinhaenganado sem remorsoimbecis ou aproveitado opânico de negociantes emapuros. Era provável que

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algum desses se vingasse delerecorrendo à ajuda de umfeiticeiro. Os malefíciosencomendados tiveramsucesso: o sêmen de MarcosTrabukis não podia fecundar.Mas quanto mais ele serendia a essa explicação, maisrecusava a ideia de não terherdeiro. Sessões contrafeitiçaria foram vãs. Por fim,ele se decidiu por umestratagema que revoltouErietta. A esposa suplicava-lhe que não a entregasse aos

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abraços de um desconhecido.Ele argumentava, ela refutavasuas alegações. Houveirritações que não abalaram aresolução do marido. Elacedeu, afinal, quando oestado de prostração sucedeuàs tempestades verbais.

A piedade e o desesperofizeram com que ela pisassesobre uma moral que tinhamoldado seu espírito desde ainfância. No grande quartoconjugal, ela se preparou parareceber um amante efêmero.

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Marcos Trabukis mandoulevantar em redor da camauma alta paliçada na qual seabria uma porta baixa. Oespaço entre as paredes e acerca criava um corredorcircular. O próprio Marcosintroduziu à intimidade deErietta um mercador depassagem por Tabrizmergulhado em dívidas. Deuàs apresentações umasolenidade que fez brotar umsorriso nos lábios desse rapazde vinte anos, e amargura nos

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lábios de sua mulher. Nessemomento, apenas, Eriettadetestou seu esposo.

Do corredor, o maridocomplacente por necessidadeouviu os cochichos, gemidose gritos. O jovem deixou oquarto ao amanhecer,recompensado gordamentesegundo cláusula estipuladapor contrato. Antes que o diase levantasse inteiramente, apaliçada foi desmontada. Masos meses se passaram e abarriga de Erietta não

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cresceu. Marcos seperguntava se a maldição nãotinha atingido sua mulhertanto quanto a ele. Eriettagarantiu-lhe que não,confessando que tinhasubornado o rapaz para quenão tocasse nela. Tinhamsimulado todas ascaracterísticas de um prazer adois. A confissão caiu comoum raio sobre Marcos, queentretanto não censurou esseartifício dela que condenavaseu nome ao esquecimento,

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porque admirava a força que amulher opunha à sua, e issofez com que a amasse mais. Acada noite eles seprocuravam. Mas o instantede ódio que Erietta tinhavivido se fixara nela—e agoraela suportava mal uma paixãoque já a estava cansando.Chegara mesmo a um pontoem que esperava comimpaciência um outrohomem, que dessa vez elaarmaria com um punhal.

Arnaud percebeu que a

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jovialidade de Marcos eraapenas uma pausa entre duaspoderosas ondas de tristeza.O grego esperava achar umpouco de conforto junto deseu amigo, mas foi tudo emvão. Arnaud tinha mudado.Mostrava-se avaro empalavras que reconfortam erespondia com o silêncio àsconfidências do amigo. Semque houvesse motivo paraisso, repugnava-lhe relatarsuas aventuras, seus triunfose suas decepções, as

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paisagens atravessadas e osseres que encontrara. Suareserva esquiva era ocontrário de suacumplicidade anterior. Um tallaconismo melindrouTrabukis, que falou ao amigosobre a influência desastrosaque as províncias do Norte àsvezes tinham sobre as almassensíveis. Viver naquelasflorestas geladas, errar poraqueles campos infinitosacaba por destruir o gostopela troca de ideias e o amor

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às palavras. Arnaud não ocontradisse. Apresentoucomo desculpa umempobrecimento tal de seuvocabulário que lhe causavavergonha falar sobre suasperegrinações.

Para apagar a impressãodesfavorável de seu antigocompanheiro de andanças,Arnaud descreveu em frasesarrastadas a casa dospássaros e, sem nomearHovsep, lembrou sua loucavingança, os pássaros, o céu

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como um caldeirão e, semfazer pausa, falou em termoscrus da puta de Ercis e do atocarnal não saciado de quedesde então se vangloriava.Pois use uma de minhasservas!—disselhe Marcos.

Ritualmente, durante umasemana, no início de cadatarde, Arnaud ia à casa deTrabukis, Hovsep sempre aescoltá-lo. Marcos falava, depreferência, sobre aorganização militar da Pérsia,sobre aqueles mongóis que

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cortavam cabeças com amaior facilidade, mastoleravam qualquer religião,sobre as incessantesescaramuças entre genovesese venezianos. Erietta apareciarapidamente nos jardins paraverificar quais as frutas, docese bebidas que seriamlargamente servidas, depoissumia. Arnaud desprezava ospetiscos, limitando-se a beberum pequeno cântaro de vinhotemperado com especiarias.Ligeiramente bêbado,

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levantava-se em seguida parase entregar às ocupaçõessensuais que Marcosgenerosamente lheproporcionava. Entrava nacasa de seu amigo, onde, numlugar discreto, a nudez deuma moça de cozinha,sempre, era-lhe oferecida.

A Trabukis restava entãoapenas a companhia deHovsep, que se entediava como grego, o qual, para que nãohouvesse entre eles umsilêncio pesado demais,

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iniciava assuntosextravagantes, sobre os quaisnem ele mesmo estavaminimamente interessado.Um desses monólogosinsistia em seu desejo deornamentar o quarto conjugalcom um afresco. Marcosestava à procura de um artistaque pudesse lhe apresentarmuitos projetos sobre umtema havia muito tempodecidido em sua cabeça.Hovsep lhe falou deVartan. Oiluminador preferido de

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Hetum, garantiu ele, tambémpoderia revelar-se admirávelna execução de um afresco.Seria fácil entrar em contatocom ele. Hovsep ofereceu-separa servir de intermediário.Marcos aceitou.

Desde o início de suaconversa com Trabukis,Vartannão escondeu que partiria embreve de Tabriz. Comoconsequência, só poderiaoferecer-lhe alguns esboços.Marcos afirmou-lhe entãoque, uma vez entregue à

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tarefa, talvez renunciasse auma viagem insensata. Pintarde púrpura a asa de um faisãoou fazer deslizar um fogosombrio nas dobras de umatúnica com um só golpe depincel tem sido para mais deum homem a realização deseus sonhos de glóriaterrestre. E sem teatralidade,mas sem pudor, Marcoscomeçou a desfiar o caso deErietta, confessando suaadoração e seu amor. Ao falar,espantava-se de usar palavras

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que seus lábios havia mesesnão pronunciavam.

Impressionava-o o fato dese abrir com tamanhaliberdade a um estranho.Vartan inclinou-se em suadireção para melhor ouvir aconfissão que estava sendofeita. Marcos enfrentou afinalo duro momento de suadeclaração a respeito de umato de que se envergonhava.Vartan em pouco tempo nadamais ignorava sobre aquelemomento de Erietta deitada,

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por ordem de seu esposo, aolado de um mercenário ejovem mercador. O grego deuo longo suspiro do homemque avalia de repente oalcance do desastre queprovocou, e viu a mulher queamava em seu cenáriocotidiano, no tempo de seusamores. Bruscamentedeclarou que o afresco deviarepresentar três virgens queseriam a mesma mulher emtrês estágios da vida.Simbolizariam a inocência, o

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amor e a morte. Pretendiaque o rosto mais marcadopelo tempo guardasse ostraços de um passado plenode afeição e fervor. E por trásdessas três figuras,projetando-se sobre elas,haveria uma cruz na qualestaria crucificado um cão,porque assim é que queria serrepresentado, ele, MarcosTrabukis, ele que tinhaaniquilado com a sua loucuraa bela harmonia de um casal.Vartan prometeu desenhar e

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depois pintar três mulheresenlaçadas. Todas, em seuespírito, tinham os traços deRipsimeia. O amor realçarianuma explosão de nácar alímpida serenidade dainocência, e a morte tornariaocas faces que o amor tinhaarredondado.

Vartan já não sonhava comos mapas cheios de nervurasde rios e verdes de florestas.Viajar seria a partir de entãoexplorar as mínimasalterações do granulado da

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pele e da alegria filtrada porpesadas pálpebras. E,pintada, a belezasobreviveria.

Vartan selou a amizadecom um gesto que só fizeraaté então para um bispo oupara seu rei: beijou as mãosde Marcos Trabukis epronunciou frases de umaternura filial.

Com seu pai só tivera umaintimidade que o gelava. Mascom esse homem descobria ocalor do abandono. Marcos

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aceitou o reconhecimento queVartan não escondia. Não sesurpreendeu nem tevequalquer desconfiança. Desdeque pisara em seu jardim,esse rapaz que encantara comsuas obras uma corte e umconvento o conquistara. Haviameses não lhe prestavamhomenagem como naquelemomento. Também acariciaraa cabeça que se inclinaradiante dele. Naquele instante,sentira-se um senhor, umbenfeitor, um amigo.

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A partir da manhãseguinte, depois de tervisitado o quarto conjugal,Vartan recolheu-se ao cômodoexíguo porém fresco em que ogrego cheio de afliçãoconcluíra com ele uma aliançanão ratificada por nenhumdocumento. O pintor seentregava ao exercício detraçar sobre uma prancha demadeira clara a forma de trêscorpos que se inclinavamligeiramente sobre uma fonteainda invisível.

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A hora em que a pedra dasfontes brilhava, em que o azuldo céu se intensificava e emque o verde das árvores seperfumava, em que as igrejas,sinagogas e mesquitaspareciam modeladas pelomesmo bronze, Arnaud deRoanne entrava na casa deMarcos. Estava prestes aenveredar por um corredorquando uma mulher apareceudiante dele e lhe tomou amão. A mulher não sorrianem mostrava qualquer

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atitude provocante. Eriettamostrava-se tal qual eraautenticamente. Ele pensouem libertar-se da mão queenvolvia a sua, mas não feznenhum movimento nessesentido. Erietta nãomurmurou uma únicapalavra. Como no dia em queMarcos a tinha apresentado aArnaud, limitou-se a umligeiro movimento de cabeça,a um olhar vazio de bondadee de doçura. Sem largar-lhe amão, ela se virou para o outro

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lado; agia como se o guiasse.Passaram por pátios internose por salas entulhadas delâmpadas, de almofadas e decofres. Arnaud esqueceuMarcos. Não o tocavam nem avergonha nem o desejo.Parecia mergulhado numsonho, insensível aolongínquo rumor da cidade,na qual se cruzavam, seespreitavam, se encaravamtantos homens vindos detantos horizontes. Tudo lheera exterior, nada o atingia.

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Mas quando ela ficou defrente para ele, ele ficouimpaciente para que a portase fechasse logo atrás deles.

Erietta o tinha levado aoquarto conjugal. Mandaraerguer previamente cercas emtorno da cama, nas quaisesvoaçavam véus azulados ebordados de quimeras, deleões e de rosas de prata. Essacerca de noite pálidaconstelada de monstros, deferas e de flores seriadesmontada à noite. Marcos,

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assim, ignoraria o frágilesplendor que teria servidode cenário para sua mulherdurante algumas horas.Arnaud e ela ultrapassaramaquela barreira móvel deseda. Então, fechados naquelequarto, Erietta Trabukis eArnaud de Roanne seamaram.

Mais tarde, tudoterminado, Arnaud selembrava da palpitação sob ospanos e da doçura que seevola de um corpo. Era tudo e

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era pouco, porque não lhevinha à memória o rosto damulher. E essa ausência tinhaalguma coisa de maléfico:tornava pouco significativa aacariciante beleza dosenfeites extravagantes dostecidos e da maciez da pele.Tentou desesperadamentelembrar-se dos traços deErietta, mas sua memóriaquanto a isso se fechava demodo obstinado.

Por três vezes Arnaud seuniu a essa mulher e a amou.

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Não entabulou nenhumplano com ela, o futuro lheera indiferente. E sempre,quando saía à rua depoisdesses encontros íntimos, orosto de Erietta setransformava apenas numaforma oval de cinzas, depoisnum buraco, e enfim numanoite absoluta. Arnaud ia-seacostumando a esse abismo,ainda que sofresse com isso.Mas quando pela quarta vezse estreitou contra esse corpodesejado, soube que o rosto

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dela não se anularia mais nastrevas.

Ela tinha o abandono deuma mulher adormecida. Elese apoiou sobre um cotoveloe a observou. Cada detalhe docorpo oferecido expunha-se àluz como uma paisagem, masuma paisagem indecifrável.Erietta sorria. Levantou umbraço e a palma da mãocobriu o arredondado e atepidez de um dos ombros deArnaud. Reergueu-se e seusdedos deslizaram até a

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omoplata do homem,delimitaram um canto de pelemarcado de vermelho.Quando de sua primeiratarde no quarto, ela já tinhaobservado a manchainquietante. Sob a pressãodos dedos, a mancha tomavauma cor avinhada. Sobre essaregião ela apoiou a unha, noponto exato em que o estiletede um emissário do bispo deErzincã tão habilmente oferira. Arnaud deu um gritocurto e surdo. Erietta o

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obrigou a deitar-se de bruços.Enrolou-se nele, o joelhocontra sua nuca, a cabeleiraespalhada sobre as costasdele, e beijou o pontomachucado. Quando sedesenrolou do corpo dele,apanhou debaixo da cama umfrasco que esvaziou sobre oombro doente. O líquidooleoso soltava um perfume. Opreparado, garantiu ela,aliviava a dor.

Ordenoulhe então que sevestisse, fixando-o com

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extrema prostração. Quandoele se aprontou, pediu-lheque deixasse o quarto.Arnaud hesitou, mas elabeijou-lhe os lábios, deu-lheadeus, chamou uma serva e sevirou para o outro lado.

Arnaud atravessou ojardim, passou diante deMarcos e não parou. Trabukisreconheceu no seu rastro operfume de um unguento quea mulher, algumas noites,esfregava no pescoço, nopeito e na barriga. Sentiu-se

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de repente mergulhado numfosso.

Naquela mesma noite,Erietta fugiu da grandemansão e Marcos se enforcou.

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Capítulo 15

Desde o amanhecerMontefoschi cruzava as ruasde Tabriz.

Agitava-se à procura deum mapa, pois aquele queconsultara junto com Hetumse mostrara enganador.Estava preocupadoprincipalmente em achar umque indicasse com segurançaa estrada que lhe permitiraevitar o Pamir. Alegrou-seafinal por ter encontrado

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aquele que esperava haviamuitos dias, batendo sobre osjoelhos um mapa cor de areia.Lá estavam desenhados rios emaciços com os respectivosnomes, O dono da loja jurouque aquele mapa era fruto delongo trabalho de umcartógrafo persa e quenenhum o igualava emexatidão. O venezianodepositou então sobre umamesinha redonda três pilhasde moedas. O outro tirouduas de cada pilha, sopesou-

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as, fez com que seentrechocassem e tinissem napalma da mão como sejogasse o jogo das pedrinhas,depois as empilhou de novo.“É uma quantia justa paraobter uma tal maravilha’disse o homem, “e creio quevou ceder-lhe o mapa poresse preço que você mepropõe.” E continuou:“Porém o mais elaborado dosmapas continua mudo emcertas regiões. Haverá de servocê o aventureiro que um

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dia determinará a localizaçãoreal de um lago ou de umoásis, de um mar interior oude uma planície. Entretantovocê não pode ignorar que omundo nunca está imóvel. Seafirmar o contrário, será umacriança ou um cego. Debruce-se sobre o mapa e veja estacidade marcada com umacruz: ela está perfeitamentesituada. Você aí fará umaparada, amará mulheres,trocará camelos por gengibre,a menos que os ventos

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tenham botado abaixo suasmuralhas e espalhado suaspedras, ou que um exército atenha arrasado, que águasfuriosas a tenham engolido.Hoje você tem sob os olhosuma cidade e amanhã haveráali apenas uma cratera oudunas. Os mapas nos guiamatravés de um universo emmovimento. Aceite de agoraem diante essa prodigiosaverdade e você será, afinal,um viajante.”

Essa lição de sabedoria

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chamou a atenção apenas deMontefoschi. Os sedentáriosna maioria das vezes ficavamconfusos com esse tipo dediscurso. À noite mesmo,Montefoschi estudoulongamente o mapa. Pouco apouco ele perdia a clarezaadmirada na loja e cedo nãoseria mais do que umarbitrário emaranhado delinhas, um caos de rios e deflorestas, uma bruma, enfim,na qual se dissipavam oscontinentes. De forma

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irreversível, traços e toquesde verde, de vermelho e deazul iam sendo absorvidospelo pergaminho. Não haviamais nem meandros nemfronteiras, não havia maiscidades nem terras estéreis,nem regiões nem supostasilhas, mas, em seu lugar, umapele de animal salpicada decores que ia endurecendo.Até tarde da noite eleblasfemou como no tempoem que negociava na Crimeia.Na manhã seguinte um

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menino lhe entregou umacaixinha com todas as moedasentregues na véspera aocomerciante. Hovsep recebeuordem de conduzir o dono daloja ao caravançará a fim deque ele se explicasse.

O monte de moedas deouro restituidas nãoconsolava absolutamente umMontefoschi frustrado eirritado.

A porta estava fechadaquando Hovsep chegou à loja.Durante muito tempo ele

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bateu, até que os vizinhos seindignaram com aqueleescândalo. Por que você seobstina assim? - perguntouum deles. E informou que oproprietário tinha partidonaquela manhã mesmo paraBagdá. Nós nos alegramos,acrescentou um outro, porquenunca se está seguro quandose vive ao lado de um homemdado à magia. Os feiticeirosde Tabriz são os maisperigosos do mundo, foi maislonge um terceiro.

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Mais que de bandos desalteadores, os perigos deuma viagem de Tabriz ao paísdos seres vinham das areias edos ventos. Avalanches echuvas tornavamfrequentemente impraticáveisos caminhos de montanhas. Aescolha de guias seguros eexperientes em marchasdifíceis se impunha. Desdeque viu os tijolinhos de ourode Kublai, Sa’ad al-Daula, ummédico judeu, conseguiu doisdesses guias para

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Montefoschi. São guias, disse-lhe o médico, dos maisconsiderados da Pérsia. Se eutivesse de ir à China,acrescentou, não dispensariaos serviços deles.

Sa’ad al-Daula exercia ocargo de ministro dasFinanças no governo deArgun, o Ilkhan que reinavana Pérsia. O príncipe mongolse guiava em tudo pelaopinião e pelas decisões deseu ministro. Essa eminênciaparda abusava de sua

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influência e de seu poder.Confiava os mais altos postosadministrativos aos quefrequentavam a sinagoga ou aigreja.

A seu nepotismocorrespondia suaimpopularidade junto aosmuçulmanos. Sua posição,assim, ao mesmo tempo eraforte e ameaçada. Durantesua última entrevista com oveneziano, louvou os guiasque lhe tinha recomendado:“Jeremias e Trêmer são

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jovens, mas apesar disso degrande prudência. Deixo emsuas mãos dois rapazes queconsidero meus filhos. Nasestradas da China, estarãotalvez mais seguros do queaqui. Sou odiado, bem sei, eesse ódio pode acender oincêndio da revolta. Hoje afortaleza é inexpugnável,amanhã poderá virar cinza.Repito isso para mim mesmotodo dia. Minha queda estápróxima, sem dúvida. Por issoquero afastar esses jovens de

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uma cidade na qual serádesencadeada a vingança esangue vai rolar. Você temsorte. Jeremias, além de serum excelente guia, vaiencantá-lo por suas narrativasfabulosas de um mundo quenão se parece em nada comeste sobre o qual eu reino”

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Capítulo 16

Foi Mira, uma das servasdos Trabukis, que deu oalarme quando descobriu osuicídio de seu patrão. Bateuno peito com os punhos eparecia que ia arrancar oscabelos.

Um remédio para ocoração felizmente acalmou amanifestação teatral de seupavor e de sua dor. Uma vezserenada, ela escapou da casamarcada pelo luto e espalhou

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de porta em porta e de tendaem tenda o ato pelo qualMarcos Trabukis se tinhadanado. Também contousobre a manhã em que tinhasurpreendido um jovemmercador se esgueirandopara fora do quarto de Erietta.Falou disso como da causaessencial do drama. Todos aescutaram, escandalizaram-se, lançaram o opróbrio sobreo esposo.

Mira falou também dadesaparição da esposa. Então,

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os amigos de Marcosentraram na casa abandonadae queimaram num forno tudoque tinha sido de Erietta.Também jogaram no fogosuas joias e seu espelho,depois pediram a Deus que acondenasse à errância, aodesprezo e ao remorso.

Dos pés à cabeça, umaqueimação percorreu seugrande corpo nu. Arnauddelirava por causa de umveneno e de um unguento.Montefoschi e Vartan,

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alertados por seus gemidos,correram ao seu quarto. SóHovsep, que partira em buscade um médico, não estava àcabeceira do agonizante. Todaa pele de Arnaud se pintoude vermelhidões que derepente assumiram aspectomarmóreo de manchas cor deleite.

Em poucos minutos, dir-se-ia que tinham esfregadogiz naquele corpo. Quandoseu rosto pareceu besuntadode alvaiade, Arnaud de

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Roanne morreu.Hovsep mantinha-se à

distância do cadáveracusando em voz baixa oveneziano de ter envenenadoArnaud. Salmodiava orasobre o amor, ora sobre odesespero e a vingança.

As pessoas se afastavamdele, ou o deixavam cantarsozinho a litania da dor e doódio. Havia em seu olhar umsofrimento imenso, mastambém uma violência de darmedo, que paralisava os mais

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comovidos diante dessehomem.

Ele hesitava em preparar ocadáver de seu amigo, porqueisso seria cumprir osprimeiros gestos do adeus.

A noite se aproximavaquando Hovsep interrompeuseu canto iniciando um outro,este, melancólico, vindo dostempos de outrora eaprendido numa infância deque era tudo que restava.Hovsep parecia um pastorque entoa um salmo sobre o

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efêmero das paixõesterrestres. Sua cantilenaterminou por uma nota maisalta.

O ruído agudo de uminseto distraía aqui e aliVartan de uma tristeza que iase acomodando. O jovemartista observava também oveludo negro do céu. MarcosTrabukis lhe fazia falta. Mas,compreendendo que alguémpode se arrebentar diante deuma realidade insustentável,não se insurgia contra a

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escolha dele pela morteprovocada.

Ao contrário, rezava paraque lhe fosse dado viver, porsua vez, os sentimentosextremos. Sua oração sedirigia a um deus sem nome,que não julgaria nem ocontato carnal nem a traiçãode um amante.

Uma linha de um ouropálido riscava o horizonte e,no pátio do caravançará,Hovsep clamava aos céus debraços erguidos, ia ora para a

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direita, ora para a esquerda,como se oscilasse debaixo deum pesado fardo, vaticinassepara todos os ventos; o nomede Montefoschi era ouvidoem todas as suaselocubrações. Hovsep era umpião, descrevia espirais evolutas. Vartan o dominou,segurando-o, e cochichou-lhepalavras que acalmavam. Opossesso se transformou numhomem acabrunhado,despedaçado.

Revolvendo a mochila de

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Arnaud, Montefoschi achouuma folha de papel de arrozna qual havia a receita dediversas poções. Uma diziarespeito às convulsões, umaoutra, às alucinações. Umboticário de Tabrizconseguira, de acordo com aencomenda, produzir umxarope de propriedadesnarcóticas. Montefoschimisturou esse xarope com ovinho que Hovsep bebia. Oefeito foi quase imediato: ohomem caiu numa bem vinda

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letargia, e foi nesse estadoque o conduziram a umaliteira. Pouco antes da partidade Tabriz, Arnaud de Roannefoi enterrado num pequenocemitério que confinava coma igreja frequentadatradicionalmente pelosviajantes a caminho da China.

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Capítulo 17

O número de mercadoresestava reduzido a menos dametade, a caravana não eramais a sinuosa coluna decamelos que tinha deixadoSis. Da milícia armêniarestava ainda um punhado desoldados, o grosso da tropatinha retomado o caminho daCilícia. Hetum e Montefoschitinham convencionado isso.O rei tinha garantido aMontefoschi que dez rapazes

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mais vigorosos, tão armadosquanto os bárbaros outrora àsportas de Roma, seriamsuficientes de Tabriz emdiante para prover asegurança do embaixador edo pintor. Os rapagõessaberiam retalhar empedacinhos os pioresbandidos. Além de tudo,seria má política entrar emPequim com estardalhaço.Hetum não mandava fogo eaço para Kublai, mas abandeira da fé.

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Os homens arquejavamsob um sol de rachar. A liteirabalançava sobre uma pistapedregosa. Montefoschiestava satisfeito de ter, comoum médico, vencido o furorde um antigo ladrão que,desde cedo na vida, estavahabituado a quebrar os ossosde quem o tinha sustentado.A intervalos regulares,ministrava o narcótico aHovsep, de cujos lábios, detempos em tempos, corriauma baba. Entorpecido,

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entretanto, ele parecia sereno.Vartan nunca mais seintrometeu e deixavaMontefoschi completar seuritual. Não havia motivo,raciocinava ele, para apressara volta das visões e dos gritosde vingança. E, depois, eleapreciava o silêncio dasestradas que àquela alturanada quebrava, e que lhepermitia pensar em Marcos,mas também no futuro.

Jeremias correspondia aoretrato que dele traçara Sa’ad

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aIDaula. Tinha a segurançade um príncipe que guia seupovo para terras maisdementes, sem buscarinterpretar ovôo da águianum céu branco, nem seinquietar com a estiagem quesecara numerosos rios,convertendo-os em leitos depoeira. Nada parecia abalarsua certeza de conduzir acaravana a bom termo.Cavalgava sempre ao lado deTrêmer e ambos tinhamsempre longas conversas ao

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pé do fogo a cada parada.Montefoschi se irritava com acordialidade existente entreeles, sem nunca ousar separá-los, porque romper acumplicidade dos dois seriaprivar os viajantes doconhecimento das estradas,das planícies e dos desertos.

À noite, na sala comum deum caravançará, na orla deuma floresta petrificada, nocoração de uma campina,Jeremias se transformava emcontador de histórias. Em

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meio às ruínas de Savé,suscitou a presença de lobosdescrevendo um mundo emque o inverno era a únicaestação. Entre seus dedos,areia escorria e francosacreditavam ver uma neveesquecida cobrir-se de umanuvem de pó.

De dia, ele era o guiaaustero e o falcão que viatodo raminho até o fundo doprecipício. Anunciava asravinas e previa, apenasvoltando a cabeça e

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auscultando o pico ou openhasco de uma colinaescarpada, odesmoronamento próximo.Gravava tudo, a aresta depedra ruça e as pegadas dojumento selvagem ou dagazela, a toca da raposa ou ossinais de uma antiga batalha.Em voz alta, citava os nomesdas cidades, aqui, Avé, ouKaxã, ali. Sobre ruínas ousobre areia, lia a história domundo.

Vartan, ao ouvi-lo,

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lembrava do pai, para quemuma pradaria nunca era umasimples extensão de terraonde passeavam animais.Recorda-te, dizia ele, que aquiem tempos de outrora estapradaria foi escolhida paraque neste local se conseguisseuma vitória.

Durante sete dias, acaravana avançou numapaisagem de mato cor deferrugem. Os espinheiros,depois da passagem doshomens e dos animais,

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enfeitavam-se de tufos decrina e pedaços de pano. Acaça era abundante. Entreraízes aflorando da terrafaisões alçavam voo. Ossoldados, alguns mercadorese Montefoschi arriscavamflechadas.

Assavam-se aves numcenário de árvores anãs.Jeremias, mastigando umacarne de fumeiro, imaginavalá dentro de si os ecos de umacaçada em que o cervo era umbrilho de ouro e o monteiro-

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mor um demônio. Aoamanhecer, um verde deoceano inundava o Leste.Rosas cintilavam e a noite,definitivamente, morria.

Uma extensa planíciecinzenta levava ao reino deKerman. Turbilhões decavalos mongóis tinhamabalado o solo ali. Alembrança de um céuensombrecido por umanuvem de flechas aindaperseguia os habitantesdaquela terra de onde se

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extraia a turquesa. Nascercanias de uma aldeia,Jeremias recolheu algunsossos. Uma criança tinhamorrido ali. Suspeitou-se quese tinha tentado reduzir a póo último sinal de um crime ouque se tratava de um corpovencido pela penúria de água.O rapaz explicou que umalonga alquimia converteriatalvez aqueles ossos emturquesa. Todo mundo riu.Mas, no dia seguinte, muitoscarregaram à socapa seus

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sacos de viagem com osmínimos fragmentosdaqueles esqueletos dehomens ou de animais quejuncavam as estradas.

Por todo o reino deKerman ressoava o martelardo aço, que empestava a pelecurtida. Num vilarejo,Montefoschi se abasteceu dearreios, selas e freios.

De cidade em cidade,Montefoschi carregava oscamelos com provisões defarinha, de correias de doce

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de melão em conserva, decarne seca. Alimentava à suacusta os mercadores, porquequeria mostrar-se pródigo embenesses, como um rei. Paraisso, esgotava sua reservapessoal. Em Tabriz, designaraVartan como contador e oartista começava a seapavorar com as despesas queaumentavam sem parar.Oferecer comida de graça apessoas que tinham umpecúlio era um capricho.Repartir seus víveres, passar

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horas a escolher vitualhasneste balcão e não naqueletambém era um modo deMontefoschi tentar esqueceros amores de Hovsep e suatraição.

Jeremias e Trêmerdistribuíam os vinhos e aspernas de carneiro. E oveneziano olhava a cena delonge. Quanto mais sedespojava de seu dinheiromais evitava qualquer relaçãocom os caravaneiros e ossoldados. Era um rei

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generoso, certamente, masum rei que não se misturacom a plebe.

Prolongando os dias deestado letárgico de Hovsep,Montefoschi mantinha aesperança de reatar com seucompanheiro de viagem asrelações anteriores. Por issoreduziu as doses do narcóticoe se pôs a observar no rostodo homem que dormia omenor tremor quedenunciasse o seu despertar.Na verdade, da soleira da

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porta ele aguardava que sedesenhasse de novo asilhueta do ladrão de Más. Àespera dessa transformação, acada caravançará em queparavam, ele passou a deixara porta do quarto deleentreaberta.

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Capítulo 18

A caravana parou três diasem Kubonã. Lá, Montefoschisoube que entre essa cidade eXeb ergã uma quadrilha debandidos roubava osviajantes. Uma vez roubado oouro e depenados osmercadores,desembainhavam o punhal. Acarniça humana acrescentavaseus miasmas às carcaçasanimais. Reconhecia-se oterritório onde operavam

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esses bandoleiros pelo arcorrompido que se respiravana área. Em vez deamedrontá-lo, esse perigoestimulou o veneziano,porque teria enfimoportunidade para mostrarsuas artimanhas e suainvencibilidade. Comprouentão metros e metros deuma fazenda preta e pesada,empilhou tochas de resina naliteira e carregou uma carroçacom estacas, lanças epássaros em gaiola.

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Às portas da cidade asterras eram áridas. Em plenodia, Montefoschi ordenouuma parada nessa paisagemocre e encapelada. Deus, diziaele, criava miragens nessesolo desértico, a fim dealucinar o viajante e assimpuni-lo por seu desejodesenfreado de aventuras ede riquezas. Muito bem, eu—dizia -, sob este sol ardente,serei o deus que fará de umasimples caravana uma visão,semeando o pânico entre os

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bandidos. Serei o deus que serecusa a perder nas areiashomens cheios de ambição esabe afastar a infelicidade e aruína. Serei, afinal, aqueleque os leva ao Oriente.

Fez uma proclamação aoshomens, confiou-lhes asrazões daquela parada e deuordens com uma talautoridade que elas foramexecutadas sem protesto.Daquele momento em diante,o dia seria destinado aorepouso e a noite consagrada

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aos deslocamentos, declarouele. Assim, ficou estabelecidoque a cada parada seriamacesas grandes fogueiras,formando um círculo perfeitoem meio ao qual estariam osanimais, os tesouros e oshomens. Entre uma fogueirae outra, fincar-se-iam na areialanças e estacas e nelasseriam empaladas asgalinhas. O intolerável calordo verão aceleraria oapodrecimento. Por fim,mercadores e soldados, guias

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e intérpretes se enrolariamnas peças de tecido preto. Oscavalos, os camelos e asmulas seriam cobertos com omesmo pano. E com uma telapreta seriam cobertastambém a carroça e a liteira.

Esse estratagema,concluiu Montefoschi, era oúnico que podia impressionare, portanto, manter àdistância os assaltantes, osdegoladores que dominavamaquela província.

Como ele tinha previsto, o

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fedor e as fogueiras criaramuma fronteira que os ladrõesde modo algum ousaramultrapassar. Ouvia-se às vezesuma cavalgada longínqua e àsvezes presenças imóveisespionando de uma dunaaquela reunião de seresfantasmagóricos. Nocrepúsculo, a caravana sepunha em movimento,deixando as galinhasestripadas aos vermes e aonada.

Cada um tinha acendido

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uma tocha e a brandia. Aimpressão que se tinha é queentão uma única chamaondeava sobre uma longaserpente cor de fuligem.Quem a visse evoluir no maisprofundo da noite imaginariaestar assistindo ao arrastar deum animal fabuloso, surgidodo Inferno e se dirigindo àscidades para lá instaurar oreino do medo.

Xebergã afinal estavaperto. Quando da décima eúltima parada, os homens

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perceberam que haviamudança na perspectiva vistaalém das fogueiras. Tudo quese ouvia era o puro silênciodo deserto; nenhum ruído decasco, nenhuma sombra sedesenhando nos pontos maisaltos das dunas.

Os ladrões, sem dúvida,tinham se afastadodefinitivamente da estranhaprocissão, por temor, talvez,de acompanhar de pertodurante um tempo muitoprolongado aqueles

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feiticeiros adoradores do fogoe de carniças.

Os mercadores, querfossem armênios, persas oufrancos, lembrar-se-iam parasempre dessa viagem.Tinham gostado inicialmentede cavalgar vestidos deescuridão lembrandomorcegos, depois esqueceramessa semelhança, porquecomeçava a espantá-los o fatode que uma simples tocha egalinhas empaladas adiasseme até impedissem o assalto

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dos bandoleiros. Não, issonão era suficiente para afastaro perigo. Desse modo,começaram a admitir suametamorfose em seresintocáveis, príncipes deascendência divina. De resto,como se diz de Deus, nãotiveram nem fome nem sede.Mas essa impressãosobreviveu por pouco temponeles, porque, perto deXebergã, meteram numespeto e assaram as últimasaves e, boca e dedos

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lambuzados de gordura,voltaram a ser, sem se darconta disso, viajantes comoquaisquer outros, quer dizer,pequenos seresinsignificantes, devassos ecruéis quando seapresentasse a ocasião. Seuspensamentos se voltavam,como quase sempre, para asminas de ouro e de prata,para os mais importantescentros de negócio daBactriana. Mas, voltando afamiliarizar-se com eles

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mesmos, puderam sentir derepente o que os diferenciavade Montefoschi.

O veneziano, Vartan,Jeremias e Trêmer, quejantavam a poucos passosdeles e tinham abandonadoos panos pretos que osenvolviam, irradiavam, issoera inegável, uma certagrandeza.

De manhã, Montefoschipediu a todos oscompanheiros que nadadissessem sobre os disfarces,

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porque naquelas províncias,preveniu-os, a aventura podiaser interpretada como umsinal de feitiçaria e entãohaveria o risco grande de queacabassem numa fogueira, oumesmo lapidados.

Hovsep entreabriu osolhos. Sentia que tinharecuperado as forças. Podiaagora cruzar e descruzar osbraços, dobrar as pernas,deitar-se de lado ou debruços. Não estava maismergulhado em sonhos

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profundos. Naquele dia, tinhasido alimentado com umatigela de mingau e restos decarne, que o carcereiromastigava previamente parafacilitar a absorção pelopaciente. Mas Hovsep nadacomentara com ele sobre acapacidade de movimentosquase que totalmenterecuperada de seus membros,nem que as brumas de seuespírito se dissipavam.

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Capítulo 19

Monges na caminhada deuma peregrinação tinhamvisto a ondulação de fogo nanoite do deserto. Pelas ruasde Xebergã já se espalhava alenda, à chegada da caravana,de um dragão com uma cristade fogo e de um bivaquesurgido das entranhas daterra. Montefoschi tentouabreviar seu tempo depermanência na cidade, masos mercadores a isso se

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opuseram firmemente,invocando o cansaço e anecessidade de negociaralguma coisa na cidade. Oveneziano curvou-se às razõesalegadas. Ao contrário deHovsep, ele era incapaz deinventar histórias fabulosaspara obrigá-los a partir nomesmo instante.

Nessa cidade, Vartanassistiu a intermináveisdiscussões entre nestorianose conviveu com masdeístas.Comovia-se mais com um

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sorriso, com o som de umavoz, com a visão de umombro nu, do que compessoas que dormiam àsombra de um muro ou comas disputas oratórias. Numareação à austeridade dasterras pelas quais acabara depassar e ao silêncio impostopor Montefoschi, ele seencantava com a diversidadedos homens, dos costumes edas crenças. Passeava pelosmercados, sem se cansar comas fragrâncias que

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impregnavam o ar. Foi aosbanhos, e lá permaneceudurante horas a contemplaros corpos que evoluíamdiante de seus olhos. Quandoum rapaz o convidou a seretirar para um canto isolado,deixou o recinto. Mas, devolta ao caravançará,lamentou ter recusado oconvite, porque sentira desejopor aquele jovem. Noentanto, não voltou aosbanhos, não ousando aindaviver aquilo que Montefoschi

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e muitos outros praticavam.

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Capítulo 20

Uma inscrição sobre ofrontão de uma das portas deBalk afirmava que a cidadetinha sido construída para aglória de Deus e que avontade do sultão a tinhametamorfoseado em paraíso.Mas Balk, havia algunsdecênios, não oferecia aoolhar senão um vasto campode ruínas, porque o exércitomongol a tinha arrasado. Sobseus muros, os

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conquistadores tinhamreunido uma população feroz.Durante a conquista, osúnicos ruídos que se ouviameram o dos sabres seabatendo sobre as nucas e obater dos cascos dos cavalos.Os sobreviventes do massacreassistiriam ao crescimento daenorme coorte de escravos.Um incêndio tinha marcado ofim da prosperidade tanto dacidade como da região. Comouma gigantesca pedratubular, isolada, erguia-se

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ainda a porta de Balk.Arvores se infiltravam

através de um amontoado deruínas. A verdura retoma aquie ali uma paisagem decalamidade. Pastores e suascabras buscam as sombras,tão raras desde que asoldadesca de Gêngis Khan,num dia longínquo, tinhaincendiado bosques e jardins.

A caravana fez alto pertodas ruínas das fortificações.Havia ao alcance dos olhosum amontoado caótico de

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pedras, sobre as quais retinhapor vezes a queda de umcalhau. Poucos viajantestinham ousadia suficientepara se aventurar até umlabirinto de ruínas, naquelesilêncio de objetosdespedaçados, num mundodestruído. O tempo seencarregava de esmagar umlugar que parecia umpesadelo no qualdespontavam ainda algunsvestígios de luminosoesplendor.

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Vartan sentiu medo diantedessa imóvel convulsãomineral ornada de grandesvegetais e entregue aospássaros, aos répteis e aosinsetos. Nada em Balk, parasempre humilhada, convidavaàs libações ou ao repouso.Vartan vestiu sua túnica,tentando negar a realidade, asguerras e as invasões, ossuplícios e as degolações.Também queria esquecer afornalha que era o dia e o frioque viria à noite, e lembrar-se

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apenas dos banhos deXebergã. Então, adormeciapara encontrar em sonhosaquele jovem que lheprometera o prazer.

Por esse tempo, Trêmer eJeremias escalavampirâmides de pedra;dançavam no parapeito deum poço coberto por vigas.Provocavam-seamigavelmente e lutavambem-humorados.

Brincalhõesescandalosamente alegres,

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quase inconvenientes naquelecenário negro consequenteaos cataclismas, elestomavam posse do lugar. Ummesmo sorriso se eternizavaem seus lábios e um mesmoolhar permanecia em seusolhos. Um obscuroparentesco de alma os unia.Pareciam refletir-se um nooutro.

Montefoschi observavasuas corridas intermináveis.A impetuosidade dos doisjovens o aturdia. Como

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predadores com sua presa,eles o cansavam seaproximando e se afastandoaos pulos incessantes. Emrelação a eles, o veneziano semostrava de uma indulgênciarara e não tinha uma palavrapara repreendê-los nem umgesto para interromper suasbrincadeiras. De repente, eleos agarrava pela manga,passava-lhes um pito como acolegiais insolentes e,bruscamente fascinado pelosgestos iguais de ambos, dizia-

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lhes: Acalmem-se, seusgêmeos!—Gêmeos?—ironizava Trêmer,acrescentando:—Antesamigos unidos pelo ódio aohomem mais poderoso deTabriz, Sa’ad al-Daula. Eagora largue-nos, você cujodefeito mais grave talvez sejaa credulidade.

Acusado de credulidade,Montefoschi teveimediatamente um acesso decólera, depois disse a sipróprio que cedo ou tarde

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eles pagariam por essainsolência e que ele osobrigaria amanhã ou depois aconfessar a razão pela qualhostilizavam o famoso Sa’adal-Daula.

Sobre as lajes do que tinhasido antes o lugar dosbanhos, galhos e restos decinzas formavam umestranho desenho.Montefoschi deu-lhe umasignificação e o interpretoucomo os arúspicesinterpretavam as vísceras do

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touro. De uma confusão delinhas, deduziu o seu futuro.Viu ali um astro que, por umdesvio brutal de sua órbita,produziria uma catástrofe.Em Veneza, tinha observadouma vez um cometa no céuque se chocava comobstáculos invisíveis.Bruscamente, o cometa sesoltara da abóbada celestepara enfim cair no mar.Precisamente por essa épocaé que os genovesesafundaram numerosos navios

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da República Veneziana. Avitória deles anunciava odeclínio da República,desastre que sem nenhumadúvida a queda do astroprevia. Como acontecera comVeneza, achava ele queaconteceria para si. Tudo olevava a crer nisso: as curvasde folhagens sobre aquelechão muito sujo, assim comoas ruínas que o cercavam.Balk era o espelho de seu fim.

A liteira tinha ficado forado acampamento. Assim

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Montefoschi tinha decidido,porque, cansado de dormirsó, tinha planejado juntar-sea Hovsep naquela primeiranoite em Balk, mas longe dosolhares alheios. A noitechegara e Montefoschilevantou a cortina: a liteiraestava vazia.

De Hovsep não restavamais do que um cheiro decera rançosa e de urina deque Montefoschi gostou,porque esse cheiro lhelembrava um ser completo

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em seu poder, ainda quenaquele momentosignificasse ausência—masisso ele não queria aceitar.Então ele se abandonou naliteira, jogou-se entre asalmofadas e teve a impressãosimultânea de se enterrar nolodo e de abraçar a lembrançade um corpo. Se bem quesuas mãos acariciassem ocapote de lã com que Hovsepse cobria todas as noites, ailusão se desfez em poucotempo. Logo ele sentiu a dor

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causada por um abandonoque apesar de tudo ele serecusava a crer definitivo.Arrancou-se daquelechiqueiro em que Hovsepchafurdara por tanto tempo esaiu em busca do homempelo qual nunca deixava desentir uma paixão.

Os mercadores dormiam.Montefoschi, que em outrasvezes não hesitava eminterromper com ou semmotivo o sono doscompanheiros, hesitou em

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acordá-los. Vartan, comosempre, estava enrolado emsua túnica, mergulhado nosseus sonhos, indiferente ànoite de uma cidade morta.Também respeitou nele aquietude do rapaz quedurante algumas horasestaria livre dos irracionaiscomportamentos humanos.Perguntou-lhe entretanto seestava com frio. Estava felizsimplesmente de ouvir suaprópria voz.

Teve de repente a certeza

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de que Hovsep não tinhasaído de Balk. A liteiraempoeirada de azul profundoo atraía como um ímã. Voltoupara lá. Era lá que deviaesperá-lo.

Mas Montefoschi,perdendo a paciência, cortouas almofadas. Riu então agargalhada grosseira dosglutões, depois se enterrouno colchão de penas. Mãoscruzadas sobre o peito,pálpebras fechadas,respiração regular, parecia-se

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com Hovsep rígido einconsciente, surdo aosmurmúrios do deserto, cegoàs chamas castigandohomens em marcha. ComoHovsep, agora, ele era umurso hibernando no fundo dagruta.

Em Balk pululavam oescorpião e o coleóptero, orato e o coelho, a víbora e asaves de rapina. Sobre as lajes,no pé das colunas arruinadas,em todas as anfractuosidadesda pedra, espécies animais,

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desde que o sol caía, punham-se a caçar, espreitavam,degolavam-se, guinchavam,estertoravam, acasalavam-se.Guerreiros minúsculosatacavam os roedoresagonizantes. Gritosrepercutiam nos quatrocantos da cidade; gritos depânico ou de encontros,gritos de saciedade ou defuror. Num silêncioentrecortado por esses gritosé que Hovsep errava. Nãopoucas vezes tropeçava, os

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joelhos e as palmas das mãossangravam, arrastando-sesobre um caos de ruínas.

Tinha o desejo de matar,mas suas mãos não erammais aquelas queestrangulavam e os músculosde suas coxas estavamenferrujados por suaimobilidade prolongada.Logo, esperava ele, estaria denovo de posse de suas forças.Então, seria o fim deMontefoschi.

Embriagado pela noite,

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gania injúrias contra a lua eas estrelas. Como coisas queapareciam todo dia,transportavam seupensamento a uma existênciamuito cedo acabada.

Rebatizou a Grande Ursa edeu-lhe o nome de Arnaud deRoanne, porque via nadisposição dos astros ocontorno de um corpo.Deitou-se na terra e fixou acintilação celeste.

Ao amanhecer, Trêmerpercebeu um barulho

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insólito. Acreditando tratar-se de ladrões, deu o alarme,quando viu um homem queviolava os fardos. Foi entãoque reconheceu Hovsep. Emvolta dele, corria o vinho deodres revirados, carnes efrutas secas estavamespalhadas pela areia.

Uma peça de seda estavasuja de excrementos, peças dealgodão rasgadas.

Os soldados, por ordemde Trêmer, agarraramHovsep, amarraram-no a uma

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estaca e começaram aespancá-lo. Os caravaneirosse uniram a eles e batiam.Suas exclamações de furortinham despertadoMontefoschi. Foi na direçãode um rosto inchado que eleavançou. Os homens seacalmaram ao vê-lo econfiaram Hovsep à suajustiça. Um armênio,entretanto, ousou propor queas mãos daquele dementefossem cortadas. Montefoschiestava dividido entre a alegria

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de revêlo e a obrigação decastigar aquele insensato,cujo ato de vandalismo tinhareduzido seriamente osvíveres da caravana. Disse,entretanto, palavras infelizestentando classificar depequenas as perdas dostecidos, e a quantia quepropôs como ressarcimentonão chegou a aplacar a raivadas vítimas do prejuízo. Odescontentamento redobrou.Montefoschi não podia evitara punição. Mas, antes de

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condenar Hovsep a umsuplício qualquer, contou ahistória dele. Baladas, noséculo seguinte,reproduziriam o episódio. ACantilena do Ladrão e OChoro do Magricela seriamentoadas pelos fidalgotes deprovíncia assim como peloscamponeses e os vagabundos.Reunindo todos os elementosde uma vida em sua história,Montefoschi arrancava asroupas do homem à medidaque falava. Estava contando o

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julgamento a que Hovsep forasubmetido em Aiás quandoacabou de despi-lo.

A mutilação tornou-sevisível a todos. O ódio dosmercadores cessou derepente, substituído pelomal-estar. Todos foram sedispersando sem umapalavra, mas prometendodegolar Hovsep se por acasoele reincidisse em suasloucuras.

Vartan cortou a corda queprendia os braços do acusado

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e Montefoschi cobriu detrapos a nudez do humilhado.Em seguida ajeitaram Hovsepsobre um burrinho eMontefoschi chicoteou agarupa do animal. A montariae seu cavaleiro em poucotempo não eram mais do queuma rala poeira no horizonte.

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Capítulo 21

A caravana tomou o rumodo nordeste.

Era um alívio para osviajantes o fato de não teremestacionado por mais de trêsdias às portas de Balk. Acidade enegrecida pelo fogorepresentava para eles umespectro que influíasombriamente sobre suasdisposições. Estavamimpacientes por se afastar deum lugar onde os gestos

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compulsivos e as palavrasardentes de Montefoschitinham mortificado umhomem desvendando o seusegredo. Achavam que cedoou tarde o venezianodivulgaria alguns dos crimesdeles, porque tinhamapunhalado a testemunha detransações duvidosas,caluniado um parente paraarruinar sua reputação erecuperar sua clientela,perfurado o intestino de umjovem enfiando-lhe o cabo de

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uma enxada no ânus. Entreeles, o habitual era blasfemarcontra o céu e os anjos. Todostemiam que Montefoschisoubesse de suas faltas maiscondenáveis. Uma intuição osimpedia de revelarantecipadamente o quesabiam, isto é, de arriscar-se aacusá-lo de sodomia, deassassinato e de blasfêmia:suspeitavam que o homemtinha comércio com osdemônios, contra cujo podereram impotentes.

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Pouco depois da cidade deKanabad, a caravana cruzoucom guerreiros de turbante,depois com caçadores cujosmolossos perseguiam umporco-espinho sobre umfundo de montanhas de sal,cinzentas como se uma luzbaça as envolvesse sempre.Mas esses encontros e essapaisagem monótona foramesquecidos quando, à saídade uma garganta, apareceuum cavalo selvagem montadopor Hovsep. O cavaleiro

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galopava distante, masparalelamente à caravana enem uma única vez tentoudela se aproximar. Porém erapossível ouvir à noite seucavalo que batia as patas ecirculava sem parar emcaracóis.

Desde que Hovsep surgiu,Montefoschi grudou-se nasela e se pôs a gemer. Como oarmênio na cabeceira deArnaud de Roanne, entoavauma dolorosa melopeia queera um apelo e uma súplica.

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Chamava contra si a espadada justiça divina e suplicavaao proscrito e aos espíritosdas planícies e dos planaltosque interrompessemdefinitivamente aquelamarcha tornada absurdadesde que ele tinhaconhecido a traição amorosa.E acaso não seria a pior coisa,pensava, querer humilhar oser amado e chegar a fazerisso? Então não seria justoreceber o golpe fatal daprópria mão do humilhado?

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Numa das últimas noitesde outubro, teve-se aimpressão de que a terratremia sob os cascos de umrebanho de mil cabeças. Aolonge, o cavalo de Hovseprelinchava e Hovsep soltava ogrito dos batedores mongóis.De repente, ressoou naplanície um longo balidorouco. Grandes carneirosbrancos de chifres retorcidosrebentaram como onda domar na planície de capim alto.Formavam como que um

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grande friso que rasgava osvapores da noite, O peito dosanimais e seus flancos sesujavam de lama e do capimarrancado à sua intempestivapassagem. Hovsep estava portoda parte ao mesmo tempo.Dirigia-os para oacampamento como osbatedores nas caçadasdirigiam um bando de cervos.Era uma corrida infernal, oscarneiros selvagensderrubavam tendas e levavamde roldão homens e animais

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de carga. Chifres furavam abarriga dos camelos. Oshomens gesticulavam,tentavam se protegercorrendo para trás de algunsrochedos, buscando ficar aoabrigo daquela investidamortal. Todos, naquelemomento, preferiam serpedras. Fogos se cruzavamsob o peso de uma máquinade guerra cujos gritos eramde animais. As cinzas seespalharam. O ar cheirava a lãde carneiro queimada e a

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chifres chamuscados. Depoisa massa ovina deu um girolouco. Esse movimento nãodeixou uma vara de pé. Ochão se transformou numaargila suja. E, de repente, orebanho louco abandonou oacampamento e continuousua corrida nas trevas.

De manhã, a consternaçãoreinava entre os caravaneirosde olhar ainda cheio de medo.Oito deles tinham sidoestripados. Foram enterradosnuma terra conturbada.

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Vartan celebrou o ofíciofúnebre. Recitou versículos,relembrando as palavras quepronunciava em Sguevra. Suavoz era a do pastor rodeadode lobos que pede socorro aseu deus. De manhã, andou-se pela planície em busca decavalos e camelos que setinham soltado e fugido.

A aterradora horda decarneiros selvagens tiraraMontefoschi de seusgemidos. Ele tinha posto parafora muito de sua fúria a

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golpes de sabre e seus gritosde raiva tinham sido ouvidospor seus companheiros deestrada apesar da barulheira.Mas, assim que os animaisdesapareceram na noite suasmãos largaram a arma e seusolhos passaram aesquadrinhar a escuridãosoberana: Hovsep se tornarainvisível.A partir daí,Montefoschi permaneceuindiferente aos gritos dosferidos, aos estertores dosanimais, aos guinchos dos

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que tinham escapado doscascos e dos chifres.

A cólera dos mercadoreschegara ao auge: os estragosmateriais tinham sidoimportantes. CulpavamMontefoschi pela infelicidadegeral. O desespero deles eratal que agora desprezavam omedo de enfrentar umhomem servido por umacoorte de diabos. Apesar daintercessão de Vartan, eles oagarraram, o açoitaram e lheprometeram o mesmo castigo

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que Hovsep tinha sofrido naCilícia. Juraram partir à caçado homem, trazer vivo oamigo dos carneiros e obrigaro veneziano a degolá-lo. Mastrês águias voavam emcírculos no céu, três águiasque desceram lentamente emdireção ao grupo vociferantede caravaneiros e, com suasasas, os dispersaram.Pousaram perto deMontefoschi. Não pareciambelicosas: calmamente seentregaram a catar-se os

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piolhos. Depois se deitaramsobre seu protegido,assumindo a imobilidade dospássaros mortos. O silênciodas pedras, o sopro do ventoe o mutismo dos homensformavam uma perfeitacorrespondência. De repente,as águias estremeceram, sereergueram e num mesmoimpulso levantaram vôo. Sobo palpitante manto deplumas, Montefoschi tinhasentido seu corpo retomarvigor e seu coração tinha

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batido no ritmo do coraçãodos animais. Ele se levantoue, quando ficou de pé, não selembrava mais nem do furordos mercadores nem do trioalado. Apenas se espantoucom as marcas que o chicotetinha deixado em sua pele ecom a veneração ou o medoque se lia nos olhares doshomens.

Com solenidade, osGêmeos de Tabrizdistribuíram aos mercadoresdirhames e moedas de ouro

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tiradas do cofre deMontefoschi. O homem nãoera mais aquele feiticeiro que,segundo crença deles,copulava com íncubos, mas,ao contrário, tinha se tornadoquase um santo. Um milagreo tinha aureolado deprestígio. Sua prodigalidade,que ele já tinha exercido emrelação a eles, afinal osconfundia. Os mercadoresagradeciam a ele,reverenciavam-no,prosternavam-se. Mas ele não

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os abençoava. Manifestava-lhes, estranhamente, umaespécie de indiferença altiva,preocupando-se apenas comas reclamações deles,pedindo a Vartan que lhespagasse. Vartan aproveitoupara adverti-lo de que o cofreestava quase vazio, que amiséria os espreitava, que opecúlio deles dois somadonão era suficiente para asdespesas de uma longaviagem. Essa absurdaimprevidência tornava-se

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inquietante. Mas ele nãoparecia dar importância aosavisos e às suplicas de Vartan—que, na verdade, estavaimpressionado, bem lá nofundo, com odesprendimento daquelehomem que se mostravadiferente de seus pares emanifestava, com essasreações, um modo de ser bemrespeitável. Por isso,pensando cada vez mais noprodigioso episódio daságuias, o monge decidiu—

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depois de o ter assustado—tranquilizá-lo, garantindo-lhe,num impulso de afeição, quea pobreza jamais oamedrontaria: melhor, elepoderia, mesmo, atémendigar.

Mas Montefoschi tinha oespírito longe e aguçava oouvido para outras ameaças.Hovsep se reaproximava.Verdadeiramente, Hovsep acavalo estava lá, muitopróximo na planície, a umacentena de metros do

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acampamento devastado. Osmercadores avisados logocorreram para seus garanhõese os montaram. Vejam que elenos desafia!

- gritou um deles. Não nosescapará agora aquele queenfeitiça os carneiros e quernossa morte! Hovsepimediatamente esporeou seucavalo e levou seusperseguidores em direção aum horizonte de brumasespessas. E os mercadoresnão foram os justiceiros que

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esperavam ser. Erraram emmeio à neblina e chafurdaramem pântanos. Um delesafundou lá. Naquele visgo,que possibilidade tinham desalvá-lo? Ele pediu ajuda,depois acabou por se calar. Osol clareou enfim sobre umterreno onde pesados vaporesrecuavam. Para evitar morteigual à do companheiro,desistiram de continuaravançando sobre aquelaextensão de água morta.Gaguejante e transidos,

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voltaram ao acampamentopara retomar a estrada quedevia levá-los a Talocã.

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Capítulo 22

Em Talocã, os panos quetinham sido salvos do furiosogalope dos carneiros foramvendidos até o últimocentímetro. Com o dinheiro,compraram-se rubis. Depoisquiseram partir, masMontefoschi adiou por trêsmeses a partida.

O veneziano ignoravatudo sobre a cidade.Prostrado durante longashoras, podia de repente

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mergulhar em acessos defuror. Às vezes, porém, dava aimpressão de querer voltar aestados mais normais, masisso era apenas ilusão.Subitamente atormentavaVartan e os gêmeos com suasexigências e abusava dafidelidade, da obediência, dasolicitude deles obrigando-osa percorrer sem tréguas asruas de uma cidade em que,isso era certo, cedo ou tardetopariam com Hovsep. Suaindomável impaciência não o

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enganava mais: o homem seinfiltrava bem entre osdesocupados. Vartan e osgêmeos julgaram tê-lo vistonuma praça, um dia, no meiode um galinheiro, num outro,ou na janela de uma casa,certa vez. A todo momentoacreditavam que ele cruzavaseu caminho, mas, quandopensavam desconcertá-lo, elesumia. Ora usava uma espéciede turbante, ora um chapéude feltro cônico, ora ia decabeça descoberta. Um dia se

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dizia que tinha engordado, nooutro, que seus traços haviamse afinado visivelmente.

Vartan e os gêmeosacabavam por duvidar quefosse ele mesmo que tinhamvisto. Tendo-o descobertonuma janela, forçaram a portade uma pequena casa e seacharam num cômodo vazio.

Uma noite, Montefoschirecebeu a visita de umasombra. Ela o desnudou, elenão resistiu às suas carícias. Asombra navegava

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incansavelmente sobre suabarriga e entre suas coxas.Lambia seu pescoço e seutronco, beijava seus lábios,ronronava, virava-o na cama,deslizava a seu lado eretomava sua exploraçãosensual. Interrompeusubitamente aquele roçarcontinuado e seus abraços,escorregou para fora da camae, dando risinhos de mofa erapidamente, abandonou-o.Na manhã seguinte, a sombramandou como mensageiro

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um menino que recitou suamensagem a Montefoschi: elateria novo encontro com eledentro de um mês,exatamente no mesmo dia, nasaída de Talocã, na estrada deIxkaxem, última etapa antesdo maciço de Pamir. Naquelamesma manhã, nosso homemparecia o veneziano de outrostempos, acerbo, equívoco eimpiedoso, jogando com seuencanto de embaixador—umembaixador que conseguirafazer um rei aplaudir seus

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projetos—e esse encantoconvenceu Trêmer e Jeremiasde que o Pamir não lhes seriafatal se o atravessassem emfevereiro. Diante de Vartan,que outra vez se inquietavacom o empobrecimento desuas finanças, assumiu um arde quem dominava tudo,apalpando a cintura emostrando com os olhos suascalças de montaria: elascontinham o ouro quedurante muito tempo evitariaa bancarrota. Por fim,

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entreabriu seu casaco: sobre opeito, os tijolinhos de Kublaiarrumados como num brochepeitoral brilhavam.

Só dezesseis homenscompunham daí para a frentea caravana. Porque muitosnão se curvaram à sedução deMontefoschi. Como, alémdisso, não auguravam nadade bom nas neves do Pamir, asabedoria os aconselhara adeixar para mais tarde umatravessia que naquela estaçãosó podia ser perigosa. Depois

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de ter concordado com avontade do veneziano, Trêmertinha começado a duvidar dosucesso da empresa. Mas,ainda que a desaprovasse, nãose opôs a ele. Estranhamente,previa o pior e sesurpreendeu a imaginarcalmamente como morreria.

Hovsep foi ao encontromarcado. De um céu fechado,a chuva caía fina e compacta.Desde que percebeu achegada dele, Montefoschiafastou as abas de seu casaco

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para mostrar-lhe o peitoral econvidá-lo a reviver com elesuas ambições e seus sonhos.Hovsep se mantinha à suahabitual distância dacaravana. Como parecia nãoreagir ao convite mudo,Montefoschi bateu na garupado cavalo que montava, paraalcançá-lo. Não contava comVartan e Jeremias, que lhebarraram o caminho. Com achibata, Montefoschi tentouafastá-los. Começou então abriga. Escapou-lhe a chibata,

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ele tentou usar os punhos.Gesticulava mais do quebatia. Vartan e Jeremiasrespondiam com durasrepreensões. Jeremias deuum grito quando Montefoschidesembainhou um punhal.Levou bruscamente seucavalo para junto do deVartan para deixar apassagem livre ao veneziano.Mas Montefoschi não tevetempo de descer o pequenodeclive que o teria levadopara junto de Hovsep, porque

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um quarto cavaleiroaparecera. Trêmer tinhagirado o corpo sobre seucavalo e se segurava com umadas mãos na elevação traseirada sela. Com a mão quemantinha livre, conseguiufazer com que o pé deMontefoschi escorregassepara fora do estribo, levantoua perna que ficou solta no ar econseguiu, assim, arrancá-lodo cavalo.

Agora, o veneziano jaziana lama, mas dessa vez

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nenhuma águia voava emcírculos pelo céu. Vozes, emtorno dele, gritavam pedindomorte. Montefoschi acreditouque seria a vítima.

Foi então que ouviuHovsep berrar de dor. Comuma flecha, um soldado otinha atingido no ombro.Alguns segundos depois umasegunda flecha o atingia,desta vez no lado. Um persaimpediu que se prosseguisse:a agonia seria longa, o que sepoderia desejar de melhor do

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que isso?Hovsep sobreviveu por

dois dias aos ferimentos.Acompanhava sempre acaravana, mas a distânciaentre ela e ele aumentava. Ocavalo mancava, como seestivesse sob o peso de umacarga pesada demais. Natentativa de dar coragem aocavalo, o ferido se inclinavade tempos em tempos até opescoço dele e o envolvia comseus braços, como numabraço. O sangue já formava

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uma única manchaempapando as roupas,avermelhando um dos ladosda garupa, um dos lados dopeito, a crina, o alto dopescoço do belo cavaloguerreiro. A todo instante, ohomem e o cavalocambaleavam e, por fraqueza,quase caíam por terra. Ocavalo resfolegava ao avançar.Então, o cavaleiro enfiou-lhe aflecha arrancada do próprioombro. Cavalo e cavaleiroagora formavam uma massa

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única.A noite teve um amargo

sabor de eternidade. Hovsepaplicou sobre as feridas umemplastro de ervasmaceradas. O sanguecoagulou com esse remédio.Afinal, a gangrenaameaçadora declarou-se.Enquanto cuidava daquelepreparado, Hovsep esqueceua vingança que era suaobsessão desde Tabriz. Só selembrava de Arnaud.

Depois, foi a aurora. O

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cavalo empacou como umpedaço de pau, recusou-se acontinuar sua lentacaminhada e se ajoelhoupara, em seguida, rolar delado. Teve umestremecimento e depoisenrijeceu. Um voo de falcõesem círculo desenhou-se nocéu. Hovsep se lembrou doviveiro de aves, da loucurados pássaros, da bacia, doolhar de Arnaud de repentese tornando amigo, onascimento de uma amizade

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numa cidade onde os homensmorriam. Nesse momento,adormeceu fixando o tímidosol, que nascia escondendobruscamente uma miríade deasas sombrias. A vida seesgotou nele e, ao se esgotar,arrebatou a presença doamor. Garras caíram sobreseus despojos e bicosdilaceraram o que tinha sidorosto, corpo e sofrimento.

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PARTE 2 - O

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ROMANCE DEVARTAN

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Capítulo 23

Daí em diante,Montefoschi expunhaclaramente através de seucomportamento as duasvertentes de sua pessoa: deum lado, o falador esperto, deum cuidado totalmenteprestativo, afável com seuscompanheiros de estrada,afeiçoado aos gêmeos,jogando de um modoeficiente com sua notávelfinura, supervisionando os

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preparativos para a travessiado Pamir; de outro, o homemrecolhido à sua intimidade,nostálgico de amor, solitário emagoado, perseguido pelaimagem do corpo de Hovsepvermelho de sangue,esquivando-se da caravana edos caravaneiros para serefugiar no seu canto, numasolidão que só Vartan pareciater o direito de quebrar.

Em Ixkaxem, redigiu umtestamento em benefício deseu protegido. Uma cláusula

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reservava algumas ninhariasmobiliárias a membros dafamília de Vartan, dos quaisMontefoschi se lembravavagamente, porque tinhamsido amigáveis para com eledurante sua adolescência.Garantindo-lhe que oconsiderava como um filho,enviou-lhe o pergaminho, aoqual Vartan deu poucointeresse: era jovem, livre dequalquer desejo de posse,fora o de apoderar-se dascores do mundo. O gesto do

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veneziano pareceu-lhe teatral,o ato de um espírito frágil eperturbado. Mas, por umaquestão de respeito aohomem, aceitou o rolo quelhe entregaram.

Montefoschi agora oqueria a toda hora do dia aoseu lado e Vartan se submetiaa isso. O veneziano oabraçava com familiaridade eo beijava na testa nomomento de dar até-amanhã.Era ridículo, extravagante esentimental. Vartan não tinha

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nenhuma dúvida de que essaafeição maçante era coisaartificial—apesar disso,poderia se mostrar por longosanos. Mas a presença dohomem praticamente não lhepesava: todos os seuspensamentos estavamvoltados para o Pamir, umuniverso de gelo e vento.Julgava-se pronto para vencera hostilidade de um desertode neve, na certeza de que umespírito forte tem deaprender a enfrentar aquilo

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que mais teme. Ora, o que emseu pensamento mais temiaera o torpor que o frio, odeserto mineral, deve criar nohomem. Queria aprender asuperar o entorpecimento dossentidos, aguçar suasensibilidade à pureza dodeserto gelado. Deixou emIxkaxem a lembrança de umrapaz jovial, vivo, devoradopela impaciência.

Os iaques se incorporaramà coluna de cavalosatarracados porém robustos e

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de camelos lanosos. Osviajantes tinham de serengolidos por três casacosduplos de pele e calçar botasde pele de lobo. Com osgestos travados por uma talsuperposição de roupas, eracomplicado subir àsmontarias. A partida deIxkaxem fez-se em silêncioabsoluto, porque os homenssabiam que começava paraeles um tempo de provação.Entretanto, esperavam queMontefoschi soubesse guiá-

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los até Pequim, essa corteimperial incomparável, dizia-se. Esperavam ainda que oveneziano desse provatambém da astúcia e dainteligência que tinha usadocom discernimento paraafastar os bandidos docaminho. Com sua disposiçãode vencedor, não os tinhaajudado a superar a sede e afome? Devotavam-lhe umagrande confiança, mas era umsentimento generalizadoentre eles de que a morte de

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Hovsep de alguma formatinha quebrado suas forças.Em seu olhar, surpreendiamàs vezes o desvario.

Coroava os picos umaespuma branca e ameaçadora;nuvens e neve se misturavam.Um mundo lunar sob um céucor de fumaça. Quandoabordaram a primeiragarganta, os pássarosdesapareceram. O homem sehabitua pouco a pouco àscamadas frágeis e à neve.

O terceiro dia notabilizou-

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se por um frio intensíssimo.Sangue corria do focinho dosanimais e logo gelava. Oshomens também estavamsujeitos a esses sangramentosque tentavam estancarenvolvendo o rosto em panos.Olhando-se uns aos outros,mal se reconheciam.

Pequenas feridas escurassurgiram nos corpos doscamelos. Também sobre opescoço, o rosto e as mãos deTrêmer. Quando aqueceu ànoite as mãos ao fogo, viu-se

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que transudava um fluido.Ninguém sofria tanto com ofrio como ele. O invernopenetrava nele e seu corpoparecia se fossilizar. Com asunhas, que tinham crescidodesmesuradamente, elearranhava freneticamente aschagas. Isso atenuava poralgum tempo a sensação decongelamento. Mas todo essegelo repentinamente pesavadentro dele e a sensação damorte já lhe parecia familiar.Jeremias, felizmente, sempre

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estava por perto.A caravana atravessou

dois rios largostransformados em campos degelo. Trêmer tinha afirmadoque o gelo resistiria. Não seenganara: percebia-sevagamente o rolar louco daságuas sob a verdura daespessíssima extensão opaca.Desde que o frio tinhainvadido Trêmer, raramenteele conversava com seuirmão. O que havia mais eramcochichos, murmúrios,

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risadinhas de conivência queexasperavam Montefoschi. Oveneziano, afinal, observavaque, entregue a essesconciliábulos em voz baixa,Jeremias desempenhava malseu papel de guia. Tratava-se,perguntava-se ele, daquelemesmo homem seguro dequem Sa’ad al-Daula tinhagabado os méritos? Mas,então, quem seria? Caladodiante da fervorosa solicitudeque o rapaz dedicava aTrêmer, Montefoschi nem

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chegou a buscar umaresposta.

Jeremias gritava ordenscontraditórias. Primeiro, elasforam recebidas com espanto,depois com desconfiança,afinal alarmaram-se com asua incoerência. Montefoschirestabeleceu a calma entre oshomens, dirigindo-os sempreno sentido do Leste, porquepara lá é que era a China ecedo ou tarde o Pamiracabaria.

Os viajantes faziam todo

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tipo de esforço para lutarcontra os elementos. A nevecaía continuamente havia trêsdias e três noites. Em suatenda, de noite, Montefoschi,maníaco e ausente, afiava semnecessidade o seu punhal:segundo reputaçãoconsagrada, a região erapoupada pelos bandos deladrões. Na estrada, de resto,não se cruzava jamais comviva alma. Vartan o distraíarelatando-lhe os episódios davida de Alexandre, o Grande.

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Então ele levantava os olhos eperguntava se a exemplodesse imperador eleschegariam sãos e salvos aterras mais dementes. E porque, Deus meu, você e osoutros decidiram me seguirno inverno numa viagem queperegrinos e soldados sempreconsideraram uma loucura?Vartan o tranquilizava. A nevehoje sucede à neve, afirmava,mas amanhã é possível queela dê lugar às pradarias. Emesmo que isso não aconteça,

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sei que você e eu seremosmais fortes que os ventos,mais fortes que o frio, maisfortes do que essa neve queameaça nos enterrar a cadainstante.

Seremos, eu juro, o quetemos de ser: dois homensque entrarão serenos emPequim. Afinal, que éoPamir? Um longo sonhodoloroso, nada mais.

Um clarão abria-sepreguiçosamente no céu. Eracedo. Montefoschi, num

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hábito que às vezes retomava,andava entre os animaisrecolhidos e os homensadormecidos. Gostava deaproveitar a aurora parainventariar calmamente osvíveres e verificar senenhuma doença tinha semanifestado à noite entre osanimais. Nessa manhã,descobriu dois cavalosmortos. A essas primeirasvítimas do esgotamento oudo frio seguir-se- iam muitasoutras. Sabia disso. Mas,

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aproximando-se, observousangue no pescoço e nagarupa de um deles. Foi entãoque viu sobre a neve aspegadas de um lobo. Daí emdiante, além do frio e doesgotamento, seria precisoenfrentar isso. Ainda bemque na véspera Vartan o tinhaenchido de esperança.Montefoschi não auguravanada de bom para o futuro.Quando advertiu oscaravaneiros, os maiscovardes entre eles

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começaram verdadeiramentea duvidar de que algum diasairiam vivos do Pamir.

A caravana entrava porpassagens tão estreitas queera necessário descarregar osfardos dos iaques e camelos.Os homens então é quetinham que carregar as cargasnas costas. Embrutecidospelo cansaço e a falta decoragem, tinham a cabeçavazia, desprovida de todamemória—uma infância detrabalho, uma mulher amada,

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um negócio vantajosoconcluído, um jardim e seusrepuxos, rega-bofes comamigos ou disputas entrecorporações. Cada um delesera um deserto.

O céu escurecia e a neveengrossava. Um intérprete eum soldado não resistiram edesabaram sobre a neve àsaída de uma passagemespecialmente dificil. Ocoração fraquejara. Não secuidou de enterrá-los.Caminhou-se em frente, foi

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tudo. Voltar e comover-se eraperder tempo, ainda mais quese calculava que lobosestariam muito perto. E cadadia se via um cavalo, às vezesvários, deitar no chão emorrer. Montefoschi dizia quenaquele ritmo não restariaum único deles em menos deuma semana.

Um furão desapareceunuma fenda da montanha.Certa manhã, doismercadores não responderamà chamada: suas pegadas

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indicavam que eles haviamtomado o caminho deIxkaxem. Uma miragem seriatalvez a última paradadaquela viagem. Montefoschidispensava palavrasreconfortantes aos queestavam muito cansados eassaltados pelo terror. Mas ovento soprava e as boaspalavras vinham apenasatravés de nacos de pão aosdesesperados.

Para os onze homensdesesperados que desafiavam

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os elementos, o Pamir foitambém a terra onde seesqueceram os ciúmes, osressentimentos, os ódios.Aqueciam-se uns aos outros.Havia solidariedade com ocompanheiro de infortúnio. Ogrupo se alimentava damesma carne e das mesmasfrutas secas. Os rins estavamcansados com a marchacotidiana, havia enjoos,câimbras no estômago. Cadaum sentia o que um outrosentia. À noite, todos se

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ajudavam mutuamente paracavar a neve a faca, depoistodos se amontoavam numburaco como num covil.

A neve de repentecomeçou a cair mais fina. Maso frio se intensificava. ComoMontefoschi tinha previsto,todos os cavalos acabarampor morrer. Os lobos -Vartanos calculava em cerca de vinte—disputavam-lhes ascarcaças, chegando às vezes àousadia de rondar até osarreios que sobravam. Certa

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manhã, massacraram trêsiaques. Os homens pegaramseus arcos e flechas e sepostaram na neve a menos deum metro dos lobos,formando uma barreiraridícula. Um segundoarremesso de flechasduplicou a trêmula barreiraconstituída pelos primeiros.Os lobos não recuaram.

Por um breve instante sóquebrava o silêncio o soproenrouquecido dos arqueiros,que a reverberação da neve

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cegava, até que os loboschegaram ao ponto de jogaras flechas no chão. Abrincadeira demorou. Oslobos só debandaram quandouma terceira rajada de flechascortou o ar. Enquantoecoavam os gritos de vitória,Trêmer morria.

Deitado numa cova poucoprofunda, Trêmer, pelo pesode seu corpo de gelo,afundava na neve.Voluntarioso, ele tinhatentado se erguer, mas seus

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membros em pouco saíam dolugar e quebravam. O antigoguia, reduzido a uma dorpuramente física, não sentiamais qualquer emoção.Quando Jeremias o carregounos braços, seu corpo eracomo um mármore que sefendia sob a ação do gelo.Trêmer não reconhecia maisseu amigo, seu irmão, emaldizia um inimigo que oincomodava. Morreu ao fimde seis horas de umaestranha agonia. A partir do

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momento em que deu seuúltimo suspiro, o céu, abrancura do mundo, oshomens e os animais, osmortos e os vivos pararam dese refletir nos olhos deJeremias, que se entregouentão a atos escandalosos. Damanga, tirou um facão com oqual extirpou de suascavidades os globos ocularesde Trêmer, depositando-osnum cofrezinho de joias.Passou então a desnudar oamigo e se vestiu com suas

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roupas. Enfiou na cabeça obarrete de pele e se cobriucom o casaco de pele deraposa e o casaco de lã,enrolou em seguida numimprovável travesseiro asroupas velhas que restaram eo amarrou à cintura com umacorda.

Depois de ter examinado opar de botas, pareceu-lhe queera mais usado do que as suase o desprezou. Pescoçoenterrado nos ombros,parecia mais um monstro de

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história infantil impassível egrotesco.

O veneziano tinhaproibido que se montasse nosiaques para evitar cansá-los,porque, dizia, um iaquecansado excita os lobos. MasJeremias desrespeitou aordem.

Para espanto dosmercadores, Montefoschi nãodeu importância a essadesobediência, e desculpou-se por sua indulgênciaconfessando a Vartan que

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tinha piedade do rapaz:estava acima de suas forças,àquela altura, condenar quemquer que mergulhasse nodesespero.

O horror sentido quandoda extirpação dos olhos deTrêmer despertou nosviajantes um ódio ancestral.Lendas correntes sobre oinsano povo de Jeremias,dado à crueza e à rapacidade,acreditava-se, afloraram denovo nas raras conversaçõesentre eles.

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Não houve oração, nãohouve sermão. Simplesmentejogou-se a neve mais frescasobre o corpo. E retomou-se amarcha.

Os mercadores seenfileiraram atrás de Montefoschi e Vartan, tropaesfarrapada e melancólica,último vestígio de umexército.

O silêncio era o últimocompanheiro desses homenscom armadura de gelo. Aneve cintilava e o céu estava

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cinzento. O suor molhava aroupa, depois queimava apele, antes de dar aimpressão de uma chuva friasobre o corpo.

Entre duas cadeias demontanhas, pequenos lagosescuros apareceram,brilhantes como umapelagem rente. Essas línguasde ébano à noite tornavam-seprateadas.

O sol era invisível. Eraexclusividade da Pérsia, daItália, do Egito, das terras de

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onde eles se afastavam,tentou justificar Montefoschi.Mas Vartan replicou que o solsempre voltaria.

Nenhuma pegada nembosta de animal, nenhumaruína de alguma cidadezinha,nenhuma outra caravanaperdida—nada além de umcéu de granito, uma neveinfinita e pedras altas. Seria oinferno parecido com essapaisagem? O antro vermelhode chamas representado naspinturas e descrito nos textos

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sagrados não seria umafábula? Eis as questões que oshomens se punham. Mas quedeus ou que diabo poderiareinar nesses planaltos enessas muralhas? Talvez setivesse chegado a um infernodesconhecido onde nempassado nem futuro tinhamsentido. Seria uma maldiçãoviver nesse presente de ventoe de rochas. E não haviaestrada.

Dois soldados de Hetumdesmaiaram e a morte os

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colheu nesse estado deinconsciência. Aos dezenovedias de marcha, a caravananão contava mais do que comoito sobreviventes, oitoautômatos que ashemorragias enfraqueciam. E,às noites, não lhes restavamais do que um fogo miúdopara aquecimento, porque jáfaltava madeira seca. Quantomais o frio atormentava esseshomens, mais era visível seuesgotamento, mais odesespero os dominava e

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mais Vartan aceitava comuma alegria profunda essatravessia do Pamir. A loucurade Montefoschi o tinha levadolá onde tinha de ser, lá ondeele aprendia a não seabandonar ao abatimento, aomedo, à insensibilidade, láonde ele se transformavanum outro.

Um mercador, que setinha refugiado à noite numagruta, foi devorado pelosratos: Vartan se comoveu commorte tão atroz, mas ao

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mesmo tempo se alegrou como fato de que prosperava umafauna naqueles picos quejulgava virgens de todapresença animal, desde queos lobos, havia muitos dias,não seguiam mais a caravana.Seriam os ratos os únicoshabitantes daquela parte doPamir? Vartan perscrutou osrochedos e os precipícios paralá descobrir um urso ou umabutre. Mas era o único aalimentar essa esperança.Quanto a Montefoschi,

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aspirava pela primeira vez navida a um futuro sedentário,entre o caldeirão, a cama e ogado. Era isso que oincentivava a prosseguir, acrer, como Vartan, que erapossível escapar dadesumana esterilidade doPamir, de suas geleiras, desuas monstruosas ruínasgeológicas, e da implacávelpermanência de seu silêncio.

Uma tarde, o céu azulou-se timidamente e o solbrilhou. Quase fez calor. Mas

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essa mudança não erasuficiente para aliviar oshomens de seus males. Umavertigem derrubava os maisfracos que se punham a girarsobre si mesmos e acabavampor cair bruscamente ao chão.

Vartan encurtavavoluntariamente suas noitespara esperar o dia e ser oprimeiro a adivinhar a luz damadrugada e ver o esplendorde uma paisagem na qualreverberava uma brancuraque os ventos limpavam. Em

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algumas manhãs,Montefoschi, emergindo deum sono profundo, falava decarneiro ensopado e deenguias bem-preparadas.Vartan caçoava desses desejosdele. Acho, ironizava, quehoje nos contentaremos comfrutas secas e um pouco degelo como guarnição.

Juntos, deixavam seunicho de neve, juntosenterravam a cara nos pelosde um iaque. Com a fronte,mergulhavam nos pêlos até

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sentir o calor animal. Ficavamalguns minutos assim, felizes.Mas até quando haveriaiaques? A cada nova manhãhavia a desagradável surpresade encontrar um deles morto.

Como os animais,Montefoschi aspirava o vento,ouvia o atrito da neve naventania, calculava os perigose avaliava as possibilidadesde fugir deles. Único guia dacaravana desde que Jeremiasparecia, sem Trêmer a seulado, o pior dos ignorantes,

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ele temia uma primavera queprovocasse a avalanche. Masconduzir seu mundo com aconfiança de um tropeiro deburros num caminho deCastela ou de Anjou.

Jeremias passeava seuolhar parado de imbecil deseu cofrinho de joias parasuas luvas e para as ravinas.Ao menor desvio de seuiaque, ele como que gania,agarrando-se à pelagem doanimal. A cada um de seusmovimentos, um pedaço de

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pano escapava do travesseiroamarrado à sua cintura. Seacontecia de um casacoescorregar de seu ombro, nãose dava o trabalho de catá-lo.Assim, perdia pouco a poucoa exterioridade de monstro dehistória infantil e quem oobservasse descobriria suamagreza.

Imundo, a cabeleiradesgrenhada de umaGórgona, os lábiosescurecidos por um sanguecoagulado, era o irmão de

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Hovsep, nos tempos em que oarmênio percorria ascampinas da Cilícia.

A morte de seu iaque,certa manhã, tirou-o de suaapatia. O rapaz agarrou suamontaria maciça pelos chifrese sacudiu o animal comviolência. Famélico e de caraséria, agarrava-se àqueleschifres como um marinheiroem plena tempestade seagarra à barra de seu leme. Opescoço do iaque deu umligeiro estalido. Jeremias

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deixou seu timão e a pesadacabeça bovina oscilou para afrente. Aí ele acariciou a testalanuda e o felicitou, como opalafreneiro saúda o cavalodepois de uma corridavitoriosa. Sob a massa inertedo animal escorriam urina emerda. O bicho se livrara detoda pestilência antes de seresumir a alguns ossospolidos pela geada. Jeremiasabriu o cofrezinho: os globosoculares, graças àtemperatura, tinham

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conservado sua maciez depolpa, mantinham-seredondinhos, com o frescorde uma flor que se abre.

Os olhos de Trêmer,aquelas duas joias perecíveis,o fascinavam. Ele os tirou docofrinho, rolou-os entre osdedos, levou-os à boca e oscomeu.

Era um fim de tarde eMontefoschi anunciou queem quatro dias terminaria atravessia do Pamir. Naquelamesma noite Jeremias

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juntou-se a ele em seu buracoacolchoado de neve,esforçando-se para venceruma timidez que vinha dofundo de sua infância.Montefoschi grunhiu que nãohavia lugar para três na suatoca. Ele e Vartan já eramdemais naquele buraco tãoapertado para acolher maisalguém, ainda que se tratassedo mais magro do grupo.Jeremias insistiu. Apesar dosprotestos, enfiou-se entre omonge e o veneziano. Ao

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ouvido de Montefoschi, faloupor muito tempo. Sou filhode rabino, começou. Umrabino que tinha sido amigoíntimo de Sa’ad al-Daula.

Quando dos serões nacasa de um ou de outro, oupor ocasião dos ofíciosreligiosos na sinagoga deTabriz, Sa’ad al-Daulamostrou-se interessadonaquele menino de dezesseisanos, discreto e distante, queera Jeremias. A ambição queo levara a um posto junto do

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trono de Argun ele acreditouver igualmente naquele ar dequerer dominar a multidão,seus pares e os reis queaquele adolescente dava aimpressão de ter. Assim,encheu-o de presentes e olevou ao palácio do ilkhan.Eis que ele se apaixonou porum filho do rabino. Mas, àsgentilezas do rabino,Jeremias respondia com umareserva que o chocava.Entretanto, Sa’ad al-Daula seobstinava em agradá-lo com

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presentes sem fim. Escolheu-o, afinal, para seu confidentee conselheiro. As duasfunções, o rapaz as exerceu àfrágil luz das velas queiluminava a alcova, porque oministro de Argun não oautorizava ainda a sepavonear em sua companhiapelos corredores e salas daresidência do príncipemongol. Na verdade, eleesperava para apresentá-lo aoilkhan só quando Jeremiasestivesse preparado e, uma

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vez que desse modo é que ovia Sa’ad al-Daula, prontopara demonstrar semtimidez, mas com diplomacia,diante de Argun aspossibilidades de suainteligência e seu talento parafrustrar os complôs. Até ali, oministro se contentava emobservar seu protegido, que, aseus olhos, reencarnava suaprópria juventude. Debaixode uma ingenuidade que elejulgava de fachada, Sa’adacreditava detectar em

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Jeremias um desejo de glória—o mesmo que ele própriotinha tido em suaadolescência. Na intimidade,confiava-lhe intrigas e ointerrogava sobre os modosem que pensava para desfazê-las, O rapaz tinha às vezessábias sugestões, sementretanto abrir mão de suaaltiva ironia. Pouco a poucomostrava-se rebelde, nãoqueria ficar ouvindo umpoderoso a se queixar de seusespiões e de seus auxiliares

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próximos, a despedir a ondade solicitadores que batiam àsua porta. Sa’ad al-Daulacastigou-o por suaindocilidade e sua falta deatenção dando-lhe sonorasbofetadas. O que nãomelhorou em nada asrelações entre os dois.Jeremias teimava em recusar-se a responder às perguntasde seu protetor, sonhavaapenas em reencontrar a pazda casa paterna, em se afastarde um palácio onde tudo o

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aborrecia, tudo o desgostava.Fora do encontro

cotidiano com Sa’ad, Jeremiastinha seu tempo livre.Passeava observando ascavalariças ou a falcoaria,flanava, também, pelas ruasvizinhas da residência dokhan. Lá é que encontrouTrêmer. Uma amizade semequívocos nasceu logo entreeles. Trêmer lhe contou queera guia, e tão famoso em suaprofissão que Joram, obanqueiro, o contratava

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frequentemente paraconduzir alguns de seusamigos—caravaneirosafortunados—para Leste oupara o Norte. Joram era umdos homens mais ricos deTabriz, o que o autorizava apensar que sua fortuna opredestinava a desempenharum papel importante juntode Argun. Mas até aquelemomento nenhuma distinçãolhe tinha sido concedida peloilkhan. Joram sabia a razãodisso: Sa’ad al-Daula não era

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homem de repartir seu podercom quem quer que fosse e odesconsideravapermanentemente paraArgun. Só uma solução surgiaaos olhos de Joram para queobtivesse as honras e o cargoa que aspirava: era provocarnão importa por que meio aqueda de seu inimigo.Trabalhava para issointrigando, espalhando pelopovo as piores acusaçõescontra Sa’ad al-Daula, cujoassassinato tramava.

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Foi quando apareceuJeremias, de quem Trêmertinha falado a Joram. Deresto, Trêmer apoiava Joram,pois achava insuportáveis aarrogância e a vaidade doministro.

Preferia a jovialidade e atruculência daquele quechamava de seu senhor.

Ocorre que Sa’ad al-Daulatinha a soldo seu bomnúmero de espiões. Forameles que descobriram aconspiração. O nome de

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Trêmer foi citado entre osconjurados. Seus encontrosdiários com Jeremiastornaram também seu amigosuspeito. Um negociante decavalos, lavadeiras e umpeleteiro testemunharam,denunciando que tinhamouvido os dois amigosdizendo que desejavam o fimdo reinado do ministro. Onegociante de cavalosacrescentou que Jeremias sealegrava com a ideia de verum dia seu benfeitor

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apodrecer na prisão. Sofreressa zombaria e ter estado aponto de ser traído por umrapaz que ele desejavamodelar à sua imagem foipara Sa’ad al-Daula um crimede lesa majestade. Jeremias otinha decepcionadoirremediavelmente. E pactuarcom pessoas que intrigavamsem prudência foi a gotad’água que a seus olhos otornou definitivamenteirresponsável, volúvel e, maisque tudo, estúpido.

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As histórias e as verdadesque Joram tinha espalhadosobre Sa’ad al-Daulaproduziram seus frutos. Oshabitantes de Tabrizmanifestavam agora alto ebom som seu ódio peloministro. Quantoesbanjamento! Quantosfavores concedidos aoprimeiro ambicioso que seapresentasse! Diante de talhostilidade, Sa’ad julgou maisprudente não mandarprender Joram, que assim

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estaria arriscado a ser vistocomo um mártir. Mas erapreciso satisfazer a sede devingança que o roía: comoagir para não ser logoapontado como autor docrime? Um veneno de efeitolento lhe parecia a melhorcoisa. Sa’ad conseguiuinfiltrar como empregado emcasa do banqueiro um de seusagentes que, poucos diasdepois, serviu a Joram umvinho mortal. Os acólitos dobanqueiro apodreceram

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numa masmorra antes deserem estrangulados. Trêmere Jeremias tiveram maissorte. Sa’ad aiDaula semostrou magnânimo paracom eles e os condenouapenas ao exílio. RecebeuTrêmer secretamente e o fezjurar que jamais voltaria paraa Pérsia. Fez também comque ele se comprometesseque daquele momento emdiante não teria mais amor àvida, expondo-se ao perigo. Aseguir o ofereceu, assim como

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Jeremias, para ser guia deMontefoschi. Tinha certeza deque cedo ou tarde oveneziano descobriria ainexperiência de seu favoritoe o despediria, obrigando-o alevar uma existência demendigo. Na véspera dapartida da caravana, os doisproscritos prometeramajudar-se mutuamente eserem mais unidos ainda doque no passado. Nas estradas,Trêmer instruía seu amigo,avisando-o de que iriam

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enfrentar um desfiladeiro,uma sucessão de escarpas, deravinas, coisas assim, a fim demanter o veneziano iludidoquanto a sua condição deguia.

Mas Trêmer está morto,murmurou Jeremias, e eu nãolhe tenho mais nenhumautilidade. Montefoschiaconselhou-o a dormir.Durante a noite, uma emboliamatou o jovem Jeremias.

Os viajantes não tinhammais força para transportar

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seus magros fardos. A cadaetapa, eliminavam um poucomais de carga. Nos trapos quevestiam ainda se podia verbrilhar uma lâmina ouadivinhar algum ourocosturado num forro quecriava uma prega no casaco.Esses homens pareciamfugitivos aparvalhados. O soldardejava e a neve sepulverizava. Em determinadolocal, o gelo se rompeu àpassagem de um persa, quecaiu no vazio. Seu corpo

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bateu várias vezes contra aspontas da pedreira e umlongo grito acompanhou oeco de sua queda. As pessoasse inclinaram sobre o abismopara ver apenas umaescuridão azulada na qual ogrito de repente seinterrompeu. Um caravaneirooriginário de Bagdácontinuou de pé à beira daabertura da rocha. Recusou-sea prosseguir viagem e, semtentar convencê-lo a retomara interminável marcha,

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deixaram-no lá. O últimosobrevivente dos soldados deHetum cavou num fim detarde um buraco profundo naneve, lá se deitou e nãolevantou mais.

Restavam dois mercadoresvivos. Um era de Tabriz, ooutro nascido emCarcassonne. Na capital persatinham tido uma briga edesde então eram inimigos.Mas sob a brancura quecegava, do Pamir,reconciliaram-se sem uma

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palavra. Repartiam as últimasfrutas secas e à noite seaproximavam para aproveitaro calor dos corpos. De dia,avançavam tropeçando oupulando de um lado para ooutro, como o cervoperseguido por uma matilhade cães de caça.

A travessia do Pamirterminou numa das primeirasmanhãs de março. Ospenhascos eram mais suavese montanhas mais baixasdebruçavam-se sobre os

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planaltos. As planícies, semdúvida, estariam próximas.Era, aliás, o que anunciavamalgumas tropas de cabrasselvagens.

Uma primaveraespantosamente precocesurgiu de repente e causouenorme desordem em toda anatureza. A chuva sucedeu àneve. Riachos carregavam osestilhaços de sua capa degelo.

O impulso irresistível daságuas orquestrava um

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tumulto. Quatro homensagora chafurdavam na lama.Uma permanente umidadeenferrujava os joelhos. Detempos em tempos, Vartan seaçoitava com um pedaço depano para ativar o sangue eassim manter sua capacidadede observação.

Os víveres estavamesgotados. Quatro homenssonhavam com um grandefogo brilhante, lambiam osdedos e a palma das mãoscomo se estivessem se

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alimentando. Como mijavame cagavam ali mesmo,empestavam de fedor opequeno espaço em que seamontoavam à noite. Porterem lambido um lodogorduroso como se fosse oalmoço, o persa e ocarcassonês incharam comosanguessugas: sobre umarelva rala enegrecida pelogelo, rebentaram-se emespasmos até a morte.

Montefoschi relembravaos últimos instantes de

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Jeremias e de Trêmer, dospersas, dos francos e dosarmênios. Mortificava-se porter arrastado, de modo tãoirresponsável, caravaneiros esoldados, guias e intérpretes,a uma região onde a morte seentrelaçava com o cotidiano.Ao contrário dele, Vartan jáesquecia os mortos e a torturado inverno. Mantinha o rostovoltado para o país dos seres,fixando os olhos onde seuniam o azul do céu e abrancura de uma ondulação

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de terreno. Foi o primeiro avislumbrar uma aldeia aolonge.

Os camponeses do lugarnão se entenderam diantedaqueles dois seresespantados. Mas não fugiram.Primeiro imaginaram queeram fantasmas descidos doPamir. Um velho bem-humorado acalmou amultidão: os fantasmasjamais exalam um fedor tãoatroz, e falam a língua dacomunidade que visitam, ou

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têm a voz do vento e dachuva.

Montefoschi e Vartanpediram um odre de águapura e alguma comida. Nuncatinham tido a tal ponto asensação de estrangeiros etambém nunca tiveram tantacerteza de estar emsegurança. O pessoal ria dasonoridade bárbara daspalavras que os dois falavam,e ambos, como não eramcompreendidos, seexpressavam por gestos. Mas

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Montefoschi teimava empronunciar palavrasselvagens, as palavras doinferno, as únicas emcondições de exprimir oordálio, a terrível prova pelaqual tinham passado, de frioe de caminhos perdidos. Umamulher tocou sua fronte, seusolhos e boca. Observoudepois as palmas de suasmãos, nas quais viu que sedesenhavam entre ascalosidades o Pamir e a goelade um lobo. Teve um olhar de

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estupefação.A seus parentes, disse que

aqueles fantasmas vinham dotúmulo dos extraviados.Tocou mais uma vez a fronte,os olhos e a boca do homem edessa vez sorriu. Depois seinteressou por Vartan,apalpou-o e na cavidade desuas mãos viu a imensidãohostil das planícies do Norte.Uma sombra substituiu seusorriso. Ela voltou aMontefoschi e desnudou-lheo peito sobre o qual

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brilhavam os tijolinhos deouro de Kublai. Quem é você?—perguntou ela.

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Capítulo 24

Montefoschi e Vartan, afim de recuperar suas forças,ficaram um mês naquelaaldeia, até a chegada, numaprimavera de infinitasuavidade, de uma caravanacujo destino era Dunhuang, ea ela se juntaram. Isso lhesfoi duplamente providencial.Em primeiro lugar, porquepermitiu que continuassemsem medo a viagem e,principalmente, por fugir de

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um lugar que poderia ter sidoseu túmulo.

Nas três primeirassemanas de sua temporada,eles tinham sido um objetode curiosidade para o povo daaldeia. Talvez aquela gentetenha tido piedade deles poracreditar que os dois erammais despossuídos do queeles. Mas quandoMontefoschi propôs topáziose rubis—que tinham sidoguardados em sua cintura—em troca de roupas novas, de

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provisões de alimentos, decavalos, de armas, tudo issopara preparar sua partida, apopulação mudou depensamento a respeito deles.Um sentimento de invejapassou a dominar entãoaquela gente simples, pobrediante do estrangeiro, e opovo rude começou aentrever que sem dúvida teriamuito a ganhar com aquelesdois. Assim, passou-se a adiarcada dia para o dia seguinte opreço que deviam fixar pelos

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mercadores quando viessem aser procurados. Esseadiamento permanenteassustou Montefoschi, quecompreendeu a sorte que lhesestava reservada.

Ele e Vartan descobriramque, à noite, rapazes estavamvigiando a casa em que erammantidos. E, durante o dia,esses mesmos rapazes osacompanhavam em seuspasseios.

Por que, perguntava-seMontefoschi, ainda não nos

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mataram? Que sentido faztudo isso? Talvez eles sedivirtam nos aterrorizando,supôs Vartan. Quando secansarem de nos amedrontar,não hesitarão em nos cortar agoela. Então, no minúsculocômodo que lhes servia dequarto, Montefoschi ensinouao monge a maneira de andarcomo uma fera, a maneira desurpreender uma sentinela ecomo enfiar-lhe uma lâminaprecisamente no coração nomais perfeito silêncio, porque

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era preciso pensar seriamenteem sair daquela armadilha.Na noite seguinte, agiremos,decidiu ele. Mas nãoprecisaram golpear osguardas. Quando acordaram,de manhã, uma caravanaestacionava na aldeia eninguém, para surpresadeles, os impediu de abordaros viajantes, queconcordaram em levá-los atéDunhuang. No momento dapartida, dois adolescenteslhes levaram cavalos, roupas,

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provisões e um patriarcaembolsou topázios e rubis.

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Capítulo 25

Nas proximidades deKaxgar, um dos guias traçouum retrato pouco lisonjeirodas populações que iriamencontrar. Descrevia-as comoimpregnadas de umincorrigível fatalismo,aceitando as invasões sem irae sem raiva, aceitando osangue que corria, o desprezoem que eram tidas pelosconquistadores. Usou um tomde tal forma impositivo que

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Vartan quase ficouconvencido de que existiamseres desprovidos do menorsentimento de revolta,escravos pela alma, queimpressionavam osrepresentantes, neste mundo,do espírito de guerra e dofuror destrutivo porchegarem até a submissãoabsoluta. Uma dúvida,porém, lhe ficara, quanto àsafirmações daquele guia.

Achava necessárioverificar tudo aquilo, porque

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como miniaturista, habituadoa interpretar as mais ínfimasnuanças de um olhar ou aambiguidade de um gesto,era inevitável que acabassepor levantar dúvidas quanto àideia de que um homem podemanter o mesmocomportamento de sempre aoexpor sua vida diante daviolência. Então, examinoucom atenção os camponeses eos aldeões que pôde ter a seulado. Suas conclusões emgrande parte se opunham ao

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que dissera o guia. Tinhavisto a cólera nos olhos deuma mulher e um desejo dematar nos de um rapaz. Viu amultidão ardente de ódio àpassagem de cavaleirosmongóis. Se lhe fosse dadovoltar àquela região um dia,achava que poderia apreciar oespetáculo de cabeçascortadas, mas as dos soldadosde Kublai. Estranhamente,esse pensamento otranquilizou. Provava quenada é eterno, nem os

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impérios nem os medos, eque à semelhança daquelaspopulações aparentementepassivas, o monge de Sguevrapoderia vir a ser um homemque toma nas mãos o seudestino.

Em Kaxgar, a visão delimoeiros, de acácias, dechoupos e de plátanos oalegrou. Desde a infância,amava os pomares e bosquespor tê-los contempladodemoradamente napropriedade de seu pai. A

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felicidade de passear àsombra das árvores era ooposto do que acontecia nasextensões de neve, assimcomo nas extensõespedregosas ou de areia.Entrava nos jardins, naadolescência, para lá roubaruma fruta. Fugiu muitasvezes de surras deempregados furiosos com suaaudácia. Mas no último diaque passou em sua cidadeconheceu também umaexperiência que o encantou.

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Quando colhia uvas, umhomem o interpelou, semameaçá-lo com porretes nemsoltar-lhe os cães. Aocontrário, falou sobre o rouboe a hospitalidade. Depois oconvidou para uma refeiçãoem sua casa. Era umnestoriano. Da Cilícia àPérsia, os nestorianos tinhammá reputação. Eram acusadosde cúpidos, da prática dasimonia, de ignorantes,mentirosos e polígamos.Narasai não correspondia em

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nada a essa definição.Revelou-se cortês, falador,generoso, enchendo Vartande bolinhos secos com canelae sonhos com mel. Eenquanto nosso mongedevorava doce por doce,murmurava versículos emlíngua siríaca ou contava semparar pequenos casos sobre acidade e seus habitantes.Tinha o verbo brilhante euma fé profundamenteenraizada. No momento doadeus, apertou Vartan contra

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o peito e desejou-lhe longavida. Vartan lembrou-se desseepisódio como que aconfirmar que nenhumhomem—nestoriano, persaou mongol—corresponde àsdefinições padronizadasatravés dos séculos.

Os camelos caminhavamlentamente. Grãos de areiagrudados formavam umaconcha de quartzo cortanteque lhes furava os cascos. Oscameleiros afirmavam queesses pequenos aglomerados

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atravessavam o casco,furavam a carne e penetravamnas veias. O sangue oscarregava até o coração, aoqual aderiam. O animal a cujocoração aquela areia chegavaagonizava por dias e dias. Nodeserto de Taklamakã, osanimais, como os homens,tinham o olhar aflito. Vartanpercebeu a tristeza dos iaquese a morte entre suaspálpebras.

O deserto eram dunas,amplidões instáveis de areia e

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de florestas petrificadas,sucessivamente. Havia doisdias não soprava umventinho, fraco que fosse.Montefoschi execrava essebraseiro e o deusdesconhecido que o criara.Poderia o deus dos cristãosinventar uma terra tão hostilà vida? Mas todos os deusessão amigos do fogo e damorte, tinha dito não faziamuito Arnaud de Roanne.Aprendamos a ignorá-los erecusemos o temor ao fogo e

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à morte. Desde que tinhainiciado a travessia deTaklamakã, essas reflexões emuitas outras do médicoocupavam sem cessar oespírito do veneziano. Eram amedida, já se vê, da sabedoriaou da impudência. Assim foique se desenhou nele oretrato do que teria sido overdadeiro Arnaud. Lá estavaum homem ímpio, íntegro esensual. Em duas palavras,um homem escandaloso efascinante. Montefoschi dizia

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para si mesmo: alguém que,no Ocidente, seria suspeitode heresia e condenado àfogueira. Era-lhe forçoso,afinal, reconhecer-lhe ainteligência, a liberdade deseu pensamento e a ironia àsvezes dolorosa com a qualinterpretava e avaliava omundo. Como consequência,acabou por aceitar que aquelehomem fora do comumtivesse sido amado porHovsep. Como poderia,pensou, eu que acalentei

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ilusões, lutar contra ele? Osdados tinham sido jogados nopróprio dia do encontro dosdois. Como não conseguicompreender isso? Comopude me perder de ciúmes?Como posso compensar issoagora? Foi nesse momentoque Montefoschi concebeu,num segundo, a ideia de umlivro no qual Arnaud deRoanne teria seu lugar—omelhor.

No fim da tarde do quartodia de marcha, Montefoschi,

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rolando de uma duna abaixo,esmagou seu alforje sob opeso do próprio corpo. Dosvidros quebrados subiramperfumes de âmbar e jasmim.Também se quebrou opequeno frasco de óleoconsagrado. Vartan garantiuque em Iarkand haveriaboticários famosos quetivessem entre seus materiaisalgum óleo gordo e claro eque ele, Vartan, o benzeria.Montefoschi riu, zombeteiro.Havia muito tempo que

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aquele óleo não era mais oque lhe tinha dado o papa.

No Pamir, ele o bebera atéa última gota.

A partir do sexto dia demarcha, os oásis afinal setornaram apenas miragens.Um bosque de árvores surgiu.No crepúsculo, cumes dechoupos apareceram emlinha, de um cinza azulado. Anoite se enchia de cânticos ede um murmúrio deconversas. Passou-se porcidades. Dormiu-se em

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Iarkand, em Hotã, em Iutiã.Nelas encontraram-semulheres e rapazes queconvidavam ao prazer. Então,nos encontros amorosos, tudoficava esquecido: as cidadessemi-enterradas na areia, oshomens que se tinhamafundado, as fontes de águaamarga, as rochas negrascomo mãos erguidas para aabóbada celeste, tudo.

Em Iutiã, muitascaravanas estacionaram namesma noite. Os caravançarás

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ficaram abarrotados. Ospequenos quartos às vezestinham de ser repartidosentre seis, sete ou maishomens, muitos tinham de seamontoar nas grandes salas.Todos os cômodos ficaramcom um cheiro de cânfora, desuor, de urina. Arrasado decansaço, Vartan deixou-se cairsobre uma esteira.Apagaram-se as velas. Poucodepois, porque sentia mãosapalpando sua cintura, suabarriga e suas coxas, Vartan

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emergiu de seus sonhos.Acreditou primeiro quetentavam roubá-lo. Masmentia para si mesmo e osabia. Segurou a respiração.As mãos não buscavam ouro.Elas acariciavam. Vartan asempurrou, permitindo queum corpo se apertasse contrao seu. Uma boca beijou suaboca. Ele gemeu e uma mão oamordaçou.

Seus dedos, por sua vez,acariciaram e arrancaramroupas. Na palma de sua

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mão, pela primeira vezrecolheu um sêmen que nãoera o seu. O corpo que estavapor cima do seu o abandonoude repente e se fundiu napenumbra. As horas queseparavam aquele momentodo nascer do dia pareceramlongas a Vartan. Ele cochilou.Às primeiras horas damanhã, percebeu que a nudezde sua barriga estava expostaaos olhares. Tremia de frio, devergonha e de medo. Mas jáansiava pela volta da noite.

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Deus tinha para ele menospresença do que o maisinsignificante dos homens,porque o mais insignificantedos homens ao pôr do solpode se revelar ummaravilhoso amante. À luzque banhava Iutiã, viu-se ainvocar a volta das trevas,propiciadora de encontros.

Naquele dia, no pátio docaravançará, um mercadorseldjúquida puxou briga comVartan. De modo áspero edesdenhoso, afirmou que na

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China ele se tornaria umgaroto de prazeres de umpríncipe mongol. Vartanreagiu a socos e a brigacorreu solta diante deMontefoschi e quatro persas.Vartan e o seldjúquidalutaram por muito tempo napoeira. Rodavam um em voltado outro e às vezes um socoatingia um nariz, a cara, umombro. O sangue corria pelorosto de ambos. Num furorconcentrado, eles se mediame se insultavam. Curiosos se

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juntaram aos poucosespectadores. Fizeram-seapostas.

Durante a briga, que seprolongava, o corpo de Vartansofreu uma efêmera eespantosa metamorfose: numinstante tornou-se rígido,resistente e pesado comogranito.

Como Trêmer na semanaque precedeu sua morte,Vartan se mineralizava. Masessa alteração, em vez deanunciar seu fim, dava ao

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monge a potência física quecausaria inveja ao pior dosbrutamontes. O seldjúquidase dobrava, dominado porbraços e pernas de rocha.Seus joelhos logo tocaram ochão, depois foram o peito e afronte.

O público que tinhaapostado em Vartanmanifestou aos gritos suavitória. Logicamente, a vitóriadeveria exaltar o ganhadortanto ou mais do que seuspartidários.

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Não foi assim. Vartan secalava. Dessa vitória não lheadveio satisfação alguma,nenhuma alegria. O vencedorolhava fixamente oseldjúquida e a visão daquelehomem prostrado sobre aterra o humilhava. Vartantomava consciência de quelhe causavam repugnância asbrigas e as guerras e que nãohá justificativa para o prazerde vencer. No instante emque esse pensamento seenraizou nele, seus membros

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perderam as propriedades dapedra. Um deus, sem dúvida,tinha realizado ametamorfose para anulá-ladepois, uma vez que obeneficiário tinha aprendidoo ensinamento. Estaria essaexperiência entre as queprovam que o Crucificadoestá vivo em nós?—pensouVartan. Talvez, sim, talvez.

E ajudou o seldjúquida ase levantar.

Ruídos de panos que seesfregam vinham das salas do

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caravançará. Era a segundanoite que Vartan passava emIutiã. Sua espera dodesconhecido foi frustrada.Ele se masturbou e lambeu osêmen que ficou nos dedos.Naquela noite, não secontentava mais com o prazersolitário. Saiu para o pátio,mas também lá tudo pareciamergulhado no sono. Maspode-se fingir, pode-seentreabrir os olhos àpassagem de um passante,pode-se esboçar o sorriso que

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convida ao contato.Então Vartan se debruçou

sobre cada um dos quedormiam, espreitou oestremecimento que revelariaa espera do amante. Cadaronco dissipava um pouco desua esperança.

Foi quando ele decidiuaventurar-se pelas ruas.

Um vento áspero cortava acidade. Uma pesada poeirabatia nos muros. Até o raiardo dia, Vartan errou pelasruas de Iutiã. Ao amanhecer,

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cruzou com um garoto que olevou através de um jardimonde, sem uma palavra, o atosexual se consumou.

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Capítulo 26

A caravana ficouestacionada cinco dias emIutiã. Retomou a estrada sobuma poeira vermelha quegrudava nas roupas. Um pócor de sangue ficava nasdobras. Estava-se no centrodo Tarim. O junquilho brancoe o lírio de caxemirafloresciam. Entre as pedrascresciam espigas cheirosas.Os nevoeiros eram amareloscomo o enxofre, tépidos,

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deletérios, e setransformavam num rio aéreoe milenar. Nunca houvealguém que os visse sedissipar. Esse nevoeiro tinhaengolido caravanas inteiras,exércitos que levavam umbutim de guerra, rebanhos eseus pastores. Em Hotã, ummonge tinha dito a Vartanque o Tarim era a única regiãodo mundo que não podia serpintada.

Como representar aquelamassa esponjosa? Os artistas

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nunca tinham conseguidoreproduzir no pergaminhomais do que uma manchaamarelada. Mas, em meio aessas brumas espessas,Vartan desejava pintar oimpossível, e imediatamente.Foi como que um desafio queele não pôde conter. Emviagem, manejar o pincel é nomínimo difícil, para não dizerimpossível. Vartan entregou-se à detestável experiência. Acada movimento de seucamelo, o cálamo respingava

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de preto ou de amarelo opergaminho, e as coresestrelavam de manchas oguarda-pó do pintor e opescoço do animal. Oscaravaneiros riam à socapa. Jáviu alguém tão imbecil?—diziam uns aos outros. Ecomo, nos caravançarás,concentrar-se numa obra éum prodígio, por causa dorebuliço e do vaivémincessante, aborrecido, emesmo mortificado, Vartanjulgou de bom alvitre

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renunciar à empresa atéPequim, onde, tinhaesperança, as condiçõesseriam mais favoráveis paravoltar a se familiarizar comsua arte. Até no antigo oásisde Nua, onde havia a calmados lugares que estão a piquede serem reconquistadospelas areias, tinha brigadocom seus pincéis.

O oásis de Nua, ativo soba dinastia dos Han, tinha sidoprogressivamenteabandonado. Não lhe

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restavam mais do que poucasruínas, montes de terra,árvores raquíticas.

Pisando a morna extensãodesértica pontuada aqui e alipor vagos traços de um muro,Vartan achou um pente decabo de marfim desgastadopelo vento, de dentesdesbeiçados.

Como aqueles elegantesde Tabriz que se eternizavamem sua toalete, passou longotempo desembaraçando seuscabelos. Mergulhado em sua

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ocupação, sonhava com umrapaz que tinha visto, emTabriz, ainda, dançar nofundo de uma sala docaravançará e que ele tinhainvejado. Para parecer-se comaquele efebo que evoluía emsua dança diante de umasociedade exclusivamentemasculina, pintou devermelho seus lábios e asunhas dos pés com opigmento carmim que usavapara avermelhar os panos querevestiam os santos e os

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dignitários. Assim maquiado,dançou num jardimpetrificado para uma invisívelassistência a dança lenta evoluptuosa da sedução.Dançava entre as árvores deum branco de alvaiade, degalhos retorcidos sob um céucor-de-rosa. Descansoudepois perto de choupos quese desfaziam suavementecomo teias de aranha e cujostroncos rangiam comomastros de veleiros em alto-mar. Sentou-se sobre um

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tronco caído e foi duranteuma hora ou duas o ídoloimóvel de um oásis queparecia esquecido pelomundo. Sonhava com o diaem que fosse visto numpasto, em uma taverna, nãoimporta aonde, dançandodiante de vaqueiros, ou debebedores de bebidas fortes,uma multidão, a dança dodesejo.

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Capítulo 27

Em Quiemo, Montefoschie Vartan entraram numacidade que era só alegria.Com os habitantes, tentarammuitas vezes e sempre semsucesso saber a causadaquilo. Às perguntas quefizeram, receberam respostasincoerentes. Falavam-lhes deuma inverossímil planta quematava, de criançasinsatisfeitas que tinham salvoa cidade contrariando velhos

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céticos. O resto da caravananão teve melhor sorte,também ouviu discursosestranhos. Já ninguém maistinha esperança de saber oque se passava, quandoVartan abordou umtransportador de cargas quelevava um fardo nauseabundodo que parecia ser um montede ervas gosmentas. Ohomem dignou-se aesclarecer a razão daquelaalegria que inflamava acidade.

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Crianças, começou ele,que todo dia tomavam banhode rio, tinham observado,havia cinco dias, que umavegetação aquática que atéentão desconheciamproliferava perto dasmargens. Tratava-se de umaalga que se enrolava naspernas, na cintura e notronco, e as crianças não selivravam delas facilmente.Decidiram avisar os sábios deQuiemo, mas eles secontentaram em dar

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palmadinhas na cabeça dascrianças e a sorrir. Já tendoouvido mil tolices da bocadaquelas crianças,mandaram-nas de volta asuas casas. De qualquermaneira, a verdade das coisase a observação da naturezaeram assunto de adulto. Ascrianças voltaram ao rio, ondeperceberam que na suaausência as algas tinhamestendido seu domínio até omeio das águas e formavamagora uma espécie de floresta

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virgem. Estavam mais velozesdo que cavalos loucos, do quePégaso ou os cavalos doProfeta, e era difícil escapardaqueles milhares de hastessinuosas. As criançasvoltaram aos sábios para lhesdescrever aquela hidranascida do rio. Os sábiosafinal se tocaram com ahistória e descobriram que overde cristalino da plantatinha escurecido e soltava umcheiro de matéria fecal. Umdos sábios jogou aquela

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podridão às galinhas, que adesprezaram. As criançaslevaram três chicotadas.

Mas a punição não lhestirou a coragem de irnovamente ao rio, cujasuperfície agora era cor deesmeralda. A hidra tinhachegado até onde podia. Ascrianças olharam e ficarammudas. Mudas continuaramnas ruas e em casa, no jantar:tinham medo. E depois omedo começou a se espalharpela cidade inteira. Em uma

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noite a hidra tinha tomado deassalto as embarcações.Tornara-se uma ampla redede malhas finas que recobriaos mastros, os tombadilhos,os remos e moía sua presa demadeira. Sufocou osmarinheiros e seu capitão. E aPlanta, como a apelidaram,invadiu as margens e seprecipitou na direção dacidade de Quiemo. Apopulação apressou-se emcavar fossos profundos a fimde dificultar o avanço da

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Planta. Mas ela invadia osfossos até enchê-los econtinuava sua caminhada.Debaixo da terra, empestavaos ossuários.

Os sábios se reuniram àspressas. A Planta, duranteesse tempo, afogava osbairros baixos. Um sábiomandou vir as crianças.Ajoelhou-se diante delas epediu-lhes perdão por si e porseus companheiros pela suaincredulidade. Num impulsode contrição, beijou-lhes os

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pés. As crianças aceitaram operdão e logo a Planta refluiu,voltou para o rio e se afundouno lodo.

O transportador de cargastinha sido ouvido no maisperfeito silêncio. Mas tão logoa narrativa terminou, osviajantes filosofaram comocomadres em dia de feira.Como os animais, as criançaspressentem o perigo, diziam.E o que seria da sabedoria sepermanecesse muda dianteda palavra dos inocentes? É

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possível vangloriar-se de suasabedoria se se é incapaz deacreditar nas manifestaçõesdemoníacas? A pretensão e oorgulho movem o mundo,concluiu um persa comgrandiloquência.

Irritado com a vaidade quehavia nessa troca de ideias,Vartan tinha se afastado.Montefoschi o encontrou bemmais tarde no pátio docaravançará que tinhamescolhido como pousada. Ojovem dançava diante dos

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caravaneiros sentados emsemicírculo. Seus braços epernas reproduziam osmovimentos sinuosos daPlanta e pareciam cobrir ocontorno de um corpo atésufocá-lo. De repente, aPlanta que ele encarnavatornou-se amorosa. Vartanagora reproduzia em mímicacarícias, beijos, contatos. Eseus lábios balbuciavam aspalavras que se pronunciamnos momentos de gozo.Quando acabou sua dança, os

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espectadores o rodearam enão pouparam elogios. Umdeles o enlaçou e depois oarrastou para o seu quarto.

Diferentemente doscaravaneiros, Montefoschinão tinha sentido nenhumdesejo pelo amigo. Aliás,desde a morte de Hovsep atentação da carne lhe eraestranha. Entretanto, ele sealegrava de ver Vartanadulado, cortejado, mimado.O monge desistira enfim deproibir para si mesmo os

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jogos do amor.

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Capítulo 28

A caravana ficou trêssemanas em Quiemo. Osmercadores não pareciamdispostos a deixar uma cidadeem que as festas se sucediamàs festas. Os religiosos dacidade tinham batizadoalgumas dessas festas—a daLibertação, a da Criança, a doRio—e projetavam repeti-lastodos os anos a fim decomemorar a vitória sobre aPlanta. Os caravaneiros só

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partiram de Quiemo quandoas festas e procissõesacabaram.

Nas proximidades deCarxlique, os lobos semostraram animaispraticamente inofensivos.Suas presas raramente secravavam na carne humana.Mas como todos os animaisdesse tipo, atacavam asovelhas desgarradas eacabavam com os carneirosdoentes. Em cinco anos, sóuma moça tinha sido

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devorada por essescarniceiros naquela região.

Da moça, os lobos sódeixaram as botas, algunsfarrapos da roupa e umamancha de sangue. Ostangutes os descreviam comoespíritos que se nutriamessencialmente do ar frescodos fins de tarde e defragmentos de estrelas caídosdo céu. A cidade de Carxliquedevia sua boa reputaçãoprincipalmente àhospitalidade e à

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generosidade de seushabitantes. Na verdade, nãoeram absolutamente avarosde seu vinho e de seuscarneiros no espeto.Conduziam os viajantes,sempre extenuados, naquelaregião, a pousos subterrâneosnos quais, garantiam, eraagradável descansar, dormir esonhar. Mas também eramconhecidos por suasmentiras, porque a umidadeque imperava nesses lugresescuros não favorecia o

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repouso, o sono e os sonhos.Nuvens de mosquitosassaltavam as costas e aspernas e havia necessidade deenvolver o corpo em panosgrossos de linho e de algodão.Assim, a pessoa parecia umamúmia num sarcófago queentretanto não a isolava dosvivos. Mas o pior aindaestaria por vir: as nuvens demosquitos eram o prelúdio deoutros incômodos. Haviaescorpiões em cada fissuradas paredes; hordas de

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baratas vermelhas, de pulgas,e piolhos faziam das esteirassua morada. Vartan, comotodos os locatáriosprecedentes, preferiuestender-se na areia, ao luar.Raramente vítimas dessafauna provida de asas, demandíbulas e de pequenosferrões, os habitantes deCarxlique espantavam-se como medo que os vermessuscitavam nos viajantes.Quanto a eles, emergiam desuas catacumbas de manhã

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dispostos, alegres e famintos.Vartan atribuiu-lhes o dom deenfeitiçar baratas, mosquitose escolopendras.

Esses insetos abundantesnão os convidavam a seeternizar em Carxlique. Porisso eles retomaramrapidamente a estrada deDunhuang.

Durante quase um mês acaravana margeou o desertodo Sinkiang. Avançava comose estivesse sob uma chuva defogo, tão intenso era o calor.

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Os que caíam de suamontaria por esgotamentotinham direito a algumasgotas de água sensaboronaguardada no fundo de seurecipiente de couro. Espíritosmalignos havia umaeternidade residiam nessedeserto. As tribos da regiãotemiam mais a maldadedesses demônios do que apicada da víbora. Osmovimentos desses espíritosirisavam o ar ou o nacaravam.E o ruído do vento, quando

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esses espíritos passavam,transformava-se num cântico.Eles eram o fogo-fátuo quesegue os viajantes. E quandose juntavam aos milhares,perto dos bivaques, o desertode repente exalava umperfume de âmbar, de jasmime de mirra. Alimentavam-sedo aroma de um prato, de umcheiro de fritura ou davolatilização do vinhoordinário.

Suas habilidades eramvariadíssimas. Em

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determinadas horas,imitavam à perfeição a voz deum persa, de um seidjúquida,de um mongol ou de umfranco, talento que tinhaconsequências funestas sobreos caravaneiros que sedirigiam à China. Umretardatário acreditava terouvido o chamadodesesperado de um doscompanheiros. Corria paraajudá-lo e não voltava mais,perdido nas areias.

Os espíritos do Sinkiang

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enchiam o dia—e às vezes anoite—de barulhos dearmaduras que se chocavam edo som de tambores e decímbalos. Era a hora decombates invisíveis. Mas seusmurmúrios não conseguiramnenhum efeito sobre osmercadores. Montefoschiainda uma vez usou de suaastúcia: aconselhou aosquarenta e três homens quetampassem os ouvidos comalgodão, assim não ouviriamos gênios do mal. E a astúcia

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vingou. Os demônios seesgoelaram em vão. Essaderrota diminuiu seuspoderes. Essas criaturasinvisíveis, certa manhã,assumiram um corpo eendureceram ao sol. Um deuslhes tinha retirado aimortalidade.

Às vezes o viajante viasobre a areia um monte decinzas que o vento nãoconseguia dispersar: é queainda permanecia lá umespírito do Sinkiang.

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E esse deserto foi umalembrança para Vartan comotinham sido o Pamir, Tabriz,Aiás e Sguevra. Entrava-se noantigo reino dos tangutes. EmDunhuang, templos emosteiros se multiplicavamao infinito. Pequenos bosquesde tamarizes davam um tomde verde à periferia da cidade.Para além dos arrabaldes,pântanos pareciam cheios decristas com os caniçoscrescendo. Seu rangercontínuo se ouvia a grande

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distância. Para os mercadores,anunciavam a cidade, asriquezas e uma esteira paraos membros moídos decansaço.

Como os guias tinhamavisado Montefoschi e Vartan,a caravana não iria além deDunhuang, pois Kublai, porcapricho ou desconfiança—como sabê-lo? -, recusara osalvo-conduto que lhes teriapermitido continuar aincursão no territóriomongol. O veneziano e seu

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companheiro teriam deesperar mais de um mês pelapassagem de uma caravanaque, esta sim, teria franquiaabsoluta no território chinês.

Durante essa temporadaobrigatória, Vartanestabeleceu relaçõesamigáveis com uma famíliaque o convidou muitas vezespara participar de suasrefeições. Seus hospedeirosfalavam a língua tangute, queele desconhecia. Tinhamemorizado apenas as

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palavras que lhe serviam parapedir água, vinho, umacosteleta a mais. Ele gostariamuito de escolher entre osrapazes presentes um que lheensinasse rudimentosdaquela língua e seria, notempo em que ele ficassenaquela parada, seuqueridinho, mas nenhumdaqueles alegres comilões ocomovia. Então, despedia-sedeles inventando uma ououtra desculpa e saía para acidade, onde tinha liberdade

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para seus encontros.Montefoschi não

participava das refeições.Estava compondo a lista dosacontecimentos capitais desua vida. Fazia meses tinha sedesinteressado de saber sesuas agências comerciais naCrimeia prosperavam, e nãotinha enviado uma únicamensagem a seusadministradores. A grandezae o futuro de seu nome não opreocupavam mais. Emcompensação, estava

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verdadeiramente obsedado,agora, pela redação de seusrelatórios de viagem. Nadadesejava além da calma e damonotonia dos dias paraescrever sobre suas ambiçõesmortas, seus pequenossonhos e a história de umamor.

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Capítulo 29

Chegou a hora da partidapara Dunhuang.

A caravana à qual sejuntaram Montefoschi eVartan chegaraaGanzu.

Na província de Kansu, oscavalos pastaram uma ervatóxica cujo efeitosurpreendente foi permitirque seus cascos se cortassemrapidamente—como quedesprotegidos, os cascos seferiam ao contato com as

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pedras. Os animaismancavam e, como a marchase tornara lenta, os homensse perguntavam se algum diachegariam a seu destino.

Vartan se cansou cedodessa região onde, parecia-lhe, as maldições floresciam.Mas afinal não era sempreassim nos campos, nasflorestas, nas montanhas? Osfeiticeiros e os gênios daterra, sem que se saiba porque, tinham menos poder nascidades. Então, Vartan, como

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os outros, impacientava-secom a lentidão na travessiadaquela região e sonhavachegar logo a uma cidade, portrás de cujos muros estariaprotegido da hostilidade danatureza e das criaturas que apovoavam.

A dois dias de marcha deGanzu, a caravana parou parapassar uma noite numa aldeiaonde estacionavamcamponeses uigures acaminho de Pequim. Osuigures esperavam poder

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presentear Kublai com umaraça de patos com cristavermelha e um verde-escurono papo. Depois de algunscruzamentos, o peso de suasaves atingia o dobro de umpato comum e sua carne eramais saborosa.Acompanhados de suasmulheres, esses camponeses,ávidos de honrarias e dereconhecimentos, contavam,já se vê, com o saborsuculento de suas aves paraque atingissem a dignidade

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de intendentes do galinheiroimperial. Uma das mulhereslançava sem cessar olharespara Montefoschi. Ao nascerdo dia, ela criou coragem.Sentada ao lado dele, traçouno chão oitenta e trêspequenos círculos querepresentavam as oitenta etrês pessoas que ele tinhaodiado, amado, desprezadoou admirado na vida e,garantia ainda aquela mulher,ele teria o poder de arrancá-las pelas palavras do

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esquecimento no qual seapagavam quase todos osmortos. Graças a ele, asgerações futuras, por sua vez,odiariam, amariam,desprezariam ou admirariamseres desaparecidos havialustros. Mas, terminadas asoitenta e três evocações, umafebre o atingiria ebruscamente faria dele umhomem sem memória. Comoagradecimento por suaprofecia, Montefoschi deu-lheuma pedra preciosa, que ela

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recusou. Não tenhonecessidade de nada, disseela, porque eu e os meusreceberemos das mãos dokhan mais riquezas do quejamais sonhamos. Guardeessa pedra para o momentocerto. Um dia, numa ilha,você a venderá e o preço quevai conseguir por elagarantirá a você umaexistência sem preocupaçõescom o amanhã. Nessa ilha éque você fechará os olhospara um mundo do qual terá

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sabido descrever o caos e abeleza.

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Capítulo 30

Em Ganzu, certa manhã,os caravaneiros sedespediram de Montefoschj.Uns voltaram para a Pérsia,outros para a Cilícia.Empertigando-se, orgulhosose assustadiços, facão nacintura, assumiam postura deguerreiros antes da batalha.Sob a roupa de um ciliciano,junto de seu coração eacompanhando-lhe asbatidas, uma carta do

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veneziano endereçada a umde seus primos,administrador em suaausência do escritório deSudak. Montefoschi a ditarapara Vartan escrever. Tratava-se de uma correspondênciacurta: catorze linhas, com asecura de um documentocartorial, avisavam odestinatário da morte de seupai. Nove frases explicavamque a febre tinha levado umhomem que os riscos daviagem haviam reduzido a

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um estado de pobrezaabsoluta. Montefoschi pediua Vartan que lhe entregasse otestamento que tinha em seupoder e o destruiu.

Explicou-lhe da seguintemaneira o motivo de seugesto: “Ser meu herdeiro oobrigaria, para regulamentarminha sucessão, a ir àCrimeia e talvez mesmo até aItália, quando seu destino évoltar definitivamente ascostas ao Ocidente. Porquecreio que você nasceu para

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viver nestas terras do Oriente,para explorar-lhes ostesouros, para nelas amar oshomens e se fazer amado.”

Pela voz de um de seusfuncionários, Kublai recusouao embaixador de Hetum e aomonge autorização paracontinuar a viagem, pelomenos de imediato. Dizia-seque o imperador, aoenvelhecer, transformava-senum verdadeiro chinês e,como todo chinês,desconfiava dos estrangeiros.

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Talvez quase não selembrasse mais de terrecebido o veneziano em seupalácio, e de então o terencarregado de ser seumensageiro junto ao papaNicolau IV. Seja como for,espiões do imperador osvigiavam como vulgaresmercadores. Eles tiveram depassar onze meses em Ganzu.

Durante essa paradaforçada, Montefoschi ocupouum quarto no bairroreservado especialmente aos

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estrangeiros. Saía pouco,bebia muito, comia demais.Nessa existência de recluso,engordou, dormia longashoras durante o dia, e à noiteenfim se consagrava ao relatode suas aventuras. Vartantinha partilhado durantealgum tempo de seu quarto,depois se queixou dacxiguidade do lugar e afinaldecidiu se mudar.Montefoschi tinha contratadoa seu serviço, para ser aomesmo tempo seu porteiro,

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seu mordomo e seucozinheiro, um jovem uigurfalador e quase semprexereta. Um dia, o jovem Togril(esse o seu nome) chegounum estado de excitação rara:acabavam de contar-lhe umahistória que corria a cidade, ade um ladrão mongol quemorreu traspassado por umaflecha montado num cavalosuando sangue. Em outrascidades, Montefoschi haveriade ouvi-la ainda por muitas emuitas vezes. O ladrão,

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segundo cada contador, seriapersa, franco, armênio,egípcio ou mongol. Poucosmeses depois de sua morte,Hovsep atingira o status delenda. Montefoschi decidiu-senaquela tarde que a aberturade seu livro teria a descriçãode brumas das quaisemergiria um deus do amortingido pela púrpura dosangue de todos os amantesinfelizes. A obra estaria assimsob o signo da tragédia e dodivino.

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Em onze meses, Vartan sóvoltou duas vezes aMontefoschi. Quando de suasvisitas, teve a impressão deque viviam as vésperas doadeus. O homem não seinteressava mais por ele,tornara-se mesmo grosseiro.Suspirava e bocejava paramostrar sua impaciênciaquando a conversa seprolongava.

Togril presenciava de pé,perto da porta, aquelasdiscussões insípidas. Vartan,

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que sofria com essa atitudedesconcertante, tomou entãoa decisão de não voltaràqueles encontros. Passou aencarar Montefoschi comoum amigo que o tinha traídoe, assim, não tinha maisprazer em vê-lo. E o homempassou pouco a pouco a fazerparte de seu passado.

Vartan se entediava emGanzu. Ou pensava que fosseisso. Na verdade, sob acamada de tédio, umainquietação o roía.

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Desde que tomaraconhecimento da decisão deKublai de retê-los naquelacidade, Vartan resolveraconsagrar o essencial de seutempo a seu trabalho deminiaturista.

Foi um voto de piedade.Pincel na mão, deixava correras horas sem conseguiresboçar a silhueta de umsanto ou a forma de umpássaro. E se afinal traçavauma linha sobre opergaminho, a linha era

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tremida. As cenas bíblicas, osmilagres e as provações deCristo não o inspiravam maiscomo no scriptorium deSguevra. Era outra coisa quetinha desejo de aprender. Masnão sabia o quê. Oimpossível, sem dúvida,aquelas brumas de Tarim quedesafiavam os artistas.Tentava reproduzi-las talcomo as revia em suaslembranças. O resultado ohumilhava: então, ele fugia deseu quarto para as ruas de

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Ganzu.Essas errâncias repetidas

o levaram a conhecer bem acidade. Passou assim apreferir certos bairros, sebem que seus passos olevassem sempre a ummesmo ponto. Era um lugarque particularmente oencantava, sobretudo noverão. E, entretanto, era umlugar que nada tinha denotável. Que podia ter de tãoexcepcional uma árvorecrescendo num canto de uma

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pequena praça, na maiorparte do tempo deserta? Parasabê-lo, era preciso observarno início da tarde o momentoem que uma triunfante luz ametamorfoseava dotando-ade todos os ouros da criação.No entanto, a árvore nomomento de sua glóriadourada comovia menosVartan do que no momentoem que a tarde caía. Os ouros,quando a luz perdia suaintensidade, cobriam-se deuma espécie de penugem

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como se um véuinfinitamente leve recobrissea folhagem e o tronco. Aárvore parecia balançar sobuma brisa. Essa docepalpitação vegetal—era issoque tocava Vartan, era issoque era preciso pintar. Mastudo se escurecia quando lhevinha a ideia de ter deexprimir o impalpável. Aderrota iria ao seu encontro,tinha certeza disso. E,chegando a noite, o encantorecuava, havia apenas

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desespero.Num fim de tarde, quando

ele se preparava para partir,sentiu a presença de alguémpor trás de si. Voltou-se: umhomem lhe sorria eVartandisse a si mesmo que aquelesorriso tão enigmático seriatão difícil de reproduzir comoa árvore. Se o homemexternava sua perturbação,não deixava que issotransparecesse. E o homem seapresentou.

Chamava-se Kao Suan e,

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como Apolônio de Tiana,falava todas as línguas douniverso. “Sou pintor’ disseele. “E pinto essa árvore quevocê contemplava há muitotempo.

Porque eu estava aqui, e ovi em pleno arrebatamento.Só eu e você nos interessamospor ela nesta cidade: Fez umapausa, depois propôs:“Gostaria de jantar comigo?”

Como estava curiosoquanto à maneira pela qualKao Suan tinha conseguido

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reproduzir o sublime, Vartanaceitou.

Mas na casa de seuanfitrião ele mal tocou nospratos, de tal forma suaimpaciência o perturbava. Ochinês entretinha onervosismo de seu convidadoservindo-o com uma lentidãoafetada. Parecia se distraircom esse jogo. E quandoVartan o apressou para quemostrasse suas obras, eleresmungou um “sim, sim,imediatamente’ depois

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continuou a tagarelar comoque esquecido do queacabavam de lhe pedir. Aexasperação de Vartanchegava ao máximo quando,com o mesmo sorriso noslábios que mostrara na praça,o homem se dirigiu a umcofre de onde tirou uma folhade papel. Vartan fez cara dequerer apoderar-se dela. Numgesto rápido, Kao Suan tirou-a do alcance de sua vista. “Porque tanta pressa’ murmurou,“por quê? Será tão doloroso

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assim esperar? Dominar suasemoções, temperar o ardor deseus desejos está acima desuas forças? Essa brutalidadepara agarrar uma folha depapel não é ridícula? Agitar-se assim seria um bom modode se preparar para adecifração daquilo que éimperceptível, daquilo quepertence à ordem do inefável?Seria esse o estado exigidopara perceber a graça dascoisas, o mundo efêmero ousua eternidade?” “Perdoe-me’

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respondeu simplesmenteVartan. “Que estranhapalavra’ disse Kao Suan numsuspiro. “Sim, que estranhapalavra em resposta ao queeu disse. Você não meofendeu, não há o queperdoar. Eu falava de você,evocava como apreender abeleza e a complexidade doque nos rodeia, é tudo.”Pronunciando esta últimapalavra, Kao Suan estendeu afolha a Vartan.

Alguns traços, traçados

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com toda a segurança,evocavam a árvore, ainda quenão lhe reproduzissem osdetalhes. Apesar de tudo, eraexatamente tudo aquilo quenosso monge tantas vezestinha perseguido,contemplado, amado. Afolhagem representada portrês traços desordenadossussurrava aqui ao vento, ovento que varria tãofrequentemente a praça, e asimplicidade total do troncoesboçado tinha uma presença

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tal que Vartan, transportado,multiplicou a árvore aoinfinito, e se achoubruscamente no coração deuma floresta, num pontoonde tudo é sombra,sussurro, mistério. A árvoreocupava um canto do quadro,o canto de baixo, à esquerda.Entre ela e uma montanhacujo cume o artista tinhaapenas sugerido, o espaço eraa brancura de uma nuvemcom nervuras, apenas, aqui eali, de preto. O quadro

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enfeitiçava, nele a gente seperdia. Demonstraria ele aevidência de mundosinvisíveis que, no tumulto dosdias, não se pode perceber?Sem dúvida.

Vartan se calou durantemuito tempo. Depoisconfessou a Kao Suan que erapintor como ele. Então, KaoSuan pediu-lhe que lhetrouxesse no dia seguinteuma de suas obras. MasVartan não voltou nunca.

Outra vez em seu quarto,

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ele espalhou os pigmentospelo chão e os pisoteou,quebrou os copinhosjogando-os contra a parede,arrebentou os pincéis. Suaraiva passou, ele abriu OEvangelho de Leão II e seabsorveu durante horas noestudo de cada rosto, dosgrupos de pessoas, de cadapaisagem. Nada tinhapresença tão forte como abrancura de uma nuvemmisteriosa aparentementeimóvel entre a árvore e a

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montanha. Como ousar denovo a pintura, se era paraoferecer ao olho humano umatal ausência de expressão nosolhares, tanta rigidez noscorpos, tanta ingenuidade narepresentação da natureza edos animais? Os monges deSguevra, os aristocratas deSis, o povo da Cilícia, o reiseriam então cegos ou rudes aponto de admirar uma obradesprovida de densidade, deinteligência, de beleza? Eleseria sempre o aluno

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sofrivelmente dotado que oacaso tinha levado às nuvens.Quanto a fazer de umaárvore, de uma nuvem, deuma montanha a própriaessência do mundo, preferiarenunciar a isso. Não tinhanem o traço fulgurante, nemaquele gênio que consiste emevocar a vida. Assim, sualucidez o aconselhava aabandonar definitivamente opincel. Um dia, talvez, ser-lhe-ia concedida de novo agraça. Então, com um traço

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do cálamo, ele tentariaapreender o sorriso de KaoSuan.

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Capítulo 31

Afinal, chegou paraMontefoschi a autorizaçãopara ir a Chang-tu, aresidência de verão de Kublai.Ainda abrasado pelo fogo dorelato de suas memórias, nãodeu logo a notícia a Vartan. Equando estava descrevendosua temporada em Ganzu,começou a sonhar com a ilhaque a camponesa do povouigur tinha evocado. Certamanhã, tomou uma decisão:

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voltaria às estradas, partiriaem busca daquela ilha eTogril o acompanharia.

Quando uma mocinhatrouxe a autorização imperiala Vartan, o veneziano tinhadeixado Ganzu.

No quarto de seu amigo,Vartan encontrou, comoúltimas lembranças deMontefoschi, uma garrafinhacujo conteúdo pretensamenteseria óleo consagrado, ostijolinhos de ouro, uma bolsacheia de pérolas e de safiras,

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a carta de Nicolau IV e a deHetum II, ambas endereçadasa Kublai. O memorialistatinha pregado numa dasparedes do quarto umpergaminho, cópia dealgumas páginas da narrativade suas aventuras. Vartaniniciou a leitura, até que otexto se tornou, de modobrusco, como que vaporoso.

Ele fechou os olhos. Aoreabri-los, a bruma tinha sedissipado. Pôde então ler aliseu destino: “Vartan

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Ovanessian chegou a Pequimonde encontrou um amigoque o conduziu para além domundo comum.”

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PARTE 3 - OROMANCE DE

JEBE

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Capítulo 32

Era setembro quandoVartan chegou a Chang-tuonde o esperava uma amargadecepção: havia uma semanaque o imperador tinhatrocado sua residência deverão por Pequim.

Achou que nuncaencontraria Kublai em suavida e, como consequência,veio-lhe o pensamento de suaprópria morte. Mas ele serecusou a sucumbir à

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morbidez. Por lealdade a seurei, tinha de realizar a missãoque lhe tinha sido confiada:depositar aos pés de Kublai oóleo consagrado e OEvangelho de Leão II, ser oadvogado de uma religião ede uma cultura. Depois,abandonar-se-ia ao sabor dosacontecimentos.

Impaciente por atingirPequim tão rápido quantopossível, deveria entretantoconter seu ímpeto, porque oscaravaneiros, pelo menos foi

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essa a impressão que teve,tinham prazer em prolongaraquela temporada. Em Ecina,entregavam-se durantemuitos dias à caça ao falcão,num vale atravessado por umrio apaixonaram-se pela pescada solha, e essa nova paixãoprolongou-se por muitos dias.Vartan passousucessivamente daexasperação à cólera, dosresmungos às injúrias.Zombavam dele! Mas seumau humor acabou como que

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por encanto quando viu osmercadores seminus prontospara um verdadeiropiquenique na beira do rio.Como resistir a uma tavisão?Sentou-se entre eles,esqueceu seus amuos eobedeceu apenas ao que lheditavam seus desejos.

Vartan continuava emChang-tu, a cidade dos miltemplos. Os monges,pequenos homens raquíticose joviais, deixavam atrás de sium cheiro de carniça e de

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chiqueiro.Com um deles, Vartan

aprendeu que eles sealimentavam essencialmentede um caldo à base de sêmolae farelo, a não ser quando umcondenado à morte eraexecutado.

Pois, segundo a tradição, ocadáver tinha de ser entreguea eles, que o desmembravame, uma vez esquartejado,cozinhavam-no. Desde quesoube desse odioso costumeda comunidade monacal,

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Vartan não tinha motivospara permanecer mais do queo estritamente necessárionaquela cidade. Passeandopelas ruas, parecia-lhe quedirigiam a ele olhares de gulae teve medo de acabar numcaldeirão. Os caravaneiros,desde que Vartan os advertirade que a antropofagia eratolerada, arrumaram suasbagagens.

Nos últimos dias desetembro, Vartan entrou emPequim. Mas ainda se

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passaram doze meses antesde que fosse recebido porKublai.

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Capítulo 33

Afinal, chegou o dia emque o imperador dignou-se aencontrá-lo.

Vartan percorreuintermináveis galerias eatravessou mais de cemportas, precedido por umcamarista e escoltado porarqueiros. Como único ruído,o frufru das roupas de seda eos tinidos dos sabres. Vartannão temia seu encontro comKublai. Levava consigo

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ambições de Montefoschi e,no rosto, a dura expressão deHovsep conspirando contraRoger de Narbonne;ostentava também a calmasoberana de Arnaud deRoanne à cabeceira dosmoribundos e seu próprioorgulho de ter atravessado osdesertos de neve e osdesertos de areia. Por brevesinstantes, sonhava comMarcos Trabukis, e o que deseu amigo surgia sempre emprimeiro lugar em seu

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espírito era quanto o amor,nada mais que o amor tinhamarcado toda sua vida. EmPequim, os escritos deMontefoschi tinham setornado uma referência paraele, que passara a conhecê-los, e essa ideia o exaltou. Foiportanto com uma certasegurança que ele entrou nasala onde se comprimiam osembaixadores. E seprosternou diante do khan.

Depois das palavras deboas-vindas e de amizade de

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Kublai, traduzidas por umintérprete, Vartan tevepermissão para se levantar epôde demoradamente fixar oimperador em sua majestade.Ao sinal de um camarista,compreendeu que deverianaquele momento apresentarsuas homenagens aosorridente conquistador.Ofereceu-lhe então OEvangelho de Leão II, depoisdestampou a garrafinha deóleo, estendeu-a a Kublaicontando-lhe a mentira de

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que aquele líquido tinha sidoconsagrado pelo papa. Masque podia significar aquilopara Kublai? O imperadoresfregou algumas gotas naspalmas das mãos como sefosse um perfume.

Se bem que o óleoestivesse rançoso, oimperador respirou-lhe oseflúvios com evidente prazer.Agradeceu os presentes e aentrevista terminou. Longotempo de espera, doze meses,para cinco minutos de

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gentilezas, pensou Vartan.Um festim seguiu-se à

audiência, durante o qualbeberam-se quantidadesinimagináveis de vinho dosvinhedos recentementeplantados na China, deaguardente de arroz, dehidromel, de cerveja decevada e de cúmis. Àsemelhança dos demaisconvivas, o khan bebia semparar. Seus médicos o tinhamprevenido sobre asconsequências danosas que

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excessos poderiam trazerpara seu organismo, mas elenão se importava. Por isso,suas pernas eram umainchação só, seu sangueestava cada vez mais espessoe dentro de seu peito ataquicardia era violenta. MasKublai, imperturbável, caíana farra diante das mesaspreparadas para suasmulheres e seus oficiais. Abebedeira era geral. Vartansentia-se dentro de umaestalagem de Aiás ou de

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Tabriz. Havia algum tempo jáque Kublai cometia excessoscomo imperador, exibindo aseus cortesões a imagem deum velho rei esgotado.Apesar de tudo, ninguém seaventurava a assumir algumafamiliaridade norelacionamento com ele, ou afazer qualquer ironia comaquele que se gabava de ser odono do mundo, porque oolho do soberano sempre osobservava, penetrava seussegredos, julgava-os. Sob esse

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olhar frio, tudo que Vartanpudesse ter assimiladonaqueles últimos tempos foipor água abaixo: logomurcharam nele o ardorambicioso de Montefoschi e arudeza de atitudes deHovsep, assim como odomínio de si e a paciênciaque eram o legado de Arnaudde Roanne. Até mesmo seuorgulho natural o abandonou.Não lhe restou mais do que afé no que o veneziano previu.

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Capítulo 34

A tribo dos taidjiutestinha sido a escolhida. Foicom ela, entre outras, queGêngis Khan festejara suasprimeiras vitórias, com ela éque fora repartido o butim.

Essa honra tinha feito deseus membros os aristocratasde um novo império. Eramchamados os Puros, ou osFilhos da Luz. Jebe era umdeles.

Oito meses antes da

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audiência marcada paraVartan, Jebe tinha assistido àhumilhação pública ordenadapor Kublai e sofrida porJiruki, seu pai. A cena tinhase desenrolado durante asCalendas, cerimônias quetinham lugar no mês defevereiro. Por ocasião dosbanquetes, os melhoresguerreiros mongóis pediamao khan, como recompensapor seus últimos feitosheroicos, um ou muitossenhorios, e os pedidos eram

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satisfeitos. Mas Kublai tinhavarrido com um gesto opedido de Jiruki,acompanhando com suarecusa um olhar em que seconjugavam um desprezoáspero e uma raiva de mauaugúrio. Como o imperadornão era homem quejustificasse suas decisões,Jiruki não ficou sabendo dacausa desse desprezo.

Quem caía em desgraça namaior parte das vezes eraexecutado. Dessa vez,

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entretanto, não houveexecução. Jiruki, bem depoisdas Calendas, continuavaesperando sempre queviessem prendê-lo, masparecia que tinham esquecidode sua existência. Julgavapreferível que lhe cortassem acabeça do que sofrer essamarginalização. Diante detanta espera, caiu nodesespero. Ver o pai roídoassim de dor alterousingularmente o caráter deJebe, que se tornou

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desconfiado, pensativo eexcessivamente racional. Nofundo, cometia um sacrilégio:julgava o imperador.

Em outubro, Jiruki tomouuma estranha decisão, quemais tarde seria fatal para seufilho: sozinho, fugiu certamanhã rumo a Karakorum, aantiga capital de GêngisKhan. Sua vontade era atingiro Norte, chegar à orla de umafloresta milenar onde seusavós tinham sido enterrados,longe de um chefe tão

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ingrato. Antes de partir, faloua Jebe da nostalgia de umtempo em que todas as leis deGêngis Khan eramrespeitadas. Também sepermitiu julgar Kublai,desolado pelo fato de que umimperador mongol pudessetornar-se tãodesmedidamente achinesado,a ponto de negligenciar oscostumes de seu povo. Se nãose atentasse para isso, esseescândalo seria o fim de ummundo. De caso pensado,

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esse pai semeou no espíritodo filho os germes da revolta,porque tinha visto em sonhoque Jebe uniria na China oexército que derrubaria umkhan que traíra o espírito deseus ancestrais. Desde suahumilhação, Jiruki não tinhamais forças para combater, sópensava em morrer. Comotinha decidido, fugiu dePequim nos primeiros friosde novembro. Seudesaparecimento repentino,pensava com lógica,

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provocaria logo no espírito dofilho a suposição de queKublai fosse responsável porisso. Jebe, então, não hesitouem vingar o pai.

Para espanto de todos, asoldadesca imperial nãoprendeu Jebe em sua casapara fazê-lo confessar sobtortura as maquinações dofugitivo e o lugar em que seescondia.

Estranhamente, ele podiaandar por Pequim comoquisesse. Mas, certa manhã,

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teve a surpresa de ser servidopor criados e camareiras quenão conhecia. A discriçãodeles, suas gentilezas, seuestilo perfeito lembravamsem medo de errar osservidores de Kublai.Começava o isolamento. Quefoi total quando a parentela eos companheiros de bebidasrecusaram por intermédio dacriadagem os convites deJebe. As risadas, asmanifestações ruidosas, asdanças passaram a ser coisa

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do passado.Essa proscrição

reaproximou Jebe de suamulher, Sogotai. Se o amorque não fazia muito tempotivera por ela não ressuscitou,pelo menos o homemretomou o prazer de se estirarperto dela, de acariciá-la, depossuí-la.

Mas essa mulher doce,humilde, fervorosa e sujeita avisões definhava. Uma desuas visões lhe revelara queJiruki estava indo para

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Karakorum. Sentiu entãourgência de comunicar issoao marido. Ignoro se alguémo persegue, disse ela, aoexplicitar as coisas. Porprudência, o casal não falavamais em Jiruki diante dacriadagem.

Mas, ao fim do dia, umavez retirados a seu quarto,Sogotai, à luz de uma tocha,espalhava gravetos pelo chão.Designando cada umdaqueles pedaços de madeira,ela dizia: eis o deserto, eis a

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estepe, eis o cansaço, eis omedo, eis a esperança. Depoistinha sua visão. Ele está vivo,ele está sozinho, ele seaproxima das terras sagradas,murmurava ela. Uma noite,ela acrescentou: eis a cidade eeis o fim do roteiro.Alegremo-nos, ele atingiu seuobjetivo, ele está alegre.

Essa noite, depois doamor, Jebe prometeu àmulher que faria dela a novaimperatriz dos mongóis.

Sogotai tinha frequentado

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muito os xamãs até seucasamento, e seu pai era umfamoso contador de histórias.Porque Jebe dividia a maiorparte do seu tempo entre acorte, os rega-bofes e asmissões militares, raramenteela tinha tido nos últimosanos oportunidade detransmitir-lhe seu saber. Masagora que Kublai não osolicitava mais, e que amigose parentes tinhamabandonado sua casa, elafalava ao marido de Tengri, o

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deus dos deuses, docasamento de um lobo azul ede uma corça, dos ancestraisde seu povo, e das conquistasde Gêngis Khan. Eleadormecia maravilhado,sonhando ser o guerreiro quepossuiria cem mil cabeças degado e trezentos mil cavalos.Queria ser o dono do mundo.

Às vezes, ao despertar,Jebe tinha na memória orosto de um armênio quetinha se apresentado ao khancomo enviado do papa e do

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rei da Cilícia. Foi na últimavez que Jebe tinha entrado nopalácio imperial, algumassemanas antes dodesaparecimento de Jiruki.Naquele mesmo dia, ouviraos mercadores dizerem que oarmênio era um mágico, tinhatransformado uma caravanaem serpente de fogo, tinhaatravessado o Pamir semsentir frio, e o Sinkiang semsofrer os tormentos da sede eda fome.

Jebe tinha vontade de

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rever esse homem, cujospoderes talvez pudesseutilizar a fim de reduzir anada o reinado de Kublai.

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Capítulo 35

O bairro onde moravam osestrangeiros ficava numsubúrbio de Pequim. Certamanhã, Jebe dirigiu-se a essebairro. Desde cedo, Sogotaiobservara com tristeza omarido se vestir comopríncipe e se enfeitar como sefosse à corte. Ela sabia queum rosto tinha se tornadouma obsessão para ele e queele partia à procura de umhomem que o afastaria dela

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para sempre, porque osgravetos a tinham advertidode que Jebe encontrarianaquele dia um monge vindodo Ocidente que ele amaria.Tengri é que tinha dado a elaa faculdade de dialogar comas folhagens e com osanimais e lhe tinha dado opoder de penetrar nossegredos dos seres e dascoisas. Uma vez sozinha, elapreparou uma infusão dediversas plantas que, bebida àmesma hora durante

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quarenta dias, garantiriamorte certa. Ao primeiro goledessa beberagem escura, naqual tinham sido maceradasminúsculas folhas púrpuras,suas maçãs do rosto secobriram de um vermelho-escuro, quase cor de vinho, eseu corpo tremeu. Sogotaidobrava-se sobre si mesmacomo que lutando contra umvento forte. Um fogo lhedescia pela garganta. E,quando o fogo se extinguiu,lágrimas quentes queimavam

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suas pálpebras.Depois, pacificada,

Sogotai sonhou com seus trêsfilhos natimortos, com odever que Jebe tinha deproduzir filhos em suapassagem pela terra que seriaefêmera, e no amor que lhedava densidade. Sogotai jáesperava com impaciência seuencontro diário com umdefumador no qual boiavamalgumas minúsculas folhaspúrpuras.

Jebe acabava de passar

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por uma das doze portas dePequim. E odiava naquelemomento essa cidade quetinha percorrido tantas vezescom prazer. Sob a influênciade Kublai, Pequim tinha setornado o símbolo dosmongóis errantes e, por viade consequência, dasconquistas. Não havianecessidade de verificar nada,bastava ver aquelesguerreiros outrorapercorrendo montes e valesque agora, em sua maior

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parte, preferiam a vida dacorte às cavalgadas. Odesfibramento era geral. Masgraças a ele, Jebe, esse tempose acabaria. Ele daria de novoa todos o prazer dacarnificina e dos braseiros. Avida seria de novo áspera eexaltada. Se tivesse umatocha, naquele mesmomomento ele poria fogonaquelas casas, naquelesentrepostos, na cidadeinteira.

Antes de descobrir o

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caravançará que abrigava oarmênio, ele errou durantemuito tempo pelos subúrbiosde Pequim. Sem se fazeranunciar, entrou no quarto deVartan e o achou deitado, oslábios maquiados, ostijolinhos de ourodescansando sobre o peitonu. Dormindo. Jebepermaneceu à cabeceira dacama sem dizer uma palavrae sem fazer um gesto. Aquelejovem que dormia e cujaimagem o vinha perturbando

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parecia-se com um daquelesrapazes, filhos de príncipesvencidos, que Kublaiagregava por vezes a seuséquito, promovendo algumdeles por breve tempo àcondição de favorito. Jebe nãocondenava essa prática. Já seimaginava mesmo imperadoracompanhado em todas assuas campanhas por essehomem que, além de ser seupreferido, atemorizaria osinimigos por seus sortilégios.Deu um passo a mais e tocou

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ligeiramente o ombro nu.Esse simples toque foi

suficiente para acordar Vartanque não pareceu surpresoalém do normal pela presençadaquele desconhecido. Masaquele homem, em vez deacariciá-lo, pôs-se a falar.Como ele não compreendessepatavina de seu discurso,chamou um criado para quefosse buscar um intérprete.Jebe não esperou a chegadado tradutor.

Num impulso de

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confiança, expôs suasambições e entregou seussonhos. Quando o intérprete,afinal, chegou, Jebe o utilizoupara declarar que estaria alimesmo dentro de nove dias eque então se calaria paraouvir da boca de Vartan anarrativa de suas aventuras.Em seguida, despediu-se.

Na véspera de suasegunda visita, Jebe foiconvocado por Kublai.Sogotai consultou os astros edeclarou que a mentira

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presidiria ao encontro.Na sala em que de

ordinário o imperadordiscutia, parlamentava comseus generais e osembaixadores de todas asrealezas do mundo, Kublaiestava só com Jebe e oinformou da morte de Jiruki.Há estradas fatais para ostraidores, disse. Uma tropaque ele tinha enviado naspegadas do fugitivo—porqual outro nome designar talhomem? - tinha alcançado

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Jiruki às portas da cidade deEjinaki. Entorpecido pelocansaço, ele não opôsnenhuma resistência aossoldados. Esse imbecil—estáaí, ainda, um termo que odefine perfeitamente -,extraviado no vento e no frio,foi decapitado logo ao sercapturado. Não tevesepultura. Seus ossosembranqueceram como os docamelo, do iaque, do jumentoselvagem. Kublai aumentou otom: Seu pai fazia intrigas na

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corte, bem o sei. E você,seguirá o exemplo desse fracoe desse patife?

Você se cala? Muito bem.Se você me afronta, saiba queeu o atingirei na hora certa eque seu processo terá granderepercussão. Sim, vou quebrá-lo, filho de Jiruki.

Como que esgotado porsua cólera e suas ameaças, okhan se curvou bruscamenteno trono. E foi com um gestosem apelação que ele ordenoua um Jebe impassível que se

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retirasse.Nas ruas de Pequim, Jebe

falava em voz baixa a uminterlocutor invisível, seu pai.Só o admitia vivo. Nada nemninguém poderia persuadi-loda morte do pai, muitomenos o imperador. Afinal,Sogotai tinha afirmado: Jirukitinha chegado a Karakorum.Teria ela por uma segundavez interpretado mal seussonhos premonitórios, suasvisões? Não, isso nunca.Tinha fé nela, em seus dons,

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em sua integridade. Enquantoele fazia esses elogios, entreas coxas de sua mulher,úmida de febre eamarelecida, escorria umlíquido escuro com cheiro defeno apodrecido. Suas carnesse dissolviam e sua pele iaficando tão transparente queera possível ver as batidas deseu coração dispararem. Dir-se-ia que se tratava de umaestátua jacente de vidro.Sogotai se afundava numanoite interior inefável.

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Agonizava, mas não sofria.Morreu, afinal, e foi nesseinstante que Jebe teve aimpressão de ser pisoteadopor um cavalo louco.

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Capítulo 36

A morte de Sogotai privouJebe dos conselhos em queela era pródiga, sem limites, eque temperavam suasrevoltas, seus furores, suanecessidade de vingança,todos os ardores de um jovempouco inclinado aocomedimento e à paciência.Agora, entregue a si mesmo,arriscava-se a cometerimprudências, a agir semdiscernimento, a provocar

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estupidamente Kublai e aatrair os raios do imperador.Mas felizmente havia Vartan,a cuja companhia ele voltavatodos os dias e que, por suasuavidade, sua fantasia, suasgraças de mulher, omantinham distraído quantoà queda do império e ànecessidade de conter essaqueda.

Os dois amigosensinavam-se um ao outroseus idiomas, aprendiam ovocabulário dos mercadores,

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dos pastores, dos guerreiros edos amantes. Jebe tinhaalegria em descrever emarmênio as ervas e os cavalos,os verdes dos penhascossuaves e o negro das árvoresmuito espalhadas. Jurou fazerde Vartan um guerreiro.Quanto a Vartan, paraagradar-lhe, aceitou iniciar-seem arco-e-flecha e emaprender a arte de cortarcabeças e reduzir cidades acinzas. Mas logo deplorou aspromessas de Jebe: a guerra

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repugnava-lhe, a violência oaterrorizava. Os dois nãoeram da mesma espécie.Recusando-se a transformar-se em soldado, Vartan só iriadecepcionar Jebe. Que seria,então, daquele amor? De quemundo desconhecido falavaentão Montefoschi em seumanuscrito? E para quedestino Jebe o arrastava?Vartan ia adiando a ideia deter de dar respostas e preferiamanter oculto o futuro.Afinal, não era suficiente

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gozar o presente?A intimidade de ambos

sofreu uma interrupção dealgumas semanas quandoKublai convidou Vartan avisitar a cidade de Hangzu.Assim, argumentou oimperador, de volta à Cilícia ominiaturista poderia contar aseu rei as maravilhas queoferecia ao olhar a mais belacidade do reino, O soberanotambém insistia para que nãodesprezasse as observaçõesque lhe sugerissem o estado

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do comércio fluvial emarítimo, a organização doabastecimento, as leis queregulavam a vida cotidiana nopaís. O olhar de umestrangeiro era importantepara o imperador, porquepermitia a comparação entreduas concepções do mundo, oque pode ser fonte deenriquecimento.

Desde o dia seguinte desua chegada a Hangzu, umoficial, e assim seria a cadadia, levou-o a ver o porto,

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depois o levou aos mercados,finalmente ao antro doscomerciantes mais ricos.Vartan registravamentalmente mil detalhes,mil esquisitices, mil tesourosexpostos e, à noite, gravava-ospor escrito num rolo de seda.Mas ele não era Montefoschi.Na ausência de observaçõesjudiciosas e pertinentes, nãose podia tirar de suas notas amenor reflexão, a menorconclusão. Vartan achavagraça no fato de que lhe eram

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indiferentes os esplendoresde Hangzu. Na verdade, seuespírito vagabundava sempreno sentido de Pequim, nosentido de Jebe.

Vartan ficou lá por doismeses. No dia de sua partida,uma apreensão o assaltou: ese Kublai tivesse aproveitadosua ausência para executarseu amigo? Assim quemontou em seu cavalo, já seapagavam de sua memória ascem mil atrações da cidadedos Song, suas doze mil

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pontes, seus canais e suasincontáveis embarcações,seus embarcadouros onde serefestelavam as cortesãs, asruínas negras de seu palácioimperial outrora devastadopor um incêndio, seusjardins, suas praças e suasavenidas, seus artesãos enegociantes que vendiam alebre e o gamo, a perdiz e ofrancolim, o galo capão e oganso, peixes amarelos epeixes brancos, especiarias epérolas. Só pensava em Jebe.

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Em Pequim, o Amigo oesperava. Mas enquantoVartan esteve percorrendo osembarcadouros e desfiandopela ponta de sua pena asriquezas de Hangzu, Jebe secasara com Torregena.

Não escondeu do amigoesse segundo casamento esoube prevenir qualquerciúme afirmando-lhe quetinha tomado mulherunicamente para assegurarsua descendência. Porque omongol que não produz

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filhos é pouco considerado.Que dizer, então, de umimperador, uma vez que ele oseria!

Torregena tinha quinzeanos. Era gorda, tagarela emá. Vaidosa de sua beleza,andava pelas ruas a fim deque a observassem. Se bemque sensual e nascida paraser cobiçada, punha afidelidade acima de todas asoutras virtudes. Talvezamasse Jebe tanto quantoSogotai o tinha amado.

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No círculo de suas amigas,dizia ter por marido o homemque mais podia deixar umamulher satisfeita na terra.Entretanto tudo a desmentia:ele repetia suas ausênciassem explicação, tratava-agrosseiramente se acaso elaas criticasse ou se obstinavaem um silêncio que amortificava. Torregena dizia asi mesma que o homem eramais misterioso que a noitemais densa. Odiando osenigmas por natureza,

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tentava compreender por queo marido não se importavacom ela. Pediu um dia a seuirmão Djamuka, que elaadorava, que a ajudasse adesvendar o segredo daquelasausências. Djamuka dissevagamente que a ajudaria eela se irritou com o que sentiaser má vontade dele paraajudá-la. Mas, diante dassúplicas reiteradas da irmã,acabou por ceder e consentiuem fazer o papel de espião. Oque não concretizou, porque

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Jebe e ele eram amigos,tinham respeito um pelooutro. E, também, ele viraVartan ligeiramente e numinstante pôde medir o poderdaquela ligação. Acomparação entre sua irmã eo armênio não favorecia a ela,pensou o rapaz. Pode-sepreferir a rã ao pavão? Naverdade, desde sempreDjamuka desprezavaTorregena, que julgava tola. Ea idiota nem se dava contados sentimentos dele.

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Djamuka mentiu para ela:Jebe, garantiu, tecia intrigasjunto de alguns cortesõespara voltar a ser um convivada corte. Como ela gostava doirmão, não duvidou de suapalavra.

Dez meses depois de seucasamento, numa noite deabril, Torregena teve um filhoao qual deu o nome deBoroque. Naquela noite, Jebeconfiou a Djamuka suavontade de levantar umexército que restabelecesse o

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conjunto das antigas leis etradições mongóis edepusesse Kublai, oimperador escandalosamenteachinesado. Djamukaaprovou aquele desejo deuma volta sem compromissoao passado e se propôs aassumir o lugar decomandante das tropas.

No dia seguinte aonascimento da criança, Jebe,sem ter se envolvido emintrigas e sem ter pedidonada, caiu de novo nas graças

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de Kublai. O khan ofereceu-lhe uma bacia engastada derubis e esmeraldas que Jebeaceitou sem entretanto deixarde lado a desconfiança. Aidade, pensou ele, torna aastúcia maior.

Em maio, Kublaiempreendeu a tradicionalviagem para Chang-tu. Suacavalaria o escoltou dePequim ao palácio de verão.Empoleirado sobre um carrode duas rodas puxado porquatro elefantes, o olhar fixo

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no horizonte, ele seguia,indiferente às aldeias, a todosos fogos acesos nas portas emsua homenagem. Era suaúltima viagem aos vinhedos eaos jardins de Chang-tu,àqueles céus de um azulintenso, ao belo verão quepintava de ouro os telhados,as paredes e as gaiolas emque eram mantidas águias,gerifaltes e falcões: o velhoimperador o sabia. Comoprova, ele perdia o gostopelas mulheres e pelos

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rapazes e, o mais grave,combater, destruir, matar ocansava. E depois seu corpo jáo traía: sua visão fraquejava,seus membros tremiam, seucoração disparava a todoinstante. Não poucas vezesele dormia em vez de ouvir osrelatórios de seus ministros,também na hora de fazerjustiça, de se alegrar comuma vitória. E, pior: choravasem motivo diante de seusembaixadores, de seussoldados, de seus filhos. Um

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dia, tinha ouvido um de seuscomandantes comentarindignado que algumas vezeso vira esquecer quem era.Sim, aquela era certamente aúltima viagem que fazia.Esposas, concubinas,gerações nascidas do sêmenimperial, magos e mongesformavam seu cortejo. Jebeestava lá, Torregena a seulado, o filho nos braços.

Até Chang-tu ela foiresmungona, sombria,querendo discussão por um

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sim ou por um não,ruminando pensamentosamargos. É que pouco antesda partida ela tinha sabido,por indiscrição de um de seusprimos, simultaneamentesobre os amores de Jebe e amentira de Djamuka.Compreendia, afinal, a friezade um e as evasivas do outro.

E esse primo caridosotinha se deliciado contando-lhe as opiniões que o maridotinha sobre ela. Sem miolo,presunçosa,

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monstruosamente ciumenta,ambiciosa sem ter condiçõespara isso, eis o que ele dizia.Não era tudo: ele lhereservava um futuropraticamente inviável.Quando ela tivesse muitosfilhos—é preciso serprevidente, não? -, ele arepudiaria ou a relegaria aum papel subalterno, porquequeria que a terra inteirareconhecesse como seufavorito, seu esposo, seumelhor amigo aquele armênio

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devasso, aquele mongeprostituído, aquele intrigantede primeira água. Ela nãopermitiria que as coisasfossem assim. Nunca. Ela,Torregena, ia mostrar a elecom quantos paus se faz umacanoa. Como Jebe, comoDjamuka, ela amava as armase o poder. Ódio, disposiçãopara a vingança, crueldade:ela saberia se defender,abater quem sonhava abatê-la.

Foi um belo verão. Mas

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Kublai ignorou-lhe oesplendor. Estava obcecadocom a morte próxima e com aescolha de um sucessor. Àcompanhia de seusguerreiros, preferia a dosmagos e dos astrólogos.Através da indecisão dasprevisões deles, Kublaipercebia que a noite vinha aoseu encontro. Então, fechava-se em seus apartamentos erezava a Tengri, pedindo-lheque lhe desse tempo parapreparar o futuro de seu

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império.No fim de agosto, Kublai e

a corte retomaram o caminhode Pequim.

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Capítulo 37

Jebe e Djamuka tiveramum outono de grandeatividade. Organizavamreuniões secretas durante asquais exortavam osdescontentes com o regime àrevolta. Alguns príncipestinham aderido a eles,conquistados pela ideia deque era necessário manter asleis mongóis em suatotalidade. Conspirar,amaldiçoar, arquitetar planos

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—isso é que lhes ocupava osespíritos, dava umsentimento de importância àjuventude, tornava os velhosmais moços.

Foi uma época estranha.Parecia que Pequim em pesoera uma cidade de espiões.As suspeitas doentias dokhan face a face com os seussúditos começavam aabrandar-se.

Mas talvez se tratasseapenas de uma ilusão. Comoquer que fosse, assim é que

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viam as coisas.A saúde de Kublai se

deteriorou nos primeiros diasde dezembro. Coreanasfamosas por suas magiasforam chamadas paraexorcizá-lo. A lenda atribuía aessas mulheres mágicas odom dos milagres. MasKublai iria arruinar-lhes areputação. Os ruidososesconjuros delas foramimpotentes para reanimarlheas forças. Dele só restava oriso que se sobrepunha aos

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gritos das mulheres, um risoque abalava as quatro paredesde seu quarto e cujo eco aindaretinia das colunas ao tetobem depois de as coreanasterem chegado de volta a suapátria.

Kublai morreu emfevereiro do ano de milduzentos e noventa e quatro.O anúncio de sua morte foiaterrador para Jebe. Essamorte o privava de degolarcom as próprias mãos umsoberano desprezado de ser o

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salvador do império. E logo ospríncipes que se diziam seualiado viravam casaca. Seusexcessos de linguagem, suaambição desmesurada, seufraco sentido da realidade ostinham chocado, os tinhamlevado a desconfiar de umrapaz que pouco a poucojulgaram ser uma cabeçadestrambelhada, umsonhador, até mesmo umlouco. A escolha de TemirOldjaitu uniu a todos comoum único homem em torno

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do novo imperador, porquehá tempos era louvada suatemperança, a austeridade deseus costumes, sua fidelidadeàs leis gêngiskhanianas. MasJebe negava tudo isso. Aceitá-lo seria renunciar a seudesejo de reinar um dia sobreo maior império do mundo.Recusando-se a se dar porvencido, dava um lustre acada manhã em suas ilusõescomo se lustram armas econseguiu convencerDjamuka e alguns outros de

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que o combate tinha decontinuar, mas não emPequim. O melhor seria serefugiar por algum tempo noNorte, em Karakorum, láonde certamente Jiruki osesperava, lá onde sem dúvidaele vinha reunindo as tribosainda não atingidas pelocanto da sereia dochinesismo, e lá afinal seriaconstituído um exército quefaria Temir ficar pálido demedo.

Três meses depois do

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início do reinado do novokhan, Jebe e sua pequenatropa deixavam Pequim rumoà Mongólia.

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Capítulo 38

Dezoito homens emulheres se lançaram entãoestrada afora na certeza de terum dia ou outro as rédeas deum império. Mas se aaventura começou comexaltação, prosseguia nosofrimento. Porque chegar àterra dos ancestrais não écoisa fácil. Há planícies áridasa atravessar e gargantas atranspor, há o deserto deGobi e rios caudalosos que é

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preciso enfrentar, há a fome ea sede que matam em cadaum toda esperança, há asguarnições imperiais acontornar—o que os obriga aencompridar o caminho -háos cavalos que só a custoconcordavam em avançar,carregando o peso dostesouros que levavam, há ovento que queima como ofogo e a chuva que pareceentrar dentro da gente, asnoites insones porquecirculam em volta do

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acampamento animaisestranhos, monstros, osdeuses errantes de povoaçõesoutrora dizimadas, há diasem que o silêncio é tal que dámedo, há a angústia, o medode morrer, a sensação de nãovaler mais do que umraminho de galho de árvore,há gritos dadosgratuitamente e há aquelesinstantes em que se diz que aloucura nos dominoucompletamente. Mas tambémhá Vartan que os convence a

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continuar, continuar ainda esempre, porque nada é piordo que o Pamir — do qualentretanto se pode sair vivo.Há Djamuka que dá oexemplo: avançaimperturbável, como queimune à angústia. Masprincipalmente há Jebe, queconta a história donascimento de Gêngis Khan,da miséria que por muitotempo foi fiel companheiradele, de sua certeza de serlogo o rei do mundo, sua luta

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contra a incredulidade, abaixeza, a covardia, sua fé emseu destino, suas primeirasvitórias, suas amizades e seusamores, sua fulguranteascensão, o estabelecimento,enfim, de seu império. EntãoJebe, transfigurado por suanarrativa, aparecia como umsobrevivente e o continuadordaquele tempo heroico. Eretomava-se a coragem, elevantava-se a cabeça, e seseguia aquele príncipe que osguiava para a glória.

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A primavera estava emseus últimos dias quando seavistou Karakorum. Parachegar até lá, bastava passar avau o rio que banhava osmuros da cidade. Mas Jebehesitava, logo ele que tinhasonhado tanto com isso, coma entrada em Karakorum.Construções de pedra ebrancas tendas de tecido de lãdos nômades erguidas aqui eali, Jebe sentiu no ar umaameaça. A visão da antigacapital teve nele o efeito do

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reconhecimento de umacilada armada ele não sabiapor quem. Tornou então adecisão de contornar a cidadee continuar no sentido leste,tanto mais que Djamuka otinha convencido de que umhomem chamado Buri oesperava não longe dali e queesse homem era seu aliado.Chefiando um pequenoexército, sonhava, esse Buritambém, restaurar o passado.A caravana se afastou entãoda antiga capital dos

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mongóis. Tratava-se apenasde um adiamento, era aexplicação que Jebe tentavadar para que não se perdessea tranquilidade.

A tropa estacionou noflanco de uma colina.Naquela noite Jebe nãodormiu. Acocorado perto deuma fogueira, braçoscruzados, preocupado, eleolhava fixamente para aschamas. Por que essaapreensão às portas deKarakorum? Por que aquele

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confuso sentimento dederrota? Por que de repenteaquele medo surdo? E quemera verdadeiramente Buri?Um amigo ou um vassalo dokhan? Será que se caminhavamesmo para uma nova era ouse estava indo na direção dadesolação e da morte? Comoresponder a essas perguntas?Subitamente levantou-se umaventania. Soprou sobre aplanície, tomou de assalto acolina, inquietou os animais,acordou os homens

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maldormidos, pareciamachado, relha de arado,foice. Sob aquela onda, aschamas baixaram, depois seergueram assobiando. Eramcomo uma grande flor que sedilacerava. Sobre aquelebruxulear, Jebe viu umacavalgada de imagens, umadestruindo a outra,espalhando-se por toda aMongólia nas asas dos ventos.Viu bordas de cavalos,rebanhos de carneiros,florestas, lagos. E não foi

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tudo. Viu homens se batendo,escudo contra escudo,ferimentos, sangue,estandartes negros que sedespregavam e sabres que oluar branqueava. Também seviu sentando-se sobre o tronodo khan dos khans. Por queentão a apreensão e o medo?O fato é que ele não seresolvia a voltar no sentido deKarakorum. Alguma coisa lhedizia que isso seria jogarpedras contra o destino,correr no rumo da perdição. E

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Buri? Dever-se-ia acreditarem Djamuka quando ele diziaque esse chefe de tribo eraum homem leal? A intuiçãode Djamuka raramentefalhava. Jebe tinha provadoisso por cem vezes. Muitobem, estava decidido.Decidido a ir ao encontro dodesconhecido.

Pela aurora, o vento seaplacou, o fogo acabou de seconsumir. Jebe se voltou paraTorregena. Que loucura tê-lalevado consigo! Ela o odiava,

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seu olhar era evidente quantoa isso. Outra coisa queDjamuka garantira, por tê-laouvido em Pequim, quandodos preparativos para apartida, é que ela tentariasemear a dúvida entreaqueles companheiros.Dissera ela que se seguissemJebe estariam caminhandopara a catástrofe. Mas oshomens não a ouviram,porque é perfeitamentesabido que as mulheres pornatureza têm a língua

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pérfida. Torregena tinhaentão engolido seu despeito.Que tentaria ela de novo?Impossível prever.

Boroque tem febre, disseela. É o vento, respondeuJebe. Boroque tem febre,repetiu ela. E não é por causado vento, mas por causadesse estrangeiro cujapresença você nos impôs. Eletrabalha contra nós, eu osinto. É o vento, repetiu Jebe.Somente o vento, O vento seacalma, a febre vai

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desaparecer, e Boroque umdia me sucederá.

Mas a febre aumentou portodo o dia. À noite, o meninoteve um espasmo e morreu.Torregena se fechou nosilêncio dos seres ausentesem si mesmos. Nemlágrimas, nem gritos, nemlamentações. Muda comopedra, deixou o marido tirar-lhe o filho para ir enterrá-lo,com a ajuda de Vartan.Assim, não muito longe deKarakorum, era possível ver

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um minúsculo monte de terrarevolvida de fresco: seria oúnico traço da passagemdaquele menino pelo mundo.Djamuka teve um impulso deternura: acariciou os cabelosda irmã. Não me toque,murmurou ela. O rapazrecuou, como queaterrorizado por aquela voztrêmula, animalizada, ferida.E quando Jebe voltou parajunto de sua tropa, reunidaem volta de Torregena, elateve um pequeno riso seco.

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Nem filhos, nem império,mais nada, disse ela entredentes. Os homens seentreolharam. Aquela mulherdizia a verdade, talvez. Maistarde, à noite, elesconversaram em voz baixa.Tengri abandonava Jebe. Masos deuses não explicam nuncaa razão de sua cólera, de suasmaldições, de seuressentimento. Apenas agem.E eis que morre bruscamenteo filho de um príncipe. Apequena tropa renegava Jebe,

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sem confessá-lo aindaabertamente.

Sonhava-se com Buri. Essechefe de tribo possuíagrandes rebanhos, armas emquantidade, concubinas,principalmente filhos. Nasmensagens que fazia chegar aDjamuka, falava da extensãode suas riquezas. Não seriaisso, de modo completo, umadesignação de que ele deveriaser o futuro dono da estepe,da China, de um reinointeiro?

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E não era esse osignificado muito claro daação de Tengri ao privar Jebedo herdeiro?

O comportamento de Jebenaquela noite escandalizouseus guerreiros. A impressãoque ele dava era de quererignorar a dor da mulher e deque ele mesmo não sentianenhum sofrimento.Afastando-se, ele se serviu deseu favorito como se nenhumluto o tivesse atingido.Tinham-no ouvido até mesmo

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a rir, aquele riso que explodenas festas.

Pela manhã, escandalizou-os de novo—e dessa vez foimuito pior. Como não tinhamtido a possibilidade de sereabastecer em Karakorum,os víveres começavam aescassear.

Jebe anunciou que serianecessário caçar. As leis deGêngis Khan proibiam a caçanaquela estação, protestou-se,porque da primavera aooutono é preciso deixar os

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animais procriar em paz. Évocê que transgride as leis,você que sempre quisrespeitá-las? É você que ousaagir assim?—gritou Djamuka.Vamos caçar, teimou o outro.

Vartan, por sua vez, tentouchamá-lo à razão, mas nãoconseguiu mais do queexasperá-lo. Pior ainda,Vartan censurou-lhe comdesprezo por tê-lo traído.Caçarei sozinho então,decidiu Jebe, mas quando sepreparou para montar em seu

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cavalo, um de seus guerreiros,Eldjigidai, impediu-o de fazê-lo. Não, você não irá. Diantedos outros que avançavampara ele, hostis, a mão nosabre, Jebe afinal cedeu. Nãome esquecerei disso, gritou.Vocês vão me pagar por issoamanhã ou em dez anos.

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Capítulo 39 Djamuka avistou os três

lagos que se sucediam emlinha reta no sentido leste.Anunciavam, como tinhaensinado um mensageiro emPequim, que o acampamentode Buri estava próximo.Ultrapassados os lagos,lanças compridas com cristasde penas e fincadas no chãobalizavam o caminho quelevava ao acampamento.

A última lança estava

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plantada no pico de uma dascinco colinas fechando aplanície em que Jebe deviaencontrar aquele que, era dese supor, o esperava. Massobre toda a extensão de relvaerguia-se não mais do queuma cabana de pele, uma só,branca. Em volta, nem umúnico cavalo amarrado, nemuma única silhueta dehomem, de mulher ou decriança. O silêncio lembravaaquele que envolviaKarakorum. Era o silêncio que

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precede a sentença, que pesasobre os exércitos exatamenteantes da entrada em combate,que cerca os deuses.

Jebe esquadrinhava apaisagem, e principalmenteaquela tenda de pano de lãcomo que esquecida naplanície, enigmática emínima. A tropa secomprimiu atrás dele, porquede novo ele impressionava,imóvel, altivo, imperial. Nãoera mais aos olhos doscompanheiros o insensato e o

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sacrílego que tinha sido nodia da morte do filho.

Só ele, pensavam, saberiainterpretar a estranha calmado lugar. Emboscada oufarsa?—perguntou Jebe aDjamuka, que entretantopermaneceu mudo. Façamosmeia-volta, propôs Eldjigidai.Nunca, retorquiu Jebe. Você eHulegu vão patrulhar dooutro lado dessas colinas afim de verificar se não háconcentração de guerreiros.Enquanto os dois cavaleiros

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se afastavam, ele voltou suaatenção sobre a planície,como que fascinado, como sepercebesse o invisível.Quando os dois homensvoltaram foi para declarar quenada tinham observado desuspeito. Nenhuma almaviva, nem sequer uma lebre,nem um jumento selvagem.Então, farsa?—ironizou Jebe.E, sem esperar resposta,desceu a colina e se dirigiu àtenda.

Abriu a porteira, Vartan e

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Djamuka atrás de si. Omobiliário completo da tendanão passava de um tapetecuidadosamente enrolado, doqual subia um cheiro decarniça.

Com grandes gestosbruscos, Jebe desenrolou otapete, do qual saiu o cadáverde Jiruki. Teve um grito quelembrou o do soldadomortalmente ferido por umaflecha, curvou-se sobre odespojo e afinal se retirou aosgemidos. Soube de repente o

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que significava ver aescuridão em pleno dia,provou o que era uma dorfulgurante e compreendeuque ela não o deixaria jamais.Depois, prometeu que Buripassaria pela ponta de seupunhal, por que esse crimenão poderia ser de nenhumoutro, e consagrou ao fogotodos os impérios do mundo.

Uma noite de vigília, deoração e de vento reuniutodos os homens e algumasmulheres da tropa em volta

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de um pequeno fogo.Nenhuma árvore paraalimentá-lo e o mato era raro.Jebe, em sua noite dedesespero, queria umbraseiro, fogueiras, oincêndio das planícies; queriaum fogo alto como uma torre;queria espalhar pela terrainteira o terror. Por issoretalhou a tenda ao nascer dodia e lançou às chamas osfarrapos de feltro. O fogo,então, como o sol, expulsouas trevas.

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O céu prenunciavatempestade e o céu era umdeus. Foi Djamuka que viuprimeiro uma fila decavaleiros desenhar-se sobretrês das seis colinas. Jebe selembrou dos conselhos dopai: se o inimigo osurpreender e se sua tropa forinferior à dele em número dehomens, a única solução paraevitar a derrota é erguer entreos dois adversários umabarreira de chamas. O que foiexecutado imediatamente.

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Mas Tengri não devia estar aolado de Jebe nesse dia: achuva começou a cair. Então,os cavaleiros que avançavam,Buri à frente, desceram ascolinas. Diante de tal exército,tudo que Jebe pôde fazer foiordenar a fuga.

As flechas voavam em tãogrande número que o céuescureceu. Um raio atingiualgumas árvores e semeou oterror tanto entre os fugitivoscomo entre os perseguidores.

Os gritos de guerra

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ficaram estrangulados nasgargantas. As flechasvoltaram a suas aljavas. Atempestade começava a seaplacar e fez-se silêncio. Jebeavançou sobre um exércitoque parecia ter virado estátuae sobre seu chefedesorientado. Parou seucavalo a vinte passos de Buri,e o mediu com um olhar defuror, orgulho e insolência.

Depois, fez meia-volta,misturou-se a seuscompanheiros e a tropa

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avançou por uma passagementre duas colinas.

Galoparam longamentesobre uma terra lamacenta.Atrás deles, mas a uma certadistância, o ruído de milcascos e de clamores que nãoparavam de aumentar. Assimfoi durante dias e dias.

Certa manhã, tudo secalou. Entretanto, aperseguição continuou dentrodeles. Mil cascos e outrosruídos povoavam seussonhos, flechas assobiavam,

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gritos retiniam.Acordavam em

sobressalto e em seus olhosse lia o medo. Jebe ironizavaaquelas reações, lastimava ofato de serem surdos, tratava-os com desprezo.Frequentemente, à noite,acordava-os só para aborrecê-los. Não estavam ouvindoecos repercutindo pelo chão?Hordas de cavalos seaproximando? Não ouviamBuri a vociferar? Não ouviamcantos guerreiros?

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Encarniçava-seprincipalmente contraDjamuka e Vartan.O primeiro se comportaracomo um idiota acreditandonos protestos de amizade deBuri, o segundo tinha tremidocomo uma mulher quando oscavaleiros invadiram aplanície.

Agora Djamuka falava emrenunciar àquela corridalouca, em voltar a Pequim, emproclamar-se arrependidodiante do khan, e Vartan

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negava ter prometidomanejar as armas, embriagar-se com cheiro de sangue. Éque o estrangeiro—e Jebetinha se esquecido disso—épor natureza perjuro, nãomerece confiança. Sim, aqueleinstante era de fuga, diziaJebe, mas logo eles estariamreunidos com aquelas coortesda Mongólia que esperavampor eles no Norte. Desdemuitos anos eles esperavam omestre supremo, esperavampor ele, Jebe, isso era certo.

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Aqueles homens tinhamestado em todos os seussonhos. E os sonhos de Jebenão mentem.

Tendo dito isso, deixouDjamuka e o monge e dirigiu-se a Torregena, censurando-apor ter sido insensível emrelação à morte de seu pai.Mas não se espantava comisso: era um hábito delaamaldiçoar os valorosos.Atraída pela baixeza, semdúvida ela teria preferidoBuri e suas manobras

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desonestas, seus filhos semhonra, seus comandantesdesavergonhados. Torregenanão reagiu a essas acusações.Parecia cansada, indiferente,quase inconsciente.

A tropa agora costeavaregiões de florestas.

Para poupar os cavalosesgotados, havia necessidadede paradas repetidas. E,depois, a fome atormentavaos homens. Enganavam-naempanturrando-se de bagas eraízes.

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Quando o tempo da caçavoltasse, e com ele suasforças, então, pensavam,fugiriam de Jebe,atravessariam de novo asplanícies e o deserto de Gobi,voltariam direto para a China.

Durante aquelas paradas,Vartan juntava bagas demurta e as oferecia aTorregena. Não ignorava queela o tinha como responsávelpela morte do filho, mas, aovê-la assim, rosto chupado,olhos fechados, corpo

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murcho, sentia algumapiedade por ela. Fazes pactocom a prostituta, amigo?—perguntava Jebe, pérfido.Uma vez, apalpou o tronco eos braços de Vartan econcluiu seu exame com umarisada humilhante e trágica.Mongezinho nascido para acidade, mongezinho que amaas mulheres sem vergonha,cantarolava ele. O armênionunca pôde se justificar paraJebe: ele sempre ointerrompia. Apesar de tudo,

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continuava a amar aquelehomem que o caluniava.

O leite inchou de repenteo seio das mulheres. Elasapertavam seu peitochoramingando. O leite corriatambém de cem pequenaschagas que se tinhamformado em seus corpos. Oleite secou, as chagas seenvenenaram, as mulheres seenfraqueceram, a mortefechou o ciclo. Seus maridosas velaram, deram-lhessepultura, depois

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mergulharam na floresta.Antes de partir, fizeramconfissão pública de culpa aTorregena, que o mal tinhapoupado: ela lembrou quelhes tinha chamado a atençãopara que se defendessem deseu marido, eles desprezaramesses avisos, e depois tudofora decepção, loucura,maldição.

Essa fuga dos maridos,nome dado àquele episódiodaí em diante, provocou adebandada dos outros.

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Nostálgico da terra chinesa,terra de seu nascimento,roído pelo remorso de terabandonado mulher, filhos econcubinas para seguir umlouco, Eldjigidai uma belamanhã foi-se embora. Suaausência, que era a ausênciade sua fraternal solicitude, desua vitalidade, deixou Tolun eDjelme arrasados. Ambostinham hesitado por muitosdias antes de se decidir atomar o caminho que leva aosrios maiores do que os mares,

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aos campos mais infinitos doque as planícies mongólicas, àcidade do khan. Depois, comGodan, o tímido, Sartaque, ometido, Ordá, o generosomontaram seus cavalos esumiram nas brumas daaurora.

Jebe não lhes lamentou aatitude. Aqueles ingratos,aqueles covardes, aquelespoltrões—não valia a penachorar por eles. Boa viagem eadeus.

Ferido pelos sarcasmos de

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Jebe, perdidas todas asesperanças de um futuroglorioso, Djamuka tambémquis fugir, mas antes queriaarrancar definitivamente airmã das garras daqueledemente. Iriam juntar-se àHorda de Ouro, ou alongínquos parentes quemoravam na Pérsia, porqueDjamuka não tinha ilusõesquanto à demência doimperador.

Uma noite, Jebe osurpreendeu carregando o

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cavalo da irmã com algumasroupas velhas e provisões—espigas, avelãs, bolotas,cebolas. Se você vai me deixar,será sem armas, semagasalhos de pele, sem nada.E sem Torregena. Por queseparar os esposos? Dizendoessas palavras, furoumaldosamente com sua facaos fardos cujos conteúdos seespalharam pelo chão. Comfúria, Djamukadesembainhou seu sabre. Osdois trocaram injúrias, depois

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cruzaram os ferros. Forçasiguais, os dois homens seenfrentaram por muito tempoà luz da única fogueira. Àsvezes se separavam. Depois, aescuridão os envolvia e só arespiração dos dois e oentrechoque das armasrevelava que ali sedesenrolava uma luta. Poucoantes de clarear o dia, o fogose apagou, um nevoeirocobriu o chão, as árvores eaqueles dois guerreiros quepareciam combater para a

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eternidade.Quando o dia, afinal,

amanheceu, um deles deu umgrito e caiu. Era Djamuka.Aparvalhado Jebe olhou porum tempo o corpo estendido,depois tomou vagamenteconsciência do bater doscascos dos cavalos, do ruídodo vento nas folhagens, dodespertar dos pássaros, dofrio, da luz.

Tudo estava como deviaestar: o mundo renascia dastrevas e a vitória pertencia

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àquele que tinha alma deimperador. Jebe sorriu. Estavapronto como nunca acontinuar a marcha nosentido do Norte, onde—seupai é que afirmava isso—assombras são fiéis, onde osmortos são multidão, onde sereina serenamente sobreexércitos silenciosos, onde atraição, o amor e o sofrimentonão prevalecem. Pai, então erapara esse país que gostariasde ser restituído?—murmurou ele. Foi nesse

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momento que ouviupassos.Vartan se aproximava.

Durante o combatesingular daquela noite, eletinha se esquecido doarmênio. Lá aonde iria nãohavia nenhuma necessidadede companheiro. Aonde sevai sozinho, era ainda Jirukique dizia. Antes que Vartanpudesse pronunciar umapalavra, Jebe ordenou-lhe,talvez tocado de ligeiraemoção, com suavidade, masfirmemente—aqui não havia

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talvez, havia uma evidência -,que pegasse as armas,agasalhos e víveres e odeixasse. Mas se tornoubrusco, assumiu um tom dedesprezo, cheio de raiva,quando o amigo suplicou-lheque não queria fazer nadadaquilo. Bateu-lhe mesmo norosto. Depois, como setentasse fugir de algumperigo, correu para seucavalo, montou-o e se afastounum galope largo.

Vartan lançou-se à sua

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perseguição, tentou juntar-sea ele e fracassou. Foi assimque se viu em meio a umapaisagem em que pedras altasse erguiam aqui e ali comoestrelas. Conheceu, então, asolidão absoluta, as lágrimasque nada parece esgotar, odesespero, em suma.Infinitamente cansado,estendeu-se ao pé de umdaqueles pilaresprovidenciais, retangulares,onde os antigos gravavaminscrições históricas.

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O frio de fim de tardeestranhamente o sossegou.Com um dedo, tocou de levea pedra como se toca a areiapara deixar sinais, sonhandopintar sobre um grande murobranco o convento de Sguevrae a caravana na partida de Sis,seu pai e Hetum, Montefoschie Hovsep, as gargantas doPamir e o deserto deSinkiang, a árvore na praça deGanzu e as planícies daMongólia, a morte deDjamuka e Torregena

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abandonando a floresta. Fezum esforço para se reerguer:precisava de um lugar calmo,um lugar onde pudesserealizar essa grande obra quereuniria numa única visão osreis e os aventureiros, ossábios e os loucos, os anjosdo céu, as criaturas da noite eos esplendores do universo;toda uma vida surgiria, a umtempo apoteose e evocaçãodo inferno. De repente, sentiuno coração a mesma dor quesentira um dia nos terraços

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de Erzincã. Vacilou, depoisdeslizou lentamente para ochão; fechou osolhos,balbuciou palavrassoltas - cálamo, mosteiro,amor; entrou em agonia emorreu.

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Capítulo 40 Depois de ter margeado

lagos, atravessado rios a vau,percorrido florestas, Jebechegara a uma estepe decapim raso, cortante, gelado.Qualquer outro teria hesitadoem entrar por aquelas terrassobre as quais o sol jamaisfurava um céu cor de limalha,onde o vento chicoteia semcessar o corpo do homem,onde as noites pareciamdurar sempre. Não Jebe, que

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não era mais desses homensque a escuridão aterroriza. Aocontrário, a visão daquelemundo hostil o exaltava,porque ele sabia que haviapenetrado na Província dasTrevas—assim a chamavaJiruki — e lá é que ele seriaafinal proclamado imperador.E mesmo quando o cavalo quemontava caiu com ele emcima, não renunciou.

Nada mais diminuía suamarcha de furioso, nem afome, nem a sede, nem o frio:

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ele se tornara indiferente aesses males. Entretanto, umanoite, faltaram-lhe as forças.

Jebe caiu sobre a terra elogo perdeu a consciência.Quando despertou, estava nacabana de um homem datribo dos Corvos, uma dasque povoavam a Província dasTrevas.

Sem dizer uma palavra, ohomem deu-lhe de beber,alimentou-o e o cobriu comagasalhos de pele, acendeuum fogo de turfa e o velou

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por toda a noite. Mas no diaseguinte todo o clã o obrigoua expulsar aquele estrangeiroem andrajos, pálido e deolhar enlouquecido, porquesua presença tinha estranhosefeitos sobre alguns da tribo,cujos braços e pernas foramassaltados por tremores,como acontecia quando daaproximação dos demôniosda tundra.

Jebe cruzou em sua rotacom outras tribos. Nem todastiveram para com ele a

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mesma atitude que a dosCorvos. Os Tetrazes oveneraram como um deus, osGansos quiseram iniciá-lo nacaça aos auroques, e ohomem mais rico dos Cisneso convidou a compartilhar deseu quarto aquecido. Gostoude Jebe como se gosta de umfilho e propôs-lhe que secasasse com sua filha. Nadapôde afastá-lo dessa ideia. Nanoite anterior à das núpcias,Jebe ouviu como que umapelo vindo de fora. Saiu de

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sua cabana e distinguiu à orlada aldeia sombras que semovimentavam sobre a neveque caía havia muitos dias.Esperavam-no. Diante deleerguia-se o exército de queJiruki falara.

Era o maior conjunto decavaleiros jamais visto, todoseles guerreiros mongóismortos nos tempos de GêngisKhan nos campos de batalhaou nas portas das cidades,milhares de fantasmas vindosa seu encontro para

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acompanhá-lo até os confinsdo mundo. Então eleabandonou a aldeiaadormecida, retomou ocaminho do Norte, seguidopela horda fabulosa.

Caminhou nessa situaçãodias e noites. Soube que suaviagem tinha chegado ao fimquando o exército dos mortosafinal parou. A Província dasTrevas terminava ali.

Para além, começava ooceano. Jebe comparouaquela extensão de um verde

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escuro a uma estepe infinita eficou muito tempo acontemplá-la. Depoisobservou não muito longedele um bloco de gelo cujavisão lhe deu uma alegriaextrema. Desembainhouentão seu punhal e começou atrabalhar sobre a massa degelo. A lâmina, comoacontece com as espadas daslendas, não se partia e, semdúvida pela vontade deTengri, quanto mais Jebetrabalhava mais claro o dia se

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tornava. Mas o céu escureceubruscamente no momento emque Jebe pousou sua faca. Eraum trono que o escultorterminara. Quando se sentousobre aquele trono de gelo, oexército se manteve por trásdele, imóvel, vigilante.

À noite nevou. Jebederreou a cabeça para umlado e a neve o cobriu.

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NOTA DOTRADUTOR

Transcrição de nomes daslínguas orientais, árabes,chinesas, quaisquer quesejam, não é o forte daspublicações brasileiras de ummodo geral. Basta lembrarque o nome de uma cidadetão citada como Hiroximaainda aparece em jornais,revistas e até em traduções delivros como Hiroshima,quando se sabe que em

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português não existe esseencontro consonantal sh. Issoacontece porque agora seadota o costume de pura esimplesmente imitar atranscrição inglesa e pronto—para que pensar que existeuma língua portuguesa?

No presente texto não serepetiu a transcrição francesado original para os nomesorientais. O citado encontroconsonantal que repugna àlíngua portuguesa, sh, maisdo que secularmente é

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substituído por x, segundotodos os nossos linguistas, acomeçar por Gonçalves Viana(em Portugal) e Said Ali (noBrasil). Mas agora se passapor cima de tudo isso—e atése despreza a convençãointernacional de nomesgeográficos, dos anos 20, daqual o Brasil é signatário—para apenas agirmos como osamericanos (sim, porque oobjeto de nossa imitação nãosão os ingleses). Nestaedição, porém, não se

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escreveu Kashan, mas “Kaxã”(inútil lembrar que esse nfinal não representa umfonema, sendo apenas umsinal de nasalização da vogalque o antecede). Manteve-se ok na maioria dos nomes tantogeográficos comopersonativos: uma vez quenão há critérios definitivosfirmados, não se quis despirtotalmente a roupagemtradicional que as palavrasorientais mantêm entre nós,pois uma mudança radical

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(“Caxã”) causaria estranhezaaos leitores.

No caso dos nomespróprios de pessoas,manteve-se o sinal denasalização n porque háinúmeras famílias orientaisno Brasil! quetradicionalmente mantêmseus sobrenomes com talgrafia (caso dos sobrenomesarmênios, por exemplo,sempre terminados em ian ena maioria das vezes por sianou ssian). Mantida essa grafia

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para os sobrenomes, porcoerência fez-se o mesmocom os nomes. Assim,tivemos “Vartan Ovanessian”.O mesmo já não se fez quantoàs cidades, Erzincan, porexemplo, passando a“Erzincã”.

O grupo vocálico ou, quesempre aparece não apenasnas transcrições francesasmas também nas inglesas, foisubstituído pela voga!simples u—eis outra práticasecular que está se perdendo

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para que não usemos nada doque é nosso, mas apenas oque se usa na língua inglesa.Assim, em vez de Traboukis,por exemplo, o leitorencontrará “Trabukis”.Lembremos que a SeleçãoBrasileira de futebol jogouuma partida na China emfevereiro de 2003 e todos osjornais e revistas se referiramà cidade de Guangzhou,quando o correto, uma vezque se trata de jornais erevistas que escrevem (ainda)

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em língua portuguesa, seriasimplificar para “Guangzu”,pois é como ti que soa entrenós o encontro vocálico ou—eo h mantido como sefôssemos ingleses ouamericanos é inútil, poisrepresenta uma aspiração quenão reproduzimos emportuguês.

Diga-se, finalmente, que oy foi sempre substituído pori, outro modo de simplificaras coisas para o leitorbrasileiro. Assim, Ayas, por

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exemplo, virou “Aiás”, formabem mais ajustada ao espíritode nossa ortografia,simplificada há um século.

Com simplicidade, é isso.M.C.