a prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · mas não, eu ainda não estou ouvindo...

192
1

Upload: others

Post on 18-Jul-2020

5 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

1

Page 2: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

2

A prova de que o amor é capaz de superar até a morte – Beautiful Dead.

VOLUME 2

Page 3: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

3

Faz quase um ano que Arizona apareceu afogada no lago Hartman. Suicídio

não faz sentido: Arizona era segura demais para dar fim à própria vida, pensa

Darina — que não vai descansar até encontrar a verdadeira causa da morte da

amiga. Ao lado de seu amado Phoenix — que volta do mundo dos mortos-vivos

depois de uma longa e dolorosa espera —, ela inicia a busca pela verdade que,

se vier à tona, vai deixar em choque a pacata comunidade dos moradores da

cidade de Ellerton.

NÃO PERCA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA SÉRIE: JONAS

Page 4: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

4

A cidade de Ellerton continua em alerta após a misteriosa morte dos quatro

adolescentes. Agora, a missão de Darina é cumprir a promessa que fez a

Hunter: descobrir a verdadeira causa da morte de Arizona — o segundo

Beautiful Dead —, sem deixar de aproveitar o reencontro com seu amado,

Phoenix.

Darina fará que tudo o que estiver ao seu alcance para provar à cidade que a

bela e geniosa Arizona não se suicidou. Nem que para isso ela tenha de

enfrentar a fúria dos amigos, de sua mãe, Laura, e do padrasto, Jim, que,

mesmo sem saberem seu segredo, não querem vê-la envolvida em mais

problemas.

Em uma investigação árdua e complicada, descobertas intrigantes deixam a

protagonista em pé de guerra com Arizona, que impede de todas as formas que

os segredos de sua vida sejam revelados.

Em sua missão para ajudar os Beautiful Dead, que estão em sério perigo,

Darina entenderá de uma maneira nada convencional que o orgulho não leva

ninguém a lugar algum e que a justiça pode, e deve, ser feita sempre.

Eden Maguire é norte-americana e os livros da série Beautiful Dead marcaram

sua estreia na literatura. Admiradora do clássico da literatura mundial O Morro dos Ventos Uivantes, de Emile Brontë, Eden busca atualizar em suas obras o tema do amor maior do que a morte. A autora vive nas montanhas geladas do Colorado, nos Estados Unidos, onde, além de escrever, dedica-se a uma de suas grandes paixões: a criação de cavalos.

Page 5: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

5

Para minhas duas lindas filhas.

Page 6: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

6

Phoenix Rohr mudou minha vida: entrou no imenso céu escuro dela como uma estrela cadente e brilhante, iluminando meu mundo. Antes de encontrar Phoenix eu era só meia pessoa — inacabada e com medo. Depois, por algumas poucas semanas, fiquei completa.

Ele e eu fazíamos tudo um pelo outro. Resistimos juntos à crueldade do mundo de

mãos dadas, ele sempre com o braço em volta do meu ombro. A verdade é que as pessoas do meu mundo andam com essa mania de perder a vida — já se foram quatro da escola em um ano. Intensidade pelo menos não nos falta: agarramo-nos à vida que cada dia nos traz. Amor e sexo, compartilhando cada momento. Eu me apoiava em Phoenix como se ele fosse minha salvação. E, então, tudo se desfez em pedaços: eu o perdi — essas três pequenas palavras. Ele foi assassinado durante uma briga.

Procurei por ele em todos os lugares; saí da cidade passando com o carro por entre os

choupos e as sequoias enormes até onde o desenho da serra começava a ficar irregular contra o céu. Sussurrei “Phoenix” milhares de vezes; seu nome era tudo o que eu tinha.

Phoenix, o quarto do grupo de alunos que não voltariam mais. Um, dois, três, quatro

golpes no coração, mas o último foi, sem comparação, o pior deles. “Phoenix”. Eu vivia de memórias. Seus beijos, seu toque, os dias de verão quando nadávamos no

riacho Deer, as noites em que ele ligava o som do meu carro e íamos até o lago Hartmann, eu repousando em seu ombro e tentando contar estrelas. Por um tempo tive medo de me esquecer de tudo.

Daí as asas de anjo, os fantasmas, os espíritos no limbo — como quiser chamar —

começaram a dar sinais. E Phoenix voltou.

Page 7: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

7

Não quero falar com ninguém, preciso ficar sozinha.

Ok, então deu tudo certo para Jonas — em parte por minha causa —, mas o destino de três Beautiful Dead ainda está em minhas mãos. É verdade, ainda tenho Arizona, Summer e Phoenix, nessa ordem — os nomes se repetiam em minha cabeça como um mantra.

— Darina, eu queria que você ficasse mais em casa, a gente podia fazer tanta coisa junta, ir ao pedicuro, fazer compras.

Essa é Laura, minha mãe.

— Darina, não dá pra você ficar dirigindo esse conversível, esse carro bebe demais.

Meu padrasto, Jim.

Assim, dá para imaginar o quadro geral.

— Nos encontramos com você no shopping, Lucas e Christian estarão lá. — Jordan e Hannah, saltitantes e felizes como se tivessem visto um passarinho verde.

E Logan Lavelle.

— Darina, por que você não vai lá para casa como a gente fazia antes? Eu estou com um DVD novinho que a gente pode assistir.

Saiam de perto de mim todos vocês e me deixem em paz.

Minha linguagem corporal deve ter indicado isso, mas essa galera é muito casca-grossa para conseguir entender. Ou talvez eles estejam só preocupados comigo.

Page 8: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

8

De qualquer forma, estou sempre de carro, saindo pela Centennial em direção à Foxton. Passo pelas montanhas, que se erguem absolutas de cada lado da estrada contra o céu azul.

Acabo com aquela calmaria do ar aumentando o som no volume máximo e pisando no acelerador.

Velocidade é a única saída para tirar o peso dos meus ombros, deixando todos para trás. Dirija, gata, dirija! Estou no meio da área onde houve a queimada, quilômetros de floresta que ficaram completamente pretos, tocos retorcidos, restos de troncos caídos, terra cinza. Quem sabe daqui a dez anos alguma coisa verde recomece a crescer.

Saindo da área das árvores carbonizadas, acelerando na subida pelas montanhas, as sequoias voltam a ficar verdes sobre o fundo de pedras cor-de-rosa, meu segredo pesado vai escorrendo dos meus ombros, porque ali ninguém consegue me pressionar. Ali estou segura.

A batida da música quase estoura meus tímpanos, o barulho das guitarras é estridente, e vou cantando junto com a música aos gritos enquanto me agarro ao volante e me inclino cada vez mais para frente no banco. Carroceria de cor vermelho vivo e interior de couro bege com detalhes prateados. Brandon Rohr demonstrou ter um gosto refinado quando escolheu esse carro para mim. Passo pela encosta de Turkey Shoot, a dez minutos de Foxton e a trinta dos Beautiful Dead.

Acho que estou com uma ideia fixa. Sei que estou. A todo momento, cada vez que inspiro, espero por Phoenix, seus olhos lendo o que se passa em minha cabeça e coração, seus braços em volta de mim. Por que não posso estar com ele vinte e quatro horas por dia, todos os dias da semana? É o que quero saber.

Aí está Foxton, um descampado de casas de madeira, uma antiga loja de quinquilharias com as janelas lacradas, um cruzamento sem semáforo. Pego a rota alternativa, passando pelas cabanas dos pescadores com vista para as águas turbulentas onde Bob Jonson finalmente vingou a morte de Jonas: jogou Matt Fortune para fora da estrada, e ambos se espatifaram nas pedras antes de afundar no riacho. Levaram a moto de Matt até Charlie Fortune, que a consertou para que ele mesmo pudesse andar nela novamente. Fico apavorada quando penso nisso. Não pense nisso, Darina, continue dirigindo.

As casas ficaram para trás e a estrada agora é de terra. Não há nada além desse ponto; eu preciso sair do carro e seguir o caminho que os cervos fazem quando vão para o bosque de choupos na encosta. Essa é a quinta, talvez a sexta vez, que venho até aqui de carro desde que Jonas se foi, e sempre encontro só vazio e silêncio. O vento sopra nos choupos, mas não há asas batendo, nem campo de força dizendo aos vivos como eu para cair fora.

Page 9: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

9

Phoenix, sou eu. Onde está você? Preciso ver você. Quando ele me abraça, meu coração para, é a única hora em que me sinto em casa. Se eu continuar carregando esse segredo por muito tempo, vou desmoronar. Conte a Hunter, conte aos outros. Não posso fazer isso sozinha.

Escalo a encosta e fico sem fôlego enquanto permaneço na sombra da caixa d’água enferrujada. Dá para olhar entre as árvores até o próximo vale sem nunca enxergar o antigo celeiro. As folhas dos choupos se agitam e farfalham — como asas? É lindo, lindo mesmo — os choupos e a face inclinada do morro, as florzinhas amarelas das ervas levantando-se orgulhosas da campina prateada. E o céu imenso, imenso.

Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha respiração arranhando a garganta, sem sinal dos Beautiful Dead nem de Phoenix. Procuro por ele enquanto desço rapidamente o morro, mas com tanta atenção que talvez não esteja percebendo o óbvio e perdendo a visão do contorno de seu perfil, alto, parado na porta do celeiro, virado em minha direção, esperando. Ele vai ter que estar lá. Como se esperar e querer de verdade fossem o suficiente para fazer uma coisa acontecer...

Minhas pernas se movem roçando a grama, eu me arrasto por baixo da cerca de arame farpado e consigo enxergar dentro do celeiro, porque a porta está se mexendo como sempre. Nos ganchos estão pendurados antigos arreios, e as teias de aranha se espalham entre todas as vigas.

— Por favor!

Vamos deixar isto claro: estou onde os Beautiful Dead se encontravam. Eles não se deixam ver, a menos que queiram que você os veja. Na verdade, eles precisam permanecer em segredo para manter os vivos — eu e você, por exemplo — longe dali, senão eles acabam... Eu já ia dizendo — mortos —, mas seria esquisito demais. Quer dizer: Phoenix, Hunter, Arizona, Summer e o resto já são parte do passado, são aparições que voltaram do mundo dos mortos.

O celeiro estava vazio — chequei cada centímetro, até no palheiro, aonde finos fachos de luz chegavam ao assoalho podre. Esse foi o lugar onde eu revi Phoenix pela primeira vez, no centro de um círculo em que todos cantavam — eram os Beautiful Dead e seu mestre que davam a ele as boas-vindas depois de seu retorno do limbo. Bum! — minha cabeça explodiu. Na hora em que consegui juntar os cacos, meu namorado já era parte da gangue de Hunter e tinha sua marca mortal para provar: uma tatuagem de asas de anjo entre suas escápulas, bem onde a faca tinha entrado.

— Phoenix, volte! — implorei.

Page 10: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

10

Saí do celeiro e atravessei o quintal, perdia as esperanças a cada passo.

— Hunter — gritei. — É você quem está fazendo isso! Eu odeio você!

O mestre dos zumbis continuou mantendo-os invisíveis. Ele achava que ainda não era a minha hora de encontrar os Beautiful Dead novamente. Ele manteria seu ritmo, os deixaria acumulando forças depois do ocorrido com Jonas. E vocês já devem saber que eles não têm livre-arbítrio; Hunter controla cada coisinha que fazem. Mas, mesmo estando todos invisíveis, Hunter ainda pôde me ouvir dizer que o odiava, bem ali, naquela hora.

Decidi apelar para seu lado sentimental, embora eu soubesse que ele não tinha um lado sentimental...

— Hunter, por favor. Estou morrendo de saudade de Phoenix... Dói demais.

Fiquei esperando pela resposta que não veio, parada ali, ao lado da carroceria do caminhão enferrujado.

Ainda sem resposta, subi na varanda da casa, espiei pela janela sinistra e consegui enxergar a cadeira de balanço perto da copa e a mesa coberta de séculos de poeira. Girei a maçaneta e empurrei com o ombro a porta trancada.

— Hunter, eu odeio você — resmunguei.

Um mês atrás eu teria saído andando e falado para mim mesma que toda essa história de zumbis era maluquice, que devia ser efeito da dor no meu cérebro fragilizado — fazendo com que eu visse coisas que não existiam. Falando sério, de que outro jeito se pode levar a vida adiante quando a pessoa que a gente mais ama morre esfaqueada em uma briga? Perda é a uma palavra que não dá conta de dizer o que sentimos. É preciso chorar, gritar e xingar ao mesmo tempo, começa-se a cair no fundo de um buraco cujas paredes são moles, sem nada a que você possa se agarrar. Na opinião de Kim Reiss — uma terapeuta a quem Laura me mandou ir —, é justamente nessas situações que o cérebro fica mais propenso a nos pregar peças cruéis.

Mas isso foi há quatro semanas. De lá para cá, eu viajei no tempo, desvendei o mistério sobre a morte de Jonas Jonson e passei a acreditar de verdade em tudo que acontecia. Então, soube que Hunter, o mestre dos zumbis, com certeza estava me deixando em banho-maria e me impedindo de ver Phoenix. Era dele a escolha de manter todos afastados.

— Se você continuar com isso, não volto mais — ameacei. Pareceu um blefe barato até para mim. — Você precisa de mim, eu sou o seu elo com o mundo dos vivos.

Silêncio e vazio, nada mais.

Page 11: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

11

— Arizona precisa de mim — insisti. Já fazia quase um ano desde que ela tinha se afogado no lago Hartmann. — O tempo dela está começando a se esgotar.

O vento soprou pela varanda levantando uma tábua solta do telhado. Eu tinha tentado fazer tudo que podia para que os Beautiful Dead voltassem, mas nada adiantou. Mesmo assim, fiquei lá a manhã toda, sentada no capô daquele caminhão velho, olhando para a Pedra do Anjo.

Por fim, desci e resmunguei:

— Tá bom, você venceu — e comecei a caminhada de volta. — Afinal de contas, preciso ir a um enterro.

Não era o verdadeiro enterro de Bob Jonson. Depois de quatro mortes em um único ano, parei de ir. Mas acabei indo para a vigília depois.

Todos os velhos motoqueiros estavam lá com as roupas de couro com franjas, cavanhaques e cabelos grisalhos desgrenhados. As Harleys estacionadas formavam m semicírculo do lado de fora do bar preferido de Bob. Como eu era menor de idade, fiquei do lado de fora com Jordan, Lucas e Logan.

— Tudo é isso é tão triste — Jordan falava com os olhos cheios de lágrimas. Uma mecha de seu cabelo ondulado caiu sobre o rosto. Fiquei esperando para ver se o tímido Lucas ia abraçá-la e confortá-la.

O moleque nem se mexeu, então me aproximei e dei um lenço para ela.

— Você estava lá, Darina — ela disse. — Você viu quando ele caiu no penhasco.

Concordei.

— Não foi um acidente, Bob forçou Matt para fora, na beira do penhasco, acelerou a moto e se jogou atrás dele. Mas ele, sem dúvida, queria acabar com tudo.

— Mesmo assim é muito trágico — Jordan insistiu. — Ele conseguiu se vingar, não precisava morrer.

— Sim, precisava — Logan falou, olhando não para Jordan, mas para mim. — Nada mais fazia sentido para Bob depois que Jonas morreu, a vida dele estava vazia. Ele ia sempre à minha casa para beber com meu pai. Eu mesmo vi o cara ir perdendo completamente o eixo. Não é, Darina?

Concordei novamente.

Page 12: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

12

— A mãe de Jonas veio de Chicago? — perguntei a ele.

— Sim, ela veio de avião com a irmã dela. Elas estão aí dentro com os caras.

— E como ela está? — Jordan perguntou.

Uma pessoa pode perder o filho e depois se separar do marido, mas ainda assim se importar com ele — a prova disso é que veio para o velório.

— Como ela poderia estar? — retruquei.

Outros colegas de Ellerton High estavam chegando. Alguém ligou o som do carro e de longe dava para ouvir Bob Dylan estourando nos alto-falantes. Era uma música chamada ―Knocking on Heaven’s Door‖.

— Bob Jonson teria gostado — Logan disse.

A letra triste da música me fazia querer chorar, só que eu já tinha dado meu último lenço a Jordan. Em vez disso, fixei o olhar nos tanques e escapamentos brilhantes das motos e tentei lembrar como Jonas e Zoey tinham ficado felizes.

— Sorrindo por quê? — Jordan perguntou, impaciente. — Você é esquisita, Darina — e saiu andando, com Lucas na sua cola.

— Não, você não é não — Logan me garantiu, tentando pôr um curativo naquilo que ele supunha ser o meu ego ferido. — Eu sei no que você está pensando.

Eu o encarei.

— Você pensa que sabe, Logan, mas não sabe nada!

Claro que tem uma história antiga entre mim e Logan, que me faz ter de afastá-lo toda vez que ele tenta se aproximar. Mas, para falar a verdade, ele nunca deixou de me tratar como a menina do jardim de infância, a vizinha para quem ele deu um buquê de orquídeas e foi seu par no primeiro baile da escola — como se a gente fosse ser assim, próximos para sempre, vivendo num mundo encantado onde sabiás cantam e as badaladas dos sinos da igreja soam ao longe. Ele deve estar ficando louco!

Senti seu olhar magoado. Ele passava as mãos indecisas no cabelo, castanho e encaracolado. Daí ele partiu para a redução de danos.

— Bem, ninguém pode saber exatamente o que o outro está sentindo, é óbvio. Mas você não é esquisita de maneira alguma.

Page 13: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

13

— Valeu — resmunguei, vendo a mãe de Zoey deixá-la no estacionamento. Zoey ainda estava na cadeira de rodas, mas tinha pintado e arrumado o cabelo, estava bonita. Fui direto falar com ela.

— Ei — ela disse com uma voz suave.

Tentei decifrar o jeito como ela sorriu para mim, e a palavra ―exausta‖ foi a única que arrumei; devo ter lido em algum lugar de seu rosto.

— Ei, Zoey — respondi. Ela parecia pequena e frágil na cadeira de rodas ao lado das Dynas e Softtails monstruosas. — As coisas estão difíceis para você, não?

Ela assentiu.

— Vim por causa de Jonas.

— Você ainda tem aquela fivela de cinto da Harley que era dele? — perguntei. Não precisava quebrar gelo nenhum com Zoey, a gente já ia direto ao que interessava.

Levantando seu agasalho, ela me mostrou que estava usando a fivela em seu cinto.

— O que você acha, Darina, será que Jonas e seu pai estão juntos agora?

— Boa pergunta! — desdenhei. — Depende daquilo em que você acredita.

Um grande silêncio pairou no ar. Uma dupla de ogros cabeludos cheios de broches nas roupas saiu do bar e subiu nas motos. Duas mulheres usando jaquetas cheias de estampas e calças pretas ficaram do lado de dentro da porta. Vi que a menorzinha e mais bonita era a mãe de Jonas.

— No que você acredita? — Zoey quis saber.

O que eu ia fazer agora? Fingir que nem ligava ou falar aquilo que ela queria ouvir?

— Acho que estão juntos — falei sem vontade.

— Juntos — ela repetiu com um suspiro. — Você não está dizendo isso só por dizer?

Eu estava evitando a conversa. Tinha certeza de que Jonas havia se separado do grupo dos Beautiful Dead no dia em que seu pai morreu; os dois agora estavam num mundo de paz e liberdade. Pelo menos foi assim que Phoenix me explicou. Mas eu não podia em pensar em dizer isso a Zoey.

Page 14: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

14

— Eu acredito, sim — disse por entre os dentes.

Vocês já tiveram de guardar algum segredo tão grande que toda vez que abrimos a boca ele se debate para sair? Eu me imaginei pulando na garupa de uma das Harleys, esticando meus braços e gritando: ―Todos vocês, prestem atenção. Jonas e seu pai estão numa boa, eles estão livres. Conseguiram a paz que desejavam. Fiquem felizes por eles!‖.

— Darina, você está bem? — Zoey perguntou.

— Estou bem — menti.

Por sorte ela mudou de assunto.

— Lá está a Sra. Jonson. Será que devo falar com ela? O que você acha, Darina?

— Acho que sim. Quer que eu vá lá falar um oi e traga ela para cá?

Zoey fez que não com a cabeça. Depois das múltiplas cirurgias para recuperar a coluna nos lugares quebrados por causa do acidente, para ela ainda era um esforço grande se levantar da cadeira de rodas e dar passos lentos e vacilantes em direção à porta do bar.

Os meninos no estacionamento fizeram o que tinha de ser feito: tentaram não olhar muito. Um dos motoqueiros grisalhos, sentado em sua Dyna, largou a cerveja, veio até ela e disse:

— Ei, deixa que eu ajudo você. — Juntos, eles subiram o único degrau em frente à porta.

Haley Jonson hesitou quando viu Zoey e, em seguida, forçou-se a sorrir.

— Zoey, olha só!

Zoey mexeu as mãos como se tivesse realizado um truque de mágica.

— Tcha-nam!

— Puxa, que demais — Haley disse, engasgando e com os olhos cheios de lágrimas. Ela olhou para Zoey por um bom tempo, talvez pensando: Se alguém tinha de sobreviver ao acidente, por que não meu filho Jonas? Vários sentimentos se misturaram em seu rosto pálido, até que apertasse a mão de Zoey.

— É bom ver você — ela enfim sussurrou.

— Você soube? — Zoey murmurou. — Darina me ajudou a finalmente lembrar tudo o que aconteceu.

Page 15: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

15

— Querida, pare!

Zoey interrompeu sua observação.

Foi como se todo mundo no bar e no estacionamento estivesse segurando a respiração, esperando por alguma coisa para quebrar aquela tensão insuportável entre a mãe e a namorada de Jonas.

— Eu não preciso dos detalhes — Haley disse. — O passado é passado, ele não volta, não importa quanto a gente se esforce.

— Eu queria... — Zoey começou, mas sua voz foi perdendo a força como um brinquedo de corda, e ninguém jamais soube o que era que ela queria.

— Escute — Haley falou baixinho, levantando o queixo de Zoey com delicadeza para olhar seu rosto. — Olhe para frente, não olhe mais para trás.

Liguei para a Sra. Bishop para dizer que levaria Zoey para casa. Fomos dirigindo ao longo do Hartmann, a maior parte do tempo em silêncio, até que parei o carro em um mirante, de onde dava para ver todo o lago cintilando ao sol.

— Eu gostaria que houvesse razões — Zoey começou. Ela inclinou a cabeça, encostando-se ao couro macio do apoio do banco, de olhos quase fechados.

— Para quê? — Tirei meus óculos escuros do porta-luvas e os coloquei, depois fiquei na mesma posição que ela.

— Para isso tudo. Jonas, Arizona...

— Summer e Phoenix — acrescentei. — Quatro em um ano. Qual a probabilidade de isso acontecer?

Zoey suspirou.

— Se ao menos a gente soubesse o porquê.

O sol estava forte, chegou a empenar o capô vermelho.

— Eu sei, tudo o que a gente queria era que fizesse algum sentido. Mas talvez seja aleatório mesmo.

— Tudo é muito assustador — ela observava o lago à distância. — Como Arizona pôde se afogar em uma coisa assim tão linda?

— Quantas perguntas! — reclamei. Mais uma vez, era hora de sair pela tangente. — Olha, uma águia lá em cima.

Page 16: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

16

A ave planava em uma corrente de ar quente, as penas das pontas de suas asas bem abertas. Então ela se curvou e saiu da corrente, pairando sobre um ponto, pronta para se lançar ao ataque.

— Eu não acredito que Arizona tenha feito isso — Zoey virou-se em minha direção.

Nós estávamos pisando num campo minado de novo. Escondi minhas reações irritadas atrás dos óculos escuros.

— Ela não se suicidou, de jeito nenhum!

— Disseram que foi isso.

— Quem ―disseram‖? O povo da cidade, os jornalistas, o que é que eles sabem?

Tinha saído nos jornais e na televisão: uma segunda fatalidade em Ellerton High. Dessa vez um afogamento que parecia suicídio. Foi isso que o relatório da perícia policial sugeriu.

— Eles não conheciam Arizona como eu conhecia — Zoey assistia à água mergulhando em direção ao chão e depois subindo de volta com um pequeno animal pendurado em seu bico afiado. — Para começar, se ela quisesse se matar, não seria na água.

Não adiantava, eu estava tentando resistir, mas era impossível não especular.

— Estou acompanhando seu raciocínio, você está querendo dizer que Arizona nadava muito bem, sabia mergulhar, inclusive com equipamento e tudo...

— Não, não é isso. Quero dizer que Arizona era toda preocupada com o cabelo, maquiagem, com sua aparência como um todo, tente lembrar. E ela adorava fazer um espetáculo a todo momento. Se ela soubesse que a achariam morta, com certeza tomaria um maldito cuidado para que estivesse bonita. — Zoey fez uma pausa e depois ficou vermelha. — Estou sendo malvada demais? — ela perguntou.

— Tá — sorri. — Mas concordo totalmente. — E ela não mudou nada, quis acrescentar. Na última vez em que a vi, junto com os Beautiful Dead lá na encosta de Foxton, ela ainda era a mesma escandalosa carente de atenção.

Mordi meu lábio. Não fale sobre isso, nem chegue perto. E, para me lembrar, Hunter mandou milhões de asas batendo em volta da minha cabeça, deixando-me tonta e forçando para que eu me sentasse direito no banco do carro.

Page 17: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

17

— Então você concorda, ela não planejou fazer isso? — A teoria de Zoey a fez se ajeitar no banco também.

Eu dei de ombros, as asas ainda estavam à minha volta. Apesar de já não me assustarem mais, sem dúvida elas prendiam a minha atenção.

— Você acha que sou o quê, uma leitora de pensamentos? — reclamei.

— Pense a respeito, Darina. Alguém por aí com um pingo de consciência viria esse caminho todo até aqui, sabendo que ela estava sem carro, que ficou na garagem, porque estava quebrado, e andou tudo isso a pé, uma distância de uns cinco quilômetros, coisa que a gente sabe que Arizona nunca fez na vida...?

— Certo — levantei as mãos em sinal de rendição. Eu estava quase ensurdecida pelo aviso de Hunter que dizia para não trair os Beautiful Dead. — Não quero falar sobre isso.

— Darina! — Zoey deixou bem claro que estava decepcionada.

Balancei a cabeça e liguei o motor.

— Como a Sra. Jonson disse, passado é passado.

Ele não volta, ela tinha acrescentado. Só eu sabia que era possível, ou que pelo menos para os Beautiful Dead era possível voltar — e voltavam. As asas batiam como loucas enquanto eu me afastava do mirante e pegava a estrada.

— Oi, que bom finalmente ter notícias de vocês — eu disse para as asas. Deixei Zoey na casa dela e já estava indo para a minha. — Eu estava ficando preocupada, achando que vocês não fossem mais voltar.

Dirigi com a capota baixada e asas revoavam em volta da minha cabeça numa confusão feita de penas; mais um lembrete que uma advertência.

— Sabe quantas vezes já fui até Foxton de carro ultimamente? Acho que sabe.

Parei no semáforo fechado e olhei para o lado.

— Phoenix!

Ele estava sentado no lugar que Zoey tinha acabado de vagar, esperando que eu o visse e me dando aquele sorrisinho torto.

— Meu Deus! — gritei. O semáforo abriu e passei pelo cruzamento tão devagar que o cara de trás quase bateu no meu para-choque.

Page 18: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

18

— Phoenix, não faça isso!

— Você quer que eu vá embora? — perguntou, naquele tom de voz molenga e preguiçoso. — Eu posso ir... — esticou a mão para abrir a porta.

— Não, espere! É que eu quase tive uma parada cardíaca. Vou fazer o retorno com o carro. — Fiquei atrapalhada com os controles e parei bruscamente num estacionamento ao lado da mercearia.

— Ei, Darina — Phoenix sorriu.

Estiquei minha mão para tocá-lo e ver se ele... Estava ali mesmo.

Ele segurou minha mão com força.

— Quanto tempo, hein?

— Uma eternidade — suspirei. Tenho contado os dias, as horas e os minutos. Mas Phoenix estava mesmo lá e foi difícil encontrar algo significativo para dizer. Em vez disso, fiquei olhando nossas mãos dadas, a mão dele tão grande, a minha bem menor, mais delicada. Fiquei me deleitando com a sensação de seu polegar acariciando a palma da minha mão.

— Hunter falou para gente sair de lá — ele disse. — E você sabe como ele é.

— Autoritário — respondi.

— É. Eu até poderia fazer uma piada de morto-vivo sobre a falta de coração dele... Mas vou poupar você.

— Melhor.

— Muito de mau gosto?

Claro. Sem sentimentos e, literalmente, sem coração — passou a ser assim quando voltou do mundo dos mortos, com a pele tão branca que parecia que nunca tinha visto o sol.

O rosto lindo e suave de Phoenix fez meu coração bater rápido o suficiente por nós dois.

— Estou aqui, agora — ele disse suavemente. Depois me fez sair do banco do motorista e tomou meu lugar. Sem dizer nada, foi dirigindo até uma estrada que levava para fora da cidade, e, então, cinco minutos depois havíamos passado as casas e estávamos indo em direção à estrada de terra que levava ao riacho Deer.

Page 19: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

19

O carro pulava e se sacudia, eu olhava para o céu. Nem ao menos uma única nuvem e sem vento nenhum, caso alguém precise de um boletim meteorológico.

Phoenix estacionou ao lado do riacho, perto de um monte de salgueiros dourados que começavam a crescer, agarrou minha mão de novo, dessa vez para me puxar para fora do carro e me levar para trás dos salgueiros onde havia um barranco que dava para a água. Ficamos lado a lado, um segurando na cintura do outro, olhando para baixo.

A água, tão cristalina que víamos os seixos no fundo do riacho, fluía tranquilamente levando as primeiras folhas de outono caídas em sua superfície que rodopiava.

Sentamos na rocha para absorver os últimos raios de sol: Phoenix com as pernas muito longas cruzadas, deixando um vão para que eu pudesse sentar apoiando as costas em seu peito enquanto ele me abraçava.

— Senti sua falta — eu disse. O que não bastou para explicar nem um pouco o corte, o buraco que ficou no meu peito, as noites de solidão sombria sem ninguém para me ajudar a sair do desespero.

Virei-me para olhar seu rosto, traços que não se enquadravam exatamente nos estereótipos de beleza, apesar de sua testa alta e as maçãs do rosto estarem quase lá e aqueles enormes olhos cinza serem mais que o estereótipo em si. Não, era a boca que o fazia diferente, um pouco viradinha para baixo só de um lado, e o modo como seus lábios se mexiam para falar de um jeito mole e relaxado.

Ele se inclinou para me beijar.

De novo! De novo!

Meu corpo pedia. Era tudo que eu queria. Nada mais importava: lábios colados, respirações em compasso, olhando para ele tão de perto por uma abertura tão pequena entre meus cílios pretos, que sua imagem ficava borrada.

Phoenix me puxou para trás contra o mato comprido e seco e me beijou com mais força. Meus sentidos estavam à flor da pele, e eu era levada pela paixão que aumentava, ficando mais forte e perigosa que a correnteza de qualquer rio entre as montanhas.

De repente, ele parou e afastou a cabeça. Apertou os olhos e levantou as mãos para que eu não ficasse tão perto.

— Que aconteceu? — Eu olhei em volta. Alguém estava espiando a gente? Qual o problema? — Não me diga. Hunter. Ele está aqui.

Page 20: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

20

Phoenix vacilou.

— Não, é, quer dizer, ele está sempre aqui.

— O mestre — resmunguei. A paixão ardente esfriou rapidamente, e eu consegui me recompor. — Cara, ele é mais eficiente que qualquer anticoncepcional!

Rimos. Daí ele voltou a ficar sério.

Phoenix explicou:

— Existe uma regra, eu não posso... Sabe... Não posso me entregar por inteiro. Precisamos manter certa distância.

— Quem disse? Hunter? Ele não sabe que as regras são feitas para ser quebradas?

Hunter era bem pior do que Laura e Jim. Em outras palavras, suas punições eram muito mais duras. Se eu ficasse na rua até tarde, Laura poderia me deixar de castigo — afinal era a casa dela, ela pagava as contas etc. etc. Só que, para Phoenix, obedecer às regras era sua única chance de continuar por aqui — caso ele passasse dos limites colocados por seu mestre, seria expulso de Foxton e voltaria para o limbo, ponto final. E, prestando mais atenção agora, eu podia ouvir as asas de milhões de almas perdidas no limbo, batendo e implorando para estar no lugar dele.

— Tá certo — aceitei. Sem retrucar.

Phoenix fechou os olhos num suspiro.

— Você entende... Sabe quanto isso é difícil para mim?

— Sei, sim — murmurei. — De agora em diante prometo manter minhas mãos longe de você!

Nessa hora o humor já não era tanto daqueles de fazer a barriga doer, tinha virado uma coisa mais ácida.

— O que eu fiz para merecer isso? — ele perguntou, me segurando para que eu não saísse. — Para merecer alguém igual a você, Darina? Você é a coisa mais linda que eu já vi, além de nunca saber qual vai ser a próxima loucura que vai fazer ou dizer. Você sempre me pega desprevenido.

— E você lê meus pensamentos — brinquei. Fui me sentindo rapidamente tomada pela escuridão daquele lugar deserto e só consegui voltar a mim

Page 21: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

21

mudando de assunto. — Então, pode me dizer por que Hunter deixou você vir até aqui?

Phoenix deu de ombros.

— Ele nunca diz os motivos. O fato é que só apareceu de novo hoje cedo. Não sei onde se enfiou desde que Jonas partiu.

— E onde vocês estavam enquanto isso? — perguntei. Tinha certeza de que não era em Foxton.

Ele ficou inquieto e olhou para o lado.

— Arizona ficou no comando. Ela disse que tínhamos de sair de Foxton por uns tempos, até que as coisas voltassem ao normal por lá.

— E aonde vocês foram? — insisti.

— A alguns lugares onde nunca tinha ido antes; não posso falar exatamente.

Fiquei irritada.

— Você quer dizer que ―não vai falar‖ porque Hunter não quer.

— Tudo que sei é que Hunter não está mais lá, e Arizona cuidou de nós e pediu claramente para que não fizéssemos perguntas.

— Tá bom, você não precisa responder, mas posso tentar adivinhar, muito educadamente: Hunter voltou para o limbo para contar as novidades para quem, ou o que, quer que esteja acima dele: um tipo de mestre dos mestres, deixando os Beautiful Dead numa espécie de esconderijo, hibernando até que ele voltasse ao mundo dos vivos — analisei a reação de Phoenix, mas ele não tinha expressão nenhuma, o que significava que eu estava certa. — Isso é interessante... Alguém ou algo diz a Hunter o que fazer. E, escute, Phoenix, não quero que você me diga que não preciso ocupar minha linda cabecinha com isso, tá?

— Como se adiantasse — ele apoiou as costas na pedra e as mãos atrás da cabeça. — Isso seria um desperdício de energia.

— E como foi receber ordens de Arizona? — Havia uma pontinha de provocação na pergunta, admito.

— Arizona é legal, ela é inteligente, mesmo.

— Devo ficar com ciúme? — eu só estava meio brincando porque, no fim das contas, conhecia dúzias de meninos da escola que ficavam enlouquecidos com a aparência e o estilo de Arizona, mesmo que sua personalidade hostil fosse tão

Page 22: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

22

convidativa quanto pular sem roupa num lago congelado. Assim como Phoenix, todos a admiravam.

— Como assim? — perguntou. — Agora, falando sério, não venha querer arrumar confusão com ela, tá bom?

— Não quero confusão, tenho apenas que salvar sua alma zumbi — lembrei-o da razão primordial pela qual estávamos ali. — Muitas pessoas estão voltando sua atenção para Arizona desde que o mistério em torno de Jonas foi esclarecido. Zoey, por exemplo, é uma delas.

Phoenix endireitou a coluna.

— Ela tem feito perguntas?

— Sim, mas não se preocupe, nunca contei nenhum segredo.

E ele relaxou de novo.

— Zoey tem dito que não acredita que Arizona tenha se afogado e que também não acha que ela tenha morrido num mero acidente. E ela deve estar certa.

— Você acha? — Phoenix, o Sr. Cuidadoso, não deixou escapar nada e veio me lembrar de que havia coisas que ele não podia contar nem mesmo para mim.

— Acho. Por que Hunter a teria escolhido se achasse que foi um acidente? — eu sabia que o mestre só cuidava de injustiças e dúvidas; bala perdida em Summer Madison por um atirador desconhecido; a morte de Phoenix por esfaqueamento e não numa briga entre gangues. Uma morte comum, explicável, não mereceria tanto a sua atenção. — Ela faz parte dos Beautiful Dead porque há um mistério.

Ficamos sentados em silêncio por um tempo, observando o fluxo sem fim da água abaixo de nós.

— Darina, você não precisa fazer isso se não quiser — quando começou a falar, Phoenix parecia estar num lugar muito remoto de sua própria cabeça. — Há uma boa chance de a gente conseguir descobrir o que aconteceu sem você.

Reagi, magoada.

— Ah, sei, já tiveram dez meses inteirinhos e aonde conseguiram chegar? Vocês só têm dois meses agora, não se esqueça.

Page 23: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

23

Como esquecer que uma alma só existia durante doze meses na comunidade zumbi, nem um dia a mais. Fim.

— Mesmo assim, você não precisa fazer se não quiser.

Eu me levantei e recuperei o equilíbrio de braços abertos, bem na beira da pedra.

— O que você está querendo dizer? Que podem apagar minha memória com seus superpoderes e eu saio daqui como se você nunca tivesse existido? Que ótimo! Obrigada!

— Há uma alternativa, que talvez seja pedir demais — Phoenix me deu a chance de sair de toda essa loucura, mas dava para ver em seus olhos que ele não esperava que eu a aceitasse. Ele sabia direitinho.

— Alguma vez eu falei em desistir?

Ele me beijou muito suavemente dessa vez e acariciou minha nuca.

— Então você vai ajudar Arizona do mesmo jeito que ajudou Jonas?

— Sim. E vou ajudar Summer, e você também.

— Então está na hora — ele disse, me levando pela mão.

Page 24: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

24

Mesmo que a tarde no celeiro lá em Foxton estivesse bem ensolarada, eu estava com frio só de calça jeans e camiseta. Tremi e fiquei grudada em Phoenix.

— Quem é esse aí? — perguntei a ele enquanto apontava para um cara novo que parecia tão perdido e confuso quanto eu na primeira vez que encontrei os Beautiful Dead.

Phoenix não sabia dizer.

— Nunca o vi.

O novato estava no chão, sentado em um canto escuro e abraçando os joelhos. Parecia não respirar direito, como se sentisse muita dor.

— É Lee Stone — Arizona o apresentou aos Beautiful Dead. — Lee, este é Phoenix Rohr.

Lee teve dificuldade para levantar. Phoenix tinha mais de um metro e oitenta, mas esse cara era ainda mais alto. Grande e forte, tinha cabelos claros queimados de sol, como se acabasse de sair da praia.

— Summer, venha cá cumprimentar Lee — pediu Arizona, já puxando minha amiga para dentro da pequena roda e me deixando do lado de fora.

Phoenix percebeu o que ela fez e abriu espaço na roda para mim também.

— E aí, Lee? Esta é Darina.

O coitado do garoto mal conseguia ficar em pé. Ele não tinha ideia de onde estava e parecia sentir falta do bronzeado que costumava combinar com seus músculos e cabelos descoloridos.

Page 25: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

25

— Fica tranquilo, tá tudo bem — disse Summer para acalmá-lo. Ela vestia uma bata de algodão larga, bem leve, e calça jeans.

Lee continuava mudo; era possível enxergar dor e medo nas expressões de seu rosto.

— O que está acontecendo? — perguntei baixinho a Summer enquanto o frio aumentava, apesar de o sol continuar brilhando.

— Estamos esperando por Hunter.

Fiquei arrepiada — em parte pela falta de calor, mas também por ouvir o nome do mestre. Senti Phoenix segurar minha mão com firmeza e força.

— Então não faça mais perguntas — Arizona avisou —, porque não temos as respostas.

À medida que o tempo passava, mais figuras familiares apareciam: Eve chegou silenciosa com Kori, o bebê, pelo quintal, e Donna desceu a escada bamba do palheiro. Elas eram os braços direitos de Hunter — sempre alertas e a postos para ativar o campo de força que repelia os vivos. Até então eu nunca havia perguntado sobre suas histórias, e elas nunca tinham falado a esse respeito. Durante a espera ninguém disse uma palavra.

Portanto, tive um bom tempo para juntar as peças. O pobre Lee devia estar soterrado debaixo de uma avalanche de confusões, mas eu conseguia montar o quebra-cabeça sem grandes dificuldades. Jovem, alto e atlético, cheio de dor e dúvidas. De quem ele me lembrava, quando vim pela primeira vez ao celeiro tanto tempo atrás? Um garoto recém-morto, pálido e perfeito, dando seus primeiros passos vacilantes ao sair do limbo para entrar no mundo zumbi dos Beautiful Dead, justamente como Phoenix fez antes dele.

Agora, tudo que eu precisava fazer era achar a marca mortal naquela pele macia e gelada.

Uma sombra estendeu-se na entrada do celeiro, e todos nos viramos quando Hunter apareceu.

Ele estava sisudo, mais rígido, inclusive mais do que eu me lembrava. Absolutamente nada se mexia em seus traços de pedra enquanto ele andava em direção a Lee e seus olhos tomavam nota de cada detalhe.

— Você conseguiu voltar — ele reparou.

— O que é isso? Que aconteceu? — Lee tomou fôlego e parecia pronto para fugir ou brigar; ainda não tinha decidido qual dos dois.

Page 26: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

26

— Pode ficar calmo — disse Hunter. — Sei que neste momento você está sentindo muita dor, mas saiba que está a salvo aqui com a gente.

Suas palavras pareceram tranquilizar Lee, que agora dava a primeira olhada atenta de verdade à sua volta, vendo Summer e Arizona, Eve e o bebê, Donna, Phoenix e eu.

— Tudo isso é estranho demais — ele balbuciou. — A última coisa de que me lembro é que estava descendo um morro com meu snowboard...

— E agora você está aqui — Hunter completou. — Aqui é o que importa. Você tem algo importante a resolver, e nós vamos ajudá-lo a fazer isso.

— Eu estava sozinho no morro, fui o primeiro a chegar lá em cima. — Um trauma do passado, derradeiro e irreversível, ainda ocupava o pensamento de Lee. — Céu azul, neve perfeita, então, de repente...

— A luz se apagou — ele foi interrompido por Arizona. — E você não soube o que houve de errado. Tem um branco enorme na sua memória, grande o suficiente para engolir você inteiro, e sente tanta dor que mal pode suportar. A gente sabe.

— Precisamos dar as boas-vindas a você — Hunter disse e fez com que Lee ficasse no centro do círculo e tirasse a camisa. Em seguida, virou-se para mim e falou. — Darina, você pode sair agora. Espere na casa.

Phoenix sorriu concordando, e eu senti o aperto de sua mão afrouxar. Ainda que eu quisesse discutir com Hunter sobre minha saída, a sensação de seus olhos austeros me perfurando fez esse desejo sumir. Com minha força de vontade diminuída, saí do celeiro sem dizer um ―a‖.

Só que Hunter não tinha dito nada sobre virar-se e olhar para trás. No meio do caminho dei uma olhadinha.

Lee estava no centro da roda, e os Beautiful Dead cantavam. A voz deles era suave e ritmada, a fisionomia, receptiva. Os traços delicados de Summer pareciam especialmente iluminados, seus olhos brilhavam, e o cabelo flutuava ao redor dos ombros. Ao lado dela, Arizona tinha despido aquelas camadas de amargura e sarcasmo que a cobrem, permitindo que uma alegria sincera tomasse conta dela por inteiro. Com seu bebê no colo, Eve fechou os olhos num transe.

Darina, espere na casa! Hunter ainda estava de costas para mim, mas ele tinha olhos nas costas e não precisava falar alto para distribuir ordens. Como um robô, virei para frente e continuei andando.

Page 27: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

27

Porém, eu continuava ouvindo os cânticos, mesmo da varanda da casa e, entre as outras vozes, ouvi Phoenix dizer ―Bem-vindo, Lee. Bem-vindo ao mundo dos Beautiful Dead‖.

Eles fizeram sua sessão zumbi por lá, e depois Summer foi até a casa me buscar.

— E aí, Darina, como você está? — perguntou.

Respondi com a cabeça.

— Quanto tempo vocês têm?

— Certo, uma pergunta idiota — ela deu uma tapinha no braço da cadeira de balanço para que começasse a se mexer para trás e para frente, como o pêndulo de um relógio antigo. — Você tem visto meus pais ultimamente?

— Não, não tenho passado por aquele lado da cidade.

— Minha mãe não sai muito de casa — Summer me confidenciou. — Faz sete meses e meio que eu faleci, e ela continua lá dentro.

Contei a ela que sua mãe ainda precisava de um tempo para se recuperar.

— Seu pai está cuidando dela. Laura o encontrou no shopping e ele disse que está trabalhando em casa agora, que não precisa mais ir ao escritório.

— Ainda sonhando com a casa das pessoas — Summer lembrou com um sorriso. — Quando eu era pequena, adorava ficar olhando enquanto ele desenhava aquelas plantas, aquelas linhas e ângulos mágicos. É o jeito dele de fazer sonhos virar realidade.

— Ele é um ótimo arquiteto — concordei. Eu sabia que o Sr. Madison havia projetado a casa onde Zoey e sua família viviam, além da maioria das mansões do bairro de Westra, inclusive a dos Taylor, que até saiu numa edição da revista Mountain Living uma vez.

Estranhamente, a casa dos próprios Madison não era grande coisa. Claro, era grande e tinha portas de vidro do lado da casa que dava para o pico Amos, e você conseguia ver quilômetros e quilômetros de serras e florestas, mas o interior era bagunçado e aconchegante, cheio de instrumentos musicais de Summer, além de quadros coloridos e inacabados pendurados na parede.

— Estou feliz por meu pai estar trabalhando de novo — disse Summer, aliviada. — Mamãe ainda tem pintado? Ah, eu me esqueci... Você não sabe...

Page 28: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

28

Para frente e para trás, para frente e para trás, balançava a cadeira. Uma pequena ruga de preocupação marcava a testa serena e pálida de Summer.

— Quer dizer que Lee entrou para o seu grupo — resolvi puxar outro papo. Eu nunca apressava as coisas com Summer como geralmente faço, ela me desacelerava e me fazia querer tomar conta dela, mesmo agora. Assim, a gente encontrava tempo para conversar.

— Ele precisa de respostas. — Summer foi até a janela e olhou para o quintal. — É duro morrer sozinho numa descida de esqui aos dezenove anos.

Como se morrer baleada num tiroteio sem motivo dentro de um shopping não fosse! Pensei no modo como Summer partiu deste mundo, nas mãos de um psicopata desconhecido. — Você viu a marca mortal de Lee?

Na parte de baixo de sua coluna, um par de asas de anjo perfeitas.

— Não se preocupe com Lee, Darina, Hunter vai cuidar dele. É em Arizona que devemos manter o foco agora.

— Eu sei. — Atravessei o pequeno espaço entre a porta e a escada. — Não vai ser fácil, é complicado gostar de Arizona — admiti.

— Quem disse que precisa gostar dela? — Summer me deu um daqueles sorrisos grandes e abertos. — Tudo o que você tem a fazer é descobrir o que aconteceu mesmo, e ela ficará livre.

— Com Jonas não foi difícil — tentei explicar. — Todo mundo gostava dele. Não entendo por que Arizona age com tanta grosseria.

— Porque sim! — Summer abriu a porta para deixar o sol se esgueirar sobre o velho tapete. — Só não leve para o lado pessoal.

Ri um pouco.

— Mas é pessoal. Você não viu como ela me botou para fora do círculo?

— Então tente não reagir, relaxe. Pense em como Arizona era acostumada a estar sempre no controle das coisas, Darina.

— Mas agora ela não está, né? Pela primeira vez ela está dependendo de alguém.

— E esse alguém é você. Entendeu agora? — Summer finalizou.

— Darina, você está pronta? — Arizona não estava perguntando.

Page 29: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

29

Eu estava sentada com ela e Phoenix nos degraus do palheiro, uma meia hora depois de minha conversa com Summer. A tarde já escurecia, e cada centímetro meu desejava que só estivéssemos Phoenix e eu naquela escada.

— O que é isso, os cem metros rasos? — Summer havia dito para não devolver as provocações, mas existia uma energia entre mim e Arizona que sempre resultava em conflito. Era como colocar duas substâncias químicas em um tubo de ensaio e se afastar para assistir às reações.

Arizona me olhou sem desviar os olhos.

— Hunter disse para eu contar a você os fatos mais importantes. Aqui vão eles: era fim de outubro, uma quinta-feira. Estava um pouco frio, e não me lembro de ter pensando em ir nadar.

A-há!

— Encontrou alguém? Com quem você falou? — Comecei o interrogatório.

— Meus pais, talvez. Não me recordo. Meu pai estava ocupado naquela manhã, por isso faltei à aula e fui levar meu carro para a oficina.

— No centro?

Ela negou.

Ela não retribuía meu olhar inquisidor. — Num lugar atrás do shopping, não me lembro do nome.

— Alguém foi com você? Quem deu carona para você de volta para casa? — Era necessário espremê-la bem para tirar todos os detalhes.

— Eu não fui para casa.

Phoenix interrompeu o silêncio que se seguiu:

— Colabore um pouco, vai. Isso aqui está sendo difícil para Darina.

— E para mim, não? — Ela retrucou com grosseria, e, por um instante, eles ficaram em silêncio naquele negócio de telepatia zumbi. Saíam faíscas dos olhares entre os dois, mas eu não participei da conversa sem fala deles.

Para mim, Arizona sempre foi uma pessoa dessas que aparecem em revistas de moda: jeans e camiseta apertados, botas com salto que a faziam ficar ainda mais alta e magra. O rosto emoldurado pelo cabelo preto, comprido e sedoso, olhos que parecem de vidro de tão verdes, e lábios que fazem um biquinho de desprezo permanente.

Page 30: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

30

O que eu tinha descoberto sobre a morte dela? Um conserto de carro numa oficina sem nome nem hora do dia. Não era muito. E foi quase tão complicado quanto extrair um dente. Fiquei feliz quando nos interromperam.

— Ei, Darina — disse Iceman ao entrar no celeiro. — Acabei de chegar de Government Bridge.

Só aí percebi que Iceman não fez parte do comitê de boas-vindas a Lee Stone. Todos os Beautiful Dead estavam juntos, exceto ele. Como pude me esquecer dele, o outro guardião, junto com Eve e Donna?

— E aí, Iceman? — perguntei, com um sorriso meio envergonhado.

— Hunter me mandou lá para baixo para dar uma olhada nos caras dessa nova obra de engenharia — ele explicou. — E eu não gostei do que vi.

— Quantas pessoas? — Phoenix perguntou.

— Cinco: um agrimensor e quatro para o trabalho. E um monte de máquinas, principalmente retroescavadeiras e caminhões. Eles estão planejando reforçar a ponte e começam hoje.

Government Bridge ficava alguns quilômetros abaixo de onde estávamos — uma estrutura de madeira que rangia sob o peso de carros utilitários dirigidos por caçadores e pessoas que passeavam. Era uma reserva florestal do governo, e, evidentemente, alguém no setor de planejamento havia decidido que precisava de uma vistoria antes que o inverno chegasse.

— Mas por que eles viriam para cá? — Arizona quis saber. Pelo tom de sua voz dava para notar que não achava que poderia ser um grande problema. — Tá bom, esse riacho desce até Government Bridge, mas os caras não vão sair por aí observando as belezas da fauna e flora locais.

Em outras palavras, os trabalhadores cavariam buracos, enterrariam estruturas de aço no chão para depois, à noite, ir direto para o bar mais próximo.

— Exatamente, nosso riacho é o que passa por debaixo da ponte — disse Iceman com muita calma. — E o agrimensor deve estar subindo para checar o volume de água na nascente neste momento!

Phoenix levantou-se e pulou por cima do corrimão da escada para o chão do celeiro.

— Hunter sabe disso?

Page 31: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

31

— Eu já falei para ele. Disse para você e Arizona irem comigo. Não podemos deixar o cara chegar aqui.

De uma hora para outra tudo mudou: Arizona deixou a atitude arrogante de lado, pegou um elástico em seu bolso e amarrou o cabelo para trás. Phoenix já estava na porta, fora do celeiro, na hora em que eu corri para alcançá-lo e perguntar se poderia ir junto.

— Não, é melhor você ficar aqui — era o que vinha da boca dele quando Hunter saiu da casa com Lee Stone.

— Ela vai junto — disse o mestre, curto e grosso, ainda na sombra da varanda. — E leve Lee também, mostre a ele como trabalhamos.

Phoenix, Iceman e Arizona tomaram a dianteira na descida até a margem do riacho, comigo e com o zumbi novato na cola deles. Fomos abrindo caminho entre moitas de salgueiro, pedras e a grama alta, até assustarmos uma família de cervos que estavam descansando nos arbustos, fazendo os bichos subirem um barranco quase vertical.

— Merda! — Foi o xingamento de Lee quando afundou seu pé na água gelada.

— Não pare! — ordenou Arizona assim que ele abaixou para desamarrar a bota. Já dava para começar a ver Government Bridge.

— Será que isso está acontecendo de verdade? — Lee se perguntava, parecendo que tinha tomado uma pancada na cabeça, como se ainda estivesse zonzo do impacto.

— Mais ou menos — resmunguei enquanto tentava me jogar do paredão de granito onde estava uma pedra mais perto da água. — E se prepare, porque não é brincadeira!

— Abaixe a cabeça, Darina! — Arizona falou com raiva. — Você quer que descubram a gente? E que a gente seja jogada de volta para o lugar de onde viemos?

Talvez, falei baixinho para mim mesma.

Cinquenta metros à frente, Phoenix me ouviu com sua superaudição e fez cara de quem não gostou. Ele apontou para os dois tratores amarelos perto da ponte e alguns homens ao lado das máquinas. E deu a notícia:

— Nem sinal do agrimensor.

Page 32: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

32

— Isso é péssimo. — Iceman estava certo de que ouvira o chefe falar aos outros que ele ia subir o riacho. — Talvez seja melhor voltar e dar outra olhada.

— Agora, não — retrucou Arizona que, apesar da escuridão crescente, viu um dos trabalhadores se destacar do grupo e seguir em nossa direção. Meu coração quase parou quando vi a espingarda que ele carregava.

— Que aconteceu, Josh? O que você viu? — gritou outro cara. Um terceiro também pegou a própria arma na caçamba da caminhonete.

— Acho que vi alguma coisa, um coiote talvez — o primeiro barrigudo chamado Josh respondeu sem se virar para trás. — Ou um cervo, não sei.

Arizona se escondeu atrás de uma pedra grande.

— Obrigado, Darina. Acho que o que ele viu não foi um coiote nem um cervo, ele deve ter visto você.

— O que vai fazer? Atirar nele? — Os colegas de Josh davam risada de sua clara falta de intimidade com a difícil tarefa de subir o morro. — Vai ter bife de cervo no jantar?

Mesmo que a situação fosse engraçada, ainda havia dois homens armados avançando para o lado onde estávamos. Phoenix sabia que era hora de falar sério.

Quando cheguei por trás deles, me arrastando para dar a volta em uma rocha e chegar à ponta de um penhasco arredondado, senti que armavam o campo de força zumbi que tantas vezes me aterrorizou ultimamente. Um vento forte começou a levantar poeira e pedregulhos numa nuvem que subia a montanha, depois um farfalhar até chegar ao barulho de asas batendo mais alto do que qualquer um pudesse acreditar.

— Merda! — Lee gritou de algum lugar atrás da gente. Parece que o choque tinha reduzido seu vocabulário... — Isso é um bando imenso de pássaros ou o quê?

A tempestade de asas invisíveis batendo atingia os caras armados e fazia com que cambaleassem e procurassem equilíbrio. Já estava escurecendo, e eles tentavam proteger a cabeça levantando os braços.

— Eles vão voltar, você vai ver! — falei confiante para Lee.

Mas não foi de imediato, esses caras eram duros na queda.

Page 33: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

33

— Puta mee-eerrda! — foi o que Josh gritou enquanto as asas que Phoenix e Iceman criariam se abatiam sobre eles. — Isso é o que aqueles caçadores de tornados procuram. Imagina a quantidade de adrenalina!

— A gente tá onde, no olho de um furacão? — o outro homem gritava. — Velho, para mim isso aí são asas!

Mais e mais almas penadas se juntaram ao campo de força para levar os trabalhadores de volta à ponte. Elas iam varrendo tudo pelo lado da montanha, amassando o capim e arrancando flores, rodopiando em volta dos forasteiros até suas pernas travarem e eles se desabarem no chão.

— Espera só que agora vêm as caveiras da morte! — Achei melhor avisar Lee.

Esses homens eram adultos que não queriam passar vergonha na frente de seus colegas, mas já estava escuro e continuavam sendo fustigados por uma força que não conseguiam entender, empurrados morro abaixo. E, além de tudo, agora viam coisas — coisas de pesadelo, assustadoras, dessas que não se admitem ter visto depois, apenas porque as pessoas não acreditariam, diriam que você estava ficando louco.

Iceman, Phoenix e Arizona haviam pedido reforços: caveiras apareceram no céu, a princípios uns borrões para em seguida tomar forma e pairar sobre os invasores, lançando-se ao ataque uma a uma e enchendo a vista deles de crânios amarelados com buracos negros em lugar dos olhos, em quantidade suficiente para nocautear e deixar qualquer um desacordado. Eu conhecia bem aquilo.

Assisti aos homens se contorcendo no chão. Os três outros que tinha ficado lá embaixo perto da ponte começaram a subir para, logo em seguida, também sentir a revoada de asas batendo forte, sem cessar, e encontrar seus amigos encolhidos no chão, igual a recém-nascidos, e talvez ver — ou pensar que tinham visto — caveiras surgindo da escuridão, e enfim desistir de continuar adiante. Nem esperaram os dois que estavam no morro — ligaram os carros e saíram de lá pela estrada de terra rumo à serra de Turkey Shoot.

Ainda atrás de mim, Lee foi lentamente percebendo o que estava acontecendo.

— A gente pode fazer isso? Podemos trazer almas do inferno?

— Do inferno, não. Do limbo. — Mesmo nessa hora, Arizona tinha de insistir naquela precisão desnecessária, a ponto de irritar. — Agora, veja esses dois, para eles já foi demais.

Ela estava certa. Josh e seu amigo seguravam-se um ao outro. Ficaram de joelhos com expressões tão agoniadas que não pareciam humanos. Foram

Page 34: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

34

deixando para trás suas armas à medida que iam escorregando e tropeçando morro abaixo.

— Parece que esses dois vão ter de voltar andando para casa. — A voz calma de Hunter chegou sorrateiramente pelas nossas costas. Havia um desconhecido com ele: um cara grisalho de óculos com aparência de desocupado, vestindo calça jeans e camisa xadrez, calçando botas de montanhismo. — E você também — ele disse para seu acompanhante.

Os olhos do homem estavam vidrados, ele não via nem ouvia nada do que se passava à sua volta.

— Este é o agrimensor — Hunter explicou. — Deve ter passado por vocês sem que notassem. Summer o achou na trilha perto do celeiro. Não teve outro jeito, tive de apagar o episódio todo da memória dele.

Como condição para ficar com Phoenix, salvar Arizona tornou-se parte do acordo. A todo momento eu me lembrava disso: era como engolir um remédio amargo.

— Tome cuidado — Phoenix me disse quando estávamos nos despedindo, perto da velha caixa d’água na serra de Foxton. — E me prometa: não entre de cabeça em nenhuma situação, a menos que consiga enxergar uma saída para ela.

— E desde quando eu faço isso?

— Desde que nos vimos pela primeira vez. E por isso você é tão interessante... — Ele olhava no fundo dos meus olhos, adivinhando a dor em meu coração. — A maioria do pessoal em Ellerton High vive a vida com o freio de mão puxado, você não.

— E você quer que eu seja igual aos outros? — reagi, inconformada. — Checar sempre se está tudo bem, ver se não tem ninguém me seguindo, andar sem pressa. E agora, ainda por cima, as coisas na cidade estão bem piores desde que... Você sabe.

— Desde as quatro mortes — ele sabia. — Um acidente de moto, um afogamento, um tiroteio e uma facada. Será que dá para ficar pior que isso?

Eu achava que dava.

— O pessoal tem pensado que qualquer um pode ser o próximo, principalmente os pais paranoicos. — O nível de estresse havia chegado ao maior pico de todos os tempos em Ellerton. A molecada estava sendo posta de castigo por qualquer coisinha, os pais impunham toques de recolher que crianças de cinco anos achariam difíceis de cumprir. — Toda vez que pego as

Page 35: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

35

chaves do carro, Laura vem na minha cola querendo saber para onde vou, com quem e para quê.

— Então se cuida — Phoenix repetiu. Ele já estava quase soltando a minha mão, de olho na descida que ia até o celeiro.

Eu precisava de toda a sua atenção novamente, por isso me pendurei de leve em seu pescoço. — No que está pensando?

— Nada, não é importante. — Ele me abraçou pela cintura, mas continuava ausente.

Pensei que o impasse se resolveria com um beijo — um daqueles tristes e carinhosos, de despedida, quando se despedir é a última coisa que desejamos. Errei de novo!

— Você vai ter de me desculpar, Darina. — Soltando-me e afastando-se; estava claro que a intenção de Phoenix não era a mesma que a minha. — Hunter está precisando de mim, preciso ir.

Percebi umas pontadas leves atacando meu peito e meu estômago. Estaria Phoenix desistindo de todo o amor que eu sentia por ele? O que será que eu teria feito ou dito para acontecer isso?

— Amo você — sussurrei.

Com um movimento mínimo de cabeça, ele voltou a olhar diretamente para mim. Quase sem se mexer, seu rosto confirmava sua decisão.

— Tenho de ir, dirija com cuidado, tá?

Chorei demais antes de chegar em casa. Dizia a mim mesma que estava hipersensível, que Arizona já estava me enervando, e que a chegada de Lee Stone também trazia ingredientes desconhecidos para a mistura toda.

Dirigindo para Centennial, consegui me controlar novamente.

Da próxima vez tudo estará bem melhor para mim e para Phoenix, pensei. Eu devia estar imaginando um problema que não existia de verdade, ele ainda me ama tanto quanto eu o amo, para sempre e sem fim.

— Kim Reiss ligou para você — Laura me avisou quando joguei as chaves na mesa da sala e entrei na cozinha. — Ela adiantou sua consulta para segunda-feira à tarde, às quatro e meia.

— Eu preciso mesmo ir? Eu queria que você soubesse que está gastando à toa seu suado dinheirinho.

Page 36: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

36

Laura já havia adiantado o pagamento de seis sessões de terapia, portanto nada faria com que ela me deixasse escapar da consulta na segunda-feira.

— Eu acredito que esteja ajudando você a superar o trauma, sim — insistiu.

— É mesmo? E como é que você sabe?

— Você não passa mais o dia inteiro deitada, como costumava ficar — Laura lembrou enquanto me dava uma xícara de café.

É, foi assim logo depois da morte de Phoenix. Meu coração começou a pular e quase voltei ao descontrole de antes. Eu tinha acabado de deixar meu namorado Beautiful Dead lá na serra de Foxton depois de uma coisa estranha entre a gente, e a ansiedade apertava meu peito.

Laura provavelmente percebeu o sofrimento em meu olhar, que mudou para um tom de voz mais doce.

— Você começou a sair mais, a me dar trabalho, como sempre fez — como está fazendo agora!

— Tá, eu vou ver Kim — concordei, já que era importante para Laura e desviava a atenção daquilo que eu realmente estava fazendo.

No domingo, acordei cedo e passei na casa de Logan.

— Você está com cara de quem passou a noite em claro — ele me disse, antes que eu pisasse na cozinha. Seu pai ainda dormia e Logan estava fritando uns ovos com bacon.

— Obrigada — respondi, dando uma conferida no espelho do corredor. As olheiras em meu rosto estavam reforçadas pelo lápis esfumaçado e pelo rímel que eu nunca deixo de usar quando saio de casa.

— Quer comer alguma coisa?

— Não, obrigada. — Sentei-me à mesa, aceitei um copo de leite e, em seguida, fui direto ao ponto. — Conte sobre as aulas de guitarra que você tem depois da aula, com Frank Taylor.

Uma fumaça do bacon subia da frigideira, Logan gostava dele bem crocante. — Você tem vontade de treinar? Eu poderia ensiná-la...

— Claro, estou querendo praticar — menti. — Mas queria um professor bom de verdade. Ouvi falar que o Sr. Taylor é um dos melhores.

Fiquei a noite toda acordada, pensando em maneiras de saber mais sobre Arizona para poder avançar na investigação. Geralmente havia amigos a quem

Page 37: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

37

eu poderia recorrer, e eles me colocariam em contato com toda uma rede de informações sobre os lugares que frequentava, com quem costumava sair, algum segredo que pudesse ter. Só que Arizona não era mesmo do tipo que mantinha amizades íntimas, então por esse caminho eu não conseguiria nada. Por isso, só me restava ficar próxima dos pais dela e da possibilidade de descobrir mais coisas através deles. Esse era o motivo pelo qual eu estava tão curiosa sobre as aulas de guitarra de Logan.

Admito que meu velho amigo estava sendo completamente usado, e que de jeito nenhum ele poderia ficar sabendo da verdadeira razão de meu súbito interesse.

— Frank Taylor dá aulas de violão clássico — Logan explicou. — Tem certeza de que não quer bacon?

— Tenho. Violão clássico é exatamente o que me interessa, guitarra eu já toco — Jonas me ensinou, lembra?

— Então, por que você não aprende violão comigo? — Logan não desistia. — Assim a gente consegue passar mais tempo junto.

Por isso mesmo é que não quero.

Logan era uma espécie de craca, dessas que grudam nos cascos dos barcos e os marinheiros têm de ficar raspando. Um ano atrás eu não diria coisas assim a seu respeito. Há um ano, quando Phoenix ainda não tinha entrado na minha vida.

— As aulas particulares de Frank Taylor são na faculdade de música onde ele trabalha?

— Não, eu vou à casa dele. — Logan terminou rapidinho o café da manhã. — Toda terça-feira, às dezoito horas. Você precisa ver, Darina, comparado a isso aqui, comparado até a sua casa, aquilo lá é um palácio. Foram até tirar fotos para a revista Mountain Living, depois que a Sra. Taylor contratou um decorador que trabalhou lá o ano inteiro. Ela renovou a casa toda.

— Eu sei. Então você vai lá — repeti. Bom, já estava tudo certo na minha cabeça. — Valeu, Logan — agradeci e roubei o último pedaço de bacon de seu prato antes de sair. — Vou ligar lá depois do almoço.

Frank Taylor com certeza não precisava de dinheiro, portanto deve ter sido o puro amor ao violão que o fazia vender seu conhecimento musical a vinte e cinco dólares por hora, preço de banana.

Fui de carro até Westra e parei do lado de fora do portão eletrônico, no número 2.850 da Rua Norte. A casa dos Taylor ficava num grande terreno

Page 38: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

38

gramado, construída em estilo holandês com frontões arredondados, telhado baixo, e a varanda era feita de madeira, muito chique e entalhada por dentro e por fora. Chamei o jardineiro que estava cuidando dos canteiros.

— Frank Taylor está?

O cara velho e magro veio até o portão e lançou um olhar me medindo.

— Quem deseja saber?

— Quero fazer aulas de violão — disse, sem responder diretamente. E, afinal, quem era esse cara?

— Tudo bem, Peter. — Um homem alto veio andando até o portão. Eu daria pelo menos sessenta anos para ele, o que me deixou surpresa quando abriu o portão e veio me cumprimentar. — Eu sou Frank Taylor — apresentou-se.

Puxa, quer dizer que o pai de Arizona já era um senhor de idade! Os ombros dele eram curvados e seus olhos cinza rodeados de rugas ficavam afundados no rosto.

— Como você soube que eu dou aulas de violão?

— Um amigo meu me disse, Logan Lavelle.

— Sim, Logan é um bom rapaz. Toca com bastante técnica, mas sem muito talento — fui informada. — Bem, vamos entrar, como é mesmo...?

— Darina. — Segui-o pela entrada da garagem. — Eu conhecia Arizona, éramos colegas de classe. — Melhor soltar essa antes de entrar, pensei.

— Ela nunca falou de você — fui agora secamente informada. Ele segurou a porta para mim. — Entre.

Estávamos no hall — maior que minha casa inteira. O estilo era uma mistura entre o tradicional e o contemporâneo: superfícies de madeira polida e aço escovado combinando, sofás de couro — onde caberia times inteiros de basquete — contrastando com o bege das paredes.

— Alysson, esta é Darina — Frank me apresentou à mulher que saía de outro cômodo. — Ela tem a mesma idade que Arizona teria.

Meu corpo arrepiou-se todo — por um segundo pensei que pudesse estar vendo uma irmã mais velha de Arizona, da qual eu nada sabia. Mas aí notei o cabelo louro, liso, perfeito demais, a maquiagem cuidadosa e a testa imóvel, sem rugas, e decidi: não, Alysson Taylor deve ser a mãe de Arizona. Se eu

Page 39: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

39

estava dando sessenta anos para Frank, sua esposa não tinha mais do que trinta e cinco.

— Olá, Darina. — Alysson não poderia ter sido mais apática. Passou por mim e pelo marido, saindo pela porta da frente. — Frank, se precisar de mim, estarei no estúdio.

— Onde mais? — Ele resmungou, com ar cansado. — Minha esposa trabalha em um canal de notícias vinte e quatro horas. Faça chuva ou faça sol, tempestade ou furacão, é lá que você vai encontrá-la.

Achei que era mais informação do que eu precisava, então me concentrei no design dos móveis enquanto ele me levava para um ambiente que obviamente era sua sala de música. Chamavam a atenção meia dúzia de violões em uma parede, além dos teclados, computadores, monitores e aparelhos de som de todo tipo que havia por lá.

— Você tem algum conhecimento musical, Darina, ou está começando agora? — Frank perguntou, sentando-se atrás de uma mesa como um promotor em um tribunal.

— Toco um pouco.

Ele me deu o violão mais próximo.

— Mostre-me.

Eu sabia uma música do James Taylor que meu pai havia me ensinado quando eu tinha dez anos, então escolhi qualquer coisa, contei para Frank onde havia aprendido e dedilhei um pouco.

— É, como me disse, você toca um pouco. Sabe mais alguma coisa?

— Sei umas faixas do disco de Johnny Cash gravado quando estava preso em Fulsom. — Como fui me meter nessa? Estava morrendo de vergonha.

— Nada de Bach ou Debussy? Seu pai não lhe ensinou a tocar como Segóvia?

O pai de Arizona estava gozando da minha cara? Examinei sua expressão e não vi sinal de humor.

Frank Taylor recostou-se na cadeira.

— Diga a verdade, Darina, por que mesmo você veio aqui?

Parecia que os Taylor estavam acostumados à bisbilhotice alheia. Depois da matéria na revista, uma multidão de jornalistas de meia-tigela começou a bater à porta deles para tirar mais fotos para suas respectivas revistas. Ainda mais

Page 40: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

40

depois da morte de Arizona, quando esses ―amigos‖ brotavam do chão — intrometidos que faziam de tudo para estar mais perto da fonte da notícia. Pelo menos foi o que o Sr. Taylor me disse, já me colocando também nessa categoria e emendando:

— Se não tivesse mencionado Logan, eu nem a teria deixado passar do portão.

— Não é o que você está pensando. — Estávamos no corredor, eu viajando no formato de um sofá. — Eu conheço, hã, eu conhecia Arizona. Nós éramos amigas.

Frank Taylor estava sem paciência.

— Como eu já disse: ela nunca falou de você, você nunca veio aqui antes. Faz quase um ano que Arizona morreu, e não há mais nada aqui que você possa descobrir, então peço que, por favor, vá embora.

— Sinto muito. Não pretendia incomodar ninguém.

— Você não incomodou — ele falou calmamente enquanto abria a porta para que eu saísse.

A porta bateu e eu encarei o longo caminho até o portão.

Essa foi demais, falei para mim mesma, procurando pelo jardineiro e esperando outra dose de humilhação. Peter não estava por ali, mas havia alguém sentado em um quiosque no meio da grama — um menino debruçado sobre uma grande pilha de papéis que apoiava no joelho, tão entretido com seu lápis na mão que nem percebeu minha presença.

Ouvi uma porta abrir do outro lado da casa, e a voz do jardineiro Peter chamar:

— Raven, cadê você?

O menino levantou a cabeça e, aparentemente numa reação desproporcional à pergunta do funcionário, saiu do quiosque correndo para atender ao chamado. Ele devia ter uns nove anos, era moreno e magro como Arizona, mas sem nada daquele ar muito seguro dos Taylor — aliás, totalmente o contrário. Ele parecia assustado, desorientado, sem saber para que lado correr. Como tinha derrubado todas as folhas na grama, eu me apressei para ajudá-lo a recolher tudo.

— Aqui — falei enquanto devolvia as coisas dele.

Page 41: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

41

Pude ver um pouco do desenho que ele estava fazendo: uma representação realista, bem detalhada da grande casa, tudo perfeitamente dimensionado, desenhado bem livre como se o lápis nunca tivesse saído do papel.

— Raven, eu falei para você não sair de casa. — Peter apareceu saindo da parte de trás da casa. Ele nos viu juntos e andou até a gente com passos duros.

— Pegue seu desenho — insisti, pressionando a folha na mão de Raven. — É lindo.

Minhas palavras não conseguiram transpor o olhar de coelhinho assustado que foi encurralado. Ele amassou o desenho e enfiou no bolso da minha jaqueta.

— Venha já comigo, Raven — Peter disse com voz firme. — Seu pai quer saber onde você está.

Page 42: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

42

— Foi tudo tão louco — no dia seguinte fui contar a Kim Reiss. — Eu nunca nem soube que Arizona tinha um irmão.

— Você a conhecia bem? — Minha terapeuta parecia mais interessada em minha relação com Arizona que no misterioso Raven.

— Ninguém conhecia Arizona. Ela gostava que fosse assim, mas achei que, se ela tivesse um irmão, contaria a todos.

— E por que isso a incomoda tanto?

— Porque o menino estava assustado. Parecia que estavam tentando escondê-lo, e isso não está certo.

Kim não parava de me examinar com os olhos, como se lesse um mapa rodoviário e traçasse a rota das minhas emoções e pensamentos.

— Talvez tenham lá suas razões para isso.

— E tem mais isso aqui. — Tirei o desenho amassado de meu bolso. — É a casa dos Taylor, detalhada em cada partezinha.

A folha de papel chamou a atenção de Kim. Ela me devolveu especulando.

— Será que ele fica em casa o dia inteiro ou vai para escola também?

— Mesmo se ele for, por que tanto segredo? — Fiquei com isso na cabeça a noite toda e durante as aulas. — E como é que a casa não tem nada que lembre Arizona? Não vi nenhuma fotografia dela, nenhuma de suas coisas esquecidas por ali, como se ela nunca tivesse existido.

— Talvez seja muito doloroso ter recordações à vista, não podemos julgar os Taylor por causa disso. — Kim olhou para o relógio. — Darina, já passamos

Page 43: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

43

quase metade da sua consulta falando do problema de Arizona, então pensei se não há outros assuntos de que você queira tratar.

— Por onde eu começo? — perguntei, fazendo uma careta.

— Como estão as coisas entre você e Laura?

— A mesma coisa: ela me pressiona, eu saio andando. É isso.

— E seu amigo Logan?

— Idem.

— E como você está lidando com suas emoções a respeito da perda de Phoenix?

— Vou levando — resmunguei. Nas primeiras sessões com Kim eu botei tudo para fora: de como eu ainda via Phoenix na escola, no centro, em todo lugar que eu olhasse. Ela me falou que era algo normal de luto, mas ela não sabia que eu literalmente via meu namorado Beautiful Dead, fazendo seus truques de zumbi e se materializando do nada.

Isso foi antes de aprender que eu devia manter segredo e suportar o peso dele sozinha, carregando-o comigo por todos os momentos da minha vida.

Naqueles dias, toda vez que o tópico surgisse, vinha também a revoada de asas batendo — o aviso de Hunter para que eu ficasse calada. E estava acontecendo naquele momento — o vendaval de asas prestes a me sufocar se eu me abrisse com a psicóloga.

— Sabe de uma coisa? — falei, numa súbita levantada que fez a cadeira tombar para trás. — Parei por aqui.

Os olhos de Kim demostraram uma leve surpresa.

— Quer ir embora? Nossa sessão ainda não terminou.

— Terminou, sim — respondi. — Só venho aqui porque Laura armou essa coisa; não quero mais fazer isso.

A surpresa se dissipou e deu lugar a uma expressão calma, profissional.

— Entendo, Darina. Lamento que se sinta assim.

— Não adianta... Falar sobre Phoenix dói demais, você não pode entender.

Kim levantou-se também e falou calmamente.

Page 44: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

44

— Pode ir, se é o que você precisa, mas saiba que vai encontrar minha porta sempre aberta.

— Valeu — agradeci à medida que as asas sumiam. Eu tinha saído de lá, ponto final. E não voltaria mais.

O que era uma pena, pois gostava bastante de Kim Reiss. Ela e eu falávamos a mesma língua, e não havia nenhuma pressão envolvida. Eu já estava me acostumando a compartilhar meus sentimentos com ela.

Passei o resto do tempo da consulta de Kim tomando refrigerante em um restaurante na parte do centro perto da Centennial, tentando me convencer a não voltar a Foxton até que descobrisse alguma coisa útil para Arizona. Disse a mim mesma: Vá para casa, durma um pouco. Tente de novo amanhã.

Mas eu me sentia como se estivesse sendo arrastada para aquele lugar, especialmente quando imaginava Phoenix andando naquela encosta e montando guarda para evitar que operários enxeridos ou uma turma de caçadores desavisados pudessem se aproximar demais.

Vá para casa, Darina!, Insisti um pouco mais. Pegar a estrada e ir até lá agora nessa escuridão não pode dar em nada de bom.

O ronco dos motores das Harleys que chegavam ao estacionamento foi o que me trouxe de volta ao presente. Reconheci Brandon Rohr no comando do grupo e alguns outros caras, os que tinham ido ao velório de Bob Jonson.

Eles desceram das motos e foram entrando no restaurante, anunciados pelo som dos saltos das botas e pelo barulho do couro das jaquetas. Por um segundo pensei que Brandon não me cumprimentaria, porém ele veio e sentou-se à minha mesa.

Um dos membros da gangue foi ao balcão para fazer o pedido. Igual a Brandon, ele tinha vinte e poucos anos e a mesma pose de machão — inclusive mais do que o amigo.

— E aí, Darina? — Brandon tirou a jaqueta sem pressa nenhuma e pendurou-a na cadeira. — O que você achou do carro?

— Legal. — Fiquei arrependida de não ter terminado logo o refrigerante e saído de lá uns cinco minutos antes. Agora estava presa a uma conversa que eu não queria ter com o irmão mais velho de Phoenix.

— Ei, Kyle, vem conhecer a namorada de Phoenix. Darina, este é Kyle Keppler. — Brandon queria me apresentar seu amigo que estava no balcão. — Sabe como é, falar com ela é como tirar leite de pedra.

Page 45: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

45

— E aí? — Kyle grunhiu, sem ao menos se virar em minha direção.

Brandon estava cheio de si.

— Encontrei o melhor conversível da região para Darina, e a única coisa que ela consegue dizer é uma palavrinha besta: ―legal‖. — Ele se esticou no corredor para chamar mais uns caras. — Byram, Aron, conheçam Darina.

Lembrei que Byram era o motoqueiro mais velho que foi gentil com Zoey no velório de Bob Jonson.

— Vai na dele, Brandon vai cuidar bem de você — ele me aconselhou.

Falando sério, eu estava praticamente sufocada por tanta testosterona no ar. E, como de costume, a ligação entre Phoenix e seu irmão mais velho ainda me chocava. Havia sido o mesmo material genético que tinha dado a ambos sua altura e os ombros largos, o cabelo escuro e o sorriso safado.

Tenho uma relação de amor e ódio com Brandon Rohr. Eu o amo pelo simples fato de ser o irmão de Phoenix, e o odeio porque era ele quem comandava a briga em que Phoenix foi morto. Eu até apostaria uma grana na hipótese de ter sido a reputação de Brandon o motivo para o estranhamento entre as gangues. Não que eu tenha provas disso — é apenas uma massa de informações conflitantes aliada à minha mente desconfiada. No final das contas, mesmo com Brandon arranjando carros para mim por causa do pedido de Phoenix em seu último suspiro, para ser sincera é mais ódio que amor.

— Você não sabe, Darina — Brandon começou, colocando o braço sobre a cadeira de Kyle enquanto o amigo sentava a seu lado —, mas você e meu chapa aqui têm uma coisa em comum.

Duvidei e minha cara mostrava bem isso.

— Escuta — ele insistiu, mantendo-me amarrada ao diálogo. — O que vocês têm em comum é: os dois perderam alguém muito próximo.

Baixei meu olhar mirando a mesa e tentando não ouvir o que ele falava.

— Você perdeu Phoenix, Kyle perdeu Arizona.

Olhei para cima num susto.

— Quer dizer... Não é possível! — Kyle estava infinitamente longe de ser do tipo refinado de Arizona — ele era loiro, meio brutamontes e, como havia dito, tinha mais de vinte anos e as unhas todas roídas, ainda por cima.

Page 46: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

46

— É possível, sim... — Brandon confirmou. — Faz um ano e Kyle ainda está todo sentido pela morte dela. Nossa, eles estavam juntos há mais tempo que você e meu irmão.

Então agora havia um namorado e um irmão de quem eu não sabia — valeu, Arizona!

Já estava ficando tarde, mas saí do restaurante e fui para Foxton mesmo assim. As primeiras estrelas apareciam no céu junto com a lua nova sobre a cruz de neon na encosta de Turkey Shoot. Na hora em que cheguei ao fim da estradinha e tive de continuar a pé até a caixa d’água escondida entre os choupos, não dava mais nem para ver onde eu estava pisando.

— Caramba! — Tropecei em uma pedra e ralei a canela. Da próxima vez, venha de calça, fiz questão de me lembrar. Uma minissaia não era o ideal para essas ocasiões, muito menos os sapatos de bico fino. E traga uma lanterna, acrescentei.

Depois de um monte de tropeções, cheguei na caixa d’água, feliz com uma coisa: não havia campo de força dos Beautiful Dead para me afastar. Esta noite eu não teria forças para brigar contra asas e caveiras.

Em vez disso, Hunter mandou o garoto novo, Lee Stone, vir me receber. Ele saiu de debaixo da caixa d’água sem dizer nada.

Pulei para trás de susto.

— Ainda bem que criei nervos de aço — reclamei. — Você não podia ter me dado um aviso, em vez de aparecer assim do nada?

— Hunter falou para esperá-la; ele sabia que você viria.

— Ele sabe tudo, disso você pode ter certeza — eu disse num tom seco.

Lá no alto da serra, a lua e as estrelas iluminavam o suficiente para que eu desse uma olhada mais atenta a Lee, que vestia camiseta escura e uma jaqueta conhecida minha — muito provavelmente a jaqueta que Phoenix estava usando quando foi esfaqueado no meio das costas.

— Vire-se — sussurrei. De fato tinha um rasgo serrilhado na jaqueta. Tentei esconder um soluço e o arrepio que correu pelo meu corpo. — Onde estão os outros? — perguntei.

— Estão no celeiro, fazendo um tipo de reunião. — Lee parecia que ainda não tinha se acostumado à ideia de ter voltado dos mortos. — Disseram para eu ficar aqui vigiando.

— Bem, eu já estou aqui. Vamos até lá nos juntar a eles?

Page 47: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

47

— A reunião não é para vivos. É um tipo de ritual pelo qual eles precisam passar.

— Que tipo de ritual? — Era a primeira vez que eu ouvia falar disso, e começava a me irritar com Lee tentando impedir que eu seguisse morro abaixo. — Preciso conversar com Phoenix, é coisa pessoal.

Lee recusou-se a dar passagem.

— Hunter disse que não.

— Ah, se o grande mestre proibiu, então vai ser assim! — Parti para o sarcasmo, muito embora Lee não merecesse. — Diga aí, Lee, você não sente falta de um pouco de livre-arbítrio nesse lugar?

— Peço desculpas, mas aqui é assim. — Ele parecia abatido e ainda com uma ponta de confusão no tom de voz. — Hunter é quem dá as ordens.

— Tudo bem, eu sei. — Fechei os olhos por um segundo, tentando entender a situação dele. — Quem devia pedir desculpas era eu, é que às vezes é difícil de aguentar.

— O quê?

— Obedecer, guardar segredos, ser deixada de fora da rodinha. Por acaso Hunter disse se pelo menos me deixaria falar com Phoenix? Algum outro dia, se não hoje?

Lee fez um sinal negativo com a cabeça mais uma vez.

— Não tenho a menor ideia. Sinto muito.

— Não sinta, não é sua culpa. — Eu me coloquei no lugar de Lee por um instante e perguntei, para tentar entender melhor: — Pelo menos já tiveram tempo de lhe explicar como são as coisas?

— Um pouco. Descobri que estou na fila atrás de Arizona, Summer e Phoenix. A espera é difícil, especialmente sabendo que existe alguma coisa aqui no mundo dos vivos que ainda precisa de explicação.

— É, eles têm uma palavra para isso: espectro. Você voltou meio que temporariamente, com todos esses poderes malucos.

O sorriso intrigado de Lee por causa do breve esclarecimento iluminou seu rosto e fez com que eu notasse pela primeira vez quanto ele era bonito.

— Posso limpar sua mente e apagar sua memória, não é legal?

Page 48: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

48

— É, mas nem tente. — Falei, já mudando de assunto. — Você pode não ter um coração batendo, mas em compensação tem uma superaudição.

— Ouvi seu carro antes de ele chegar em Turkey Shoot — confirmou.

— Então você é um Beautiful Dead. — Olhei direto em seus olhos, e a conversa foi morrendo ao passo que eu me adiantava para pôr a mão no ombro dele complacente. — Não se preocupe, no final tudo fará sentido.

— Ah, mas que gracinha! — Arizona provocou, saindo das sombras. — Vocês vão ter de me desculpar... Estou interrompendo algo?

Puxei minha mão do ombro de Lee, como se ele estivesse fervendo.

— Ei, como é que você não me conta de seu irmão menor? — Retruquei, desafiando. — E muito menos do namorado musculoso, Kyle Keppler!

* * *

Naturalmente, Arizona não me respondeu. Ela se esquivou das minhas grandes questões dizendo que a reunião deles havia terminado; Hunter tinha dado permissão para que eu descesse e me encontrasse com Phoenix.

— Darina, minha querida, você vai ter de dar algumas explicações! — ela disse, rindo e virando o jogo a seu favor, enquanto nos levava até a porta do celeiro.

O celeiro estava iluminado por lamparinas a óleo que projetavam sombras trêmulas no chão e nas paredes. A maioria dos Beautiful Dead estava lá, embora eu tivesse sentido a ausência de Hunter.

Phoenix me viu, estava sentado quieto junto de Eve e Kori nos degraus do palheiro, levantou-se e veio pegar minha mão para sairmos de volta à noite escura.

— Precisamos conversar — ambos dissemos na mesma hora, e ele sorriu de um jeito estranho.

Fomos para a casa, onde pegou outra lamparina antes que seguíssemos margeando o riacho.

— O que está acontecendo? — perguntei, mal reconhecendo minha própria voz, fraca e vacilante. Senti que era minúscula debaixo daquele vasto céu. A mão de Phoenix estava gelada como a água do rio. — Eu disse que amava você, e você não me respondeu nada. Por que isso?

Page 49: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

49

Ele continuava sem olhar para mim.

— Você deveria me explicar, Darina.

Fale do que tem medo. Bote isso para fora e se abra.

— Preciso saber: estou perdendo você? Você não me ama mais? — Se ele falasse que sim, meu mundo cairia, tudo iria desabar. Mas assim mesmo eu queria saber.

Phoenix soltou minha mão e andou um pouco mais para a frente. — O que a faz pensar isso?

— Você está se fechando para mim, não está compartilhando comigo o que está aí dentro. É a primeira vez que sinto você tão distante de mim. — Depois de ouvi-lo respirar fundo, contei tudo: — Nesses dois últimos dias, pensei em tudo o que poderia estar acontecendo. Talvez tenha sido alguma coisa que fiz de errado, sei lá. Ou quem sabe seja apenas você, Phoenix. Será que é isso o que acontece com os Beautiful Dead? Assim que voltam ao mundo dos vivos têm os mesmos sentimentos de antes, mas pouco a pouco essas emoções humanas somem, e não dá para fazer nada a respeito. É isso que está acontecendo com a gente? Se for verdade, posso não aguentar, mas você precisa me dizer para eu entender.

A luz piscava sobre seu rosto lindo, macio, os olhos sombreados e uma pequena veia latejando na testa.

— Você acha que eu não amo você? — ele murmurou, como se essas palavras tivessem sido ditas em uma língua que ele mesmo não pudesse entender. O riacho corria a nossos pés, brilhando prateado sob as estrelas.

Meu coração ficou acelerado de novo. Houve apenas um engano, e tudo ficaria bem agora.

— Isso não é fácil — Phoenix confessou. — Na última vez que você veio, pensei que quem estava agindo diferente fosse você. Não conseguia me aproximar.

— Você nem tentou — recordei. — Foi você, você não deixou que eu me aproximasse.

— Lee tinha chegado, um monte de coisas estava acontecendo.

— Você nem olhava para mim, eu estava assustada.

— Mas você parecia distante. Eu li o que você estava pensando e vi que seu pensamento estava todo concentrado nele.

Page 50: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

50

Saí em defesa própria.

— Lee estava sofrendo. Você lembra que em sua primeira volta do limbo havia me dito que a dor era infernal?

— Ele notou você desde o começo, ele gostou de você, Darina. Eu vi dentro da cabeça dele também.

— Você está me culpando por isso?

— Arizona também percebeu.

— Você falou com ela sobre mim? Deu espaço para ela entender tudo errado, distorcer tudo? — Pelo jeito, as coisas não estavam nem perto de ficar tranquilas. Estávamos nos afastando e nos debatendo, como quem se afoga.

Phoenix derrubou a lamparina e começou a correr morro acima.

Observei-o correr. Sobre o que ele estava falando — sobre mim, Lee, Arizona, sobre gostar e amar?

— Tudo isso é uma loucura, achei que vocês fossem telepatas de verdade! Não só uns fracassados que desistem! — gritei enquanto ia atrás dele.

Phoenix havia partido em disparada e começava a ganhar velocidade. Comecei a segui-lo.

— Você imagina que eu sinta algo por Lee? Então acha que sou tão superficial assim?

Ele parou de correr até que eu chegasse a uns dez passos de distância dele.

— O que estou dizendo, o que estou fazendo? — ele se perguntava enquanto tentava recobrar o fôlego.

— Você está louco. — Minha fé estava abalada, e minha confiança, a ponto de se partir.

— Darina, pensei que... Eu estava com medo...

— De me perder? — Percebi, num piscar de olhos. — De jeito nenhum, Phoenix.

Ele veio para perto de mim bem devagar.

— Toda vez que você vai embora eu acho que não vou aguentar. Sinto meu coração se partir.

Page 51: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

51

— Eu também.

Debaixo de um milhão de estrelas, cada vez mais próximas.

— É mito difícil. De vez em quando penso em esquecer o mundo dos vivos. Apenas desistir e voltar.

— Não! — implorei. Agarrei a gola da jaqueta dele.

— Penso na vida que vivia em Ellerton. Tudo o que mais quero é estar com você.

— Não! — minha voz sumiu completamente.

— Eu não quero que ninguém, que nenhum outro cara, chegue perto de você.

— Não vou deixar que cheguem — prometi.

Phoenix me abraçou com força.

— Eu amo você e não posso ter você.

Eu me afastei um pouco, peguei sua mão e a coloquei sobre meu coração.

— Por favor, não fale mais.

Foi apenas nessa hora que notamos as pequenas chamas no lugar onde Phoenix havia deixado a lamparina cair. Elas iam se alastrando pela grama e pelos espinheiros, ganhando terreno rapidamente, como se tivessem vida própria.

Daí Hunter surgiu da escuridão, tirando o casaco e usando-o para apagar o fogo, até que restassem só pequenas brasas e uma nuvem de fumaça.

O mestre parou em cima do pedaço de solo queimado, com os braços cruzados. Ele tinha tanta raiva no olhar que eu cheguei a dar um passo atrás para me proteger.

— Já viram alguma vez um incêndio na mata? Sabem a rapidez com que se alastra?

— Você precisa desculpar a gente, Hunter — gaguejei. — A gente, não... Eu! Foi minha culpa.

Phoenix veio ficar entre mim e Hunter.

— Não ouça o que ela diz, fui eu que derrubei a lamparina.

Page 52: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

52

— Estão achando que eu ligo para detalhes? — A voz de Hunter permanecia terrivelmente calma enquanto ele ia andando em direção a Phoenix. Eu esperava que sua raiva explodisse a qualquer segundo. — Existem coisas mais importantes por aqui. Por acaso eu disse que podia trazer Darina aqui fora?

Phoenix abaixou a cabeça.

— Disse para eu falar com ela na casa, mas a gente precisava de privacidade, então decidi subir um pouco o riacho.

— Você decidiu? — Hunter demorou-se bastante nessa frase. — E desde quando você pode decidir alguma coisa?

Eu já tremia inteira a essa altura do campeonato — ele continuava impassível, mas dava para perceber que a raiva queimava dentro dele como numa fogueira.

Phoenix não respondeu, parecia que a força tinha se esvaído de seu corpo.

— Nossa, como eu devia acabar logo com tudo isso — Hunter ameaçou e chegou mais perto de Phoenix. — O que é que me impede de mandá-lo para longe daqui, de volta para o lugar aonde você merece ir?

— Não, isso não! — Corri e tentei segurar o braço de Hunter, mas só o que consegui foi ser jogada de volta, como se não pesasse mais que uma pena. Caí nas cinzas mornas do chão. Phoenix quis sair em meu socorro, porém suas pernas dobraram-se e ele ficou de joelhos.

— Eu dei uma ordem — Hunter relembrou a Phoenix, chamando uma tempestade de asas invisíveis para reforçar o que estava dizendo. — Eu disse para você, palavra por palavra, ―leve Darina para a casa, fale com ela e descubra qual o problema‖. Muito simples, até para você.

Phoenix voltou a ficar em pé, com a cabeça erguida e o queixo empinado, como se fosse um condenado disposto a enfrentar a morte.

— Só que o problema não era com ela, era meu. Eu não estava pensando com clareza.

— Já disse para me poupar dos detalhes. — Hunter pareceu impiedoso como nunca. — Vocês descumpriu a ordem, veio até aqui, perdeu o controle da situação e começou um incêndio que poderia ter trazido todo o corpo de bombeiro até nós. Portanto, Phoenix, diga o que é nisso tudo que pode me fazer querer que você fique no mundo dos vivos.

— Você não pode mandá-lo de volta! Se mandar, eu não ajudarei mais nenhum de vocês!

Page 53: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

53

A reação não foi mais que uma virada de cabeça de Hunter, com um olhar de leve curiosidade.

— Você se considera muito valiosa, Hunter.

— Vocês precisam de mim — insisti. — Eu sou sua ligação com o mundo dos vivos, a única em que vocês podem confiar.

— Fale isso para Arizona. Ela ainda está esperando por isso que você chama de ajuda.

— Não é justo, Arizona esconde coisas de mim. — Mudei de tática para ter toda a atenção de Hunter. Ele ficou em alerta total me encarando nos olhos. — É quase como se ela não quisesse que desse certo.

Hunter franziu a testa e começou a descer o morro na nossa frente.

— O futuro de Arizona está em jogo, seu futuro eterno. Então o que é que ela não está revelando? E por quê?

Eu poderia explicar o que ela não estava revelando, durante aquela caminhada no escuro sob as estrelas — eram Raven Taylor e Kyle Keppler —, mas não os porquês dela.

— Não entendo como a cabeça dela funciona — contei a ele.

O mestre parou perto do caminhão, estacionado para sempre ao lado da casa decrépita.

— Você é simplória demais. E Arizona é sutil demais. Isso é uma parte do problema com o qual estamos lidando aqui.

— Então, qual o motivo de tanto segredo? — Arizona e eu estávamos sentadas dentro do velho caminhão, olhando as estrelas, quando eu a intimei.

Hunter havia nos dito estritamente para levarmos uma conversa franca. Eu tinha certeza de que agora ele estava com Phoenix, dando o castigo pelo acidente com o fogo. E se ele sumisse com Phoenix de volta para o limbo, e eu nunca mais o visse? Sem dúvida, Hunter tinha os poderes para fazer isso.

Concentração! — disse para mim mesma. Preste atenção às desculpas de Arizona.

— De quais segredos você tá falando? — Como sempre, ela queria controle, devolvendo perguntas para mim e me testando.

— Vamos começar por Raven. Conte sobre ele.

Page 54: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

54

— O que tem para contar? Ele tem nove anos, gosta de desenhar num caderno. Ponto final.

— De que ele tem tanto medo? — Resolvi cortar o papo-furado que ela queria começar.

Arizona tamborilou os dedos da mão direita no painel oco do caminhão.

— Ele acha que o mundo é um lugar perigoso para pessoas como ele.

— O que quer dizer com pessoas como ele?

— Gente que não saia do útero como todo mundo, cujo cérebro funciona de um jeito diferente, isto é, supondo que haja algo como um cérebro normal, o que eu duvido.

— Por favor, pare. Não venha dar uma de louca com essas teorias para cima de mim. Estamos falando de seu irmão aqui. Vi quando ele estava no jardim. De que ele tem medo?

Arizona virou-se para mim.

— De tudo — ela disse com calma.

Esperei por mais informações.

— Olhe — ela pediu.

Fiquei olhando.

Arizona apertou os olhos e franziu bem a testa.

— Qual meu humor agora?

— Pare com isso e responda à minha pergunta.

— Estou respondendo. — Ela trocou a testa franzida por um sorriso. — E agora, estou triste ou alegre?

— Responda à pergunta!

— O negócio é que você sabe, você consegue ler meu rosto, não é? Bem, meu irmão não pode fazer isso. Ele não sabe dizer o que um sorriso significa, nem quando alguém está prestes a ficar bravo com ele, nem se uma pessoa pretende ser gentil. O cérebro dele não consegue identificar essas coisas. Por isso, ele se previne desconfiando de todo mundo o tempo todo.

Page 55: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

55

— Que loucura. — O olhar de superioridade com que Arizona me tratou fez com que eu me arrependesse da minha escolha de palavras. — Quer dizer, do que se trata? É uma doença?

— Só se você não entender a situação. — Seu tom de voz tinha mudado, e ela já não estava mais tão arisca. — Nunca considerei meu irmãozinho doente. Ele só é do jeito que é — louco para o mundo, mas quem pode culpá-lo?

— Mas, seus pais... Eles não acharam que ele precisava de tratamento?

— Sim. Desde que Raven era pequeno eles o levavam para neurologistas em praticamente todos os estados. Ele já passou por todo tipo de terapia: convencional, alternativa, experimental, de ponta, totalmente doida. O que você imaginar.

— E?

Ela deu de ombros.

— Em cada uma dessas colocavam nele um rótulo novo e o mandavam de volta para casa. Ou o trancavam num hospital ou, mais recentemente, numa escola para autistas. E tudo o que Raven queria era poder fazer seus desenhos e ficar em paz.

— Uau! — O quadro que ela descreveu era bem sofrido. O que será um ―lar‖ com um problema como esse acontecendo? — E os seus pais, o que eles querem?

Os dedos de Arizona batucavam mais devagar no painel.

— Eles queriam que isso não tivesse acontecido — ela falou baixinho. As batidas no painel foram ficando mais rápidas. — Esse é o motivo pelo qual eles o mandaram para a escola.

— Raven... Ele se sente sozinho? — Tentei compreender melhor a situação, lembrando-me do garotinho assustado de cabelo e olhos escuros no quiosque da casa dos Taylor.

O suspiro dela demorou um bom tempo.

— Com certeza — ela admitiu. — Agora que não estou mais lá, Raven não tem mais ninguém no mundo para apoiá-la.

— Agora você já sabe. — Os mecanismos de defesa de Arizona voltaram a funcionar e nós já estávamos fora do caminhão, andando na varanda e olhando para o céu. Ainda não havia sinal de Hunter ou Phoenix. — Essa é a razão para eu ter voltado ao mundo dos vivos, preciso que Raven saiba que eu nunca, nunca faria aquilo que disseram que fiz no lago Hartmann.

Page 56: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

56

— Você quer dizer, nunca o deixaria de propósito. — Pelo menos isso eu tinha entendido.

— É, não especialmente agora.

Esperei por sua explicação, mas o esclarecimento só veio com minha pergunta.

— Por que não agora?

— Agora meu pai está acertando a papelada do divórcio.

Essa nova informação caiu como uma bomba para mim.

— Então, quando eles se separarem, você não sabe quem vai ficar com Raven. É isso que está tentando dizer?

Outro longo suspiro e uma afirmação com a cabeça.

— Quem é que vai se preocupar? — ela acrescentou, desaparecendo dentro da casa e fechando a porta.

Hunter me encontrou sozinha na varanda.

— Eu não fazia ideia dos problemas com que ela estava lidando — contei a ele.

— O quê? Arizona não se encaixa no papel de vítima? — ele perguntou, sorrindo sem o menor sinal de humor nos olhos. — Só que com o histórico familiar dela, acho que se encaixa, sim.

— Os pais dela pareciam tão unidos. O pai dá aula de música numa faculdade, a mãe é apresentadora de televisão.

— Você chegou a conhecê-los?

— Não até ontem. E só vi Allyson Taylor por alguns segundos. Ela estava saindo para trabalhar. O pai é mais velho do que eu pensava. Parece que não combinam muito como casal.

— Então sua tarefa é ajudar o irmão dela a superar isso. Você vai ter de trazer algumas verdades à tona e encontrar uma maneira de se comunicar com o menino.

— Aí Arizona poderá descansar?

— Talvez. De qualquer modo, a missão dela aqui estará cumprida. Assim Raven saberá que ela o amava e que não desejava ter partido.

Page 57: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

57

Eu conseguia enxergar esse plano dando certo, mas, na minha opinião, ainda não traria muito conforto. O garoto continuaria atrapalhado e ficaria totalmente sozinho.

— Não questione, Darina — Hunter havia lido minha mente. — Apenas faça. Descubra como Arizona morreu e não volte aqui até que tenha descoberto.

Page 58: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

58

— Hoje, mais cedo, tivemos a notícia de que pais dos alunos da escola Ellerton High School, no condado de Bishop, estão formalizando pedidos de maior segurança à própria instituição. Essa medida chega após os trágicos eventos do ano passado, quando quatro dos alunos do último ano perderam a vida.

Isso é o que se chama de chorar sobre o leite derramado — pensei, já no meu quarto, enquanto assistia a Allyson Taylor ler as reportagens da noite. Nosso diretor, o comandante da prisão de Guantánamo — Dr. Valenti —, anunciou para as lentes da televisão que tem planos de expandir a cobertura do circuito interno de câmeras de vigilância e implantar um sistema de abordagem e revista dos estudantes suspeitos de estar levando facas ou armas de fogo para a escola. Achtung!

Tudo acontecia sem levar em conta que nenhuma das quatro vítimas havia morrido dentro do ambiente escolar. Mas esse ―detalhe‖ parecia não ter importância — como eu disse, a maior parte dos pais estava se deixando levar por uma histeria coletiva, temerosos de que o dia seguinte pudesse ser o último para seus filhos.

— Darina, vai jantar hoje ou não? — Laura perguntou da escada.

— Não — respondi.

— Desça, eu fiz macarrão.

— Então eu não tenho escolha?

— Venha comer! — ela insistiu.

Desci a escada admirando a mãe de Arizona pelo modo profissional com que apresentava sua própria tragédia familiar ao vivo. Pela primeira vez estava feliz por ser da mesma família de Laura. Allyson Taylor podia ser bem vestida, ter uma postura elegante e refinada, podia ser incrivelmente bem sucedida e rica,

Page 59: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

59

mas estava se divorciando e nunca estava presente na hora das refeições para obrigar seus filhos a comer.

— Por que está sorrindo? — Laura perguntou enquanto me passava o prato.

— Desculpe, não sabia que era proibido.

No canto, com o prato de macarrão num joelho e o laptop no outro, Jim resmungou. Ele quis dizer: Faça o favor de respeitar a sua mãe.

Levantei uma sobrancelha em sua direção, o que significava: E que tal você demonstrar algum respeito e sair do computador para vir comer à mesa?

Felizmente, nenhum de nós achou que valesse a pena partir para o confronto explícito.

— Você sabia que Arizona Taylor tinha um irmão autista? — perguntei a Laura, do jeito mais casual que pude. Eu tinha passado um bom tempo durante as aulas de hoje fazendo meu plano de ação até chegar aos seguintes tópicos:

Pesquisar sobre autismo na internet; Pedir para Logan me levar à oficina mecânica atrás do shopping; Xeretar por aí e descobrir mais a respeito da reputação da família

Taylor.

Já tinha feito a pesquisa sobre autismo antes de ligar a televisão e assistir a Allyson dando as notícias. Uma visita a Logan estava marcada para depois do jantar. Quem sabe nesse meio tempo Laura pudesse lavar alguma roupa suja dos Taylor.

Ela parou com o garfo a meio caminho da boca.

— Não, pelo que eu sei Arizona é filha única.

— Ele deveria ter uns nove anos — emendei.

— Quando foi que os Taylor chegaram em Ellerton? Deve fazer uns oito ou nove anos, na verdade. Mas que eu lembre não tinham nenhum bebê.

Uau! Raven era mesmo um segredo bem guardado!

Laura continuou comendo.

— Sabia que Arizona era filha da primeira mulher de Frank Taylor? Allyson não era sua mãe biológica.

Outra novidade para mim.

Page 60: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

60

— Eu nem sabia que ele havia sido casado antes.

— É, com outra mulher também muito mais nova. Ele e Allyson só se casaram depois de terem se mudado para aquela mansão nova lá em Westra. — Laura desatou a falar sobre o passado. — Os Madison eram muitíssimo próximos deles naquele tempo, então foram convidados para o casamento. Foi Jon Madison quem projetou a casa deles.

Finalmente eu conseguia visualizar uma brecha na muralha ao redor do problema de Arizona.

— E os Madison ainda são amigos dos Taylor? — Se fossem, eu poderia ligar para os pais de Summer e tentar uma investigação mais a fundo.

Laura disse que não.

— Tem uma história de que os Taylor não pagaram tudo o que deviam a Jon por seu trabalho de arquiteto, e a amizade começou a minguar. E você sabe, Jon e Heather não têm mesmo muito a ver com os Taylor, especialmente Allyson. Ela está nessa coisa de mídia, e é cada um por si nessa área.

— Então não tem mesmo irmão mais novo de Arizona — murmurei. E a muralha ainda continuava sólida.

— Allyson tirou uma licença no período em que eles estavam construindo a casa. — Laura foi recordando. — Ela trocou de canal e saiu da frente das câmeras por um tempo. Minha amiga Kristina jurou que foi para fazer uma plástica, sabe como é. Quando voltou ao ar, achei que Kristina tinha razão.

— Por quê? Que idade ela tem? — Eu quis saber.

— Ela está com quarenta e sete — foi o torpedo que Laura me devolveu. — É isso o que eu quero dizer: ela definitivamente entrou na faca!

— Agora não, Darina, estou ocupado. — Logan jogou um balde de água fria em mim.

Eu tinha ido até a sua casa para que ele me levasse ao shopping, achando que ele saberia melhor que eu onde ficava uma oficina lá perto. Também pensei que ele não pareceria tão deslocado naquele ambiente. Talvez ele pudesse conversar com o cara da oficina, pedir umas peças para o motor enquanto eu dava uma olhada no último lugar que Arizona lembrava ter visitado.

Mas Logan disse que não; já era o meu segundo choque da noite. O primeiro foi quando Jim deixou escapar um comentário justo na hora em que eu estava saindo de casa, no instante entre me falar o modo tecnicamente correto de

Page 61: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

61

colocar a louça suja na máquina de lavar pratos e a ida à geladeira para pegar uma cerveja.

— Na verdade, Allyson e Frank Taylor tiveram um filhinho, sim, na época em que eu dirigia um táxi para ter uma renda a mais. Lembro-me de ter levado Allyson e o bebê de um hospital até a casa nova em Westra.

Valeu, Jim, por essa pequena e surpreendente pepita.

— E como é que Laura não soube?

Ele fez que não sabia e abriu a latinha.

— Ouvi dizer que o bebê não era muito saudável — sua voz abafou o chiado do gás. — Pode ser que os Taylor não quisessem tocar no assunto com gente não tão conhecida.

— Ocupado com quê? — Ainda na varanda e com a informação de Jim guardada, desafiei Logan. Não estava vendo nenhuma tarefa da escola na mesa da cozinha, e ele não estava com a cabeça embaixo do capô do carro.

— Preciso encontrar uma pessoa — ele falou, pegando e balançando as chaves do carro.

— Que pessoa? — Logan Lavelle nunca me decepcionava, era vidrado em mim, quase ao ponto de ser considerado um perseguidor compulsivo.

— É só um cara — respondeu, já ligando seu Honda branco impecável a caminho da rua.

Portanto, tive de esperar até quarta-feira à tarde para encontrar Logan em seu horário livre.

— Claro, conheço a oficina, sim, Mike Motores — ele me contou durante nosso percurso até o centro. — Meu pai é colega de bar de Mike Hamill.

Ele não me perguntou o porquê de querer ir lá, o que era outra mudança no modo de Logan agir.

— Você não quer saber por que estamos indo para lá?

Ele deu sinal ao parar no semáforo e pegou uma rua à esquerda do shopping.

— Você me daria uma resposta clara?

Dei uma olhada mais atenta no rosto de Logan. Ele sentiu que eu o encarava, mas não reagiu. De perfil ele parecia mais sério e maduro, quase bonitão. Quer

Page 62: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

62

dizer, ele tem traços bonitos, um cabelo escuro e espesso, é um chamariz bom para qualquer garota em qualquer lugar.

— Eu quero ver como é, foi o último lugar a que Arizona foi antes de morrer.

No carro, Logan e eu tivemos uma briga.

— O que é isso, algum tipo de missão insana? — ele gritou e saiu da estrada. Perdeu toda aquela maturidade interessante e começou a fazer o papel do cara estressado, sabe-tudo e perseguidor. — Primeiro a obsessão com a morte de Jonas, depois vem me dizer que nunca vai superar a de Phoenix, e, agora, é Arizona. Pelo amor de Deus, esse pessoal está morto!

— Eu sei que é estranho, Logan...

— Isso não está certo, Darina, não pode fazer bem para você.

— Então me deixe sair do carro — falei calmamente. Abri a porta e fui a pé o resto do caminho até a Mike Motores. Ficava nos fundos do quarteirão, espremida entre um armazém de contêineres e uma fábrica de toldos. A placa parecia que precisava de uma mão de tinta, e o painel de vidro quebrado estava coberto de tábuas.

— Ei!

Chamei, mas ninguém respondeu. Dentro só havia um monte de carros sujos de graxa no chão de concreto e um rádio tocando música country, bem alto. As latarias queimadas de dois carros estavam empilhadas uma em cima da outra, num canto lá no fundo. No outro canto, enxerguei o utilitário prateado de Arizona.

Tive de olhar uma segunda e uma terceira vez, porque o automóvel estava coberto de poeira e meio escondido debaixo de outras coisas, mas eu conhecia a placa e reconheci o interior de couro preto, muito bem cuidado.

— Você precisa de alguma coisa? — uma voz grave perguntou, e eu dei a volta até ver Kyle Keppler, o amigo de Brandon.

Kyle não era mesmo o tipo de Arizona — pela segunda vez esse pensamento me vinha à cabeça, agora com mais clareza do que antes. Seu macacão de mecânico estava todo sujo, e ele ficou parado com os pés bem afastados, desconfiado e com aquela mandíbula grande acentuando sua expressão desconfiada. Talvez, depois de um bom banho..., pensei.

— Claro, vim encontrar um amigo aqui — falei.

Page 63: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

63

Kyle tombou a cabeça para o lado, sem dúvida para dar uma olhada em minha calça e camiseta apertadas e dar uma nota nove para o conjunto — não chegava a dez porque devia estar faltando um decote revelador.

— E qual seria o nome dele? — perguntou.

— Logan Lavelle. — Falei o primeiro nome que me veio à mente. Por que será que o carro empoeirado de Arizona ainda estava na oficina? — A gente já se encontrou, você estava com Brandon Rohr — quis lembrá-lo.

Ele fez um movimento rápido com a cabeça, afirmativo.

— Não tem nenhum Logan Lavelle aqui.

— Mas ele não trouxe o carro para consertar?

— Dá uma olhada.

— Certo, devo ter me confundido. Peço desculpas. E o que acontece com o carro de Arizona? Os pais dela não o querem de volta? — Parti para o ataque, sem medir consequências.

Kyle enrugou a testa.

— Já falei que Logan não está aqui.

— Eu entendi, mas é que vi o carro lá e fiquei meio espantada. Peço desculpas de novo.

Talvez eu tivesse conseguido furar seu bloqueio, ou ele ainda estava admirando minha calça.

— Tudo bem. Na real, Frank Taylor achou melhor vender o carro para o meu patrão depois que Arizona... Você sabe... Faleceu. Precisava de uns consertos.

— Por isso ela trouxe o carro para cá, afinal de contas, imagino. É, faz sentido, você e Arizona tiveram um lance, você trabalha aqui. Então ela vinha trazer o carro para consertar, por que não? — Só que ela tinha me dito que nem sabia o nome do lugar, e isso era, evidentemente, uma mentira.

O humor de Kyle mudou, e ele veio andando de um jeito vagaroso e ameaçador em minha direção. — Alguém já lhe disse que sua boca pode metê-la em problemas?

Fui andando de costas, de volta para a porta aberta.

— Só estou falando o que Brandon me disse. Que você e Arizona...

Page 64: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

64

— Brandon fala muita abobrinha — Kyle resmungou. — O que ele disse é papo-furado.

Enquanto isso, no rádio, Tammy Wynnete debulhava seu coração em lágrimas, cantando: ―fique ao lado do seu homem‖ ou ―não fique ao lado dele‖ — não me lembro de qual das duas frases.

Confusa, comecei a sentir que tinha entrado em um universo paralelo e tenso.

— Você e Arizona, você não estavam...?

Kyle deu uma longa e derradeira olhada para mim.

— O que você acha? — ele perguntou e bateu a porta da oficina com força, deixando-me do lado de fora.

— Para mim, você não era desse tipo que desiste fácil, Darina. — Minha professora de música, Katie Jones, estava me lançando um olhar fulminante. Eu pertencia a um bando de alunos que formavam o grupo musical, que incluía os suspeitos de sempre: Jordan, Hannah, Lucas e Logan. Perto do começo de outubro uns doze de nós havíamos nos juntado e planejado uma apresentação em homenagem a Summer Madison, a grande promessa de talento e sucesso de Ellerton High. Como sentíamos saudades de Summer e de suas músicas lindas, pensamos que essa seria uma forma especial de demonstrar nosso pesar.

— Não tenho tempo para ensaiar — expliquei. — Nem concentração, nem vontade.

— Ela está com a cabeça em outras coisas. — Logan cochichou para Hannah. — Está em sua própria missão secreta.

— Para fazer o quê? — Ao sentir o cheiro de fofoca, Hannah eriçava as orelhas.

— Xeretar sobre a morte de Arizona. O dedo de Darina está querendo apertar o botão de autodestruição, se liga.

Ignorei a provocação e tentei me concentrar em minha professora decepcionada.

— E quem a gente vai achar para substituir você a essa altura do campeonato? Não é nada certo você dar para trás agora.

Respondi com um suspiro.

Page 65: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

65

— Logo você encontra alguém que toque violão melhor que eu.

— Ah... Ela não vai ter a menor dificuldade de encontrar — Jordan sussurrou para Lucas.

E esses eram os meus ―amigos‖. Mas, por outro lado, eu estava dando um fora imenso neles, então entendia perfeitamente de onde vinha todo aquele ressentimento.

Bem devagar, a Srta. Jones me levou até a porta do estúdio.

— Para mim, você era uma guerreira, não alguém que desiste fácil — ela disse baixinho. — Tem certeza de que está tudo bem?

— Tão bem quanto qualquer um aqui — resmunguei, olhando de relance para ver Logan engajado na fofoca com minha amiga nem sempre amiga, Hannah Stoltmann.

Era certo abandonar a apresentação? Fui para casa e fiquei remoendo o assunto.

Já era sexta-feira, e como minha visita a Mike Motores tinha sido em vão, comecei a entrar nas profundezas do desespero. Não consigo destrinchar essa coisa de Arizona! Isso não me saía do pensamento. Não sei mais o que posso fazer!

Na sexta-feira, Laura e Jim tiravam a noite para ir ao cinema, e eu ficava com a casa só para mim. Deixei o jantar de lado e fui mais uma vez procurar informações em sites sobre autismo. Transtorno Autista — Autismo infantil — Síndrome de X-frágil — epilepsia.

Li que crianças nascidas com autismo têm dificuldades para comer e nunca sorriem, que podem ficar um dia inteiro indo para frente e para trás numa cadeira de balanço, olhando as próprias mãos. E que isso pode ocorrer numa média de três a seis bebês entre cada cem nascidos, ou em 8,7 de cada mil, dependendo da página em que você lê.

Pode ter sido consequência de rubéola no primeiro trimestre de gravidez, ou de níveis desequilibrados de serotonina no cérebro — quem sabe? De qualquer modo, essa parte estava muito além da minha compreensão, então resolvi pulá-la e ir aonde queria.

O que me interessava eram crianças autistas com habilidades extraordinárias — algo como dez por cento dos afetados. Eles podiam ter uma memória incrível para caminhos e também habilidade musical ou, como em um caso famoso de um menino do Reino Unido, a criança conseguia, com apenas uma olhada para um edifício — como o Parlamento inglês ou a Casa Branca, por exemplo —,

Page 66: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

66

pegar um lápis e um papel e reproduzir tudo só de memória. O trabalho artístico desse menino acabou ficando famoso.

Podem estar falando de Raven! — pensei.

Contudo, autismo geralmente é puro sofrimento. Sem fala, sem sorrisos, essas crianças não o olham nos olhos e, por possivelmente terem outros graves problemas mentais, podem ficar sujeitos ao uso de medicamentos por toda a vida.

Daí, qual sua reação quando a vida o trata desse jeito? Parei de mexer com o mouse e tentei imaginar como os Taylor enfrentaram a situação depois que Allyson foi para casa com o neném no táxi de Jim. Arizona falou de diagnósticos e tratamentos, hospitais e escolas. Falou também que seus pais não queria acreditar que aquilo havia acontecido.

―Ouvi dizer que o bebê não era muito saudável‖, Jim tinha me contado e ele tinha razão. Os pais resolveram negar, um pouco como: Vamos manter a doença em segredo, e quem sabe o problema suma.

Seria isso mesmo? Perguntaria na próxima vez que me encontrasse com Arizona.

Esse pensamento me levou do computador para a janela do quarto. Fiquei olhando o céu estrelado.

Quando será a próxima vez?

Não antes de achar os fatos que estão por trás desse mito que é o suicídio de Arizona — Hunter deixou isso claro e transparente como água. Fechei os olhos e visualizei os traços fortes e severos do mestre, a tatuagem desbotada das asas de anjo na sua testa e me lembrei da história que Phoenix contou sobre Hunter ter levado um tiro na cabeça à queima-roupa do homem que havia pouco tempo tinha tentado estuprar sua esposa, Marie.

Assim eu vou morrer! — falei para os milhares de estrelas. Preciso subir a encosta de Foxton e ver se Phoenix ainda está por lá.

“Quero que você me dê um motivo para que eu não mande você de volta para o limbo — e agora de uma vez por todas”.

Ou qualquer coisa nesse sentido. De novo, era Hunter — com os braços cruzados ao lado do pedaço queimado do gramado, sua raiva prestes a explodir. Só a lembrança disso já me amedrontava — a maneira como a raiva podia incendiar-se e eliminar quem estivesse no caminho. Hunter era o mestre e tinha o poder absoluto para hipnotizar, ler mentes e até, como último recurso,

Page 67: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

67

trazer almas perdidas para bater asas, viajar pelo tempo para o início ou o fim do mundo, e mais além.

Tremi com as recordações da experiência de minha própria viagem no tempo para definir Matt Fortune como o assassino de Jonas, de como eu nunca havia sentido tanta dor, de ter voltado traumatizada e exausta. Por isso Hunter só usou esse dispositivo depois que todos os outros métodos falharam.

Mestre. Senhor de tudo: o todo-poderoso Hunter.

Senti uma lufada fresca de vento passar pela janela. As cortinas brancas esvoaçaram. Quando me virei para trás, Phoenix estava no quarto.

— Ah, graças a Deus! — Voei para os braços dele, agarrando as mangas da jaqueta e pondo minha cabeça em seu ombro. — Eu não sabia, estava com medo de que...

— Eu também. — Ele me abraçou com força, apertando os lábios na minha cabeça.

— Com tanto medo. — Tomei um tempo para respirar. — Não me atrevi a voltar a Foxton. Hunter ainda está bravo com a gente?

— Ele está num péssimo humor, mandou que Lee e eu fôssemos até Government Bridge montar guarda.

— Que dureza. — Sabia do ciúme que Phoenix sentia de Lee, e Hunter conseguia entender a dinâmica dessa situação bem claramente. — Ele sabe com certeza como nos machucar.

— Ficamos lá a semana inteira, vinte e quatro horas por dia. — Phoenix me soltou e foi um pouco para trás, para ver melhor meu rosto. — Estou me sentindo muito mal, Darina. Lee é um novato, mas consegue ler meus pensamentos com clareza. Ele viu o idiota que eu estava sendo.

Dei um leve sorriso.

— Ele brigou com você por causa disso?

— Não, Lee foi legal. Falou que se você fosse a namorada dele, ele reagiria do mesmo jeito.

— Então não preciso me preocupar com dois Beautiful Dead brigando por minha causa?

Page 68: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

68

— Lee é tranquilo — Phoenix insistiu e passou o braço em volta da minha cintura para que eu me sentasse na cama a seu lado. — Você tem ideia de quanto cai a temperatura lá de madrugada?

— Agora fiquei morrendo de pena de você!

— É, devia ficar mesmo.

Paramos de falar e caímos direto nos beijos intensos que estavam nos fazendo tanta falta ultimamente. Fui me deixando envolver, adorando a pressão dos lábios dele nos meus, nas minhas bochechas e bem de levinho nas minhas pálpebras, mergulhando naquele sentimento surreal e etéreo que surge. De repente, Phoenix se afastou devagar.

— Sabe de uma coisa?

— Não, o quê?

— Aqueles operários de Government Bridge nem estão mais lá. Parece que o novo relatório do agrimensor diz que não há necessidade de reforçar a ponte, afinal.

— E essas noites todas lá fora no frio! — Dessa vez nossos beijos era mais leves, como nosso espírito: risada, beijo, sorriso, biquinhos para outro beijo. — Aposto que Hunter sabia que isso aconteceria. Foi ele quem ficou brincando com a saúde mental do agrimensor, lembra?

E por falar em saúde mental, parei de fazer biquinhos para ter tempo de contar a Phoenix o que tinha descoberto sobre a doença de Raven Taylor, além de como eu tinha ido até a Mike Motores e visto o utilitário de Arizona para ser enxotada de lá por Kyle Keppler.

— Cada coisa estranha... Arizona tinha me dito que nem sabia o nome da oficina, só que é o lugar onde o namorado dela trabalha!

Phoenix esticou as pernas e se deitou na cama.

— Quer saber de mais uma coisa?

Fui me aconchegando ao seu lado e pondo o braço no seu peito.

— Se eu quero? Na verdade, não faço questão que a gente fale muito agora.

Ele tapou minha boca e fez com que eu escutasse.

— Hoje à noite, um pouco mais cedo, Hunter deixou que Lee e eu saíssemos do castigo e voltássemos ao celeiro para descansar. Por mim, estava tudo bem. A primeira pessoa que vi quando voltei foi Arizona, que estava no campo,

Page 69: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

69

parada sob o luar e o céu estrelado, sem olhar para nada, sem escutar, como se não estivesse mesmo ali. Ela me ouviu, mas não se mexeu para olhar.

— Acha que ela estava brava? — Talvez comigo, por não ter avançado na investigação.

— Brava? Não. Parecia mais triste.

— Triste? — Essa emoção não pertencia à Arizona que eu conhecia. — Com lágrimas e tudo?

Ele riu baixinho.

— Nós não choramos.

— Ah! — Os Beautiful Dead também não tinham batidas do coração, nem sangue, eram frios, pálidos, e agora fiquei sabendo que também não podiam chorar. — Você conseguiu entrar e ler o que estava se passando na mente dela?

Ele se apoiou no travesseiro e deu de ombros.

— Os poderes de Arizona são bem fortes, mas até hoje à noite não sabia quanto ela é mais avançada que eu. Tentei entrar, mas era como se tivesse uma força ali me impedindo.

— Ela o bloqueou, e você não pôde usar sua telepatia? — Para mim aquilo era completamente contra as regras; fiquei pensando no que Hunter diria.

— Aí, fui até ela. Queria falar que estava tudo bem, que ela não corria nenhum perigo, mas ela me mandou embora e disse que estava em perigo, sim, que eu fosse perguntar a Hunter sobre isso.

— E você foi? — A história estava me cativando, pensei em Arizona sozinha e fria, no meio do campo, mandando Phoenix embora.

— Espere, a parte esquisita vem agora: encontrei Hunter na casa, no quarto do andar de cima, sentado com as mãos na cabeça. Esperei até que ele parasse de me ignorar e olhasse para cima. Ele me perguntou ―Phoenix, alguém já traiu você?‖, e eu disse que não que eu soubesse.

A voz grave de Phoenix calou-se, eu esperei.

— Se é que é possível, eu diria que aquele cara tinha envelhecido. Parecia estar confuso, debaixo de um peso enorme.

— É de Hunter que você está falando? — resolvi confirmar.

— É que ele teve um embate com Arizona.

Page 70: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

70

— Uau! A menina deve ser louca ou muito corajosa.

— Hunter me explicou que Arizona o havia acusado de não estar fazendo o suficiente para resolver o problema dela. Ela falou que você não conseguiria de jeito nenhum romper as barreiras do silêncio por aí sem ter mais ajuda.

— Ela desafiou o mestre? — Esse era o tipo de coisa que não acontecia jamais! Eu fiquei impressionada por Arizona ainda continuar no mundo dos vivos.

— Pior que isso. Ela perguntou como era possível que ele tivesse tanta certeza de estar agindo direito. E se não passava pela cabeça dele que as coisas nem sempre aconteciam da maneira como ele as enxergava.

— E Hunter contou tudo isso para você?

— Sim. Arizona já devia estar maluca nessa hora, porque perguntou se ele tinha certeza sobre as circunstâncias de sua própria morte, defendendo a esposa. Se seria possível que Marie não estivesse lutando contra o estuprador, mas que na verdade estivesse traindo Hunter com o cara...

— Peter Mentone.

Já me referi a uma parte dessa história, mas recapitulando: lá atrás, no começo de século XX, Mentone era o vizinho mais próximo de Hunter e Marie. Um dia, enquanto Hunter estava fora de casa, ele foi fazer uma visita. Hunter voltou mais cedo e pegou os dois juntos.

— Não se pode dizer uma coisa dessas para Hunter! — Precisei sentar por conta do choque causado pela história.

— Arizona disse. Você fica achando que o cara é feito de aço, mas se visse como ele estava quando entrei no quarto, veria como estava acabado. Foi por isso que me perguntou sobre esse negócio de traição. Pouco depois, ele se levantou e tentou espairecer a mente e disse que tinha algo que queria que eu fizesse.

— Pensei que você fosse descansar.

— Ele mudou de ideia. Disse para eu levá-la a Foxton imediatamente.

Meu coração deu um pulo: Phoenix estava ali para me levar de volta com ele. Eu estava pronta para ir.

Phoenix me fez esperar mais um pouco; ele ainda não tinha terminado de dizer tudo o que queria.

Page 71: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

71

— Só uma coisa, Hunter não falou ―Traga Darina‖, mas sim ―Traga Marie‖.

Fiquei sem ar. Por que esse deslize, esse ato falho estava me fazendo tremer e ter calafrios por toda a coluna?

— Summer disse que você se parecia com Marie, lembra? — Phoenix pegou minha mão e fomos até a janela. — Ela viu aquela fotografia antiga.

— Pare, essas coisas confundem minha cabeça. De qualquer modo, você entendeu o que ele queria dizer, e aqui está você para me levar. Hunter falou o motivo?

— Por causa de Arizona. Tem mais coisas que ela não está contando, e Hunter descobriu que não são poucas.

Essa revelação não me espantou tanto quanto Phoenix esperava.

Agora Hunter e os Beautiful Dead sabiam aquilo que eu já vinha sentindo havia tempo — que Arizona escondia verdades importantes por motivos próprios. Em outras palavras, ela era um deles, mas nem sempre era possível confiar nela.

— Então você já sabe — falei para Phoenix enquanto ele se preparava para me desmaterializar. — E a partir de agora não estarei mais lutando sozinha nessa batalha: Hunter vai conseguir fazer com que ela revele a verdade, não vai?

— Não tenho a menor ideia, esse é um território novo. Certo, Darina, Hunter precisa de você lá mais rápido do que a gente poderia chegar indo de carro, portanto vamos fazer do jeito dos Beautiful Dead.

— Estou pronta! — Isso também era novo para mim. Viajar pelo espaço à moda deles, e, sem dúvida, eu estava morrendo de vontade de ter essa experiência.

— Não vai doer nada — Phoenix me prometeu. — Só se lembre de não me soltar.

Concordei, eletrizada pelo bater das asas que haviam descido à nossa volta, levantando as cortinas de seda com seu movimento intenso e gerando uma brisa que as jogava para fora da janela.

— Feche os olhos e não abra até eu mandar — avisou. Fiz isso um pouco nervosa, com as asas batendo mais forte e a energia delas parecendo mais ameaçadora.

Page 72: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

72

— Estou segurando forte — assegurei para mim mesma, assustada também pelos desenhos que via com as pálpebras fechadas: zigue-zagues de setas cor de laranja e roxas em movimentos rápidos. — Quanto tempo isso vai demorar?

Phoenix não respondeu e continuou me segurando, a despeito das asas e das formas esquisitas; mãos frias, porém firmes. Senti um vento forte, frio como a morte, uma sensação difusa e flutuante, quase como se meu cérebro fosse se perder dentro do crânio — uma desorientação total —, e, finalmente, uma luz branca luminosa penetrando em minhas pálpebras.

— Ok, abra os olhos — Phoenix enfim falou.

Estávamos no celeiro no pé da encosta de Foxton. Estava escuro, e não havia lampiões, apenas finos raios do luar desenhando o piso.

— Que loucura! — Não soltei minhas mãos de Phoenix até conseguir me equilibrar e poder dar uma olhada em volta. — E onde está todo mundo?

Saímos do celeiro, e do lado de fora continuava a escuridão profunda. Como havia uma luz acesa na casa, fomos para lá.

— Ei! — Iceman ouviu nossos passos e abriu a porta, sorrindo para mim. — Tudo bem com você, Darina?

— Foi muito estranho, mas está tudo legal, sim — contei a ele.

Phoenix entrou na casa antes de mim e perguntou:

— Onde está Arizona?

— Foi embora.

— Embora para onde? — A resposta de Iceman foi um choque para mim, pensei que ele estivesse querendo dizer que, depois de ter deixado Hunter tão irado com seu comportamento, Arizona havia sido banida de vez do mundo dos vivos.

— Ninguém sabe. Aonde quer que ela tenha ido, foi Hunter quem a levou. E mandou vocês dois esperarem aqui.

— Ele vai demorar muito?

Phoenix tinha dito que eu devia chegar rápido em Foxton, por isso o truque da desmaterialização. Mas agora parecia que algo mais importante havia surgido.

— Quanto for preciso. — Num suspiro, Iceman virou-se para Phoenix e continuou: — Nunca tinha visto Hunter agir desse modo.

Page 73: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

73

Phoenix concordou:

— Nunca tinha visto ninguém desobedecê-lo antes disso.

— Já viu, sim — recordei. — Ultrapassamos o limite naquela segunda-feira à noite, mas acho que nada comparado a Arizona.

— De qualquer maneira precisamos esperar. — Phoenix se sentou na beirada da mesa, com as pernas esticadas em minha direção. — Sente-se você também — ele disse, apontando para a cadeira de balanço. — Tente dormir um pouco.

— De jeito nenhum — respondi. — Estou cansada demais para isso.

***

Seis horas depois, Phoenix me acordou com um beijo.

— De novo, senão eu vou pensar que ainda estou sonhando — falei baixinho.

Ele me beijou os lábios e o pescoço com carinho.

— Ainda sem notícias de Hunter nem Arizona — fui informada. — Mas venha dar uma olhada nisso.

Saí da casa seguindo Phoenix num mundo ainda em total escuridão, onde aparecia o arco dourado do sol se anunciando no horizonte. Assistimos ao nascer do sol, incrivelmente rápido, passando de um laranja intenso para um rosa brilhante, derramando-se pelo topo das montanhas.

— Legal, não? — Phoenix sussurrou no meu ouvido.

— Estou sem palavras — contei para ele. Naquele exato momento, a vida estava sendo mais-que-perfeita.

O silêncio só se quebrou com o barulho de Summer correndo na campina da encosta do morro. Ela era como uma fadinha de cabelos dourados e membros longos, linda.

— Tem um pessoal a cavalo lá no alto de Pedra do Anjo — ela contou, apressada. — Acho que saíram cedo para assistir à alvorada.

A voz dela atraiu Donna e Lee para o jardim.

Page 74: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

74

— Vamos — Donna disse antes que eu pudesse ter qualquer reação. — Darina, talvez seja melhor você ficar por aqui.

Rapidamente, os quatro partiram na direção de onde Summer tinha vindo e me deixaram plantada na varanda, sem saber o que fazer.

Desde quando Donna me dava ordens? Perguntei a mim mesma e resolvi segui-los a distância, mas mantendo-os ainda em meu campo de visão. O sol já tinha se levantado, e eu sabia chegar à Pedra do Anjo.

Phoenix, Summer, Donna e Lee logo sumiram atrás da encosta. Fui vencendo os alámos e a caixa d’água, até chegar a tempo de avistar ao longe um reboque para cavalos estacionado no final de uma estrada de terra e três cavaleiros.

Os quatro Beautiful Dead já haviam se escondido e se espalhado pelo morro seguinte. Não demorou para eu sentir aquela brisa conhecida descendo do pico Amos, amassando a grama e assobiando por onde passava.

Os cavalos também ouviram. O que era aquilo — vento ou asas? De onde vinha?

Agora eles vão ficar assustados mesmo, eu já sabia. Vi Donna e Lee desaparecerem por trás da formação de granito que chamam de Pedra do Anjo, ouvi as asas baterem mais forte e senti a luz intensa da manhã começar se esvair e ficar sombria.

Os três cavaleiros lutavam para manter seus cavalos sob controle. Eles tentavam ficar de costas para o vento para se proteger, até notar que os sopros mudavam de direção e enrolavam a crina e o rabo dos cavalos por todos os lados. Um dos cavalos, o Quarto de Milha malhado, empinou e ficou sobre as patas traseiras.

Eu estava longe demais para ver ou ouvir os detalhes, mas percebi que as asas bateram e levantaram um campo de força que aterrorizou os cavalos. Eles queriam sair de lá, só que os cavaleiros, também em pânico, seguravam as rédeas bem firme.

— Pare! — falei para Phoenix.

Ele ouviu e gritou para Summer, que concordou e desceu o morro também. Porém, Lee e Donna estavam agindo separadamente e continuaram pressionando os cavalos e os cavaleiros, empurrando-os para longe do celeiro e da casa, mas ainda mais para dentro do deserto de espinheiros e rochas de Amos.

— Phoenix, peça para eles pararem! — falei mais uma vez.

Page 75: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

75

Era tarde demais. A pessoa que montava um Quarto de Milha soltou as rédeas, e o cavalo saiu em disparada. O segundo cavalo, um Appaloosa, ficou pulando e dando coices até seu cavaleiro se debruçar sobre a crina e deixá-lo sair galopando atrás do primeiro. O terceiro, um alazão que ficou preso à Pedra do Anjo por causa do vento pulsando em suas orelhas e narinas, relinchava de pavor.

Vi o cavalo balançar de um lado para o outro bruscamente e a pessoa cair para o lado na sela. A égua inclinou-se para trás, desequilibrando ainda mais sua amazona. Ela se esforçava para se recompor, e eu até achei que fosse conseguir, mas não — já tinha perdido o equilíbrio havia tempo e acabou sendo jogada ao chão. Enfim livre, o cavalo fugiu mais que depressa dali.

Summer e Phoenix correram até a amazona caída, e fui me juntar a eles enquanto a viravam e descobriam que estava inconsciente, porém viva. Ela ficou deitada em uma elevação plana da rocha, um braço torcido por trás das costas e os olhos fechados.

— Meu Deus, que vamos fazer? — perguntei, cheia de medo.

Lee e Donna ainda estavam mantendo o campo de força aterrorizante atrás da Pedra do Anjo, e o vento continuava soprando em direção ao pé do morro. Bem longe, cavalos e cavaleiros corriam fora de controle.

— Não encoste nela — avisei Summer. — Não até sabermos se quebrou algum osso.

— Vá e faça Lee e Donna parar — Phoenix disse a ela. Ele ficou comigo para checar o pulso da moça, e eu cheguei mais perto para sentir a respiração dela em meu rosto.

— Parece que está com o braço quebrado. Onde vocês estavam com a cabeça? Não se usam as asas batendo quando há cavalos envolvidos na situação!

— A coisa saiu do nosso controle — Phoenix admitiu. Ele recuou quando percebeu os olhos da mulher começarem a se mexer. — Ela está acordando.

— Vocês quatro precisam sair daqui rápido — decidi. — Peguem os outros e saiam!

Fiquei vendo seus olhos piscar, e ela começando a gemer.

— Vá, Phoenix!

Ele foi buscar Summer, Donna e Lee para sumirem dali antes que a moça machucada soubesse onde estava.

Page 76: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

76

— Está tudo bem — falei, à medida que ela tentava se apoiar em um dos cotovelos. Agora, vendo seu rosto com mais atenção, percebi que não era tão nova — possivelmente perto dos cinquenta. O cabelo escuro preso para trás numa trança tinha mechas grisalhas, e o rosto tinha marcas, mas ela ainda era esbelta e estava em boa forma.

— Não sei o que aconteceu — disse com a voz fraca. — Meu cavalo se assustou. O vento estava muito esquisito. Foi um furacão?

— Não fale, nem precisa se preocupar, vou tirar você daqui.

Quando tentou levantar o braço direito, ela gemeu de dor. Então ela se deitou de novo na rocha, com lágrimas escorrendo do canto dos olhos.

— Parece que o braço está quebrado — confirmei. — Dói em mais algum lugar?

Ela respondeu que não.

— Preciso ir para um hospital — disse num suspiro.

— Eu sei. Fique deitada, tente não se mexer. Vou ver se consigo achar sinal e ligar do celular.

Tirei o celular do bolso e liguei para a emergência. Chamada perdida — uma, duas, três vezes. Tentei mais uma vez — finalmente chamou.

— Precisamos de ajuda com urgência no alto da serra de Foxton — falei para a telefonista. — Tem uma mulher machucada aqui, ela caiu do cavalo. O lugar exato é a Pedra do Anjo. Venham o mais rápido que puderem.

Page 77: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

77

Eu estava atolada até o pescoço com problemas vindo de todos os lados.

— Não acredito que fez isso comigo! — Laura choramingou. — Jim e eu chegamos do cinema e fomos para a cama pensando que você estivesse a salvo no seu quarto para depois saber que você nem tinha dormido lá!

— E como é que você chegou à Pedra do Anjo antes de amanhecer? — Logan quis saber depois que Laura ligou histérica para ele. — Não, nem me fale. Na verdade, eu não quero saber.

Antes disso eu estava sob forte pressão dos paramédicos.

— Você viu o que causou o acidente? O que foi que assustou os cavalos? Tinha mais alguém no lugar do acidente?

E, ainda, os médicos no hospital.

— Você quer dizer que dirigiu até lá sozinha? — Naturalmente, eu menti sobre isso. — Seus pais sabiam onde você estava?

Na próxima vez em que alguém cair do cavalo, eu atravesso a rua e finjo que não vi, pensei.

Saí do hospital perto das onze da manhã e peguei uma carona com um médico que estava deixando o plantão. Cheguei em casa algumas horas depois, tentando inventar uma desculpa boa o suficiente para deixar Laura satisfeita.

— Não estava conseguindo dormir, por isso levantei cedo.

— E a sua cama?! — ela gritou, com os olhos saltados e os punhos cerrados. — Você nem sequer se deitou nela!

Fechei os olhos fazendo negativas com a cabeça e implorei.

Page 78: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

78

— Por favor.

— Aonde você foi? — Ela continuou com a marcação. — Não ouvi você sair, eu teria escutado o carro sendo ligado.

— Não dê as costas para sua mãe — Jim aconselhou. — E tente pelo menos uma vez na vida nos falar a verdade!

Era tudo o que faltava!

— Pare de me dizer o que fazer! — gritei com ele, sentindo aquela questão que estava ali, sempre presente. — Você não tem o direito, não é nem meu pai!

Daria para pensar que eu tinha dado um soco no estômago de Laura pela maneira como ela engasgou e caiu sentada no sofá. Ela ainda estava de camisola, enrolada no roupão de banho cor-de-rosa, e a máscara facial da noite passada manchava seu rosto pálido.

Jim inclinou a cabeça para o lado, os olhos miúdos brilhavam.

— Vou fazer de conta que não ouvi isso, Darina.

— Tanto faz! — Já estava na hora de cair fora, não importava para onde.

Saí e estava ligando o carro quando o Honda de Logan parou na calçada, me impedindo de sair.

— Saia da minha frente! — berrei.

Ele bateu a porta e caminhou até a garagem.

— Pare de gritar comigo, você não vai a lugar nenhum.

Saltei do carro, passei por cima da grama e pulei a cerquinha que dava para a calçada.

— Não chegue perto, Logan. — Esse cara estava passando dos limites. — Você mesmo disse por telefone que não quer saber!

Logan não se deixou abalar. Começamos a correr pela rua, ele segurando meu braço.

— Você extrapolou, entende?

Hora de as questões surgirem novamente.

— Logan, você é pior do que Jim, não tem direito nenhum de querer me forçar a aceitar suas opiniões. Você não é nada na minha vida, tá bom?

Page 79: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

79

Era hora, também, de Logan ser nocauteado. Ele respirou fundo e pisou na valeta.

Eu já podia seguir em frente sem ninguém me impedir, mas parei para ir mais fundo na questão.

— Você não é meu irmão, nem meu namorado, nem meu pai, você é meu... Não, você não é nem mesmo meu amigo! — Ainda que eu quisesse, não conseguiria tê-lo machucado mais.

Fiquei chocada — ao invés de continuar nocauteado como Laura e Jim ficaram, Logan voltou na minha direção. Ele conseguia correr mais rápido que eu e, novamente, estava fechando meu caminho.

— É a hora da verdade? — ele perguntou com uma voz seca e amarga. — Quer ouvir o que está acontecendo, Darina? Você tem agido como uma completa demente. Ninguém acredita em uma palavra do que você diz. Ninguém. Nem Hannah, nem Lucas, ninguém gosta de você do jeito que está agindo.

— Quero ouvir isso mais uma vez — desafiei, com o peito arfando. — Não acabei de salvar uma mulher ferida numa montanha? Desde quando isso é errado?

— Você sabe que não estamos discutindo isso. Qual é o grande segredo sobre Foxton e a Pedra do Anjo? O que você está escondendo? Por que iria lá antes do amanhecer?

— Não vou falar!

Finalmente consegui deixá-lo para trás quando chegamos a uma fileira de plátanos e o som das folhas farfalhando foi se transformando em bater de asas.

— Eu posso ir para onde eu quiser, Logan, nenhuma lei me proíbe.

— Então vá — ele disse, conformando-se de repente. Ele tinha ido longe demais comigo, até o último round: o gongo havia soado, e era chegado a hora de o juiz apontar o vencedor, quem quer que fosse.

Com cuidado, andei ao seu redor ainda acreditando num golpe derradeiro.

— Então vai tirar o carro de lá? — perguntei, para confirmar.

— Claro — ele respondeu com desdém e voltou pelo caminho de onde tínhamos vindo. — Vá para onde quiser, Darina. Só que, daqui por diante, não venha mais à minha casa procurar ajuda e um ombro para chorar quando chegar ao fundo do poço.

Page 80: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

80

Depois disso tudo, mesmo com Logan tendo tirado o carro da calçada, eu não consegui ir a lugar nenhum.

— Darina, visita para você — Jim falou da varanda antes que eu pudesse engatar a primeira marcha.

Um estranho segurando um buquê de flores estava ao lado de Jim, e eu demorei um tempo para lembrar de onde o conhecia. Só quando saiu da sombra é que pude ver o cabelo grisalho penteado para trás, aquela figura magra, e tive um estalo: era o jardineiro da casa dos Taylor! Se fosse qualquer outra pessoa, eu teria pedido desculpas e me retirado.

O jardineiro Peter me reconheceu praticamente no mesmo instante. Percebi que piscou nervoso e engoliu seco. Continuou vindo até a garagem e se apresentou pela janela do motorista.

— Peter Hall. Vim aqui para agradecer-lhe.

— Pelo quê? — Eu pensava nas linhas de Raven Taylor, o desenho amassado e os olhos assustados do menino.

— Por tirar minha mulher, Jenna, do alto da montanha hoje de manhã. Se não fosse você, a coisa poderia ter sido feia.

Entramos na casa, e Laura pôs os lírios num vaso e saiu com Jim para me deixar falar a sós com Peter.

— Não tinha a menor ideia de que ela fosse sua mulher.

— De qualquer modo, obrigado. Acabei de chegar do hospital, e os médicos disseram que querem mantê-la internada por mais alguns dias. Eles precisam esperar até o ferimento desinchar antes de decidir o que vão fazer. Talvez uma cirurgia, talvez não. Além disso, Jenna ficou bastante abalada e foi medicada com sedativos.

— Ela vai ficar bem?

— Sim, e pediu que eu viesse lhe agradecer.

— É estranho que a gente já se conheça — lembrei.

Ele preferiu não continuar a conversar sobre isso.

— Preciso ir andando. Preciso buscar o reboque do cavalo de Jenna lá em Foxton. — Peter Hall terminou rápido a conversa, levantando-se para ir embora. — Então, obrigado, Darina.

Page 81: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

81

Fui com ele até o lado de fora da casa, contente por estar longe dos ouvidos atentos de Laura.

— O que foi que fez sua mulher e os amigos dela irem lá em cima tão cedo? — resolvi perguntar.

— Certo romantismo a respeito de assistir ao nascer do sol no alto do pico Amos. Eles passaram o outono inteiro planejando o passeio.

— E olhe só o que aconteceu quando foram — lamentei. — Eles sabem o que assustou o cavalo de Jenna?

— Nenhuma pista — Peter falou já indo em direção ao carro que havia estacionado mais adiante. — Dizem que os cavalos conseguem enxergar no escuro, então pode ser que tenham visto alguma coisa na sombra de uma pedra, um coiote, talvez. E o cara que estava cavalgando com eles disse que havia um vento esquisito por lá. Cavalos detestam quando o tempo está indicando chuva.

— É, deve ser isso, sim. — Aliviada, parei entre ele e seu automóvel, mas ainda cheia de perguntas que não estavam apenas relacionadas ao resgate daquela manhã. — Quer que eu mostre onde foi exatamente que eles estacionaram o reboque?

— Não, obrigado. Você já ajudou demais.

— Para mim não é problema nenhum, de verdade. Eu até gostaria.

— Então entre aí — ele disse, não querendo ser indelicado. Peter Hall era um cara bem-educado, trazia lírios cultivados por ele mesmo para agradecer e falava com um tom culto. — Você precisa avisar seus pais? — ele perguntou.

Fiz que não e entrei no banco do passageiro.

— Você pegou os lírios no jardim dos Taylor? Pergunto porque lembro de só ter visto lírios rosa lá perto daquele quiosque.

— Não, estes vieram da minha casa. Jenna gosta de cultivar flores. Saio da cidade pela esquerda?

— No próximo semáforo. Vá em direção à serra Turkey Shoot. Há quanto tempo trabalha com os Taylor?

— Há vários anos. Por quê?

— Por nada. — Fiquei quieta enquanto saíamos da cidade, e, após um pequeno parque industrial, passamos por casas em ruínas para entrar na área

Page 82: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

82

onde houve a queimada. Chegamos à estrada principal por volta das três e meia da tarde.

Já era hora de a sorte vir me visitar, pensei, enquanto o rádio de Peter tocava tranquilamente ao fundo. Se é que se pode chamar de sorte quando uma mulher cai do cavalo e me põe em contato com o único cara que eu sei que consegue chegar perto e ser íntimo de Raven Taylor.

— Quer dizer que você estuda em Ellerton High, Darina? — Peter me perguntou depois de algum tempo já na estrada.

Respondi que sim.

— E o que trouxe você até Foxton cedo assim?

Dei a velha desculpa de não conseguir dormir.

— Gosto de dirigir. Pego o carro e tento deixar meus fantasmas para trás — expliquei.

Peter assentiu, como se entendesse o que eu falava.

— Foi sorte de Jenna que você tenha ido.

— Você já deve saber que eu conhecia Arizona — contei calmamente, indo direto ao assunto que interessava.

No rádio, anunciavam a previsão do tempo para amanhã. Peter olhou para mim também calmo e disse:

— Agora já faz quase um ano. Antes dela, teve Jonas e, depois, Summer e Phoenix.

Magro e esbelto, com calça jeans escura e camisa azul-clara, as mãos finas no volante não pareciam ter passado mais de quarenta anos realizando trabalhos pesados. Essa era uma coisa nele que não conferia com o resto da história.

— As famílias ficaram muito abaladas — comentei. — A Sra. Madison raramente sai de casa... Quando encontrei a mãe de Jonas no velório de Bob, vi como as coisas estão difíceis para todos.

— Estou com os Taylor há bastante tempo — ele me contava. Tínhamos passado pelo morro com o crucifixo gigante de neon, uma referência que eu sempre usava nas vezes em que dirigia por essa estrada. Estávamos a dez minutos da saída para Foxton. — Sinto muita falta daquela menina, mais do que posso expressar.

Page 83: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

83

— Sente? Quer dizer, claro que você sente. — Tentei tirar o tom de surpresa da minha voz, mas Peter já havia sacado.

— Ela era uma menina muito complexa, difícil de conhecer bem. Mas assim que se conseguia enxergar por trás daquela imagem de espertalhona, Arizona conseguia fazer qualquer um ficar a seu lado.

— Nunca a conheci direito — admiti. Devagarinho eu dava a volta na chave que abria a porta onde se escondia a verdadeira Arizona Taylor. — Não conheço ninguém que a tenha conhecido.

— Dura por fora, mas com um coração mole como manteiga por dentro. Uma menina muito, muito doce.

— Vire à esquerda no semáforo — disse a ele, disfarçando minha surpresa na nossa chegada ao entroncamento de Foxton. — Vá beirando o rio, até depois das cabanas dos pescadores.

— Se você a tivesse visto tomando conta de Raven... — Peter explicou. — Ela o amava como ninguém. Os outros, Frank e Allyson, não tinham nem tempo nem paciência. Eles não têm o amor que Arizona tem.

Minha reação era de incredulidade.

— Então nós podemos falar sobre Raven?

— Claro. Você o viu no quiosque, por que fingir que não?

— Eu só pensei que...

— Ninguém fala sobre ele, não é? É desse jeito que os pais dele preferem levar a situação.

— E Arizona, enquanto estava viva, era assim também? Ela não falava do assunto?

— A família inteira. Para Frank e Allyson chegava a ser um tipo de constrangimento, como se ele fosse algo vergonhoso para a reputação da família. Essa é a principal razão por eles terem educado Raven em casa. Arizona, porém, tinha motivos diferentes, ela pensava que o silêncio seria a melhor forma de protegê-lo. Ela não queria gente fazendo perguntas e chateando o menino com coisas assim.

— E onde você entra na história?

— Eu sou o jardineiro, durante meio período — ele retrucou.

— E guarda-costas?

Page 84: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

84

— Jardineiro, e ponto final. — A estrada só piorava até chegarmos a uma curva fechada onde ele foi obrigado a pisar no freio. As rodas traseiras derraparam e levantaram poeira. — Isto é, até o final do meu contrato com eles, que acaba no fim deste mês.

— E depois?

— Depois a casa será vendida, e eu vou perder o emprego.

— O reboque para os cavalos está por aqui — falei —, logo ali na frente.

Ajudei Peter a engatar o reboque em sua caminhonete, deixando o tempo passar antes de bisbilhotar um pouco mais. Decidi que gostava dele e pronto — ele era direto e consistente, não ficava fazendo joguinhos.

Ele me colocou no banco do motorista e falou para ir de marcha a ré até o reboque.

— Tá bom, pode parar aí. Estou virando a alavanca. Assim tá ótimo. Legal, conseguimos engatá-lo. Quer dirigir? — perguntou quando voltou à cabine.

— Nunca puxei um reboque antes — era melhor contar.

— Acho que você dá conta — Peter falou com um sorriso, sentou no banco do passageiro e me explicou a melhor maneira de sair dali para pegar a estrada. — E você conseguiu o que queria daquela sua visita a Frank?

— Não. Fui pedir aulas de música, mas ele se negou. — Dirigi devagar, margeando o rio em direção à rodovia. — Na verdade, eu não queria aprender o violão — confessei. — Ouvi histórias sobre Arizona e quis conferir.

— Que tipo de histórias? — Por um breve instante, Peter levantou a guarda novamente.

— Algumas pessoas disseram que ela não se suicidou no lago Hartmann, que não foi bem assim que aconteceu. — Será que eu tinha dado um passo a mais do que deveria, e isso faria com que ele se fechasse completamente?

Não, mesmo.

— Concordo com eles — Peter disse, cheio de emoção em suas palavras. — Que motivo Arizona teria para tirar a própria vida? Por que em nome de Deus ela deixaria Raven para trás?

— Exatamente! — Na minha agitação, pisei no acelerador ao invés do freio, e passamos no cruzamento direto para a rodovia. Felizmente o sinal estava verde.

Page 85: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

85

— Ela cuidava dele — Peter insistiu. — Para falar a verdade, ela foi para ele uma mãe muito melhor do que Allyson jamais conseguiu ser.

— Interessada demais na própria carreira, não? — Eu estava de volta ao controle da situação, descendo em direção a Turkey Shoot.

— Não é bem isso. Várias mulheres têm carreiras e família sem problemas. Mas com Allyson é como se ela não tivesse um instinto maternal. Ficou faltando esse gene nela.

— Frank Taylor também não é um cara carinhoso e amoroso. — Para mim parecia que ele era só racional, sem sentimentos.

— Agora você entende por que Arizona assumiu o papel de mãe. Jenna e eu fizemos o que podíamos, ainda fazemos, sempre que dá.

Dirigi em silêncio por um tempo. Estava caraminholando uma nova pergunta na cabeça, mas guardei-a mais um pouco.

— O que acontece com Raven? — foi o que perguntei no lugar da outra que estava tramando. — Bom, ele é autista e eles sentem vergonha. Mas, no fim das contas, qual é a questão? Por que o estão escondendo realmente?

— Ele precisa de muitos cuidados, remédios e monitoramento vinte e quatro horas por dia. Também há a alteração de humor dele, que pode levá-lo a se ferir. Além disso, ele sofre de hiperatividade, e a única hora em que fica calmo é quando está desenhando.

— Parece bem difícil de lidar... Mas ele entende o que se passa a seu redor? Ele fala? — Lembrem-se de que Arizona havia me dito que ele não sabia nem o que significava um sorriso.

— Não fala nada — Peter confirmou. — Mas Arizona tinha um jeito de chegar até ele, só ela conseguia.

— Ele sente muito a falta dela?

— Fica louco de saudades. Quando chega da escola, ele vai de quarto em quarto procurando por ela, querendo mostrar seus desenhos novos.

— E você? — Foi aí que soltei aquela pergunta: — Arizona significava mais para você do que está me contando?

Peter respirou fundo, superou quaisquer dúvidas que ainda o faziam hesitar e seguiu em frente:

— Jenna e eu... Nós somos os pais da primeira esposa de Frank, Kathryn.

Page 86: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

86

— Vocês são os avós de Arizona? — Fiquei sem ar.

— Foi uma tragédia, Kathryn morreu dando à luz Arizona. Ela nunca conheceu a mãe, então fizemos todo o possível para suprir essa falta.

— Eu avisei que ela era esperta demais para você. — Hunter voltou a ser o mesmo, controlador e sisudo. Ele me ouviu chegar depois de Peter ter me deixado em casa, onde peguei o carro e voltei direto para Foxton. O mestre havia saído do celeiro para me encontrar.

— O que você tinha dito foi ―sutil‖, não esperta. Não acho que as mentiras e as coisas que ela escondeu sejam algo esperto de fazer. Adivinhe só a última: ela tem avós!

Ele me olhou com atenção.

— Você está brava.

— Claro que estou. Você, não? — Na realidade, eu não esperava muito que essa fosse minha última conversa com o líder dos Beautiful Dead sobre Arizona. — Diga, ela saiu daqui? Você a mandou de volta para o limbo?

— Que resposta você quer, sim ou não?

— Sim, se ela continuar mentindo para nós. Se fosse por mim, diria ―adeus, Arizona‖ e passaria para o caso de Summer. — Só que estava em jogo o futuro de Raven, a chance remota que eu tinha de descobrir a verdade e fazê-lo entender o que havia acontecido com sua irmã.

— Exatamente. — Hunter tinha lido meus pensamentos. — É por isso que você está aqui.

— Então você não a mandou de volta, mesmo depois do que fez? — Estava frio ali no quintal, e a lua tinha sumido atrás de um denso nevoeiro. Fiquei arrepiada, esperando impacientemente pela resposta de Hunter.

— Eu resolvi esse negócio — ele disse sem pressa. — De agora em diante, Arizona falará a verdade.

— É melhor que fale, porque estou sabendo de um monte de coisas novas sobre ela. Por exemplo, os avós, Jenna e Peter Hall, também cuidam de Raven. Arizona não era a única a tomar conta dele.

— Mas Arizona soube que eles terão de ir embora no fim do mês. — Hunter e Arizona estavam dois passos à minha frente, como de hábito. — Como eles não são parentes de sangue de Raven, Alysson Taylor jamais daria a eles o direito de continuarem com as visitas.

Page 87: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

87

— Arizona disse isso para você?

— Conseguimos nos entender melhor, desde que eu a vi pela última vez.

— Você a perdoou? — Por sonegar informação, por desafiar a autoridade dele, por colocar dúvidas sobre os atos da esposa falecida fazia tempo. Eu estava chocada, mas pus minha cabeça no lugar e continuei a pressioná-lo. — Ela disse por que ficou escondendo tudo aquilo?

Ele coçou o queixo.

— É de admirar a força da mente dela — ele falou, sem responder à minha questão. — Ela manteve a barreira por quase um ano, até para mim. Ninguém conseguia atravessá-la, o que demonstra caráter.

— Mas por quê?

— Aí vem ela. — Hunter deu um passo para o lado para que eu pudesse ver a silhueta de Arizona na porta do celeiro, iluminada ao fundo pela luz suave do lampião. — Você poderá lhe perguntar pessoalmente.

— Fiquei chocada ao saber que Hunter não puniu você — eu disse a Arizona à medida que íamos andando pelo morro no escuro.

— O que faz você pensar que eu não fui punida? — Ela estava um pouco à frente de mim, só de camiseta e calça jeans. O vento jogou o cabelo sobre seu rosto.

— Por você ainda estar aqui — esclareci.

— Ele diminuiu meu tempo no mundo dos vivos — falou com uma voz desanimada. — Eu tinha duas semanas, agora tenho só uma.

— Nossa! — Acelerei o passo para conseguir ver a expressão em seu rosto. — Sete dias para resolver essa bagunça toda!

— E tem mais, ele me mandou de volta ao dia em que aconteceu, para tentar me fazer lembrar de mais detalhes. É uma dor infernal.

— Como se eu não soubesse. Quer dizer que ele fez você viajar no tempo. E funcionou?

Arizona balançou a cabeça negativamente.

— Cheguei ao ponto em que estava andando na beira do lago, no dia em que morri. Essa parte ainda está bem visível em minha memória: o sol já baixo, o gelo na margem, a água cintilando. Eu não estava sozinha, mas não sei quem estava comigo, sei que estava assustada.

Page 88: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

88

— E depois?

— Depois foi uma explosão de medo, de puro terror, tudo borrado, e daí um apagão geral. Hunter me puxou de lá e me trouxe de volta para o presente. Sentia-me como se estivesse sendo rasgada em pedaços. E tudo isso para nada.

Caminhamos um pouco, marcando o passo.

— Acho que Hunter sabia que não haveria nada de novo.

— Como disse, ele estava me castigando. Eu revivi tudo até certo ponto, e para quê?

— Para ter essa conversa comigo — expliquei. — É hora da verdade, Arizona, e eu sou toda ouvidos.

Sentamos debaixo da caixa d’água, encostadas às vigas de ferro e rodeadas de silêncio. Esperei um bom tempo até Arizona começar.

— Imagine só isto. Parece que em toda a minha vida eu estive vivendo numa casa onde as pessoas negavam tudo. Primeiro, fingiam que não tinha nada de errado com seu bebezinho querido. Raven não comia e não olhava para ninguém, mas por que se preocupar? A babá cuidava do problema da comida enquanto papai e Allyson iam para o trabalho. Quando Raven tinha ataques de epilepsia, mandavam chamar os médicos, que acabavam convencendo-os de que ele cresceria sem esse problema. Diziam que era um mal menor e, como soava chique, estava tudo bem.

— Você sabia que não estava?

— Desde o começo. Ele era um neném quando o vi enfiando as unhas na própria pele. Quando os dentes cresceram, ele passou a se morder. Era tão pequeno e indefeso; nós dois éramos.

— Sinto muito.

— Não sinta. Eu logo fiquei mais durona e entendi que não era bom ficar indefesa, então comecei a lançar provocações. ―Como é que vocês não entendem isso? Por que não fazem nenhum esforço de verdade?‖ Mas meu pai e Allyson não gostam de lidar com a doença nem com a incapacidade.

Interrompi para contar a ela que, por acaso, tinha aprendido um bocado com seu avô. Se ficou chocada ou envergonhada, disfarçou bem.

— Você era uma criança naquela época, mas Peter e Jenna eram adultos. Eles conseguiam ver o que estava acontecendo e, com certeza, se importavam.

Page 89: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

89

Arizona me deu um daqueles seus olhares duros de desconsideração.

— Todo mundo se importava — ela argumentou. — Mas Allyson é a poderosa, ela faz as coisas do jeito dela. Disse que se meus avós tivessem alguma reclamação sobre como ela lidava com o caso de Raven, eles podiam fazer o favor de ir embora.

— Que medo!

— Uma madrasta malvada arquetípica. E eu estava no caminho dela, atrapalhando.

— Sei bem como é — resmunguei comigo mesma: Onde se lê Allyson no caso de Arizona, leia-se Jim no meu.

— Daí eles foram enfeitando o estado de Raven com mais rótulos chiques. Um dia eu acordei e ele não estava mais lá.

— Tinha sido levado para a escola?

— Allyson estava ocupada apresentando os boletins de notícias na televisão, e meu pai tinha ido para um congresso na Europa. Portanto, só havia sobrado a moça que cuidava dele para me dizer o nome da escola para onde tinha levado meu irmão: o Instituto Lindsey. Ela disse que ele voltaria em algum momento.

— Nossa... Peter falou que você era a única que sabia como entrar em contato com Raven. Como é que fazia isso?

— Eu me concentrava naquilo em que ele é bom — ela explicou, como se a resposta fosse óbvia para todos. — Ele gosta de desenhar.

— Então você desenhou?

— Sim, e mostrei umas imagens a ele, de vez em quando fotografias, outras vezes, pinturas. Tem uma galeria grande de arte na cidade, e eu o levei lá. Raven gosta de Andy Warhol, do modo como ele fica repetindo imagens de silkscreen de Marilyn Monroe, de Elizabeth Taylor, das latas de sopa.

— Vou me lembrar disso — prometi, espantada por ver que meu comentário encheu seus olhos de lágrimas. — Quando tudo isso tiver acabado, vou levá-lo para ver os quadros de Andy Warhol.

Arizona não resistiu e chorou.

— Sem que eu possa estar lá para protegê-lo, vão trancá-lo em qualquer lugar e jogar a chave fora. É o que vão fazer depois do divórcio, eu sei.

Page 90: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

90

— Olhe — falei, tirando o desenho amassado de Raven do meu bolso. Tinha ficado com ele por ser a única coisa concreta que podia guardar. Desdobrei a folha e entreguei a ela.

As mãos de Arizona tremiam enquanto ela examinava cada linha daquele esboço.

— Obrigada — ela repetia baixinho. — Oh, Raven, pobrezinho, o que vai ser de você agora?

Quando a vida é dura, você acaba criando uma casca grossa para ajudar a aguentar a situação — foi o que aprendi nas últimas horas. Porém, de repente, o desenho de uma casa quebra essa casca e deixa que a luz entre. Eu vi uma nova Arizona — finalmente uma que eu queria ajudar.

— Você precisa me falar sobre Kyle Keppler — insisti, durante nossa caminhada. — O que eu preciso saber?

Ela saiu do topo da serra, descendo para o lado escuro do morro.

— É complicado.

— Complicado como? Escute, você me disse que não sabia o nome da oficina de Mike Hamill, mesmo sendo o lugar onde seu namorado trabalha. Por que escondeu isso de mim?

— Não queria Kyle envolvido nessa história.

— Oficialmente, ele não está, então você fez um bom trabalho — resmunguei. — E, por falar nisso, sabia que agora ele fala que vocês nunca namoraram? — Sem dúvida isso a magoou e eu me arrependi — Seu carro ainda está na oficina, por isso consegui entender algumas coisas sozinha.

— Que eu levei o carro para o conserto naquele dia? Que, depois, meu pai e Allyson nem se importaram que ele ficasse lá? E que também esconderam todas as fotos e mandaram minhas roupas para um bazar de caridade? O que mais?

— Você e Kyle estavam acobertando alguma coisa, não sei o quê. Em todo caso, por que queria que o nome dele ficasse fora disso?

— Por que o que tínhamos, nosso relacionamento, era um segredo.

— Brandon Rohr sabia. Ele me contou.

Arizona diminuiu a velocidade, passou a mão em volta de uma árvore de tronco fino e olhou para a escuridão da abóbada celeste.

Page 91: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

91

— Brandon jurou para Kyle que não contaria. Kyle é amigo dele, confiava nele.

— Enganou-se. Pelo amor de Deus, nem eu confio em Brandon, mesmo ele sendo irmão de Phoenix. Ele só dança conforme sua própria música.

Arizona balançou-se em volta da árvore até que ficamos cara a cara.

— Vá em frente e tente imaginar os motivos para que eu não quisesse que as pessoas soubessem sobre mim e Kyle.

— Numero uno: ele não é muito o seu tipo.

— Por ser pobre?

Não pude discordar.

— Além disso, ele não é velho, é pré-histórico!

— Tem vinte e dois — confirmou. — E daí?

— Também não é muito o tipo dos seus pais.

— E isso seria problema para mim?

— Tá, não seria. Então me diga você, o que mais?

— Que tal... Ele já tem uma namorada?

Lamentei.

— Nossa, Arizona. Quem é ela?

— Ela se chama Sable, não mora em Ellerton.

— Espere, deixe-me adivinhar o resto. Sable é a namoradinha dele, estão juntos desde a infância. Ele a trai e jura manter segredo. Mas por que você concordaria?

— Só descobri a existência de Sable depois que Kyle e eu já estávamos tendo um caso; e aí eu já estava apaixonada.

— Não entendo, Arizona. Certo, Kyle é bonito de se ver, mas tem mais outra coisa, além disso?

— Você está querendo saber se a gente conversava? Ah, vai, Darina, desde quando conversar é tão necessário assim?

Page 92: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

92

— Talvez você ache isso estranho, só que conversar é legal, na verdade. — Naturalmente, eu estava pensando em mim e em Phoenix, além de não estar gostando do jeito com que Arizona voltava a falar comigo, com aquele ar de superioridade. — Devia experimentar uma hora dessas.

— Ok, você tá certa. Quando conheci Kyle, eu estava num momento no qual precisava mesmo de alguém para poder me apoiar. E não estou querendo dizer apenas fisicamente. Nós dançamos e conversamos. E, sim, ele sabe articular palavras com mais do que duas sílabas.

— Você falou de Raven para Kyle? — Fiz a pergunta definitiva; se sim, então era um amor verdadeiro.

— Chegou uma hora que eu contei. Estávamos juntos havia dois meses, e me sentia totalmente segura com ele. Foi quando ele também se abriu e me contou sobre Sable.

— Valeu por essa, Kyle! — Para variar um pouco, assumi o papel sarcástico. — Arizona, ele poderia ao menos ter poupado você desse fato.

— Sable Jackson, a garota de Forest Lake. — Arizona fechou os olhos ao lembrar. — Acontece que ela e Kyle eram noivos.

— Meu Deus, Arizona!

— É, eu sei, idiota, né? Devia ter me afastado disso. Mas ainda tem mais.

— Mais ainda? Isso não é o máximo a que dá para chegar?

— Vamos adiantar alguns meses. Eu ainda estava completamente envolvida com Kyle e, apesar de saber de Sable, eu fugia de casa e passava todo o tempo que podia junto dele. Depois da aula, matava o tempo perto da oficina de Mike Hamill, esperando Kyle sair do trabalho. Um dia, fomos de carro até o pico Amos para ficarmos sozinhos. Era nosso lugar preferido, e lá eu o coloquei contra a parede, dei um ultimato. Então ele me disse que não podia terminar com Sable, jamais.

— Ele disse por que não? — Eu odiava Kyle Keppler mais e mais a cada minuto que passava.

— Ela estava grávida — Arizona falou, soltando um longo suspiro. — O bebê nasceria no Natal, e eles tinham marcado o casamento para a última semana de outubro.

— Então o bebê já deve ter uns nove meses de idade agora, talvez dez. — De repente eu estava com um problema complexo demais, fora de minha alçada, e olhando para Phoenix à espera de um conselho. Arizona e eu havíamos

Page 93: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

93

chegado da serra, e Lee foi mais uma vez conversar com ela e Hunter dentro da casa. Phoenix tinha ordens de conferir se eu tinha chegado a salvo em casa.

— Onde moram? — Ele perguntou, quando chegamos ao carro.

— Fora da cidade, em Forest Lake. Acho que Kyle Keppler seguiu com os planos e se casou com Sable perto da época em que Arizona morreu.

— E Arizona escondia tudo porque não queria comprometê-lo. Como é que isso pode fazer sentido? — Phoenix processava as informações que eu tinha acabado de lhe passar e ainda estavam rodopiando em sua cabeça. — O que ela estava fazendo? Protegendo-o?

Concordei, arrebatada por um pensamento repentino:

— Do mesmo modo como protegeu Raven todos esses anos, é isso que Arizona faz quando ama alguém, ela constrói um círculo de silencio em volta dessas pessoas.

— Só que isso coloca Kyle no lugar certo, a Mike Motores, e na hora certa, na tarde em que Arizona se afogou. Mais ainda, ele tinha um motivo.

— Para matá-la? — Fiz um som de estalo com a boca e depois expirei bruscamente. — É isso o que estamos procurando?

— Se não foi suicídio, então foi assassinato.

— Ou um acidente? — Mas logo em seguida lembrei-me da volta de Arizona à cena, de como ela sentiu que havia alguém lá no Hartmann e do medo que percorria seu corpo. — Com certeza tudo indica um assassinato — concordei.

Phoenix, pensativo, segurava a cabeça.

— E esse cara, Kyle, ele tem cara de quem faria uma coisa dessas?

— Ele anda com o seu irmão, pilota uma Harley Dyna, tem mais ou menos um metro e noventa e cinco de altura, é tudo o que sei.

— Portanto, não chegue perto dele — pediu, segurando minha mão. A voz de Phoenix ficou intensa e ansiosa. — Você me escutou? Faça o que tiver de fazer para ajudar Arizona, mas mantenha distância de Kyle Keppler.

Page 94: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

94

O dia seguinte era um domingo, e eu estava de castigo.

Jim e Laura me fizeram sentar à mesa da cozinha para escutar quais seriam meus novos limites. Foi mais ou menos assim:

Jim: Sua mãe e eu conversamos e queremos esclarecer algumas coisas.

Eu: Vá em frente, comece.

Jim: Precisamos que você concorde em não sair de casa à noite.

Eu: Sobre o que exatamente estamos falando quando você diz noite? Seria depois da meia-noite, ou depois das vinte e duas? Vinte? Mais cedo ainda, quem sabe?

Laura: Pode parar, Darina. Escute o que Jim tem a dizer.

Jim: Esta cidade é perigosa, veja o que aconteceu a Summer. Nós... Sua mãe está ficando louca de preocupação. Ela precisa saber onde você anda — na escola, na casa de amigos, aqui no seu quarto.

Eu: Então isso seria um toque de recolher de vinte e quatro horas diárias?

Jim (rangendo os dentes): Também gostaríamos que você demonstrasse mais respeito.

Assim que introduziu a palavra — respeito —, ele perdeu a minha atenção. Comecei a viajar, imaginando onde estaria Phoenix e o que Arizona estaria fazendo naquele exato momento. Lembrei-me do último instante de meu envolvimento com atividades dos Beautiful Dead na noite passada.

Page 95: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

95

Foi Lee Stone quem interrompeu a fala de Phoenix, ―Fique longe de Kyle Keppler‖. Ele havia corrido até o alto do morro para contar a Phoenix que Hunter estava precisando dele imediatamente, pois um bando de turistas de fim de semana que estavam no acampamento de Government Bridge havia bebido demais e planejava um passeio de caça aos fantasmas madrugada afora até a serra de Foxton.

— Você sabe de algum nome? — perguntei, pensando que talvez pudessem estar incluídos Charlie Fortune e alguns outros vigilantes de plantão que, de vez em quando, resolviam se mostrar indo até Foxton para tirar a limpo os boatos famosos de fantasmas e acontecimentos estranhos.

— Infelizmente não sei. — De qualquer modo, Lee assinalou que era novo por ali e que nomes não significariam muito para ele. — Hunter disse que não são de Ellerton.

— Uau, sua fama está se espalhando — cochichei, quando Phoenix veio me dar um beijo de despedida. — Daqui a pouco a região inteira vem conferir.

Soou como uma brincadeira, mas eu estava terrivelmente preocupada. O número de vigilantes que acreditavam que algo esquisito estava acontecendo em Foxton só aumentava. Nos bares, ouvia-se uma história de vultos que eram vistos na serra durante a noite, depois surgiu o caso do agrimensor do condado que quase enlouqueceu de medo e, agora, o vento esquisito que assustou o cavalo de Jenna Hall. Perguntei a mim mesma por quanto tempos os Beautiful Dead conseguiriam manter a salvo o segredo de sua existência...

— Darina? — Laura trouxe-me de volta ao presente com uma sacudida. — Você está me ouvindo? Você vai ficar de castigo hoje o dia inteiro.

Pais fazem isso — conspiram contra você usando toda hora o grande ―nós‖, como se fossem um grande exército defendendo um império, e você, um reles soldado raso.

— Queremos que você limpe seu quarto e depois comece a arrumar a cozinha. Vai comer com a gente o almoço de domingo e fazer todos os deveres de casa antes do jantar. Ouviu o que eu disse? Não é para você sair de casa.

Quantos anos fazia que Laura não dava uma dessas? O que fez ela pensar que agora funcionaria?

De qualquer modo, resolvi não levantar a cabeça acima das barricadas e correr o risco de ser alvejada, pelo menos hoje. Eu ficaria de castigo porque precisava de um pouco de espaço para pensar e planejar.

Page 96: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

96

Deixei o aspirador de pó fazendo barulho em cima do meu carpete. Será que aceito o conselho de Phoenix e vou procurar a ajuda de Brandon? Essa dúvida ficava zumbindo na minha cabeça.

— Se a coisa ficar feia, vá procurar meu irmão — ele disse antes de sair correndo morro abaixo com Lee.

Esvaziando a lixeira do meu quarto, decidi que não iria. Brandon compartilha informações com Kyle Keppler, recordei, e eu não queria de jeito nenhum que isso se espalhasse por aí. Concordei com Phoenix sobre ficar longe de Kyle, mas então será que em vez disso eu deveria ir até Forest Lake e investigar Sable? Na hora de levar o lixo para fora resolvi que, sim, iria até lá, porque já não tínhamos mais quase tempo nenhum por causa da punição dada por Hunter. É, iria sim, sem dúvida — para em seguida tentar descobrir uma maneira de encontrar o endereço dela.

Então, assim que pudesse, eu iria de carro até Forest Lake. Talvez desse uma parada para tomar um café e fizesse umas perguntas inofensivas.

* * *

— Ei, Darina, como a Srta. Jones reagiu? — Jordan me encurralou na saída da escola no dia seguinte. — Ela quis fazer picadinho de você por ter abandonado os ensaios da apresentação agora tão perto da data?

Eu estava querendo sair dali rápido para ir a Forest Lake e dar continuidade ao meu plano. — Ela jogou a responsabilidade para mim, mas não liguei, queria mesmo sair.

— Entendo completamente. Sei como está sendo difícil para você, desde Phoenix.

— Valeu. — Não seja legal comigo, Jordan! Compaixão me atinge em cheio e eu fico toda mole.

— Nada me faria concordar com Hannah — ela continuou.

Assim é melhor — venha fazer um comentário manipulador e venenoso desses para eu ter ao que me agarrar.

— Por quê? O que Hannah pensa? Que desisto por qualquer motivo, que só penso em mim mesma e que afinal de contas eu devia isso a Summer e blá-blá-blá?

— Sim, todas as alternativas acima — Jordan afirmou.

Page 97: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

97

Nesse exato instante, Hannah saiu da escola com Logan. Eles estavam de braços dados, bem à vontade. Ergui uma sobrancelha na direção deles e perguntei a Jordan.

— Desde quando?

— Por quê? Você se incomoda? — ela respondeu com um sorriso cínico.

— Não, mesmo! — O dito popular sobre negar demais alguma coisa me veio à cabeça. Meu ―não, mesmo‖ deve ter vindo junto com pelo menos uns dez pontos de exclamação na sequência.

— Hum — Jordan disse, saindo e me deixando livre para ir pegar o carro.

Dei mais uma olhada para Hannah e Logan. Ela estava com a boca na orelha dele, cochichando alguma coisa; ele lançou um olhar em minha direção e riu. Entrei no meu carro.

Forest Lake ficava a uma hora de Ellerton — uma cidade que vivia do passado, com uma ferrovia de bitola estreita e trem a vapor de verdade, um museu e uma série de lojas que vendiam selas e chapéus de vaqueiro. Mas poucos turistas apareciam num lugar afastado assim. A rua principal estava deserta naquela segunda à tarde. Estacionei o carro e passei por uma loja que vendia artesanato indígena no caminho até o único restaurante da cidade, onde pedi um café e me sentei perto da janela para olhar a rua vazia. Agora que eu estava lá, ter vindo pareceu uma ideia estúpida. Como estavam sem nada melhor para fazer, mandei uma mensagem de texto para Laura, dizendo que estava na casa de Jordan fazendo um trabalho da escola.

Um velho entrou e pediu rosquinhas frescas para viagem. Um cachorro magro, malhado de marrom e branco, andava pela calçada. De vez em quando um carro chegava ao estacionamento da loja de conveniências do outro lado da rua.

— Você quer alguma coisa junto com o café? — perguntou a garçonete, atrás do balcão.

— Não, obrigada. Na verdade, estou procurando Sable Jackson, mas estou sem o endereço dela aqui comigo.

— Desculpe-me, acho que não posso ajudá-la, não conheço nenhuma Sable Jackson. — A garçonete disse e continuou limpando o balcão. — Tem uma Sable aqui na cidade, mas ela se chama Sable Keppler.

— Claro. — Dei uma tapa em mim mesma pela confusão e tentei disfarçar com uma risada de constrangimento. — Ela casou com Kyle no ano passado. Eu vim de Ellerton, acho que vou voltar lá e pegar o endereço dela.

Page 98: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

98

— Não precisa. — Mais um pouco de limpeza, desta vez na máquina de café expresso prateada. — A casa de Sable fica logo atrás da rua principal, no número 505. É só virar à esquerda no semáforo.

Já em pé, e fora do restaurante, deixei o café por beber.

— Valeu! — agradeci, sem nem me virar para a atendente. Voei para dentro do carro, dirigi até o semáforo e virei à esquerda, como a garçonete havia dito. Quase parando, segui pela White Eagle Road, procurando o número 505.

Mesmo não esperando que fosse grande coisa, a casa de Sable e Kyle não batia com a imagem que eu tinha em mente. Era cercada por uma tela de arame e tinha dois pastores alemães guardando um barraco cuja varanda desmoronava. Um carrinho de bebê estava tombado ali ao lado, e a grama crescia nas rachaduras do piso do quintal. Quando vi pela porta aberta que um homem e uma mulher conversavam, passei de carro direto, sem nem parar.

Pelo que vi de relance, a mulher tinha em torno de vinte e poucos anos e um cabelo escuro até a cintura, vestia jeans e camiseta branca — uma versão de Arizona menor e com menos classe, foi o que me pareceu. O cara também era moreno... E com certeza não era Kyle Keppler.

Manobrei no final da rua e fiz o retorno.

Sable e o cara já tinham saído para a varanda, e os cachorros estavam farejando as rodas da Harley Softtail estacionada na porta. Ele a abraçou pela cintura para dar um beijo de despedida.

Então quer dizer que Kyle a traía, e agora ela o está traindo. Era uma conclusão óbvia. E onde o bebê se encaixa nisso tudo? O que acontecerá quando Kyle descobrir?

O cara desceu da varanda, levantou o carrinho de bebê e deu a partida na Harley. Ele ainda gritou alguma coisa para Sable, em meio ao ronco do motor.

Preocupada demais em espioná-los, discretamente, nem notei uma caminhonete vir da rua principal e parar em frente ao 505. Só quando a porta bateu é que eu desviei a minha atenção para o motorista que descia, e vi que era Kyle.

Epa! De repente, eu estava no meio de uma situação típica daqueles programas de flagras na televisão: “Minha mulher descobriu que eu a traía e está tentando se vingar, dando por aí!”

Fui reduzindo a velocidade do carro até parar e esperei pela explosão de raiva.

Êpa de novo!

Page 99: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

99

Kyle pegou sua jaqueta de brim suja de graxa do fundo da caminhonete, desamarrou uma parte da cerca e entrou no quintal. Os cachorros foram recebê-lo, fazendo festa. Ele cumprimentou o cara da Harley e parou para conversar. Depois, ele se virou para o meu lado e viu meu conversível vermelho e brilhante comigo dentro. Demorou um pouco até processar o que tinha visto — tempo suficiente para que eu ficasse gelada de tanto medo — e entendesse: eu era a menina irritante que havia ido fazer uma visita a Mike Motores para interrogá-lo sobre Arizona.

Kyle Keppler era rápido para um cara grande como ele. Os cachorros latiam cada vez mais, enquanto ele saía do quintal correndo e atravessava a rua. Pisei no acelerador na hora em que ele chegou ao meu carro e segurou a maçaneta. Por uma fração de segundo ele conseguiu resistir enquanto eu derrapava e cantava os pneus tentando arrancar com o carro, até finalmente largar.

No retrovisor, vi o homem moreno juntar-se a ele. Os cães continuavam latindo, e Sable estava entrando em casa para se esconder. Saí de Forest Lake e peguei a estrada de volta para Ellerton, ignorando todas as leis de trânsito no caminho.

Ainda tremia quando cheguei em casa e percebi que Laura e Jim estavam no trabalho. Tinha a casa todinha para mim e bastante tempo para me arrepender do que tinha acabado de fazer. Respirei fundo e vaguei pelos cômodos, tentando me convencer de que no fim das contas Kyle não havia me reconhecido.

— Darina? — Logan me chamou da varanda, dando uma espiada pela janela da cozinha que estava aberta.

Quase bati no teto com o pulo que dei.

— Não me assuste assim! — gritei.

— Não quis assustar, até bati na porta. Você não respondeu.

— Talvez por que eu não quisesse — indiquei. — O que você quer, Logan?

— Vim me desculpar. Sei que pareceu que eu estava rindo de você, mas não estava.

— Quando? Do que você está falando?

— Hoje mais cedo, com Hannah. Depois eu percebi, não era o que você estava pensando.

Page 100: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

100

— Quer dizer que você sabe o que estou pensando de novo? — Suspirei, mas por dentro eu estava finalmente feliz com uma visita de Logan. — Entre e me conte o que aconteceu.

Ele se curvou para passar pela porta e, de repente, pareceu grande demais para as cadeiras de madeira da cozinha de casa.

— Pode ser que Hannah estivesse querendo que fosse do jeito que você enxergou a coisa, sabe, ela e eu, mas nada disso é verdade.

— Você vê algum sentido nisso que acabou de dizer? — questionei, para fazê-lo sofrer de propósito. — Ou é um jogo de adivinhação?

— Eu e Hannah não temos um caso — ele revelou após respirar fundo. — Ela me chamou para ir ao cinema com ela hoje à noite, mas eu disse que não.

— E precisava vir me falar? — Meus olhos estavam bem abertos, eu continuava me divertindo à custa dele. — Escute, Logan, fique à vontade para ir ao cinema com Hannah quando quiser.

Ele franziu a testa, recostou-se na cadeira frágil e olhou para o teto.

— Detesto como as coisas têm acontecido entre nós ultimamente — disse. — Quando foi que entramos nessa de joguinhos?

Foi a minha vez de respirar fundo. O modo como ele me olhava, com mágoa nos olhos, conseguiu me acertar em cheio.

—Será que foi quando me apaixonei por Phoenix? — sugeri. — Estou falando sério, desde então as coisas não vão tão bem para você.

Sem pressa, Logan deixou que os pés dianteiros da cadeira voltassem ao chão. Ele concordava.

— É verdade, você tem razão.

— Não tenho como ajudar você, aconteceu e pronto. Eu amava, amo Phoenix mais do que tudo. Você precisa largar de mim. — Debrucei-me por cima da mesa e segurei sua mão. — Deixei-me seguir adiante, Logan, e poderemos ser amigos de novo.

Pensei que já havíamos dado um pequeno passo nessa direção antes de Laura chegar do trabalho e Logan ir embora.

— Logan parecia triste — Laura notou. Ela estava com a expressão exausta, a mesma de sempre, depois de passar o dia vendendo roupas em oferta no shopping.

Page 101: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

101

— Estamos todos tristes — falei, e foi o suficiente para deixá-la calada.

No dia seguinte, de manhã bem cedo, Jim atendeu o telefone quando saía para o trabalho.

— Darina! — ele gritou, lá do pé da escada. — É aquele senhor das flores, Peter Hall.

Corri para atender, descendo os degraus de dois em dois.

— Peter, sou eu, como está Jenna?

— Jenna está bem. É por causa de Raven que estou ligando.

— O que aconteceu? Onde ele está?

— Esse é o problema. Acabei de chegar na casa, e está um clima indescritível. Frank estava aqui, Allyson também. Eles me disseram que haviam recebido um telefonema da escola de Raven. O menino desapareceu.

— Quando? — perguntei num sobressalto.

— Hoje cedo, mas pode ter sido ontem, tarde da noite. Alysson ainda está no telefone, brigando para saber quando ele foi visto pela última vez. Frank já pegou o carro e foi até lá.

—Que terrível — lamentei.

— Péssimo. — Por sua voz, Peter parecia muito sentido, sua respiração estava toda alterada. — Eu precisava conversar, você é a única pessoa com quem posso contar.

— Então você precisa que eu fique de olho, caso Raven volte para Ellerton? — Era difícil imaginar que o menino conseguisse voltar sozinho, mas mesmo assim eu prometi a Peter. — E você, o que vai fazer? Tá bom, não precisa responder. Fique aí onde está. Já estou saindo para encontrar você, daí nós conversamos.

Peter Hall me encontrou no portão da casa dos Taylor e rapidamente me levou a um anexo ao lado da casa principal.

—Ninguém precisa saber que você está aqui — explicou.

— Alguma novidade? — perguntei, enquanto olhava as ferramentas de jardinagem, vasos de planta e fertilizantes todos muito bem organizados. Havia uma pilha de revistas bem-arrumadinha em uma estante e um canto do cômodo com uma pia, uma chaleira e canecas de café. — Eles acharam Raven?

Page 102: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

102

Ele disse que não e tentou, do jeito que podia, manter a voz firme enquanto falava.

— Chegaram à conclusão de que ele saiu durante a madrugada. Frank acabou de chegar na escola e ligou aqui para casa. Allyson está falando com a polícia do condado de Shepherd.

— Ela vai para a escola encontrar Frank depois?

— Duvido. Ela é do tipo que deixa as autoridades fazerem o trabalho que lhes cabe, enquanto continua com sua própria rotina. Allyson sabe que Frank consegue lidar sozinho com as coisas lá na escola.

— Mas essa não é nem de longe a questão... Como é que ela não está indo à loucura, como qualquer outra mãe?

— Allyson não é como qualquer outra mãe — ele me lembrou. — Além disso, não é a primeira vez que Raven faz algo assim. Das outras vezes acabou bem, a escola ou a polícia acabavam encontrando-o e o trazendo de volta em poucas horas.

— Só que dessa vez você não está tão certo disso?

Houve uma pausa.

— Ele nunca havia saído no meio da noite antes. Desde que Arizona faleceu, ele tem feito coisas cada vez mais esquisitas.

— Ele está com saudades dela — falei baixinho. — Talvez não entenda que não vai mais voltar.

Peter estava de costas para mim e olhava pela janela, vigiando a casa principal. Ele enrijeceu quando viu a porta abrir e Allyson Taylor sair da casa.

— Esconda-se — avisou.

Fiquei abaixada num canto escuro, ouvindo o som de um carro dar a partida e o assobio suave dos pneus rodando pela saída da garagem.

— Ela está indo para a emissora de TV — Peter me informou. — Tudo bem, pode relaxar.

— Então Raven já tinha fugido antes, na época em que Arizona ainda estava por aqui?

— Centenas de vezes. Arizona e seus pais brigavam o tempo todo por causa disso. Ela dizia que era óbvio que ele não estava feliz na escola, que deviam trazê-lo de volta para casa, mas Frank e Allyson não davam ouvidos.

Page 103: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

103

—E de que lado você ficava?

Com as mãos bem abertas, ele levantou os braços, explicando-se.

—Eu não sou nenhum especialista em autismo. Não como Arizona era, ela lia todos os livros, procurava em cada página da internet. Ela até foi filiada a uma organização dedicada a lutar contra o problema por meio de tratamentos alternativos. Estava certa de que conseguiria ajudar Raven a melhorar. Além disso, o menino só se relacionava com ela e mais ninguém, o rosto dele brilhava cada vez que a via.

— É, parece mesmo uma descrição de Arizona. Ela não ficaria tranquila sem fazer alguma coisa.

Peter precisava muito desabafar, por isso atropelou a minha fala.

— Ela odiava os remédios que davam a ele na escola. Arizona tinha lido uma teoria de que toda criança com autismo necessita de uma sombra, alguém que possa ser uma ponte entre ela e o mundo exterior, que esteja ao lado dela vinte e quatro horas por dia, para ajudá-la a entender o sentido das coisas.

— Acho que todos nós precisamos... — Apesar de soar cínica, eu estava falando sério. — De qualquer forma, Arizona nunca deixava nada pela metade.

— Ela teria feito isso por ele, teria sido a sombra dele — falou, engasgando. — Ela daria a própria vida para salvá-lo.

Finalmente, Peter fez uma pausa, mas eu já estava sem condições de falar, sem encontrar palavras para preencher o silêncio que surgiu.

— Como no dia em que ela morreu. Foi uma quinta-feira. Allyson e Frank estavam ocupados com seus compromissos, e Raven estava na escola. Daí o diretor ligou para casa para contar a Arizona que ele havia fugido de novo.

— E o que ela fez?

— Ela foi à loucura, ficou culpando o pai e dizendo que ele deveria tirar Raven da escola de uma vez por todas, mesmo se Allyson discordasse.

— E para onde Raven tinha ido?

— Acho que tinha ido procurar a irmã. Como ela acabou no fundo do lago Hartmann, então ele nunca pôde encontrá-la.

Coitado desse menino — quanta crueldade.

— Arizona tinha levado o carro dela para consertar. — Estávamos num momento de baixar a guarda, e deixei meu próprio pensamento sair em voz

Page 104: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

104

alta. Em poucos segundos, as asas de Hunter estariam causando uma tempestade.

— Na verdade, sim. Como você sabia disso?

— Alguém me disse, não lembro quem. Onde foi que o encontraram, afinal?

— Na cidade, vagando pelo shopping no horário em que as lojas fecham.

— E ninguém soube por onde ele andou o dia inteiro?

— Àquela hora estavam surgindo notícias sobre um corpo no lago Hartmann. Ficamos muito envolvidos com os acontecimentos posteriores para pensar sobre onde Raven poderia ter se escondido.

— Com certeza — concordei. Minha mente estava num turbilhão. Já que Raven tinha ido procurar Arizona naquele dia, será que existia a chance de tê-la encontrado? E se existisse, teria tido alguma influência no que aconteceu depois?

Havia novas perguntas, e ninguém por perto para respondê-las — pelo menos Raven certamente não as responderia. Mas quem sabe Arizona pudesse. Precisava sair de Foxton rápido.

— Preciso ir — disse a Peter. — Matei aula para vir aqui...

— Certo, melhor ir — ele falou. — Mas procure por Raven, pode ser? E não conte para ninguém. Terei problemas se Frank e Allyson descobrirem que eu disse alguma coisa fora da rodinha.

— Claro. E você me liga se... Quando ele for encontrado? — Apressada, dei o número do meu celular. — Tente não se preocupar, Peter. Raven sempre aparece, como você mesmo disse.

— Talvez não dessa vez — suspirou. — Dessa vez está parecendo que é diferente.

— Diferente como?

— Estranho, meio assombrado. É como se houvesse alguém mais, alguma coisa a mais envolvida. Fico sempre pensando nesses boatos que correm pela cidade sobre fantasmas, espíritos andando na serra lá em Foxton. Não me entenda mal, não sou um cara que se assusta com facilidade, mas dessa vez pode ser que...

— Não fale mais, você já está me deixando apavorada. — Fingi um calafrio ao sair do anexo e corri para o portão.

Page 105: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

105

Fui pensando: Arizona não iria... Nem ela usaria seus poderes zumbis para encorajar seu irmão menor tão querido a sair da escola...

Eu corria acima do limite de velocidade mais uma vez e já chegava à cruz em Turkey Shoot quando Phoenix e Arizona se materializaram no carro, bem ao meu lado. Apareceram naqueles círculos difusos de luz que tremelicavam até que suas formas sólidas chegassem, e o choque me fez desviar em direção ao canteiro central.

— Encoste o carro — Phoenix disse, sem cumprimentos nem sorriso amável. — Estávamos em Westra, na casa de Arizona. Ouvimos tudo que Peter falou a você.

Virei o volante e parei bruscamente no acostamento coberto de terra, levantando poeira e insetos naquele ar quente e parado.

Do banco de trás, Arizona respondeu à maior das minhas dúvidas pavorosas e não ditas.

— Não tenho nada a ver com isso, Darina. Raven decidiu fugir por conta própria, como sempre.

— Você não o tirou da escola? — perguntei ao me virar no banco para ver a nova e verdadeira Arizona, não mais a Senhorita Indiferente, mas, em vez disso, uma menina com cara de louca e o cabelo bagunçado caindo no rosto, cujo irmão menor havia desaparecido.

— Por que tiraria? — ela perguntou.

— Porque você detesta aquele lugar, queria que seus pais o tirassem de lá.

Ela me encarou, conseguindo ler meus pensamentos muito profundamente.

— Isso foi naquela época — ela falou com pesar. — Quando ele tinha a mim como motivo para voltar para casa.

— Entendi — concordei. — Peço desculpas...

— Vamos lá, Darina — Phoenix interrompeu. — Nós vamos ajudar a procurar Raven, e você será nossa ligação com o mundo dos vivos, como sempre.

— E por onde começo? — Voltei-me de novo para Arizona, dessa vez para receber algum conselho. — Para onde é que ele vai quando foge?

Phoenix respondeu por ela.

Page 106: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

106

— Geralmente ele não vai longe, então começaremos por perto de onde fica a escola. Vamos ter de ser cuidadosos, pois haverá policiais por lá.

— Qual o caminho?

— Voltando para a cidade. — Arizona falou com um jeito de robô, muito calma e muito distante, para disfarçar o pânico. — Antes de chegar lá, pegue a direção oeste, pela estrada do pico.

Fiz a volta com o carro, pensando nas instruções e com um arrepio descendo por toda a coluna.

— Essa estrada vai para o Hartmann.

— Sim.

— E aí?

— Ela também leva ao Instituto Lindsey, quinze minutos estrada afora, ao pé do pico Amos. Num dia bonito, Raven conseguia enxergar o lago da janela de seu quarto.

Então fui seguindo com meus passageiros Beautiful Dead para o lago Hartmann, sentindo a tensão incômoda crescer. Phoenix sentado a meu lado, o cabelo balançando com o vento, olhava superatento para frente, como se cada árvore ou pedra pelas quais passávamos tivesse informações sobre o garoto desaparecido. No banco traseiro, Arizona se encolhia incapaz de olhar para o lugar onde havia se afogado.

— Você se lembra de que Raven realizou esta mesma façanha no dia do ―acontecido‖? — Questionei, tentando me concentrar na estrada que tinha pela frente, ainda que o brilho da água e o horror daquilo que havia se passado ali estivessem me distraindo.

— Peter acha que Raven veio procurar por você.

— Pode crer. — A resposta descomprometida de Arizona quase foi silenciosa demais para se notar.

— Ele não encontrou você? — Procurei pela expressão dela no meu espelho retrovisor.

Ela fechou os olhos, e seus lábios mal se moveram.

— Depois de ter discutido com meu pai, fui para a Mike Motores. Raven não saberia ir lá me procurar. Até onde lembro, não nos encontramos.

Page 107: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

107

Olhei para Phoenix de relance, para confirmar se desta vez Arizona estava falando a verdade. Disfarçadamente, ele fez que sim.

— Diga uma coisa, Senhor Zumbi, como é que tudo em torno do ―acontecido‖ se torna um borrão?

Foi a mesma coisa com Jonas — quando voltou para o mundo dos vivos, graças ao mestre, o todo-poderoso Hunter, suas lembranças do acidente tinham sido todas apagadas.

— Você e Summer também não se lembram.

— Não dos detalhes — ele admitiu. — Hunter disse que o trauma do evento faz isso, meio que frita o cérebro. Você fica só com poucas recordações, pode ser um cheiro ou uma cor que tem a ver com o que aconteceu, mas a coisa em si é apagada. Esse é o motivo pelo qual estamos aqui, para trazer de volta essas memórias, consertar o necessário e ficar livres.

— E até lá estamos presos. — O tom da voz de Arizona estava amargurado. —Aqui, nesse lugar no meio do nada, estamos mortos, mas não em paz. Estamos aqui e ao mesmo tempo não estamos; sem poder confiar em ninguém nem descansar um segundo. Você não faz ideia de como é isso, Darina.

Uma rajada de vento bateu no para-brisa e nos colocou dentro de um pequeno redemoinho. Pisquei os olhos com força.

Não saia com o carro da estrada! — falei para mim mesma. À nossa frente estava o pico Amos, azul-acinzentado ao longe e com o topo já nevado naquele fim de outubro.

— Você está certa, eu não faço mesmo ideia — concordei. — Mas assim como vocês, Arizona, quanto mais fundo eu vou nessa história, menos eu posso confiar nas pessoas. E isso eu posso lhe dizer com certeza.

A escola de Raven era um conjunto de pequenos chalés de madeira construídos ao redor de um lago artificial e, desde os anos 1970, se chamava Instituto Lindsey, o nome de seu fundador. Quando chegamos lá, em vez de um lugar infestado de policiais, encontramos apenas um carro da polícia na porta principal de um prédio grande de estilo colonial, estacionado junto ao Mitsubishi vermelho de Frank Taylor.

— Eles com certeza colocaram todo o efetivo para trabalhar nessa busca — Arizona disse com rancor. Parei do lado de fora dos portões, de onde era possível ver a escola de cima.

Page 108: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

108

— Ei, pelo menos fica mais fácil para Darina xeretar por aí — Phoenix amenizou. — Os chalés devem ser o lugar onde as crianças dormem, mas o que é o prédio principal?

— É onde elas têm aula, fazem terapia, recebem as visitas da família. — A situação ficava cada vez mais difícil para Arizona à medida que as memórias dolorosas afluíam. — Tudo parece rústico e acolhedor, só que esse lugar é um campo de concentração, podem acreditar.

— Por onde começo, então? — Saí do carro e procurei uma entrada pelos fundos onde eu pudesse chegar a pé, contando com uma estradinha estreita coberta de mato que pretendia pegar. — O que acontece se eu trombar com alguém? Qual minha desculpa?

— Você é esperta, Darina, pense em alguma coisa — ela respondeu rispidamente, voltando atrás em seguida. — Ok, esqueça o que eu disse. As pessoas que trabalham aqui não se parecem com médicos. Elas vestem tênis e calça jeans, inclusive a diretora, Rebecca Davis. Ela é magra e loura, com o cabelo cacheado, mas não se engane pelas aparências. Se encontrar com ela, tome cuidado.

— Ela estará com Frank e o delegado — Phoenix lembrou. — Comece dando a volta por trás do prédio principal. Se alguém lhe perguntar alguma coisa, diga que é uma turista que se perdeu quando voltava do Hartmann.

— Raven geralmente fica perto da escola quando faz isso — Arizona explicou. — Ele sabe que precisa sair, mas não faz a menor ideia para onde quer ir, por isso sobe até a área dos pinheiros, ou vai se sentar à beira do lado. Ou, quem sabe, vaga da margem do riacho até chegar à casa dos Pooles, pouco mais de um quilômetro rio abaixo. Foi o mais longe que ele já chegou.

— Nós vamos tentar no riacho — Phoenix decidiu. — Darina, você procura perto dos prédios.

— Aposto sem sombra de dúvida que vocês é que vão encontrá-lo — falei, risonha. — Levando em consideração que conseguem ouvir cada folha que cai. — Iniciei a descida do morro não muito preocupada, a não ser em ficar longe da vista de Frank Taylor e Rebecca Davis. Minhas desculpas teriam de ser muito mais sofisticadas se trombasse com eles.

Metade do caminho já havia sido percorrido, quando a porta da frente se abriu e uma loura saiu com um cara de uniforme — o delegado da região. Eu me atirei atrás de uma pedra convenientemente localizada para esperar que terminassem a conversa. Enquanto estava ali, analisei o estacionamento, que ficava nos fundos do prédio, onde os funcionários deixavam seus carros e onde as entregas deviam ser feitas. Observei um ajudante de cozinha sair do edifício

Page 109: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

109

e jogar um saco na caçamba de lixo. Daí ele ficou parado de braços cruzados, olhando para o céu.

Volte para dentro! Eu ficava torcendo. Você está me encurralando!

Finalmente, o cara da cozinha parou com aquela contemplação e voltou ao trabalho. Desci mais um pouco do morro com pressa, até chegar a uns cem metros do estacionamento, quando levei outro susto no momento em que o delegado entrou na viatura e pegou a estradinha, só parando bem no meio entre a subida do morro e a saída. Mais uma vez, eu me abaixei atrás de outra pedra, prendendo a respiração e esperando.

O delegado falava no rádio da viatura, encostado na lateral do carro, sem pressa.

— Wes, está ouvindo? É, é o garoto de sempre: Raven Taylor. — Eu conseguia entender a voz fraca dele. — O pessoal da escola anunciou o desaparecimento hoje, durante o café da manhã. Câmbio. — Houve uma pausa enquanto ele escutava, até o momento de falar de novo. — O pai está aqui. Rebecca mandou alguns funcionários procurar nas redondezas. Ainda não o encontraram. Câmbio.

Resolvi deixar o delegado fazer seu relatório para a base e decidir qual seria o próximo passo, para continuar descendo o morro engatinhando em direção a uma lata de lixo gingante que me daria uma boa cobertura, sem acreditar muito que seria eu a pessoa a encontrar o menino perdido. Estava agachada, tentando passar entre um jipe preto e um utilitário prateado, quando ouvi o primeiro barulho.

Vinha do utilitário — um som baixinho de batida que parou e depois reiniciou, como se alguém dentro do carro estivesse batendo um pequeno objeto numa superfície de metal. Fiquei sem respirar. O que faria agora? Se eu aparecesse de repente, o que a pessoa dentro do carro pensaria? Se eu continuasse com minha abordagem sorrateira, de qualquer modo a brincadeira já teria acabado. As batidas voltaram e eu me levantei.

Num primeiro instante, pensei que tinha me confundido — não havia ninguém dentro do carro. Só que olhei e ouvi novamente. Toc, toc, toc vinha do fundo do automóvel — um compartimento atrás de uma grade de metal feita para colocar malas ou um cachorro, talvez. Fui até a janela traseira e dei mais uma boa olhada dentro do carro.

O garoto estava sentado de pernas cruzadas no porta-malas, com um livro sobre os joelhos e um caderno de desenho a seu lado. Balançava para a frente e para trás, imerso em seu próprio mundo, batendo a caneta de metal contra a grade.

Page 110: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

110

Sem pensar, abri a porta. Raven não parou de se balançar nem de batucar com a caneta. O livro no seu colo tinha uma imagem de uma das famosas Marilyn de Andy Warhol, toda cor de laranja e amarelo brilhante, com o cabelo roxo e lábios carmim fazendo um biquinho.

—Oi, Raven — sussurrei.

Ele se balançava e batia a caneta, como se eu não estivesse ali.

— O que você está fazendo aqui?

Ele passou a caneta pela grade, como um pianista passando os dedos pelas notas do piano. A capa do caderno a seu lado estava coberta de rascunhos pequenos e complexos de sua casa em Westra.

— Ei, gostei dos seus desenhos — falei para ele, que levantou o olhar para mim. Estendi minha mão, e ele a pegou.

Obviamente, Phoenix e Arizona souberam na mesma hora que eu havia encontrado Raven. Num segundo eles estavam comigo no estacionamento para vigiar — porém, sem ficar muito à vista —, ao passo que eu ajudava o menino a sair do automóvel com delicadeza.

— Esses aqui são ótimos — disse-lhe, enquanto tirava as fotos de Marilyn de perto dele. — Pegue seu caderno de desenho, vamos almoçar.

Ele franziu a testa e empacou, voltando em direção ao utilitário. Cada movimento era lento e um pouco desajeitado. A maneira como ele se movia me lembrava daqueles antigos teatros de marionetes.

— Você quer ficar aqui? Tudo bem.

Por que este carro? Interroguei-me até que a resposta surgiu como um clarão: este carro é idêntico ao de Arizona. O mesmo modelo, a mesma cor.

— Eu gosto deste carro, ele é legal.

Coitadinho — o único lugar no mundo onde ele se sentia seguro era dentro daquele carro de um estranho, pois acreditava que sua irmã logo viria buscá-lo.

Com o canto do olho, vi Phoenix pegar a mão de Arizona e segurá-la forte.

— Se você não quer almoçar, que tal ver seu pai? — Tentei uma tática diferente. — Ele veio aqui fazer uma visita.

Não houve retorno — nenhuma relutância, nenhuma ansiedade, apenas um grande vazio.

Page 111: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

111

Arizona deu um passo à frente, mas Phoenix a puxou de volta. Eu sabia que, se ela aparecesse, eles teriam de levar Raven e apagar a memória de seu cérebro já avariado.

Nossa, ela estava mesmo passando por uma dificuldade terrível quando aceitou voltar. Pense um pouco a respeito: tudo o que ela queria era justamente o que não podia fazer — abraçar seu irmão com força e falar para ele que tudo ficaria bem.

— Arizona, você precisa ir embora — Phoenix disse a ela.

Ela levantou a mão para cobrir o rosto, apertando as têmporas e segurando o choro.

— Não fique aqui sofrendo, vá embora logo — insistiu. — Eu cuidarei das coisas.

Ela deu meio passo em direção ao irmão e hesitou.

— Venha ver seu pai — insisti também, batendo na capa do livro de Marilyn como uma espécie de isca. — Venha comigo.

— Vá! — Phoenix falou baixinho para Arizona.

Enfim, ela não resistiu mais. Fiz a volta pelo lado da casa colonial com Raven, ao mesmo tempo em que ela usava seu poder para desaparecer. O círculo de luz brilhante se esvaiu com rapidez até sumir completamente. Phoenix ficou sozinho.

— Leve-o para dentro da casa. Faça com que ele chegue às mãos de Rebecca Davis. — Phoenix era o mais forte e o mais calmo dos pretensos salvadores de Raven.

— Então, venha me contar mais sobre sua foto preferida — disse para o menino, tentando esconder os tremores da minha voz. — Será que é dessa Marilyn ou das latas de sopa que você gosta mais?

Page 112: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

112

— Você viu Frank Taylor? — Phoenix queria saber enquanto dirigia meu carro e nos levava em direção ao lago Hartmann. Raven já estava com a diretora: dei uma desculpa esfarrapada e saí logo de lá.

— Encontrei o menino na floresta — contei a ela. — Imaginei que tivesse vindo daqui.

Vocês precisavam ver o modo como Raven olhou para mim quando Rebecca Davis assumiu o controle — confuso e magoado talvez não seja a melhor descrição, mas é o mais perto que eu consigo chegar. Ele pensou que fôssemos dois amiguinhos de Marilyn amarelos, vermelhos, roxos e verdes, só que agora cá estava eu, jogando-o de volta para as pessoas cinzas.

— E então, viu? — Phoenix repetiu.

— Hum, não. Por sorte, Frank não estava perto. — Tive de parar de sentir pena de Raven para me concentrar em nosso próximo passo. — Saí de lá o mais rápido que pude, antes que Rebecca me perguntasse qualquer coisa a que não soubesse responder.

— Legal. — Phoenix disse e continuou dirigindo por mais um tempo.

— Como será que é ser Raven: não falar, não entender outras pessoas, viver apenas dentro de uma bolha? — Tive curiosidade de saber. — Acho que deve ser bem solitário. Pense, Phoenix, em todas as respostas que o garoto poderia nos dar se conseguisse falar. Como, por exemplo, aonde foi na manhã em que Arizona se afogou, quem ele viu, como foi parar no shopping...

Ele deu uma olhadela para mim e voltou a encarar a estrada à frente.

— Quer saber de uma coisa estranha? — ele confidenciou. — Lá no estacionamento, tentei ler os pensamentos de Raven, mas não consegui.

Page 113: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

113

— Que loucura! — Os poderes telepáticos que Phoenix e os Beautiful Dead tinham eram impressionantes. — O que aconteceu?

— Tentei, e não havia nada, somente um amontoado de coisas.

— Talvez você não tenha tido tempo suficiente. — Inventei uma desculpa. — Arizona também não estava nada bem para conseguir ler pensamentos, com um monte de coisas acontecendo.

— Não. — Phoenix me interrompeu. — O caso é que o cérebro do garoto tem uma estrutura diferente. Não consegui atingi-lo de jeito nenhum.

Permanecemos os dois em silêncio, passando de carro à beira do lago. O sol do outono reluzia dourado na água verde-clara. Na margem distante, sozinho, um cervo bebia água.

— Tive notícias sobre o último bando de vigilantes. — Phoenix reiniciou a conversa assim que entramos na estrada pavimentada seguindo para a cidade. — Sabe os caras que vieram encher o saco no fim de semana?

— Aqueles que acamparam lá em Government Bridge?

— É. Bem, eram Kyle Keppler e seus amigos de Forest Lake.

A nova informação me fez resmungar.

— Esse cara é um carrapato, quase impossível se livrar dele. Sabia que fui lá ontem?

Phoenix assentiu com a cabeça.

— Mesmo eu tendo dito para você ficar longe dele...

— Não achei que ele fosse estar lá.

—Você não devia chegar perto dele nem da casa dele, Darina.

— Mas você não escutou o que eu disse? Pensei que ele estivesse trabalhando na Mike Motores. Eu precisava falar com Sable e descobrir se ela sabia sobre Kyle e Arizona. E, se sabia, o que exatamente havia feito a respeito.

— Arriscado demais — ele insistiu e apertou os dentes quando fez uma curva muito rápido, jogando-me contra ele.

Voltei para meu lugar me recompondo e fiquei completamente calada.

Page 114: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

114

— Então quer dizer que estou fazendo tudo errado? — Não resisti e estourei. — No outro dia Arizona falou que eu era burra demais para ajudar vocês. E agora você também acha!

— Não falei isso — ele suspirou e encostou o carro num acostamento de terra ao lado da estrada. Paramos em frente a um campo de capim-amarelo, com um celeiro ao longe. — Você sabe que me preocupo com você, Darina.

— Não precisa — reclamei. Mas não consegui enganá-lo. — Certo, então você se preocupa comigo. Obrigada. — Sorri e nos beijamos.

Ele soltou um suspiro breve e triste.

— Tudo isso está acontecendo com você por minha causa. Toda essa dor e dúvida. Não queria que fosse assim.

— Eu não me importo que seja desse jeito. — Precisava que Phoenix soubesse disso. — Cada segundo que passamos juntos é uma dádiva para mim, não me importa o quanto doa.

Ele me olhou profundamente, com o longo capim dourado balançando ao vento na direção das montanhas atrás de sua cabeça e seus lindos olhos azuis brilhando.

— Faça isso por mim, não se arrisque tanto — ele sussurrou e me beijou suavemente nos lábios. — E deixa eu me preocupar, tá?

— Tá — sorri.

— E isso não tem nada a ver com você ser burra.

— Certeza? — perguntei, encarando-o nos olhos.

—Confie em mim — ele disse e me beijou novamente, para ter certeza de que eu acreditava nele. — Darina, eu amo você.

— Mas?

— Sem ―mas‖.

— Então a gente não acabou de ter outra briga? — eu me inclinei para beijá-lo também. Tive aquela sensação dolorosamente incrível de estar mais próxima de Phoenix do que quaisquer outras duas pessoas jamais estiveram ou poderiam estar.

— Vá com calma — ele me falou, saindo do carro e esperando que eu voltasse para pegar a rodovia.

Page 115: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

115

— Eu amo você! — declarei.

— Eu amo você — ele devolveu.

Meu coração doeu.

Mantive-o à vista no retrovisor pelo maior tempo que pude — ele lá em pé com as pernas separadas, segurando o cinto com os polegares, observando enquanto eu me afastava.

Minutos depois eu desejava que Phoenix ainda estivesse no carro comigo.

O incidente começou com uma caminhonete, vindo de traz em alta velocidade e me ultrapassando numa curva.

— Seu barbeiro! — Pisei forte no freio para deixar a caminhonete passar. — Qual o seu problema?

Aí o motorista da caminhonete entrou bem na minha frente e freou de repente, fazendo a luz vermelha de sua lanterna brilhar sob a copa dos pinheiros.

Freei de novo, soltando um bocado de xingamentos, até reconhecer o cara para fora da janela do passageiro: era o homem da Harley que vi no quintal dos Keppler — aquele que estava dando o abraço mais que amigável em Sable. Senti como se tivesse tomado um soco no estômago. Reduzi a velocidade e parei o carro, rezando para que a caminhonete desaparecesse da minha visão.

Mas não, o motorista fez um retorno espetacular na estrada estreita e veio em minha direção. Vi que era Kyle Keppler em pessoa no volante, com aquele seu amigo moreno ainda para fora da janela do passageiro, gritando e me xingando. A caminhonete parou e eu me preparei para encará-los.

Primeiro Kyle e seu amigo Neandertal desceram do carro e caminharam lentamente para o meu lado. O amigo parou a uns três metros do meu carro, e Kyle continuou vindo em minha direção.

— Querida, sua sorte acaba aqui — ele zombou. — Você escapou de mim uma vez, e essa foi a última.

— O que foi que eu fiz? — reagi, com o coração quase salto do meu peito. Desejando mais do que acreditando ser possível, olhei no retrovisor para procurar por Phoenix.

Page 116: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

116

Kyle não estava muito a fim de dar explicações. Bateu com o punho no para-brisa, e quase arrancou a porta ao abri-la para me alcançar lá dentro.

Lutei, mas o cara era forte demais. Ele me levantou como se eu fosse uma boneca de pano e me atirou nos arbustos ao lado da estrada. Fiquei lá atordoada contra a superfície áspera de uma rocha de granito.

— Legal seu carro — disse o parceiro ao fundo. Ele estava com uma barra de aço que até então eu não tinha visto. — É, é uma pena danada.

Nessa hora, meu coração já havia saído do peito e batia na minha garganta, me fazendo gaguejar de medo. Kyle Keppler fez um sinal para o outro cara, e ouvi a barra de metal golpear o capô do meu carro.

— Poderia ter sido o seu crânio — Keppler me falou, apertando-me com força contra a parede. — Nossa, que estrago!

Eu sabia que minhas pernas não me manteriam em pé, senti como se afundasse no chão. Porém, em uma fração de segundo tudo mudou.

Phoenix apareceu já sólido num círculo luminoso surgido do nada para dar um soco em Keppler, que conseguiu vê-lo a tempo e esquivou-se. O camarada dele jogou a barra de ferro para que ele a pegasse.

Algumas pessoas berram de pavor: eu descobri que não consigo emitir um som sequer.

Keppler agora manejava a barra como se fosse um taco de beisebol, tentando acertar a cabeça de Phoenix.

— De que buraco ele saiu? — gritou o cara em segundo plano, marcando Phoenix como um zagueiro para tentar encurralá-lo contra o barranco.

A barra passou a poucos centímetros do rosto de Phoenix, que, num mergulho, acertou a barriga de Keppler e o desequilibrou, quase caindo em cima de mim.

— Afaste-se — ele avisou.

Keppler ergueu a barra e bateu mais uma, duas vezes. Ele grunhia a cada tentativa fracassada; era lento demais para acertar Phoenix, que se movia tranquilo de um lado para o outro.

Contudo, eram dois contra um, e eu vi o outro cara se aproximar e esticar a perna para dar uma rasteira em Phoenix e derrubá-lo. Keppler correu para cima dele com a barra a postos.

Page 117: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

117

Consegui usar minha voz e gritei para avisar Phoenix.

Com uma das mãos ele segurou a barra no ar e, com a outra, arremessou tão forte o cúmplice que quase foi parar embaixo do meu carro. Agora com as duas mãos livres, Phoenix pôde usar toda a força de seu poder zumbi contra Keppler: tirou a barra das mãos do ogro e o jogou de costas contra a rocha. A barra estava no pescoço de Keppler, forçando sua cabeça para trás e fazendo os olhos revirar. Marquei minha presença, pisando nas mãos do cara número dois quando ele tentou sair de baixo do carro se arrastando.

— Não toque em Darina! — Phoenix encontrava-se a milímetros das feições distorcidas de Kyle. — Se você encostar um dedo nela, você morre!

E então ele atirou para longe a barra, que caiu fazendo um barulho sincronizado com o soco que Phoenix acertou na mandíbula de Keppler, lançando-o no chão de terra para rastejar ao lado de seu amigo.

— Eu devia matá-lo por causa disso — Phoenix esbravejou.

— Não! — implorei. Chega de brigas. Por favor, sem facas escondidas!

Nossa breve conversa deu tempo para os dois tomarem fôlego, levantarem e virem juntos para cima de Phoenix.

Nessa hora eu gritei mesmo.

Phoenix segurou o punho de Kyle Keppler e jogou-o de encontro ao amigo, arremessando os dois na lateral do meu carro, fazendo a coisa toda parecer muito fácil.

— Certo, já foi o suficiente — ele decidiu em voz alta. — Porque agora vai doer bastante.

Daí, ele encarou os dois bem nos olhos — primeiro o parceiro, depois Keppler —, apagando a memória deles com toda a força de seu poder arrasador de mentes.

De repente, bateu uma ventania violenta, e eu pude ver a poeira subindo e ouvir as asas começando a bater. Milhões de asas — hordas de almas penadas trazidas do limbo que davam a Phoenix o poder de eliminar memórias deixando as vítimas doloridas e vazias, para acordar mais tarde se interrogando sobre que diabo teria acontecido e como é que haviam ido parar ali deitados na terra, cheios de hematomas.

Keppler resistiu, a princípio. Ele tentou investir mais uma vez contra Phoenix, mas meu namorado Beautiful Dead permaneceu firme, com o olhar fixo como se estivesse emitindo um laser para o cérebro dele. Keppler

Page 118: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

118

cambaleou para trás, chegou até seu amigo, derrubou-o e ficaram os dois, juntos e caídos no chão.

Infinitas asas levantavam a tempestade de poeira pelo céu, enquanto Phoenix mantinha-se altivo e vitorioso.

— Brandon vai cuidar do conserto do carro — Phoenix me prometeu.

Tivemos de deixar o carro na vala e andar rumo à cidade antes que Kyle e seu comparsa voltassem a si.

Eu estava atordoada e confusa, minha mente não conseguia funcionar com clareza depois do choque.

— Logan pode consertar o carro... Só preciso pedir para ele e Christian. Eles podem fazer isso juntos.

— Brandon! — Phoenix insistiu. — Diga a ele onde foi que deixamos o carro, e ele o rebocará de volta para a cidade.

— Só não diga para ele levar na Mike Motores — brinquei. — Tá, não teve graça nenhuma, né? E antes que diga alguma coisa sobre Kyle Keppler, admito: você tinha razão.

— Um selvagem — Phoenix confirmou.

Caminhamos lentamente pela calçada irregular; não havia ninguém por perto. As almas penadas já haviam se organizado e partido para onde quer que fosse sua casa.

— Conte o que sabe sobre ele, além da ligação com Arizona.

Phoenix enfiou as mãos no fundo do bolso da calça antes de soltar a bomba.

— O cara que estava com ele era o irmão de Sable, Jon Jackson.

— O irmão dela! — Não tinha pensado me nada disso quando imaginei a cena do programa de flagras da televisão, lá no quintal dos Keppler. Pois, para mim, ele era um amante rival. Tá, eu tenho mesmo o defeito de tirar conclusões apressadas, e esse foi mais um exemplo.

— Jon estava em Government Bridge com Kyle e alguns outros caras. Eles curtem sair juntos.

— E Brandon estaria incluído na gangue? — Quis saber onde exatamente o mais velho dos irmãos Rohr se encaixava. — Brandon, Kyle e Jackson, eles são do mesmo time?

Page 119: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

119

— De vez em quando, sim. — Phoenix se calou, baixou o olhar e foi andando um pouco à frente. — Olhe, eu não escolho os amigos do meu irmão!

Pensei sobre o assunto.

— Certo, entendi. Você não quer envolver Brandon nessa história, porque Kyle é um cara péssimo para se ter por perto e prefere que eu não coloque os dois no mesmo saco, não é?

Uma confirmação com a cabeça foi tudo o que tive como resposta.

Corri para alcançá-lo.

— Além disso, Kyle e Jackson estavam lá na... Na noite! — O fato me atingiu como uma paulada na testa: eles tinham sido parte da gangue assassina que se reuniu perto do posto de gasolina na cidade. — Phoenix, eles fizeram parte do que aconteceu com você!

Ele balançou a cabeça.

— Isso significa sim ou não? — Segurei a mão dele e fiz com que diminuísse o passo. — Olhe para mim e diga a verdade.

— Eles estavam lá — ele admitiu. — Junto com talvez mais uns vinte caras. Mas não precisamos nos concentrar nisso agora. Lembre-se de que neste momento estamos pensando em Arizona.

— Nossa, como ela pode gostar desse cara? — Continuamos andando, quase enxergando as primeiras casas da estrada do pico, na entrada da cidade.

— Arizona amava Kyle — ele lembrou. — Gostar e amar não são a mesma coisa.

— E agora? — Eu estava querendo saber qual seria nossa próxima manobra depois de falar com Brandon para que cuidasse do capô amassado do meu carro. — Faço mais uma tentativa de pegar Sable sozinha e ver se ela abre a boca?

— De jeito nenhum.

— Não esqueça que só temos mais três dias para fazer isso! — O prazo final dado por Hunter, sexta-feira, estava chegando cada vez mais rápido. — Em vez disso, vou lá confrontar os Taylor e fazer com que soltem os segredos de família?

— Melhor assim — ele disse. Nosso ritmo diminuía, e já podíamos ver as casas; era hora de Phoenix partir.

Page 120: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

120

— Talvez seja mais ou menos deste jeito: Arizona briga o tempo todo com os pais, especialmente com Allyson. Ela quer que Raven volte para casa, está preparada para desistir de tudo para ficar com ele vinte e quatro horas por dia, ser a sombra que ela acredita que ele precisa.

Phoenix entendeu a situação.

— Você quer dizer que ela acaba brigando muito feio com Allyson. A coisa passa dos limites, e a família começa a se desestruturar. Frank é fraco demais para impedir que aconteça.

Concordo e falo cada vez mais rápido.

— E você conhece Arizona, quando ela acha que está certa, nada a faz mudar de ideia. Allyson também. São duas forças que não se movem. No fim das contas, as coisas terminam de modo violento.

—Pode ser — Phoenix disse, tão baixo que quase não dava para escutar.

— É possível, sim! Imagine só. Existe alguém mais insensível do que Allyson? Aí está uma mãe que não fica em casa nem quando o filho autista foge da escola. A gente ouve falar de mães anormais como ela, que aparecem nos jornais, só que ninguém acredita que possa encontrar uma dessas pela frente. Mas talvez ela seja um monstro em pessoa!

— Então elas acabaram brigando lá no Hartmann. — Phoenix puxou mais o fio do enredo da minha última teoria. — Arizona saiu para procurar Raven, e Allyson foi lá atrás dela...

— E acusa Arizona de saber onde está o menino, que é tudo armação dela, que é maluca e está escondendo o irmão da polícia...

— Elas brigam na beira do lago, e acontece um acidente: Arizona escorrega e cai dentro d’água...

Eu concordo com a cabeça sem parar. Isso poderia mesmo ser a chave para desvendar o mistério de Arizona. Restando três dias, estávamos quase lá...

— Mas Arizona sabia nadar. — Phoenix deu uma freada na imaginação. — Ela até ganhava medalhas nas competições da escola.

Agora eu estava determinada a provar que Allyson era a culpada, o monstro em pessoa.

— Ela bateu a cabeça na queda, perdeu os sentidos e foi direto para o fundo do lago. — Parei no ponto onde a estrada de terra em que estávamos passava a ficar pavimentada. — Melhor você não continuar — avisei.

Page 121: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

121

— Você quer que eu vá embora? — ele perguntou com aquele meio sorriso torto.

— Hunter vai ficar sabendo se você vier. Você tem que voltar para Foxton. — Empurrei-o para que fosse embora. Ele segurou minhas mãos. — Vá! — falei quase chorando.

Tivemos tempo para um longo beijo antes que ele voltasse.

— Você não vai acreditar — ele riu e interrompeu o que estava dizendo como se estivesse com vergonha.

— O quê?... Phoenix tem um carro vindo! — Ouvi o barulho que vinha de algum ponto mais acima na rua, aumentando cada vez mais.

— Hunter falou que posso ficar.

— Ficar aqui comigo? E não voltar para Foxton?

— Sabemos que Kyle Keppler vai procurá-la novamente. Hunter disse para eu ficar aqui e tomar conta de você.

Suspirei, sentindo todo o meu corpo vibrar.

—O dia inteiro? É isso o que você está dizendo?

—E à noite também — ele prometeu, passando o braço em volta da minha cintura e me levando para trás de um outdoor grande, fora da vista do carro que passava.

Phoenix estava no meu quarto, sentado na cama e esperando por mim. Nos arredores da cidade, nós nos despedimos e eu vim sozinha para casa. Ele tinha ido se reunir com Hunter e os Beautiful Dead lá em Foxton e, mesmo assim, já estava na minha casa antes de mim.

— Você precisa falar com Brandon sobre seu carro — insistiu o senhor da razão.

— Amanhã — negociei. Não queria nenhuma interrupção durante nosso momento a sós.

— Agora. Está dando na previsão que vai chover. Ligue para ele e peça para rebocar o carro.

Suspirando, peguei meu telefone.

Page 122: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

122

Brandon atendeu à minha chamada quase antes de o telefone tocar. — Darina, o que foi?

— Meu carro é que foi.

—Você o bateu? — Ele já se precipitou para a conclusão óbvia, como se tivesse gostado da ideia.

— Não, ele foi detonado. Seu amigo Kyle Keppler me atirou para fora da pista, e o cunhado dele praticou alguns atos de vandalismo com uma barra de ferro.

— Por que ele faria isso? — o tom de voz dele mudou, e a pergunta veio cheia de suspeitas e farpas.

Olhei para Phoenix, que havia levantado da cama e ido para a janela.

— Kyle não gosta de mim, é só o que posso dizer.

— Nossa, mas eles têm mesmo que odiar você para terem feito uma coisa assim com seu carro. Você se machucou?

— Não, eu estou legal, só meu carro está mal. Estava pensando se você não conseguiria rebocá-lo para consertar o estrago.

Brandon não hesitou. Conferiu se eu estava em casa e me falou para esperar. — Vou pegá-la, aí você pode me mostrar onde o carro está.

Com outro suspiro, desliguei o telefone. — E como explico isso ao seu irmão? — perguntei a Phoenix.

— Diga que tem a ver com Arizona. — Ele sugeriu que uma meia verdade seria suficiente. — Brandon sabia sobre ela e Kyle, lembra?

Aceitei.

— Tá, isso vai funcionar. Ele vai pensar que Kyle ficou furioso comigo por estar me intrometendo de algum jeito em sua vida pessoal. E ele sabe que o cara é bem esquentado.

— Acredite em mim, Brandon não vai lhe fazer perguntas. Ele vai tomar conta de você, como me prometeu fazer.

Com suas últimas forças, Phoenix, antes de morrer, fez seu irmão prometer que me protegeria. Brandon segurou o irmão nos braços e jurou por ele que o faria.

Page 123: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

123

— E eu preciso mesmo ir com ele? — Mais um suspiro, enquanto colocava os braços ao redor do pescoço de Phoenix. — Justo quando tudo o que quero é ficar aqui com você.

Ele sorriu, e começamos a desenvolver a parte física de nosso relacionamento antes de o rugido gutural do motor da Harley de Brandon vir nos interromper.

— Vá! — Phoenix disse, passando as mãos nos meus braços. — Estarei aqui quando você voltar.

Fui na garupa da Dyna de Brandon, usando suas costas largas como um escudo contra o vento e sentindo as franjas da sua jaqueta batendo no meu braço. Seguimos na moto em direção à estrada do pico, sob as nuvens da tempestade de que Phoenix havia falado.

Quando chegamos ao ponto onde meu carro estava, ele freou e atravessou a pista. Descemos da moto e, lentamente, demos uma volta em torno do carro.

— Kyle e Jon fizeram isto? — Brandon confirmou comigo. A barra de metal tinha amassado bastante o capô. O para-brisa estava estilhaçado, e um dos retrovisores laterais ficou pendurado. — Esses caras estavam descontrolados.

Concordei:

— Foi assustador.

Brandon apertou os olhos.

—Tá, eu nem quero saber o motivo.

Tentar parecer inocente e indefesa não era fácil para mim, por isso meu gesto ―não me pergunte, não sei de nada‖ não ganharia nenhum Oscar.

— Vou consertar isso, Darina. Seu carro vai voltar para você como se fosse novo.

— E foi isso — contei para Phoenix enquanto tirava minha jaqueta de brim molhada e pendurava-a na cadeira ao lado da minha mesa. — Você tinha razão, nenhuma pergunta foi feita e nenhuma mentira precisou ser contada.

Ele estava esperando na janela, mas tomando cuidado para não ser visto quando Brandon me deixou em casa. A essa hora, caía uma chuva fria e a noite chegava antes do previsto.

O plano de Phoenix de chamar a ajuda de Brandon tinha funcionado. Brandon rebocaria o carro para uma oficina e depois faria uma visita à casa de

Page 124: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

124

Keppler. Eles entrariam num acordo para Kyle ficar longe de mim dali por diante.

— Obrigada — agradeci a Phoenix assim que ele me passou a toalha para enxugar meu cabelo ensopado. Alguns sons a mais do lado de fora da casa me avisavam que Laura havia chegado do trabalho. — Espere aqui — sussurrei.

No andar de baixo, Laura estava cansada, nada que fosse novidade. Ela tirou os sapatos com os próprios pés e sentou com uma cerveja na mão.

— Com esse vento deve vir uma tempestade... — fez a previsão. — Onde está seu carro, Darina? Não o vi na garagem.

— O limpador de para-brisa se soltou. — (Verdade, de fato). — Brandon Rohr vai consertá-lo. — (Também verdade).

— Que ótimo. Você já comeu?

— Comi uma pizza. — (Não era verdade).

— Você devia comer melhor, Darina. — (Verdade).

— E onde está Jim?

— Viajando, em outro estado. Não vai vir para casa.

— Não precisa preparar nada para o jantar, porque eu já comi. — Fiquei rondando em volta do pé da escada. — Tenho de fazer um trabalho de ciências.

— Então vá — Laura suspirou e colocou os pés em cima do sofá, pousando a cabeça numa almofada.

Phoenix deitou-se ao meu lado no quarto. Ouvimos os pingos de chuva caírem no vidro da janela e olhamos para o céu negro lá fora.

Eu estava mais viva do que em qualquer momento de que pudesse me lembrar, o coração explodindo de alegria.

Deitados de costas, com os braços esticados por cima da cabeça e, os dedos entrelaçados... Fitávamos os olhos um do outro. Eu me enrosquei nele, que não se mexeu, e ficamos lá parados por uma eternidade. Daí, ele beijou minha testa. Levantei o rosto e deixei seus lábios tocar os meus. Mais viva e sensível que nunca, entre infinitos beijos.

A chuva batia na janela.

Queria que durasse mais, mesmo sabendo que não seria possível. Teria sido desse jeito se...

Page 125: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

125

Antes da meia-noite a tempestade chegou e aumentou com um vento cada vez mais forte que trouxe trovões e relâmpagos dividindo o céu em dois.

Phoenix sentou-se e pôs as pernas por cima da beirada da cama. Apertou a mão trêmula contra a testa.

— O que foi, a tempestade? — Fui arrancada do meu paraíso e fiquei subitamente assustada. Uma tempestade elétrica era o maior perigo que os Beautiful Dead poderiam encontrar no mundo dos vivos — enfraquecia-os e roubava seus poderes, tornando-os vulneráveis a seus inimigos.

— Estou com uma dor, bem aqui. — Phoenix pegou a minha mão e levou meus dedos à tatuagem de asas de anjo, logo abaixo de sua espádua.

— É muito forte? — perguntei e toquei de leve a pele macia e fria, para depois inclinar-me e beijar as asas uma, duas, três vezes.

— Você está fazendo melhorar — ele disse baixinho. — Darina...

— Eu sei... Você precisa ir — murmurei rapidamente. — Os outros estão esperando por você lá na serra de Foxton.

Ele se levantou e me puxou para perto. Sussurrou em meu rosto enquanto me abraçava:

— Queria ficar com você, eu juro!

— Eu amo você. Vá.

— De manhã, venha até a serra, nos encontraremos por lá.

Um raio se bifurcou no céu, e o vento chacoalhou a janela. Tremi de medo da cabeça aos pés.

— Vá — implorei. — Vá, antes que seja tarde demais.

A tempestade caiu violenta a noite toda — chuva, vento e o céu preto cortado por raios serrilhados. Deitada na cama, dizia a mim mesma em diferentes graus de aflição que Phoenix teria conseguido chegar a Foxton e se reunido com Hunter e os Beautiful Dead, que agora eles já estariam longe do mundo dos vivos, a salvo em algum lugar do outro lado. Eu iria até lá pela manhã, assim que a tempestade passasse.

Quinta e sexta-feira — é tudo o que temos, falei para mim mesma. Mas como é que eu vou chegar a Foxton sem meu carro? Sentei na cama, ouvindo as trovoadas ao fundo.

Page 126: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

126

Agora, sem meio de transporte, eu me sentia como se minhas pernas tivessem sido amputadas.

Ei, o que eu faço agora?

Talvez se eu sair agora, no meio da tempestade e pegar uma carona na Centennial para descer no entroncamento de Foxton, subir andando até a serra, consiga chegar ao celeiro perto do amanhecer.

Estava de calça jeans, camiseta e calçando minhas botas quando Hunter apareceu.

O quarto se encheu de luz prateada. Ele se materializou ao lado da janela, os pingos pesados açoitando o vidro. Pensei que minha mente havia se atrapalhado e eu estivesse completamente louca.

— Você não deveria estar aqui! — falei num sobressalto, plantada ali, sem sair do lugar. — Cadê Phoenix? Onde estão os outros?

— A salvo — ele respondeu. Na luz difusa, eu via que ele tremia. Escorria água do cabelo para seu rosto de granito. Os olhos eram tão escuros e fundos que, por um instante, tive medo de ele ter virado uma daquelas caveiras trazidas do limbo para aterrorizar os vivos que chegam perto demais do celeiro.

— Você deveria estar lá com eles. — Se ele permanecesse mais tempo, ficaria ferido e muito fraco para ir embora. — Por que está aqui?

— Preciso de você — Hunter confessou. Um relâmpago rasgou o céu e o fez estremecer. Ele colocou uma mão sobre a mesa para se equilibrar.

Nada fazia sentido. Hunter era forte e seguro — inabalável. Não era para ele estar fraco e tremendo.

— Precisa de mim? Para quê?

— Venha comigo — ele pediu. — Rápido.

— Para onde? — Eu estava pronta para viajar, se ele ainda tivesse forças. Preparei-me para ouvir as asas batendo e a luz me rodeando.

— Para Foxton.

— Fazer o quê? — Aí vinham eles, o bando de asas, o sopro intenso e frio do ar molhado assim que Hunter abriu a janela do quarto.

— Achar Lee Stone — Hunter me contou. Ele pegou minha mão e, imerso nos ventos poderosos da tempestade, levou-me para fora da casa, adentrando a escuridão. — Lee não conseguiu... — ele explicou, à medida que a energia

Page 127: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

127

misteriosa rasgava minha cara, meu cabelo, e cada músculo e osso do meu corpo. — Ele ainda está aqui no mundo dos vivos. Você precisa vir.

Page 128: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

128

Quando se viaja com o mestre dos Beautiful Dead, não se voa nem se flutua nem se gira nem se é arrastado pela correnteza. É mais como se você tivesse caído no olho de um furacão e ficasse por lá até chegar ao lugar que queria. Aí vem uma queda livre de quilômetros em meio à escuridão antes que possa se recuperar.

Estávamos no entroncamento de Foxton, ainda era noite, e a tempestade havia piorado.

Tive de me segurar em Hunter para poder continuar em pé resistindo ao vento que soprava serra abaixo. Ele ainda tremia, com os olhos mais escuros e fundos. A chuva pingava em sua têmpora sobre a tatuagem quase apagada da asa de anjo, o lugar onde ele havia sido baleado.

— Lee estava aqui quando o tempo mudou — Hunter disse com a voz muito baixa, os ombros encolhidos e os dentes batendo, como se estivesse morrendo de frio. — Ele ficou gravemente ferido pela tempestade elétrica, e não conseguiu voltar.

Quase sem ar, dei uma olhada nas cabanas de pescadores enfileiradas à margem do riacho revolto. Apenas uma dentre elas estava iluminada.

Hunter foi cambaleante sob a chuva e o vento até a luz solitária.

— Retornei para procurá-lo depois de ter mandado os outros de volta. Não se preocupe, Darina, com certeza Phoenix está a salvo.

— Mas você não! — lamentei. Estava tão escuro que tropecei no meu próprio pé. — Você está ficando mais fraco a cada segundo que continua aqui!

— Estou aqui por causa de Lee — disse, por entre os dentes cerrados. —O cara dessa cabana encontrou Lee caído na beira do rio. Ele o arrastou para um lugar coberto antes que eu pudesse alcançá-lo. Acho que ele imaginou estar fazendo uma boa ação.

Page 129: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

129

— Um lugar coberto? Onde? — Lentamente recuperava meu fôlego e começava a pensar. Estava claro que era eu quem tinha de tirar Lee das mãos de seu suposto salvador e trazê-lo para Hunter. Daí, os dois poderiam dar o fora logo.

— Ele o levou para dentro da casa.

— Quanto tempo ainda temos? — perguntei, calculando se poderia esmurrar a porta e levar o homem para fora enquanto Hunter ficava invisível e se esgueirava para dentro da casa, aproveitando o tempo em que ele estivesse de costas.

— Não muito. — Hunter mal podia abrir a boca e falar, de tão fraco que estava. Vi que correu todos os riscos por causa de Lee. — O raio o pegou e ele desmaiou. Vá, Darina!

Fui tropeçando e subi o degrau da varanda. Bati com a mão na porta de madeira.

De início, ninguém veio. Dentro da cabana, o cara devia estar pensando que numa noite como essa ele não abriria a porta para um segundo estranho de jeito nenhum. Mas talvez tenha cogitado que alguém tivesse ido procurar por Lee e por isso a porta se mexeu.

Pela fresta estreita, vi um par de olhos brilhando.

— Ajude-me, você tem que vir aqui! — Gritei, com o cabelo grudado na cara e a água da chuva escorrendo do meu corpo. —Meu carro ficou preso na vala do entroncamento. Preciso que você me ajude a tirá-lo!

Agora sei que, com um pouco mais de tempo, teria enfeitado mais minha história.

A porta permaneceu imóvel.

— Não dá, não —falou a voz, que parecia velha e mal-humorada. — Estou muito ocupado com um jovem aqui. Ele caiu no rio.

—Por favor! — implorei, tentando olhar do lado de dentro.

— Não sei se ele está vivo ou morto — disse o velho. — Não consigo sentir a pulsação nem algo assim, mas acho que está respirando.

A porta ia fechando na minha cara.

— Eu posso dar uma olhada! — insisti. — Fiz treinamento de primeiros socorros, talvez possa ajudar.

Page 130: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

130

Entrei, mas Hunter continuava do lado de fora, desamparado. Se eu ia juntar Hunter e Lee, era preciso pensar rápido.

Porém meus planos foram por água abaixo.

Lee estava deitado num sofá que também servia de cama para o velho. Numa primeira olhada, poderia se dizer, sem dúvida, que era um cadáver — o rosto pálido como um fantasma, a boca aberta e os olhos fechados. Um dos braços caindo inerte para fora do sofá.

Havíamos chegado tarde demais — senti um baque no meu coração.

Mas então Lee se mexeu. Virou a cabeça para mim, e eu pensei que tivesse me reconhecido.

—Vá em frente, examine-o — o velho foi me apressar. Havia uma garrafa de uísque aberta em cima da mesa, e eu senti o hálito dele fedendo a álcool.

Um baque, e depois batidas aceleradas. Meu coração estava disparado quando me abaixei ao lado de Lee. Seus olhos não conseguiam focalizar nada, portanto imaginei que afinal ele não tinha me reconhecido.

— Sou eu, Darina.

— Darina. Diga a Hunter que eu sinto muito. — A voz dele também saía como um sussurro que quase não entendi, de tão desarticulado que era o som.

— O que ele disse? — quis saber o velho pescador, debruçando-se sobre nós com seu rosto peludo e marcado, além do bafo de uísque.

— Vou tirar você daqui —inclinei-me mais um pouco e prometi a Lee. Tarde demais! Minha mente falou a verdade, e o coração quase pulou para fora do meu peito.

Lee Stone era um dos espectros Beautiful Dead que nunca soube das circunstâncias relacionadas à sua morte. A tempestade o pegou em cheio e tirou toda a sua força sobrenatural, tanto que agora ele parecia com o cadáver que realmente era, com a cabeça pousada sobre o travesseiro encardido e o braço amolecido pendurado. Onde estaria àquelas asas e as caveiras, o campo de força que o protegia? O que Hunter poderia fazer agora?

Nada. Eu sabia a resposta sem precisar perguntar em voz alta.

— Não, quem sente muito sou eu — choraminguei. Confuso, o velho se afastou. — Hunter tentou salvá-lo, fez tudo o que podia.

Page 131: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

131

Os olhos de Lee mostravam que ele havia me escutado, mas estava muito fraco para falar. Peguei sua mão gelada e, assim que fechei os dedos sobre ela, vi sangue vivo escorrendo no braço dele, vindo de uma ferida em seu ombro que, mal havia aparecido, já estava pegajosa e coagulando. Mais sangue se esvaia de suas costelas e do canto da boca, fazendo uma linha fina em seu rosto.

Segurei forte em sua mão. A porta atrás de nós abriu-se, e veio uma lufada de vento intensa. Quando ela parou, Lee se fora.

* * *

A estranha semivida/semimorte de Lee foi desaparecendo devagar, mas aos

olhos dos que ficaram ela parecia ter sumido depressa. Com cuidado, coloquei o braço imóvel sobre seu peito. O pescador permaneceu mudo enquanto acontecia aquilo que se passa quando os Beautiful Dead partem definitivamente. Primeiro, as pálpebras de Lee tremeram e se fecharam, o sangue que saía sumiu. Em seguida, surgiram a luz prateada em volta do corpo e as asas batendo — mas não violentas e ferozes, suaves apenas. O brilho era como uma aura penetrando lentamente por toda a extensão de Lee, dissolvendo-o gradualmente e fazendo-o reluzir até que ele desaparecesse. O pretenso salvador de Lee ficou olhando embasbacado para um sofá vazio.

— Você bebeu uísque demais — disse ríspida ao velho pescador, para deixá-lo perdido em sua própria confusão. Que isso se tornasse mais um dos boatos esquisitos que escapam da montanha para os bares e lanchonetes de Ellerton. Uma noite feia de tempestades, uma história de bêbado...

Saí da cabana para procurar Hunter. Chamei por ele na estrada de terra e depois mais abaixo perto do rio. Só consegui ouvir a água passando pelas pedras e sentir a correnteza negra descer rápida perto dos meus pés.

Sentei-me no chão.

— Chegamos tarde demais — lamentei.

A única resposta que tive foi o bater de asas raivoso, amontoando-se sobre a serra de Foxton e lançando-se vale adentro, e uma horda de caveiras na escuridão com um brilho branco amarelado, cujo topo dos crânios parecia-se com seixos desgastados de uma praia e os buracos dos olhos com abismos negros.

A tristeza pesou sobre mim. Eu havia segurado a mão de Lee e assistido à sua partida para sempre. E agora Hunter também havia ido — como uma sombra de si mesmo, tão fraco que talvez não tivesse conseguido sair do mundo dos vivos e ir para um refúgio seguro, longe da tempestade.

Page 132: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

132

Um clarão de relâmpago cortou o céu e, logo em seguida, um estrondo de trovão. Sentei-me à beira do rio e chorei.

Amanheceu e eu subia a serra, esgotada e cheia de dor, com menos esperanças do que jamais havia tido. Andei até à caixa d’água observando de cima o celeiro e me joguei morro abaixo, meio correndo, meio tropeçando, esperando os Beautiful Dead voltarem para o mundo dos vivos.

O céu se iluminava em cor-de-rosa riscado de cinza e azul por nuvens finas. Gotas caíam dos galhos dos choupos, fazendo poças no chão de areia grossa. Vi o vapor levantar do telhado do celeiro à medida que o sol subia.

Onde estão vocês? Perguntei para Phoenix, Hunter, Arizona e o resto.

Lembrei da ocasião anterior em que os Beautiful Dead foram forçados a fugir por causa de outra tempestade. Eu havia ficado sentada a noite toda esperando eles voltarem, e demorou mais do que eu esperava — metade de um dia para eles descansarem e recuperarem suas forças, ficarem prontos para voltar ao mundo dos vivos.

— E já é quinta-feira — falei em voz alta. O tempo gerava uma pressão enorme que eu sentia em meus ombros. — Certo, então vai ser assim!

Resolvi seguir meu pressentimento de que ainda teria de esperar algumas horas e que era melhor não desperdiçá-las ficando por ali. Portanto, subi de novo a encosta pela trilha dos cervos até a estrada de terra onde pretendia pegar uma carona. Demorou vinte minutos até o primeiro veículo aparecer. O motorista desacelerou para dar uma boa e longa conferida no meu aspecto de rato afogado.

— Precisa de carona? — perguntou.

— Para Ellerton. — Não liguei se ele pensou que eu fosse uma doida sem-teto pega desprevenida pela chuva da noite passada; subi na cabine de sua caminhonete.

— O que aconteceu com você?

— Meu carro foi arrastado pela correnteza. Acabei indo parar numa vala.

— Você mora em Ellerton?

Fiz que sim.

Tá, você está me dando uma carona, mas eu não tenho de lhe contar a história da minha vida.

— Quantos anos você tem?

Page 133: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

133

— Vinte — menti.

Saímos da estrada de terra para entrar na rodovia.

— Você passou a noite inteira na montanha?

— É.

— Não conseguiu ligar para ninguém?

— Meu telefone estava sem crédito. — Acomodei-me melhor no banco e fechei os olhos para parecer que estava dormindo.

Passamos pela serra de Turkey Shoot e entramos na Centennial.

— Pode me deixar aqui — falei. Não sei nem se agradeci ao cara quando encostou o carro e eu saí andando.

Tinha dado no máximo uns vinte passos, quando Arizona saiu de trás de um carro estacionado.

— Antes que comece com qualquer coisa, deixe-me falar — ela disse. Seus olhos verdes faiscavam de tanta impaciência. — Sabemos do que aconteceu a Lee.

— Hunter e eu... Nós tentamos. Hunter correu todos os riscos que pôde.

— Eu sei, é que Lee era um garoto ótimo, os Beautiful Dead sentirão falta dele. Hunter não está levando isso numa boa, ele acha que falhou.

— Hunter conseguiu voltar para o limbo? — perguntei, ansiosa.

— Sim, ele está com os outros, a salvo. Eles descansarão e estarão aqui perto do meio-dia.

— Você veio sozinha? — Fui andando pela rua com ela, mesmo sabendo que isso era arriscado. — O que acontece se alguém a vir?

Arizona apontou para as casas e as cortinas ainda abaixadas, as portas trancadas. — Todo mundo ainda está dormindo. Você e eu precisamos conversar.

— Estou indo para Westra, para a casa dos seus pais. Não temos muito tempo.

Ela concordou.

Page 134: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

134

— Ninguém melhor que eu para saber disso. Temos exatamente trinta e quatro horas e quinze minutos antes que meu tempo acabe, por isso Hunter permitiu que eu viesse mais cedo.

— As coisas mudaram. Hoje em dia ele deve confiar em você cem por cento — resmunguei, ainda desconfiada pelo fato de estarmos expostas. Puxei Arizona para um beco ao lado de um pequeno conjunto de prédios. — Não sei por que ele fez isso, depois do modo como você agiu.

Ela se soltou de mim.

— O que você sabe, Darina? Sinceramente, quero dizer, o que você sabe de verdade?

Por onde começar?

— Sei que você não me contou sobre Kyle Keppler e Sable Jackson, nem sobre seu irmão mais novo. Como posso ajudá-la se você esconde coisas como essas?

Ela fechou os olhos e suspirou.

— Sabe como é quando precisa proteger alguém que ama?

— Sim, você os coloca acima de tudo, em primeiro lugar. E entendo que faça isso com Raven, o pobrezinho necessita de todo o carinho que possa receber. Mas Kyle é diferente.

— Você quer dizer que ele pode cuidar de si mesmo? — ela balbuciou.

Recordei de Kyle Keppler dando um cavalo de pau com sua caminhonete, dirigindo em minha direção e, me puxando para fora do carro, eu jogada na sarjeta.

— Minha nossa, Arizona, o cara é um animal.

Encostando-se a parede de tijolos, ela olhou para mim com os olhos quase fechados.

— É isso o que o povo fala dos Rohr, Brandon e Phoenix, sabia?

— De jeito nenhum. Você não pode fazer essa comparação!

Ela me desdenhou com um daqueles seus velhos gestos de desprezo, como se estivesse espantando uma mosca.

—Dizem que Brandon só consegue resolver uma discussão usando os punhos, e que Phoenix puxou ao irmão.

Page 135: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

135

— Você sabe que isso não é verdade.

— Mas é o que parece quando se está vendo de fora. E é disso que estamos tratando aqui.

— Você está dizendo que Kyle é igual a Phoenix? — Eu estava possessa, a ponto de sair andando e deixar Arizona seguir seu destino Beautiful Dead e nunca mais falar com ela. — Lembre-se de que Phoenix nunca me traiu.

Ela assentiu, mexendo de leve a cabeça.

— E se ele tivesse traído, você ainda o amaria?

Respirei fundo, incapaz de dar uma resposta que não quebrasse as pernas do meu próprio argumento.

— Entenda, não se deixa de sentir algo por alguém, mesmo quando essa pessoa magoa você. A gente aguenta firme e espera que vá passar.

— Mas Sable estava grávida, eles iam se casar...

— Eu sei, não precisa me dizer. Eu devia ter saído dessa situação. Eu tentei como pude.

Permaneci em silêncio por um longe tempo, mexendo a cabeça.

— E Kyle? Depois que você soube de toda a história sobre Sable e o bebê, ele terminou com você imediatamente?

— Ele tentou, mas se sentia do mesmo modo que eu, não conseguimos evitar. Ele se afastava por uns dias, depois me ligava de novo.

— Dizendo que ainda a amava?

Ela fez que sim.

— E então eu ia até a Mike Motores para vê-lo. Às vezes, outros caras, Brandon, Joe Jackson, estava por lá, e eu precisava inventar alguma desculpa.

Imaginei olhares safados e comentários maliciosos indo em direção a Arizona.

— Sabe de uma coisa, isso não era amor, era masoquismo.

— Uma obsessão — lamentou. — Mas eu vi um lado de Kyle que você não acreditaria: engraçado, nada amedrontador. Ele faz palhaçadas e faz eu me sentir melhor a meu respeito... Ele fazia — ela se corrigiu. — Ele entendeu o jeito que minha mente funcionava. Com ele eu podia ser eu mesma.

Page 136: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

136

— Isso é muito triste — disse a ela. — Você não podia ser você mesma com ninguém a não ser com Kyle, agora entendi. Pelo menos, acho que entendi.

— Você consegue compreender agora por que Kyle precisa que você fique longe de Forest Lake? Para manter o relacionamento dele com Sable e com o bebê — Arizona afirmou. — A única vez em que ele ficou bravo comigo foi quando eu apareci em sua casa.

— Que loucura. Por que você fez isso? — O velho ditado do roto falando do rasgado veio à minha mente. Quero dizer, não foi exatamente a mesma coisa que eu fiz?

— Para ficar quieta no meu carro e observar. Eu não estava pensando em ir falar com ele e Sable, só queria vê-los juntos para talvez me convencer de que já estava tudo acabado entre mim e Kyle.

— E ele viu você?

Ela assentiu.

— Ele não me encostou um dedo nem perdeu a cabeça, mas disse para nunca, nunca mais fazer aquilo novamente. E agora eu quero pedir para que você me prometa a mesma coisa.

— O que exatamente? — Na minha opinião, Arizona não estava em condição de impor nada.

— Deixe Sable fora disso. E Kyle também.

— Mesmo sendo uma das últimas pessoas que você viu antes de acabar no Hartmann?

Ela negou veementemente.

— Não tenho certeza disso. A última coisa da qual me lembro é estar indo para o shopping de carro. Não tenho a menor ideia se consegui chegar até a Mike Motores, nem se Kyle estava lá.

Desisti das perguntas, por saber que não daria para transpor o bloqueio de memória de Arizona.

— Então você está de acordo com a minha ida até a casa da sua família?

— Para fazer o quê?

Francamente, alguém pensaria que eu havia dormido com o inimigo, pelo modo como ela reagiu.

Page 137: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

137

— Para falar com quem quer que esteja lá, com Peter. Ou talvez Frank me dê alguns novos detalhes que eu possa usar.

— Ou talvez não. — Ela riu a velha risada de Arizona, cheia de zombaria e sem humor nenhum. — Conseguir informações do meu pai é pior que tirar leite de pedra.

— Eu notei. — Não tive tempo de perguntar como isso podia ser verdade antes que uma janela acima de nós se abrisse e uma mulher pusesse a cara para fora.

— Parem com essa tagarelice a essa hora da manhã — ela gritou para nós.

Arizona e eu saímos correndo do beco como se tivéssemos sido picadas por um enxame de vespas e voltamos para a rua.

— Então vá em frente. Fale de novo com meu avô — ela me disse, já pronta para se desmaterializar.

— Onde você estará? — perguntei.

— Por perto — ela falou. — Você não me verá, mas com certeza estarei lá.

Fui direto para a casa de Logan e bati à sua porta.

Mesmo ainda sendo somente oito da manhã, ele apareceu já todo vestido e desperto.

— Ei, Darina, tudo certo?

— Meu carro está arrebentado — disse com a voz fraca. — E, antes que você pergunte, não, não foi minha culpa. Uma pedra caiu do nada e amassou o capô.

—Então quer uma carona pra escola?

— Hoje não, obrigada. Mas você pode me levar até Westra? — Para fazê-lo não perguntar mais nada, inseri o que pareceria um motivo puro. — Lembra-se da mulher que caiu do cavalo? O marido dela, Peter Hall, trabalha lá.

—E você quer saber como ela está? — Logan rapidamente pegou as chaves. — Dou uma passada lá para levar você.

Sorri e sentei a seu lado. Fomos ao carro sem muita conversa, apenas tranquilos e relaxados, até onde ele sabia. No final da Rua 22 Norte, pedi para ele me deixar saltar.

—Quer que espere você? — ele perguntou.

Page 138: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

138

— Não, vou voltar andando. — Dei um sorriso de agradecimento e o vi ficar corado.

Por que é que eu não me apaixono pelos caras fáceis de levar deste mundo? — perguntei a mim mesma e não foi a primeira vez.

Assim que Logan pôs o carro na direção de Ellerton High, andei quase um quilômetro até o número 2.850, sem conseguir evitar olhar para trás, procurando uma Arizona invisível. Que estranho — um ano após ter morrido, ela voltava para visitar sua própria casa, e eu era a única que sabia.

Virei na entrada do carro e fui em direção ao anexo do jardineiro, mas não andei muito antes de ver Raven sentado em seu lugar habitual no quiosque. Ele tirou os olhos do caderno de desenhos para me ver e logo os abaixou novamente. Por alguns poucos segundos, ouvi numa súbita lufada de vento, a reação fraca e assustada de Arizona, como um suspiro entre as sequoias próximas ao portão.

Peter Hall prontamente saiu do viveiro de plantas e atravessou o gramado para me encontrar.

— Como é que Raven saiu da escola e veio parar em casa? — questionei. — A última coisa que fiquei sabendo é que ele havia voltado ao Instituto.

— Graças a você, pelo que soube. — O senhor de idade me levou para longe de Raven, seguindo para seu anexo. — A diretora fez uma descrição da menina que o encontrou: alta, magra, morena de cabelo curto; e imaginamos que fosse você.

— Você me conhece, eu gosto de passear de carro pelas montanhas — desdenhei. — Quer dizer que o tiraram da escola?

— Finalmente — Peter falou aliviado. — Acho que ele já fugiu vezes demais. Rebecca Davis e Allyson conversaram a respeito e decidiram que seria melhor ele tirar umas férias do Instituto.

Havia mais agitação entre os galhos dos pinheiros — estava sendo muito difícil para Arizona ver o irmão e ouvir essas últimas notícias sem poder ir até lá e abraçá-lo, examinar umas imagens de Warhol com ele e fazer aqueles olhos vazios brilhar.

— Sabe de mais uma coisa? — Peter continuou. — Ontem à noite Frank enfim saiu de casa.

— Eles vão levar o divórcio adiante?

— Com certeza. Ele vai se mudar comigo e com Jenna.

Page 139: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

139

— Uau, ele não está de brincadeira... — compreendi.

Peter concordou.

— Foi como um castelo de cartas desmoronando. Raven veio para casa, Frank saiu, e hoje, pela primeira vez na vida, Allyson faltou ao trabalho.

— Ela está em casa? — Olhei alerta para a casa grande com a porta da frente aberta e uma dúzia de janelas brilhando ao sol, mesmo com o frio que fazia. — E você, Peter? Como você e Jenna ficarão agora?

— Nós teremos de ir embora — ele disse, gesticulando para mostrar as caixas de papelão no chão. Dentro, ele havia empilhado os livros de jardinagem junto com a chaleira e as canecas de café. — Agora que Frank saiu de cena, Allyson não quer nem que venhamos visitar Raven; em vez disso, ela vai contratar ajuda profissional para cuidar dele.

— Ela está pondo você para fora? — Quando fico chocada, tenho o péssimo hábito de afirmar o óbvio.

Peter suspendeu os ombros.

— A não ser que mude de ideia — resmungou. — Mas conheço Allyson, ela nunca volta atrás no que diz. O certo é que dessa vez vamos mesmo embora daqui.

* * *

— Darina, você precisa voltar lá e conversar com Raven, ajudá-lo a superar isso! — Quando me encontrei com Arizona do lado de fora dos portões da casa, ela estava um caco: tinha escutado cada detalhe da conversa entre mim e seu avô e não suportou me ver indo embora.

— Por quê? O que isso vai trazer de bom?

— Fale dos desenhos dele, tente contar a ele sobre mim, o motivo de eu não estar mais por perto, de como não o deixei de propósito. Não, esqueça, só diga a ele que o amo.

A força do pedido dela quase me nocauteou, mas eu me lembrei de Phoenix contanto que o cérebro autista de Raven era estruturado de um jeito diferente, portanto impossível de ser alcançado.

—Ele não vai entender — disse a ela. —Você sabe disso melhor que eu.

Arizona olhou para mim em completo desespero.

Page 140: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

140

—Tente — ela implorou. — Você sabe que é tudo o que me importa, que Raven perceba que eu teria feito qualquer coisa por ele. Ele é incrível, um garoto especial. Diga isso a ele por mim, Darina.

— Não acho que isso seja uma boa ideia — resmunguei. Eu nem sabia se conseguiria entrar de novo no jardim sem ser vista, mas por sorte Peter tinha sumido do anexo, e também não havia, sinal de vida na casa principal.

Então entrei de volta no jardim e me esgueirei até ele, pegando-o de surpresa.

Da maneira como reagiu parecia que eu tinha apontado uma arma para a cabeça dele, com uma grande sacudida percorrendo todo o seu corpo por causa do choque.

— Tá tudo bem — murmurei. — Lembra de mim, Raven? A gente já se encontrou outras vezes antes.

Ele apertou o caderno de desenhos contra o peito e começou a balançar para a frente e para trás, recusando-se a olhar para mim. Pobrezinho — magro e frágil como um pássaro, com aquele cabelo preto, brilhoso, e olhos que se lançavam ora aqui, ora ali.

— Mostre-me o que você acabou de desenhar.

Mas não — ele manteve os desenhos escondidos e balançou ainda mais rápido.

— Não vou machucá-lo, sou sua amiga — tentei dizer a ele, mas não estava dando resultado. Eu não havia mentido para ele e não o havia entregado para a diretora da escola?

— Raven, eu conhecia sua irmã, Arizona.

O nome dela foi a única coisa que pôde quebrar a barreira. Falei — Arizona — e, antes que a palavra saísse da minha boca, o menino parou de se balançar e olhou para mim sedento, querendo mais.

— É, Arizona — ela me falou de você, Raven. ―Ele faz os melhores desenhos do mundo‖, foi o que ela disse. Você quer me mostrar o caderno?

Ele arregalou os olhos. Desviou o olhar de mim para o caderno e, de repente, empurrou-o em minha direção.

Peguei e comecei a virar as páginas.

Page 141: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

141

— Ei, esta é sua casa e este é o quiosque, que perfeito que está. E o anexo de Peter, e esta é sua escola. — Sem demora, estávamos os dois sentados lado a lado no banco do quiosque, com a cabeça abaixada vendo o caderno e passando os dedos por cima dos desenhos. Virei mais uma página e me percebi encarando um retrato de Arizona. Era ela sem tirar nem pôr — fui atraída pelos olhos amendoados e as sobrancelhas arqueadas, o rosto longo e oval emoldurado pelo cabelo preto com corte reto.

Raven correu o dedo indicador em volta do contorno do rosto, tocando-o com ternura e leveza. Daí, olhou para mim com o esboço de um sorriso.

Eu estava sorrindo de volta para ele, tentando segurar as lágrimas, quando Allyson Taylor, também conhecida como monstro em pessoa, nos interrompeu.

— Não sei quem você é, nem o que está fazendo aqui — ela disse com frieza. — Mas é melhor você sair antes que eu chame a polícia.

— Não precisa, já estou saindo — respondi. Levantei, surpresa por sentir Raven segurando a barra da minha jaqueta e não me deixando sair. Outra surpresa foi a aparência de Allyson sem o ―rosto de televisão‖: pálida e repuxada, com o cabelo louro amarrado para trás, os cantos da boca caídos e flácidos, além de bolsas sob os olhos. — Vim ver Peter — expliquei. — Fui eu quem encontrou Jenna na montanha após o acidente.

— Você conseguiu vê-lo antes que ele fosse embora? —A atenção de Allyson estava fixada na mão de Raven agarrada à minha jaqueta.

Assenti com a cabeça.

— E seu filho me mostrou os desenhos dele. Ele realmente tem talento.

— Ele gosta de desenhar. — Houve uma pausa no tom de voz frio. — Solte a jaqueta, Raven, seja bonzinho.

Ele virou a cabeça para o outro lado, mas se manteve segurando firme.

— Tá tudo bem, não tem problema.

— Solte, por favor! — Allyson abaixou-se e tentou desdobrar os dedos dele. Existia algo tão triste e desesperado naquele ato que as lágrimas vieram. — Desculpe-me — ela soluçou, dando um passo atrás e cobrindo o rosto com a mão.

— Não tem problema, de verdade. Arizona falou comigo sobre o irmão dela. Eu entendo.

Page 142: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

142

— Ela falou? — Foi difícil para Allyson engolir essa informação. — Eu achava que Arizona não se abria com as pessoas. Pensei que ela sofresse daquele grande mal familiar de guardar tudo dentro de si.

— Na maior parte do tempo era o que fazia — concordei. Eu estava fitando a mulher que chorava, imaginando para onde teria ido o monstro em pessoa e minha suspeita número dois. — Mas algumas coisas são duras demais para esconder.

Allyson voltou para dentro do quiosque e todos nos sentamos, Raven ainda segurando-se em mim com força. — Então, ela explicou a condição dele?

Nesse exato momento, a sensação da presença de Arizona ficou mais forte. Ouvi a voz dela repetindo por vezes a fio ―Você não vai me ver, mas com certeza estarei lá‖.

— Arizona disse que Raven era incrível, um garoto especial — contei aos dois. — Ela jamais iria querer abandonar Raven, porque ela o amava mais do que qualquer outra coisa no mundo.

— Não, ele não entende. — Lágrimas corriam pelas bochechas de Allyson. — Ele pensa que a irmã vai voltar. Espera por ela todos os dias.

—Talvez você entenda, Raven. Você sabe que Arizona o ama.

—E por que ela fez o que fez? — Um tom mais amargo surgiu por entre as lágrimas de Allyson. — Se ela o amava, não teria se afogado no lago.

Respirei fundo.

— Quem sabe não tenha sido assim que aconteceu?

— Claro que foi — veio a réplica defensiva. — Suicídio por afogamento. Foi o que disseram no inquérito, sem dúvida.

— E por que têm tanta certeza?

— Porque não há outro modo de olhar para o fato. — Allyson levantou a mão para tirar o cabelo de Raven do rosto. — Em todo caso, existe um histórico na família de Frank. Um tio estourou os miolos, e ele também tem um irmão com transtorno bipolar.

— Desculpe-me, eu não sabia. — Num instante minha própria condição de ter mãe solteira e sem dinheiro começou a parecer quase desejável.

— E, naturalmente, Frank foi afetado por isso. Você não vê muita emoção nele, ele mantém as coisas trancadas. Mesmo quando Raven nasceu e nós

Page 143: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

143

descobrimos que alguma coisa estava errada, Frank nunca quis compartilhar como se sentia. E eu tive de fazer todas as coisas práticas: as clínicas, os exames, os tratamentos, ele nunca foi comigo.

— Sinto muito... — falei novamente. Minha visão da conspiração dos Taylor estava mudando de novo. Toda vez que eu pensava ter encontrado alguma pista para seguir — mãe hiperambiciosa que não queria desistir da carreira para cuidar do filho autista — e as pegadas pareciam firmes na areia, o vento soprava e turvava as linhas, fazendo tudo parecer diferente.

— Frank queria motivos — Allyson suspirou. — Raven é desse jeito por causa dos fatores genéticos? Níveis anormais de serotonina no cérebro, um vírus durante a gravidez, síndrome do X frágil, ele vasculhou tudo tentando descobrir.

— E não adiantou?

—Não. E ainda por cima Arizona fez a mesma coisa quando ficou mais velha. Ela leu sobre todas as teorias, tal qual o pai dela.

— Ela era inteligente — lembrei-a.

— Mas esse era um fator que trazia muita briga entre nós. Ela pensava que sempre sabia as respostas — uma dieta especial, terapia cognitiva-comportamental...

— Entendo.

— Então eu ficava como sendo a malvada, seguindo o caminho tradicional, mandando Raven para o Instituto Lindsey e, quando ele estava em casa, fazendo-o tomar o remédio para epilepsia. Brigamos muito sobre esse assunto enquanto Frank, como era de esperar, tirava o corpo fora.

— E a deixava sozinha cuidando dos problemas práticos?

Allyson concordou.

— Você é muito nova, não tem como saber o que é ser casada, mas não ter alguém com quem possa contar, alguém que lhe dê apoio. É algo que a faz ficar amarga.

Coloquei-me no lugar dela e concordei.

—Sabe de uma coisa? Logo depois de Arizona ter partido, Frank levou embora todas as fotos, além dos livros didáticos, joias, roupas, tudo relacionado a ela.

Page 144: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

144

— O que ele fez com essas coisas?

— Guardou em caixas e as trancou no anexo, dizendo que não queria ter lembranças. Foi assim que lidou com o fato. — Allyson inspirou profundamente, para depois soltar os ombros para trás. — Peter lhe contou que tudo por aqui mudou? Raven deu um tempo do Instituto, ao mesmo tempo em que Frank e eu demos um tempo um do outro.

Assenti. Agora ela estava mesmo por conta própria, e isso aparecia nos seus olhos rodeados de marcas vermelhas e na boca caída. Teve um efeito que eu acreditaria ser impossível meia hora antes, senti muitíssimo por Allyson Taylor.

Onde é que estava Arizona quando saí de volta para a rua?

Verifiquei ambas as direções e segui para o centro, supondo que naquela hora os Beautiful Dead já teriam chegado à Foxton e que Hunter havia dado ordens para que ela se encontrasse com eles — o que significava que eu também deveria voltar para lá.

— É nessas horas que se vê como é útil possuir um superpoder — resmunguei, à medida que ia apressada. — Precisava só de uma pequena desmaterialização agora. — Caso contrário, como chegaria até o alto da serra?

Com Brandon, era assim que iria. Ele apareceu com a Harley justo quando eu chegava ao galpão industrial atrás do shopping.

— Kyle consertou o carro — ele me contou ao parar na beira da calçada, parecendo não acreditar que eu estivesse querendo chegar de um ponto A até um ponto B andando com meus próprios pés.

Olhei de volta bem séria.

—Kyle? — repeti.

— Claro. E sem cobrar nada. Falei que era o mínimo que ele podia fazer.

— E ele... Ele disse alguma coisa?

— Só disse que você precisa aprender a parar de meter o nariz onde não é chamada. Mas eu não perguntei nada. — Com umas batidinhas, Brandon me disse para subir no assento da garupa. — Vamos lá, você quer o carro de volta ou não?

Óbvio que queria, mas não me deixava nada feliz ir na garupa de Brandon Rohr, colocar os braços ao redor da cintura dele e sentir o calor do corpo debaixo da camiseta branca. Dava vontade de chorar.

Page 145: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

145

Passamos pelos galpões das lojas atacadistas de material elétrico, viramos à esquerda e seguimos para a Mike Motores. Brandon parou do lado de fora da oficina e me falou para esperar ao lado da Dyna enquanto ele ia lá dentro. Alguns minutos depois ele tirou meu carro da rampa.

— Como novo — ele disse, saindo e me atirando as chaves.

Na porta da oficina, eu vi Kyle Keppler em pé, de braços cruzados e olhando atentamente.

— Como foi que você fez isso? — cochichei com Brandon, incrédula.

— Kyle sabe que passou dos limites. Além disso, ele me deve uns favores.

— Obrigada, então — agradeci. Eu já estava entrando no carro para ir embora quando Brandon pôs a mão em meu ombro e me fez parar.

— Que loucura — ele balbuciou, encarando-me nos olhos. — Jurei a meu irmão que cuidaria de você.

A mão pesada incomodou e me fez sentir todas as diferenças entre Brandon e meu Phoenix.

— Valeu — agradeci novamente. — Você está fazendo um bom trabalho.

Brandon soltou um suspiro.

—Você acha que Phoenix está vendo? De onde quer que ele esteja agora?

Page 146: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

146

Onde quer que ele esteja agora.

É como eu já disse — de vez em quando as pessoas acertam tão em cheio o meu segredo que me dá vontade de gritar. Dirigi rápido até Foxton, desesperada para ver Phoenix, olhando o estrago que a tempestade havia deixado pelo caminho. Na área queimada perto de Turkey Shoot, árvores carbonizadas haviam tombado e ficado atravessadas umas sobre as outras na encosta do morro, enquanto uma enxurrada de água marrom e espumante entupia as valas. Ao virar à esquerda no cruzamento de Foxton, passei apressada pela cabana do pescador onde Lee realizou sua derradeira partida.

No alto da serra, no ponto em que a estrada terminava, abandonei o carro e corri pela trilha dos cervos até a caixa d´água.

Phoenix, preciso vê-lo!

Meu coração gritava, ao passo que meu corpo era castigado pelo vento forte que tinha afastado a tempestade algumas horas antes. Vento e asas misturados, o som aumentava até parecer com uma nova tormenta assim que parei perto da torre enferrujada. Qualquer forasteiro que enfrentasse esse campo de força invisível com certeza teria dado meia-volta e ido embora.

Mas eu encolhi a cabeça e segurei firme a jaqueta sobre o peito para descer o morro em direção ao celeiro, de cujo telhado subia uma nuvem de vapor e pingava água. Corri às cegas com a cabeça baixa e o coração aos pulos — direto para os braços de meu namorado.

— Darina, está tudo bem — Phoenix sussurrou, com os lábios apertados no alto de minha cabeça. Daí ele levantou meu rosto, colocando a mão debaixo do queixo até que eu olhasse em seus olhos.

— Meu Deus, fiquei com medo de que você não tivesse conseguido sair da tempestade! — Chorei, agarrando a gola da jaqueta de couro dele como se fosse uma questão de vida ou morte.

Page 147: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

147

— Estou aqui — ele procurou amenizar — com a voz grave e intensa, esperando que eu me acalmasse. O vento soprou com força no cabelo de Phoenix, jogando-o na sua testa e, em seguida, tirando-o de seu lindo rosto.

— Lee... — balbuciei, escondendo minha cara no peito dele.

— Eu sei. Coitadinha, pobre Darina, sinto muito que você tenha visto aquilo.

— Tinha sangue e ele sentia dor. Não havia como ajudá-lo.

— Hunter nos contou — Phoenix disse calmamente. — Lee foi atingido em cheio — a queda de um raio o pegou.

— Tentei tirá-lo da cabana — solucei. — Para que Hunter conseguisse ajudá-lo.

— Não, já era tarde demais. Nós não sobrevivemos por muito tempo depois de um golpe certeiro. Desfalecemos em poucas horas. — Phoenix queria fazer com que eu me sentisse melhor. Abraçou-me forte e passou a mão pelo meu cabelo. — Lee estava fraco demais, a tempestade elétrica já tinha feito o trabalho dela antes de você ter chegado lá.

— É muito triste. — Gradualmente, parei de chorar e relaxei nos braços fortes de Phoenix. — Fiquei muito assustada.

— Pobre Darina — ele disse novamente, apertando-me e balançando de leve enquanto estávamos no quintal.

— Não, não é por minha causa. O que me assustou mesmo foi o pensamento de que a mesma coisa pode acontecer a qualquer um de vocês — Summer, Arizona e especialmente você, Phoenix.

Dessa vez não houve palavras de conforto. Ele me olhou nos olhos sem contestar.

— Uma tempestade pode acontecer a qualquer hora. Na noite passada, você estava em Ellerton comigo. Poderia ter sido com você o que aconteceu com Lee.

Phoenix concordou:

— Todos nós assumimos esse risco. É por isso que Hunter nos tira daqui em duplas ou em trios sempre que ele pode.

— Hunter... Esse cara é corajoso mesmo — confidenciei.

Phoenix sorriu.

— Então você não o odeia mais?

Page 148: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

148

— É, ainda odeio. Ele é controlador demais. — Consegui sorrir de volta para ele. — Ele me lembra o pior tipo de pai, aquele com quem você não consegue argumentar.

— Nem me fale. — Se havia alguém que conhecia bem essa característica do mestre eram meu namorado e os outros membros dos Beautiful Dead. — Você sabia que ele está nos escutando exatamente agora?

Claro que sim.

— Onde ele está?

— Está no palheiro com os outros. E você, está pronta para se juntar a eles? — Phoenix pegou minha mão e me levou para dentro do celeiro, fechando o ferrolho da porta atrás de nós.

Finalmente protegida do vento, e mais calma, levantei a cabeça e olhei em volta. Cobertos de poeira, rédeas e arreios velhos pendiam dos ganchos, pás e forquilhas repousavam encostadas na parede. Teias de aranha cheias de pó estendiam-se, intocadas, de uma viga a outra.

— No andar de cima — Phoenix mostrou. Mais uma vez ele conduzia o caminho. Os degraus de madeira estalavam com o peso dele.

E lá estavam eles — Arizona, Summer, Eve e o bebê, Kori, Donna e Iceman —, os Beautiful Dead. E o mestre deles, Hunter, poderoso e de expressão severa.

Pareciam distantes e sérios, em profundo pesar por causa de Lee.

Arizona chegou mais perto.

— Desculpe, Hunter me obrigou a ir embora mais cedo. Mas você conseguiu falar com Raven? — ela perguntou, ansiosa.

Assenti.

— Disse a ele tudo que você queria.

Ela sorveu minhas palavras como se seu último fio de esperança, delicado com os das teias de aranha, estivesse dependendo da minha resposta.

— Como ele estava?

— Não dá para enganá-la e, de qualquer modo, você mesma o viu. Allyson disse que ele ainda espera que você volte.

Lampejos de pânico passaram pelo rosto de Arizona.

Page 149: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

149

— Allyson? — ela repetiu.

— Ela apareceu e confirmou que não quer mesmo mais as visitas de seus avós. Está decidida pela opção de pagar alguém para que tome conta dele.

— Meu Deus, ela não pode fazer isso! — Minha resposta deixou Arizona em parafuso. — Raven precisa da família perto dele.

— Sinto muito. Mas, para mim, Allyson não reagiu da maneira como eu esperava. — Tentei desfazer o pânico. — Ela liga, sim, para Raven, mais do que eu pensava.

— É, ela liga o suficiente para colocá-lo naquela escola! Ela liga o bastante para não ver coisas dietas e toxinas, nem terapias modernas!

— Não foi isso o que ouvi dela — era tudo o que podia dizer, virando-me para Hunter, que havia chegado. — Nada é bem assim quando se vê de fora.

— Inclusive Arizona — o mestre ressaltou. — Você nunca imaginou que ela sofresse o tanto que sofre.

— É verdade. Escute, Arizona, eu não vou abandonar Raven, em hipótese alguma.

— Jura? — Ela se agarrou a essa promessa como se fosse um colete salva-vidas jogado a um náufrago. — Você será uma ligação com o passado dele. Não vai deixar que ele me esqueça?

— Prometo. Ele sabia seu nome e é isso que me liga a você. Fiz o que você pediu, disse a ele que você o amava.

Acho que nessa hora Arizona teria realizado feliz a partida definitiva. Ela estava como queria estar — sabendo que no futuro eu cuidaria de Raven, que ele entenderia um pouco e que ela teria feito tudo o que pôde. Acredito sinceramente que ela não se importava sobre como havia morrido, nem o que aconteceria consigo mesma agora.

Mas os Beautiful Dead tinham a missão de ir até o fundo do mistério, e Hunter era o cara no comando.

— Temos menos de vinte e quatro horas — ele nos recordou. — Ainda está parecendo que foi um suicídio, a menos que Darina possa trazer algo novo.

Todos olharam para mim.

— Vamos nos mexer. — Summer quebrou o clima tenso. — O que temos, Darina? Temos um namorado que está por um fio, se Sable descobrir o caso

Page 150: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

150

dele com Arizona. Temos a família Taylor que, de tão envolvida com brigas e discussões, não consegue nem pensar direito.

— Além disso, avós que cuidam, mas não podem chegar perto demais — acrescentei. — E um irmãozinho que fugiu da escola na mesma manhã em que Arizona se afogou.

— E eu — Arizona nos lembrou. — Uma garota maluca e confusa, sem família ou amigos com quem possa conversar. Talvez seja isso, não resisti à pressão e pulei no lago, como disseram.

Summer fez algo que nunca eu tinha visto antes: ela ficou brava.

— Você não acredita de verdade nessa história! — ela gritou, partindo para cima de Arizona. — Você é uma lutadora, você não se rende.

Arizona balançou a cabeça.

— Talvez eu tenha me rendido, apenas desta única vez.

— Não acredito. — Concordei com Summer. — Ainda que o problema com Kyle não tivesse solução e a atingisse, você não desistiria de Raven. Não, alguém mais está envolvido, e você esta bloqueando essa memória, como se o trauma fosse forte demais.

— Então você deveria voltar para Ellerton, Darina — Hunter interrompeu. — Phoenix pode ir com você. Se decidir se encontrar cara a cara com Kyle Keppler e perguntar onde exatamente ele estava e quem ele viu no dia em que Arizona morreu, Phoenix vai tomar conta de você.

Se Kyle viesse com violência, Phoenix poderia acabar com ele novamente usando seus superpoderes. Ele conseguiria me tirar de qualquer perigo em que eu me metesse. Eu sabia também que essa era uma tática que Hunter jamais aprovaria, a não ser numa emergência. O tempo era tão curto que deixava todos agoniados, e as questões principais ainda permaneciam sem resposta.

Virei-me na direção de Phoenix e vi que ele estava temeroso por mim.

— Ei, pelo menos a gente vai passar outra noite juntos — brinquei.

Arizona não aprovou meu senso de humor.

— Você não vai conseguir respostas de Kyle — ela ainda insistia. — Não tem como ele estar envolvido.

Não acreditávamos nela — nosso silêncio dizia tudo.

Page 151: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

151

Estávamos no palheiro e com a guarda baixa, senão teríamos ouvido as motos se reunindo perto da Pedra do Anjo.

Vindo de Forest Lake em cima de suas Harleys e Kawasakis para caçar fantasmas, havia um grupo de caras valentões que tinham ouvido as falas desconexas de um velho pescador que havia voltado da cabana dele com uma história confusa sobre um rapaz pego pela tempestade, que se afogou no riacho e cujo cadáver que sangrava brilhou e desapareceu na sua frente.

Num primeiro momento eles riram do velho maluco, daí tomaram algumas cervejas. Um pouco depois, alguém sugeriu subir lá e dar mais uma olhada.

— Iceman, suba lá! — Hunter deu a ordem quando enfim escutou o barulho dos motores. — Donna, você vai com ele. Montem uma barreira, não deixem ninguém passar.

As ordens vieram rapidamente e aos montes. Ele falou para Summer, Eve e Arizona darem a volta por trás dos motoqueiros e depois se aproximarem pela direção do pico Amos.

— Vamos espremê-los por todos os lados — ele explicou. — Vamos amontoar todos juntos e empurrá-los pela serra no sentido de Foxton. Façam o que tiveram de fazer! — Ele disse para que Phoenix e eu não saíssemos da casa até que a barra estivesse limpa. — Vão! — ele ordenou, quase empurrando a gente escada abaixo. — Tranquem a porta por dentro.

Obedecemos, cruzando o quintal enquanto os Beautiful Dead espalhavam-se pelo morro e desapareciam entre os choupos à medida que caía a noite. Moviam-se silenciosos e velozes como sombras.

— Hunter está com um olhar esquisito — Phoenix me contou quando entramos na casa. —Ele está tão bravo que não colocou vigias. Agora estamos todos em perigo.

— Até Hunter se engana de vez em quando — resignei-me. Eu me sentia segura na casa, mesmo que as paredes fossem apenas troncos serrados sem muito acabamento e o ferrolho da porta estivesse enferrujado. Estava feliz por Hunter ter escolhido Phoenix para ficar e cuidar de mim.

— Você precisa me contar o que está acontecendo na Pedra do Anjo — insisti.

Phoenix ouviu com cuidado.

—Donna e Iceman estão posicionados. Os motoqueiros estão conversando entre si.

Page 152: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

152

— Você consegue ouvi-los? — Pessoalmente, eu só conseguia escutar sons naturais, como o vento farfalhando no capim seco, a brisa movimentando as folhas de outono dos choupos. — Sabemos quem está por lá?

— Posso dizer quantos, mas não quem são. Iceman está dizendo que podem ser doze ou treze. Ele e Donna estão começando a conduzi-los pela encosta. Arizona e os outros logo estarão atrás deles, aumentando a pressão.

— Tomara que saiam sem briga — tive um calafrio. Eu já não me sentia mais tão confortável agora que tinha escurecido, sabendo que não poderíamos acender nem um lampião para não denunciarmos nossa presença. Ficamos sentados no escuro, esperando.

— Está dando certo, eles estão indo embora — Phoenix anunciou. — Depois das barreiras montadas eles já não continuam tão valentes.

Visualizei o desespero entre os motoqueiros, crescendo de um nervosismo inquieto, quando as asas invisíveis começariam a bater, até chegar a espasmos de medo na hora em que as caveiras iniciariam o ataque, para depois virar aquela loucura irracional. Por conta de todas as bravatas regadas à base de cerveja eles se deitariam sobre os guidões, ligariam os motores e dariam o fora dali.

— Dois se separaram do grupo — Phoenix disse, preocupado. Ele foi até a janela para olhar para a encosta. — Está escutando esse barulho? Eles estão vindo nesta direção.

— Você tem certeza?

— Iceman está vindo atrás deles. Agora você consegue ouvi-los, não consegue?

Ao lado de Phoenix na janela, escutei com muita atenção até ouvir o zumbido de dois motores. Olhei para o alto de morro escuro com o coração quase saindo pela boca.

— A situação é grave — Phoenix decidiu. —Eles estão bem à frente de Iceman, acho que ele não vai alcançá-los.

De repente, duas luzes brilhantes apareceram na encosta, e os feixes mergulharam nas baixadas, depois subiam varrendo o céu.

— O que vamos fazer? — perguntei.

— Você fica aqui esperando. Eu vou ajudar Iceman.

— Mas Hunter disse para você ficar aqui!

Page 153: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

153

— Não, você, mas você tem de ficar escondida — ele insistiu. — Mantenha a porta trancada. Você vai ficar bem. — Phoenix soltou o ferrolho e saiu para a varanda. — Feche a porta, Darina!

Rangi os dentes e forcei o ferrolho de volta no lugar. Permaneci com o ombro encostado na porta, os olhos fechados e mal conseguindo respirar. As duas motos rasgavam o vale com os faróis amarelos invadindo a escuridão.

No quintal, Phoenix pensou numa maneira de detê-los. Ele pegou um rolo de arame farpado que estava ao lado do celeiro, segurou-o acima da cabeça e o jogou no caminho do motoqueiro que estava mais perto. O piloto freou e derrapou, desviando bruscamente para cima do que vinha atrás. As duas motos colidiram, e ambos caíram ao chão. Pela janela encardida, vi os dois aterrissarem na terra. Em seguida, Iceman juntou-se a Phoenix próximo ao celeiro.

Dois Beautiful Dead contra dois motoqueiros desmiolados de Forest Lake — não deveria haver nenhuma dificuldade. Esperei Phoenix e Iceman se aproximar e pegar os dois caras como se fossem sacos de lixo, apagar sua mente e mandá-los para casa com a cabeça doendo.

Mas não foi o que aconteceu. Pela luz fraca de um dos faróis vi um dos motoqueiros lutar para ficar em pé e fugir para a casa. Enquanto isso, o camarada dele havia enlouquecido completamente. Ele pegou o rolo de arame farpado e o atirou de volta em Iceman e Phoenix. O arame desenrolou-se aos pés deles como uma serpente, fazendo uma espiral mortal. O primeiro cara agora tropeçava na varanda, recostando-se na parede para recuperar o fôlego. Olhei-o de perto e reconheci os traços, mesmo no escuro. Era Kyle Keppler — quem mais poderia ser?

Uma nova onda de pânico tomou conta de mim, e fiquei com as pernas bambas. Phoenix e Iceman estavam encurralados, o cara que eu suspeitava ter matado Arizona estava a menos de um metro, vindo do choque de ter sido jogado para fora da moto e procurando uma arma para usar contra seus agressores. Ele pegou um machado de cabo comprido que estava encostado à parede.

— Phoenix! — Gritei para avisar de dentro da casa. Meu rosto na janela, para quem quisesse ver.

Keppler ouviu e viu. Em vez de correr em direção ao inimigo original, ele subitamente meteu o machado na porta, levantando-o e baixando-o, estilhaçando a madeira e quebrando o vidro em milhares de pedaços. Outro golpe destruiu o ferrolho, e a porta se abriu.

Page 154: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

154

—Aqui, Jonno, pegue isso! — ele gritou para o segundo cara e lançou a arma como se fosse uma machadinha indígena.

Jonno... Jon... Jon Jackson, o cunhado inseparável de Kyle. Jackson agarrou o machado e empurrou Phoenix e Iceman para o celeiro.

O que me deixou sozinha encarando Kyle Keppler no escuro. O terror me paralisou e não consegui sair do lugar. Na minha cabeça eu estava morta, sem dúvida.

— Acabou, menina. Você já cruzou meu caminho vezes demais. — Ele impediu a saída pela porta, seus pés esmigalhando o vidro quebrado. — O que quer que esteja acontecendo aqui, você está bem no meio da coisa.

— Não está acontecendo nada aqui — protestei. — Eu e alguns garotos de Ellerton High... A gente vem aqui de vez em quando.

Caí por cima do fogão quando Kyle avançou sobre mim. Ele segurou meu pulso e me jogou de volta para o meio da sala.

— E estes são os mesmos garotos que jogaram arame farpado do quintal? Eles vão se arrepender de terem feito isso.

Fechei os olhos e rezei para que Jon Jackson não fosse tão bom com o machado quanto Kyle foi. Phoenix e Iceman cuidariam dele cedo ou tarde, mas levaria algum tempo.

— O que é que acontece mesmo por aqui? — Ainda segurando meu pulso, Keppler me fez sentar na cadeira ao lado da mesa. — Ouvi dizer que um garoto se afogou no riacho ontem à noite. Quem era ele? Cadê o corpo?

— Não sei, não me pergunte! — Quando Kyle levantou a mão eu me encolhi toda. Eu estaria morta de verdade se Phoenix não aparecesse logo. — Arizona costumava vir aqui — contei a ele.

Falar o nome dela serviu como pausa. O punho levantado não desceu com violência.

—Ninguém sabia deste lugar aqui naquela época. Ela gostava do silêncio.

— Arizona esteve aqui? — Keppler tentava processar a informação enquanto olhava o cômodo antigo. Notei que dessa vez ele não tentou negar o relacionamento. — Quando foi isso? Ela não me falou.

—Típico dela: ela gostava de guardar segredos — fiz questão de lembrar.

— Mas ela contou para você?

Page 155: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

155

— A gente conversava bastante.

— Sobre mim?

Fiz que sim.

— Ela dizia que o amava. Ela tentou terminar, só que não foi forte o suficiente para isso.

Um meio sorriso de descrença surgiu no rosto de Kyle.

— Estamos falando da mesma garota? Eu nunca conheci alguém mais forte que Arizona.

— Por fora — concordei. — Você não faz ideia de quanto ela estava magoada por dentro.

Ele olhou por um bom tempo para mim na sala iluminada pela lua, transformando meu último comentário em uma dura crítica a ele mesmo.

— Ela fez a escolha dela — retrucou.

Fui de encontro ao olhar dele.

— Ela tinha dezessete anos.

Alguma coisa deu um clique em seu cérebro, e ele voltou a ser o psicótico, chegando tão perto de mim que pude sentir seu hálito na minha cara.

— O que você sabe? — ele rosnou, inconscientemente repetindo a ex-namorada. — O que você sabe de verdade?

Hunter nos encontrou assim — cara a cara, eu indefesa e Kyle Keppler me empurrando da cadeira da cozinha, prestes a bater as costas da mão no meu rosto. O mestre entrou para o grande número da noite. Em um instante ele tirou toda a força de Kyle até ele ficar mais fraco que um bebê, fazendo-o cambalear e cair de joelhos. Outro golpe com a mente fez Kyle se espichar todo, agarrando a cabeça e gritando de dor. Hunter continuou em cima dele — calmo e impassível — escutando os gemidos.

— Não saia deste cômodo — ele me disse em voz baixa.

Eu estava pensando em sair correndo para o quintal, e Hunter sabia disso.

— Phoenix e Iceman já cuidaram de Jackson — ele me falou. —Ele já está indo embora daqui.

Page 156: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

156

Era verdade — ouvi o ronco de um motor de Harley e vi um facho de luz solitário cortando o morro.

— Você falou com Keppler a respeito de Arizona — Hunter ressaltou. — Foi arriscado.

— Eu tinha de dizer alguma coisa. Ele estava possesso. Achei que fosse me matar.

Hunter piscou e virou seus olhos frios e acinzentados para mim.

—Você precisa confiar em mim, Darina. Keppler não é uma coisa com a qual eu não possa lidar.

— Mas eu não sabia onde estava! — chorei. — Pensei que você estivesse na encosta com os outros.

— Estou em todos os lugares — ele disse, ao mesmo tempo em que arrastava Keppler para perto dos pés e mandava mais um torpedo de hipnose zumbi para a mente dele. — Venho quando precisam de mim.

Na sequência ele atirou Keppler no quintal, onde Phoenix e Iceman colocavam o arremedo de um homem saído de uma lavagem cerebral na moto e indicavam o alto do morro.

—Então, obrigada — relaxei — uma palavra que não dava para representar todo o drama da situação, eu sabia.

Hunter estava virado de costas, parado perto da porta assistindo à saída de Keppler.

— Esse é o lugar, aí onde você está agora — ele me disse, como se tivesse olhos na nuca. A voz dele ficou vaga e distante. —Enrole o tapete, Darina.

— O que você quer dizer? — Fiquei olhando o chão e o tapete estampado e desbotado.

— Foi aí que eu caí. Enrole o tapete.

Agachei-me e levantei a ponta do tapete até ver uma mancha escura nas tábuas de madeira — parecia preta à luz da lua, mas foi, sem dúvida, vermelho-sangue por todos aqueles anos.

— Meu sangue — Hunter confirmou. — Mentone atirou em mim, e eu caí bem aí.

Tremi.

Page 157: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

157

Por que me contar isso agora?

Os gestos de Hunter eram lentos, como se estivesse em transe.

— Marie estava em pé ali, perto do fogão. Estava em choque, paralisada pelo que tinha acontecido. Mentone sacou a arma e atirou.

Ele acertou você na cabeça, a bala atravessou o crânio — eu sei!

— Não falei sobre isso com ninguém — Hunter disse com a voz cansada. — Ano após ano eu volto. Já vi a justiça ser feita para outros dos Beautiful Dead, em muitas ocasiões. E cada vez que uma alma é libertada, sei que meu trabalho foi feito.

— Não entendo por que está me dizendo isso agora. — Hunter parecia ter feito o tempo parar. Eu estava presa na cápsula da memória dele, lutando para sair.

Ele se virou para me ver, prendendo-me naquele olhar poderoso.

— O que há com você, Darina? —ele perguntou. —Digo a mim mesmo que você nem se parece com ela.

— Com Marie? — Eu me esforçava para respirar, presa como um inseto num alfinete.

E daí que lembro sua esposa? Não faça isso comigo!

— Ela era uma boa mulher, simples e feliz, sem sombras escuras dentro da cabeça, não como você. Marie era cheia de vida. Ela se vestia muito bem.

— Desculpe se você não gosta do jeito que eu me visto — resmunguei. — As coisas eram diferentes naquela época.

Foi como se eu nem tivesse falado.

— E aí eu olho nos seus olhos e eles são os mesmos — ele suspirou. —As memórias dolorosas voltam todas. Não me dão descanso.

— Como é que você não conseguiu justiça para você mesmo? — questionei. — Você ajuda os Beautiful Dead, mas nunca a si próprio.

Ele se concentrou ainda mais no meu rosto.

—Nunca vai acontecer... Eu nunca encontrarei a paz.

— Um dia, quem sabe — falei, sem acreditar nem esperar que ele o fizesse.

Page 158: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

158

Ele suspirou novamente.

— Estique o tapete, Darina. Phoenix e Iceman estão esperando. Vamos.

Os Beautiful Dead desceram da serra de Foxton e reuniram-se no celeiro. Havia usado bastante energia contra os intrusos de Forest Lake, por isso sentaram-se quietos, esperando Hunter pensar no próximo plano — Donna ao lado de Eve, Iceman vigiando o lado de fora lá de cima do palheiro, Phoenix montando guarda na porta. Estavam todos irritadiços, reagindo a qualquer som e trocando olhares ansiosos.

— Quer dizer que Phoenix vai passar a noite com você em Ellerton? — Arizona confirmou comigo. De todos, ela parecia a mais inquieta e apreensiva.

Olhei o relógio e vi que era quase meia-noite.

— É, preciso de uma boa história para chegar tão tarde em casa.

— Para Laura?

— Isso mesmo. Pode esquecer aquela de ter acabado a gasolina, já usei essa centenas de vezes.

— Diga que você estava na casa de Logan e perdeu a hora — ela sugeriu. — Essa geralmente funciona. Fique conversando com ela até Phoenix conseguir entrar.

Concordei, acreditando que seria minha melhor opção.

— Amanhã vou fazer uma última visita a seu namorado — prometi. — Vou direto perguntar a ele se você o visitou no dia em que morreu, e se vocês pegaram o carro e foram juntos ao lago Hartmann.

Arizona se virou sem paciência.

— Ele vai lhe dizer que não.

— Mas devo acreditar nele? — Fiquei na frente dela. — Pense mais uma vez, Arizona, pense bem. Você dirigiu até o shopping? Você colocou Kyle contra a parede e pediu pela última vez pra que ele deixasse Sable?

Um brilho de raiva apareceu nos olhos dela.

— Tá bom, Darina, vou contar a história do jeito que você quer ouvir. Dirijo até a Mike Motores, estaciono meu carro e entro. Kyle está trabalhando. Não fica feliz em me ver. Eu digo: ―Por favor, largue sua namorada grávida, que logo vai ser sua esposa, e fique comigo. Fomos feitos um para o outro — almas gêmeas que não podem ser separadas!‖. Era pressão demais, e Kyle perde

Page 159: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

159

totalmente o controle. Talvez tivesse uma ferramenta ou algo pesado na mão. Lutamos. Ele me acerta, por acidente, ou de propósito. Eu caio no chão.

— Pare com isso! — implorei. Parecia que Arizona tinha chegado tão perto do limite que era capaz que ela caísse no abismo da loucura e nunca mais recuperasse a sanidade.

— Você nunca me perguntou sobre minha marca mortal, não é, Darina? Devo mostrá-la para você? Você gostaria de vê-la?

— Não. Pare. Se você não lembra o que aconteceu, então você não lembra... Desculpe-me, não quis pressioná-la tanto.

— Marca mortal! — ela insistiu com um olhar quase tão poderoso quanto o de Hunter. Senti minha força de vontade se esvair. —Espera-se que ela esteja no meu peito, mostrando que eu caí na água e me afoguei. — Ela passou os longos dedos na parte superior do corpo esbelto. — Mas não está aqui, pode acreditar.

—Onde, então? — Percebi que ela me mostraria, eu querendo ou não.

Lentamente, ela levantou os braços, tirou os longos cabelos das costas e os torceu como se fossem um corte de seda preta, daí virou-se para que eu pudesse ver o pescoço. A pele era branca, cada vértebra visível e vulnerável.

— Está vendo? — ela sussurrou.

Vi a tatuagem de asa de anjo abrigada entre dois ossos do pescoço dela, escura em contraste com a pele clara, muito delicada e toda definida.

— Sim — respondi. — Você não se afogou no lago. Você quebrou o pescoço — foi isso o que matou você.

Page 160: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

160

Quando cheguei em casa, Laura já nem tinha mais vontade de brigar comigo. Ela estava com o conhecido olhar de mágoa — Certo, não sou nada além de sua mãe. Não estou esperando que você demonstre nenhuma consideração ou respeito.

— Peço desculpas... É que não vi a hora — despistei, tentando fugir para o quarto.

— Jim ligou — ela me disse — Ele sofreu um acidente. O pneu estourou, e ele derrapou para fora da pista.

A notícia funcionou como um freio para mim.

— Ele está bem?

Ela fez que sim.

— O carro foi rebocado. Ele vai passar a noite num hotel de beira de estrada.

— E você está bem? — Era claro que não, ela estava pálida, com os olhos vermelhos de tanto chorar.

— Qual é o problema com essa família e os carros? — ela lamentou. — Qual é o problema com essa família, afinal?

— Veja dessa forma: graças a Deus ele não se machucou. — A essa hora eu já teria dado bastante tempo para Phoenix subir pela janela do meu quarto, e Jim ter sofrido um pequeno acidente de trânsito não estava na minha lista de prioridades. — Durma um pouco. De manhã estará tudo bem.

— Onde você esteve, Darina? — Ela parecia irritada. — Não me diga que foi na casa de Jordan ou na de Hannah, pois já conferi.

—Na casa de Logan — falei para ela e subi correndo a escada. Eu sabia que ela não havia ligado na casa dele para não ter de falar com o pai de Logan, bêbado como de costume.

Page 161: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

161

Phoenix estava lá, esperando.

Tê-lo no meu quarto, enchendo o espaço com sua linda presença era o paraíso. Nunca vou poder dizer quanto ele é lindo, como ele ilumina minha alma toda vez que o vejo, nem como me sinto segura com ele por perto mesmo havendo perigo à nossa volta. Caí nos seus braços.

Phoenix me abraçou — sou o centro do mundo dele, assim como ele é o centro do meu. Fazemos parte um do outro — ninguém pode nos separar.

Deitamos juntos na cama, imersos naquele momento, felizes apesar de todas as coisas. Seu rosto estava tão perto, tão macio — os cílios escuros faziam sombra nos olhos pálidos e acinzentados, os lábios suaves na minha bochecha.

— No que você está pensando? — ele perguntou após um silêncio muito longo.

— Em nada. Só em como isto aqui é perfeito.

— Finalmente conseguimos parar o mundo e descer?

— Acho que sim. Estamos no fundo do espaço sideral, flutuando entre os planetas. É escuro e silencioso, ninguém pode nos alcançar.

— Não sente como se o tempo tivesse parado?

Respondi que sim com a cabeça e o beijei, começando de leve para depois me levantar sobre ele e mergulhar num abraço mais forte e apaixonado.

Foi Phoenix quem se afastou primeiro.

— Eu a amo tanto que até dói — contou, jogando as pernas para o lado de fora da cama e sentando-se curvado para a frente. — Dói termos tão pouco tempo juntos e que eu não tenha livre-arbítrio.

— Hunter está vigiando você? — perguntei, já sentada ao lado dele.

— Sempre.

— Ele voltou a falar de Marie — disse a Phoenix pegando sua mão e colocando a palma pequena da minha sob a dele, bem maior. — Agora há pouco, ele me fez olhar para uma velha mancha de sangue no chão. Ele me confidenciou sua própria história.

— Porque você o faz lembrar-se da esposa. — Phoenix entendeu imediatamente. — Depois de três ou quatro gerações, ele enxerga Marie em você.

Page 162: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

162

— Ele diz que são os meus olhos. —Recordar da intensidade da conversa me encheu de tremores mais uma vez. — Hunter me assusta, Phoenix. Mas em um cantinho dentro de mim, sinto pena dele.

Phoenix sorriu.

— Ele não precisa da sua piedade, pode acreditar.

— Quem sabe eu investigue a história dele um dia. Quando eu tiver um tempo, depois de ter resolvido o mistério de Arizona. — E os Beautiful Dead terem ido para longe do mundo dos vivos para poder descansar e se recuperar. — O caso de homicídio de Peter Mentone deve estar arquivado em um jornal velho de algum lugar. Eu poderia procurar nos arquivos da biblioteca, ou no escritório do jornal. Eles guardam coisas assim, não guardam?

— Acho que guardam. — Nesse exato momento, Phoenix não estava tão interessado nos detalhes da história de Hunter, por isso nos trouxe de volta ao presente. — Quando Arizona enfim mostrou para você a marca mortal dela, o que você pensou?

— Fiquei chocada. — Ela havia levantado o cabelo pesado e me mostrado a pequena tatuagem das asas de anjo. Uma atitude que parecia ter posto o destino dela nas minhas mãos de uma vez por todas. — Estou pensando. Será que foi mesmo um acidente, no fim das contas?

— E não um suicídio?

— É possível. As margens do Hartmann são bem irregulares e cheias de pedras. Talvez ela tenha escorregado e caído.

— Mas, de qualquer modo, por que ela estaria lá? — Phoenix virou minha mão para que repousasse sobre a dele. Enquanto falava, ele traçava com o indicador as linhas da palma da minha mão — a linha do coração cruzando a linha da vida. — Arizona não andaria tanto, nunca foi de fazer trilhas, e lembre-se de que também não havia carro nenhum no local.

— Alguém a levou até lá de carona? E mesmo se tivesse sido um acidente, se Arizona tivesse caído e batido a cabeça em uma pedra, a outra pessoa não mergulharia para salvá-la?

— Pois é. E por que não pediram ajuda? Você sabia que foram duas pessoas fazendo trilha que acharam o corpo dela flutuando no lago?

Fiquei sentada e quieta por um tempo.

— Tá, pense nessa hipótese — falei por fim. — Arizona vai desesperada ver Kyle na Mike Motores, num humor enlouquecido, e usa a desculpa de consertar

Page 163: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

163

o carro. Ele fica com medo de ela falar demais na frente de Mike Hamill, então combina de encontrá-la no Hartmann de carro naquela manhã. O lago fica bem longe da cidade, ninguém os veria lá.

Phoenix pegou a história.

— Eles se encontram e tudo vai por água abaixo. Arizona perde o controle e ameaça Kyle. Ela jura que vai impedi-lo de se casar com Sable. Sabemos que ele tem um temperamento brutal, ele bate, ela tropeça, cai e bate a cabeça tão forte que quebra o pescoço.

Esse raciocínio fazia muito sentido.

— Kyle fica com medo — continuei. — Ele não sabe se Arizona está viva ou morta, mas percebe que está enfrentando o maior problema da vida dele: explicar o que aconteceu a Arizona. O lago é fundo, ele acredita que esse possa ser o único modo de resolver o problema. Daí, levanta Arizona da pedra e a joga dentro do lago.

Cada detalhe parecia se encaixar no lugar certo, agora que estávamos dizendo em voz alta. Foi completamente convincente para nós.

Phoenix concordou.

— Aí Kyle vai embora. Ele não precisa de um álibi, poucas pessoas sabem da conexão dele com a garota que morreu. A reação dele é de espanto, como a de todo mundo quando o corpo é descoberto. Mais tarde, no inquérito, ouve-se que Arizona era solitária, que estava deprimida. Dão o veredicto de suicídio. Não há buracos na história nem há uma contestação por parte da família chocada e retraída. Tudo em seu lugar.

— Toda a cidade está abalada por ser a segunda morte em poucas semanas. Primeiro Jonas, depois Arizona. Eu me lembro bem, foi quando o pessoal começou a acreditar que havia uma maldição pesando sobre os jovens de Ellerton. Ninguém conseguia pensar com clareza. Estávamos todos assustados.

— Kyle escapa. — Phoenix coloca no lugar a peça que faltava.

— Pelo menos é o que ele pensa — acrescentei. — Mas ele não sabe sobre os Beautiful Dead.

Sentamos juntos, admirando a nossa versão bem-acabada dos fatos. Fiquei mais determinada que nunca a extrair a verdade de Kyle Keppler.

— Quanto tempo falta para o amanhecer? — perguntei a Phoenix. — Quanto tempo ainda temos até a hora de ir para Forest Lake?

Page 164: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

164

Ele olhou para a lua e as estrelas.

— Tempo suficiente para você dormir — foi a resposta. — Vou ficar aqui vigiando, agora descanse.

Foi espantoso, mas eu dormi. Phoenix segurou minha mão e não a soltou até eu levantar com o primeiro raio do sol que surgia, vermelho e dourado, sobre as montanhas do leste. Abri os olhos, e a primeira coisa que vi foi a luz cálida resplandecendo em seu rosto maravilhoso.

— É agora ou nunca — ele me lembrou, como se precisasse.

Saímos da casa como dois ladrões, descendo pela janela do quarto e pulando no carro. Sem dar a partida, tirei o carro da garagem e só fui virar a chave na ignição quando já estávamos longe da casa, indo para a Centennial e para a rodovia mais adiante.

— Esqueça a Estrada do pico, pegue a estrada alternativa para Forest Lake — Phoenix sugeriu. — Assim cortamos alguns quilômetros do nosso caminho.

— Sim, senhor! — As ruas estavam completamente vazias, e eu estava com os nervos à flor da pele, porque essa era nossa última chance de resolver a situação de Arizona. Pela primeira vez, a imagem de Kyle Keppler não me assustava, pois eu tinha Phoenix sentado ao meu lado. Precisamos chegar a Forest Lake antes que Kyle saia para o trabalho.

— E dessa vez não vamos nos preocupar se Sable vir você — decidiu. — Vamos pressionar esse cara até o fim, ele vai confessar.

— Você também vai? — quis confirmar.

— Estarei lá o tempo todo. Agora pise fundo. Rápido, Darina!

Passamos por entre montanhas escuras contornadas por uma luz vermelha e dourada, pela estrada de terra levantando uma nuvem de poeira, sem nenhum carro à vista.

Phoenix usava óculos escuros sentado ao meu lado, com o corte redondo da gola da camiseta fazendo um forte contraste ao V da jaqueta de couro semiaberta. Liguei o rádio e escutei uma música sertaneja do Oeste cantando sobre dizer um último adeus a quem se ama. A morte cruel vem e leva a garota. ―Diga adeus, Marianna está de partida, Diga adeus, Marianna foi embora‖. As palavras ―partida‖ e ―foi embora‖, repetidas tantas vezes no refrão, batiam forte no meu coração.

Então chegamos a Forest Lake, a cidade caipira que tenta viver da sua história, mal conseguindo se arrastar para dentro do século XXI.

Page 165: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

165

Pequenas casas de madeira margeavam a rodovia, carros batidos e caminhões estacionados a seu lado. As cortinas ainda estavam fechadas, um cervo vagava fora da floresta e pastava nas rampas de gramados desgastados. A única luz da cidade que estava acesa ficava embaixo do toldo do restaurante onde tomei um café e observei o cachorro malhado de marrom e branco.

— Estamos indo para a White Eagle Road — falei para Phoenix já tensa e segurando o volante com força. Tentei não pensar muito no que aconteceria para não perder a estribeira.

— Cuidado! Você passou no sinal vermelho! — ele avisou.

Para falar a verdade, eu nem vi nada. Agora já estávamos na rua certa, procurando a caminhonete de Kyle parada do lado de fora do número 505.

— Acha que é esta aqui. — Apontei para a casa com a cerca feia e a grama alta. Mas não havia caminhonete, nem cachorros, nem um sinal de vida.

— Ninguém em casa. — Phoenix examinou a casa deteriorada. — Como pode ser? Onde estão Sable e o bebê?

— Espere aqui. Vou lá bater na porta — disse a ele com o estômago borbulhando à medida que entrava no terreno. Procurei o carrinho de bebê, talvez uma roupa secando no varal, mas não encontrei. Bati com o nó dos dedos no vidro da porta, chamando a atenção de um cachorro no quintal do vizinho, só que de dentro do número 505 ninguém apareceu.

O labrador do vizinho pôs as patas sobre a cerca de madeira e pulou até que eu visse o focinho preto pontudo e os dentes arreganhados.

— Pelo amor de Deus, Troy, pare com esse barulho! — falou uma voz, e uma mulher com cara de intrometida apareceu na cerca. — O que você quer? — ela perguntou, não muito mais amigável que o cachorro.

— Vim ver Kyle — disse a ela. — É esta casa aqui, não?

— Não está — a mulher grunhiu. — É só olhar, não precisa ser muito esperta.

A vizinha dos Keppler foi até a entrada da garagem dela e esperou que eu me juntasse a ela. — Quem é ele, seu namorado? — ela quis saber, dando uma olhada em Phoenix, que tinha levantado a gola da jaqueta e olhava para o outro lado.

Confirmei.

— Aonde foram Kyle e Sable?

Page 166: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

166

— Por que eu ia saber? — A mulher estava desconfiada, e o cachorro continuava rosnando no quintal. — Quanto mais tempo ficarem longe, mais eu vou gostar. Talvez aí eu tenha um pouco de paz.

Fiz um esforço para parecer simpática.

— Festeiros, né?

— Bebem muito — reclamou. — Bebida demais com uma criança pequena para cuidar, não é certo.

— Fazem muito barulho?

— Gritam o tempo inteiro. — A mulher magra de cabelo descolorido ergueu os olhos para o céu. — Os cachorros latem e a criança chora a noite inteira. A noite passada foi a pior de todas... Pare com isso, Troy, estou tentando conversar!

O labrador corpulento nem tomou conhecimento do pedido. Resisti bravamente à trilha sonora dos latidos em alto volume.

— E então... Noite passada? — instiguei.

— Kyle chegou tarde em casa, completamente bêbado como sempre. O irmão dela apareceu também, tão fora de si que não conseguia andar em linha reta.

— Jon Jackson?

— Esse mesmo. Eles são camaradas de bebedeira e Deus sabe do que mais.

Eu podia ter dito a ela o motivo pelo qual eles chegaram bêbados na noite passada — para voltar de Foxton eles tiveram que passar em pelo menos três bares. Uma cerveja para anestesiar as dores de cabeça e do resto do corpo, outra para acalmar os pensamentos doidos a respeito de fantasmas e cadáveres. Porém, seria necessário mais que duas para superar aquilo que Hunter, Phoenix e Iceman tinham feito a eles. Portanto, ficaram para a terceira e a quarta.

— Fica na varanda dos fundos com o cachorro, então escuto tudo. — A mulher finalmente tinha a chance de desabafar. Parecia que havia dormido pouco e estava feliz de ter encontrado alguém que a escutasse. — Kyle tropeçou em alguma coisa jogada no quintal. Ficou bravo, resmungou, os cães começaram a latir, o bebê acordou e começou a chorar. Sable já estava de saco cheio, não é flor que se cheire, pode acreditar, e deu uma dura nele. O irmão dela defendeu Kyle. Pouco depois, a Terceira Guerra Mundial estourou a vinte metros de onde estou sentada.

— Espero que ninguém tenha se machucado — interrompi.

Page 167: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

167

A mulher deu de ombros. Ela deixou claro que a violência doméstica não está entre as coisas que considera como uma grave atitude antissocial.

— É o barulho que eu não consigo aguentar — suspirou. — Sable grita que foi a última vez que isso aconteceu, que vai pegar as coisas e levar o bebê para a casa da mãe dela.

— E ela fez isso?

A mulher sorriu e mostrou uma falha entre os dois dentes da frente.

— Com a caminhonete de Kyle. Isso ficou entalado na garganta dele. Sable saiu daí de uma vez por todas, e ele foi pela rua gritando para ela trazer o carro, os cachorros e o bebê dele de volta, ou ele a mataria. Que piada. E eu lhe disse que isso tudo foi depois da meia-noite?

— Parece que Sable já teve sua cota das trapalhadas de Kyle. O que os caras fizeram depois que ela foi embora?

— O que você acha? Beberam mais umas latas. Fiquei irada e soltei Troy em cima deles, mas Kyle chutou meu cachorro, e ouvi Jon dizer que entraria para pegar a espingarda dentro da casa. Eles riram da minha cara quando fui prender Troy.

— Jon trouxe a espingarda?

A vizinha franziu a testa.

— Não esperei para ver. Peguei o cachorro e o pus de volta no quintal. Ouvi mais umas pragas sendo rogadas e depois o som das motos. Olhei pela janela e eles já estavam no final da rua. Fim de papo.

Phoenix e eu voltamos bem rápido para Ellerton. Chegamos a Mike Motores por volta das nove e meia, dessa vez procurando pela Dyna preta e cromada de Kyle em vez da caminhonete vermelha.

— Cara, Kyle deve estar com a cabeça estourando! — Phoenix pensou alto na hora em que eu estacionava na rampa de concreto que dava para a oficina.

— É... E, ainda por cima, a mulher dele foi embora. Não estou esperando encontrar nada de bom por aqui.

— Isso se ele vier trabalhar.

Olhamos em volta, e não havia por perto nenhuma Harley estacionada.

— Tá, então vou entrar e descobrir sozinha — decidi.

Page 168: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

168

Dessa vez Phoenix não me deixou ir sozinha. Em vez disso, ele se concentrou no truque do desaparecimento, criando aquela aura luminosa ao redor de todo o corpo e, gradualmente, sumiu até ficar invisível.

— Estou bem do seu lado — prometeu.

Foi muito esquisito ouvir a voz e o som dos passos dele subindo a rampa comigo e ainda conseguir enxergar através dele.

— Ei — falei para um cara mais velho inclinado sobre o motor de uma Toyota azul. — Nós estamos... Eu estou procurando Kyle Keppler.

— Então somos dois. — Mike Hamill saiu de debaixo do capô e se endireitou. — Se você o vir antes de mim, pode dizer que ele não precisa mais voltar, porque este emprego ele já não tem mais.

Engasguei, tossindo ao inalar o cheiro de diesel junto com óleo de motor.

— Você o mandou embora? Desde quando?

— Desde as oito da manhã, quando ele não apareceu para trabalhar. — A voz de Hamill era monótona, dando a impressão de que Kyle já tinha passado dos limites por vezes demais. — Ele teve as chances dele, mas dessa vez jogou tudo para o alto.

— Ele tem família — observei. — O que vai acontecer a eles se Kyle não conseguir voltar ao trabalho?

Mike Hamill pegou um pedaço de estopa sujo de cima de um tambor de óleo e limpou as mãos. Ele tinha um bigode grande e escuro que o deixava mais velho e não combinava com as sobrancelhas e o cabelo grisalho. A calça jeans folgada e manchada fazia par com a camisa xadrez repuxada na altura da barriga flácida.

— Olhe — ele me disse — sei que isso não é da sua conta, mas a família de Kyle é o motivo pelo qual o mantive aqui por tanto tempo. Minha mulher é muito amiga da mãe de Sable, as duas me pressionaram para que eu continuasse com ele no emprego, blá-blá-blá, sabe como são as mulheres. Além disso, quando está sóbrio ele sabe consertar um motor de carro como ninguém.

— E alguém sabe onde ele está agora? — O relógio estava correndo, e o sumiço de Kyle foi mais um contratempo.

— Acho que dormindo e curtindo a maior ressaca. — Mike levantou o boné e coçou a testa com as costas da mão. — Estão dizendo que ontem à noite a bebedeira dele ficou fora de controle de novo. Minha mulher soube que Sable fez as malas e foi embora de uma vez por todas.

Page 169: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

169

Fiz uma bela cena.

— Meu Deus, que horror! A vida dele está sendo destruída!

— Um cara que bebe e apronta por aí assim, não dá outra. — Mike entrou numa salinha de escritório e sentou em uma cadeira giratória. Pegou o telefone e já ia discando.

— Quando você fala ―apronta por aí‖, você está querendo dizer com outras mulheres, no plural? — Dessa vez eu estava chocada de verdade, nem precisei fingir.

— Pelo menos meia dúzia — ele disse, apertando os olhos ao imaginar por que eu estaria tão interessada no ex-empregado da oficina. — Olhe, querida, se você é a atual encrenca de Kyle, saiba que é a última de uma fila comprida. Com o passar dos anos, Keppler fez a festa com quase toda a cidade de Ellerton.

— Eu não sou a última de nada... Eu não tenho nada a ver com ele! — Vamos esclarecer as coisas! Respirei fundo e tentei arrancar mais informações: — Então, mesmo depois de Sable ele continuou aprontando por aí?

Mike assobiou por entre os dentes.

— Mulher e filho não mudam um cara como Kyle, só que Sable não quis saber disso. Minha mulher, Karen, tentou avisá-la que ele estava pulando a cerca, um ano, um ano e meio atrás.

O dedo grosso apertava as teclas dos números no telefone. Tive tempo para apenas mais uma pergunta.

— Na mesma época em que Kyle estava com Arizona Taylor?

O dedo de Mike não terminou de discar. Ele olhou para mim sob as sobrancelhas, cheio de desconfiança.

— A menina que se afogou?

Confirmei.

— É, mesma época — ele falou vagarosamente.

— Ela era minha amiga.

Mike assobiou daquele jeito de novo.

— Bem, fico sentido por ela, era nova demais. Você ou quem quer que se importe com ela devia ter dito que Kyle era uma fria.

Page 170: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

170

— Eu não soube da ligação entre eles até que fosse tarde demais.

Ele voltou um ano e meio atrás no tempo, lembrando-se de Arizona.

— Coitada, ela poderia ter arranjado coisa melhor que Kyle Keppler. Lembro-me das vezes em que vinha até aqui tentando se fazer de durona. Na verdade, ela não era.

— Ela veio aqui na oficina no dia em que se afogou no lago?

O dedo de Mike preparou-se para discar novamente.

— Ela veio vários dias e, sim, ligou na manhã daquele dia. Ela ficou um pouco descontrolada quando descobriu que Kyle não estava aqui. Imagino que estivesse sarando da ressaca e da dor de cabeça de costume.

— Ele faltou ao trabalho? — Eu precisava ter mais que certeza.

— É. Por sorte eu não estava ocupado aquele dia. Mais tarde ficamos sabendo da notícia da menina Arizona.

— Valeu — agradeci, deixando o ar sair do meu pulmão num longo suspiro.

— Não era isso que queria ouvir, não é? — Mike Hamill era um cara correto e percebeu minha clara expressão de decepção. Mas ele errou feio quando me pôs no mesmo saco que Arizona, na categoria das traídas. — Kyle é bonitão e pega qualquer garota que quiser, mas é melhor você terminar isso aí que tem com ele.

— Eu não...

— Sinceramente, querida, ele não vale a pena. Não dá pra confiar no cara nem quando ele lhe diz que horas são.

O fato era que já passava das dez horas do nosso último dia, e não estávamos nem perto de achar Kyle. Virei para onde achava que Phoenix estivesse e disse a ele que não tínhamos chegado a lugar nenhum.

Ele respondeu de um ponto bem mais à frente.

— Aprendemos muita coisa com Mike Hamill — ele salientou. — Para começar, sabemos que Kyle e Arizona não tinham combinado de se encontrar no Hartmann.

— Então estamos muito pior do que ter chegado a lugar nenhum — resmunguei. — Só tínhamos essa única teoria, que agora foi por água abaixo.

Page 171: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

171

Um homem que passava por ali me viu falando aparentemente sozinha enquanto entrava no carro. Ele me lançou um olhar estranho e pegou o celular.

Ao ouvir Phoenix sentar no banco do passageiro, saí dirigindo com pressa.

— Preferia não ter sabido que Kyle é um traidor compulsivo.

— É, é uma droga.

Ambos ficamos pensando no que essa notícia faria a Arizona.

— Devemos contar pra ela? — perguntei.

— É difícil dizer. Acho que não precisamos falar, a menos que faça parte da solução do caso.

— Que não estamos nem perto de descobrir — A frustração me perturbava enquanto dirigia em direção ao centro da cidade sem saber o motivo.

— Keppler pode estar em qualquer canto. Como vamos encurralá-lo se nem sabemos onde ele está?

Parei em um semáforo vermelho de travessia para pedestres. Entre as pessoas que atravessavam, estava uma mulher empurrando um carrinho de bebê. Demorei alguns segundos para reconhecê-la como sendo Sable Keppler e o bebê!

— Encoste o carro — Phoenix disse, depois de ter tido a mesma reação lenta que tive.

Entrei em um posto de gasolina, e observamos Sable encontrar-se com uma mulher que parecia uma versão mais velha dela própria — o mesmo cabelo escuro e a linha de contorno do rosto bem definida. Pequenas e magras, ambas vestiam jeans apertados e jaquetas largas que chamavam atenção para as pernas finas como gambitos, além de echarpes listradas em volta do pescoço. Juntaram-se na calçada, firmemente engajadas na conversa.

— Quero ouvir o que estão dizendo. — Decidida a me arriscar saindo do carro, atravessei a rua como se fosse conferir a vitrine de uma loja. Um barulho de couro rangendo e passos leves indicavam que Phoenix vinha comigo.

A loja vendia varas de pescar, que são tão fascinantes quanto se pode imaginar. Tentei parecer interessada nos carretéis e iscas artificiais.

— Comprei fraldas descartáveis. — A mulher que imaginei ser a mãe de Sable carregava uma sacola plástica. — Precisamos do que mais?

Page 172: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

172

— Deixei a tigelinha e a caneca preferidas de Mischa lá na casa. — Sable fez uma lista. — Além disso, preciso de lenços umedecidos e chupetas.

— Tá, então nos encontramos na farmácia a caminho de casa. Podemos comprar isso tudo lá. Kyle tentou ligar?

— Cinco ou seis vezes. Deixei tocar até parar.

— Cedo ou tarde você vai ter que falar com ele. — A mãe de Sable pegou o carrinho e começou a empurrá-lo para o estacionamento. Preso dentro do carrinho, o bebê se contorcia para ver se Sable estava indo com eles.

— Hoje não — Sable teimou, pegando o celular do bolso e desligando-o.

Esperei que andassem um pouco mais e passei a segui-las. Era muito ruim estar testemunhando a destruição da família de Kyle, até este momento a esposa e o bebê não pareciam reais. Mas aí estava Sable, o rosto corado por causa do vento frio, a boca fazendo uma curva para baixo. E o bebezinho tinha um nome — Mischa. Era uma menininha linda de cabelo escuro e cacheado.

— Escute, Sable, liguei para seu irmão — a mãe de Sable admitiu quando chegaram ao carro.

— Você não deveria ter feito isso. — Sable ficou brava. Tirou Mischa do carrinho e a prendeu na cadeirinha do carro, para depois dobrar o carrinho com muita força e arremessá-lo no porta-malas.

— Eu estava preocupada com ele. — A mulher mais velha ficou segurando a porta do motorista, tentando justificar seus atos. — Se ele estava fora de si de tão bêbado como você disse, ele poderia ter batido a moto, saído da estrada, qualquer coisa assim.

— E você acha que eu dou a mínima? — Sable inclinou-se para conferir as presilhas da cadeirinha de Mischa. — Jon e Kyle são iguais.

— Mas Sable, Jon é seu irmão e ele a ama. Ele queria conversar com você. Eu disse a ele para vir até a cidade.

— Você não contou a ele onde estou, contou? — Sable afastou-se do carro e, em seguida, voltou a toda. — Escute aqui, mãe, eu não quero conversar com Jon, nem agora, nem nunca mais. Ele pode ser meu irmão, mas é um fracassado, tá entendido?

— Filhinha, escute...

Page 173: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

173

— Não, escute você. Quer que eu veja seu filho? Tá certo, você fica aqui e eu vou falar com ele. Mas você vai me dar a chave do carro e me deixar dirigir. — Sable apanhou a chave e entrou no carro.

A mãe dela tentou pôr a cabeça pela janela.

— Onde eu encontro você?

Sable respirou fundo e procurou se acalmar.

— Mischa está cansada. Vou levá-la para sua casa e fazê-la dormir. Para onde mais eu iria?

E o que mais Phoenix e eu poderíamos fazer senão seguir Sable? Corremos de volta para o carro e saímos a tempo de ver Sable entrando numa rua menor que levava à rodovia. Aqui, na Rua Daler, as casas eram um pouco afastadas da via e bem espaçadas entre si, um pouco maiores e mais ajeitadas que na White Eagle Road. Algumas tinham sido pintadas em tons pastel de azul e amarelo, com as varandas brancas e flores crescendo nos jardins. Sable parou na garagem de uma casa de cumeeira cinza que precisava de reforma.

Encostei o carro na calçada e observei Sable tirar o bebê do carro, ouvindo os cachorros latir de dentro da casa.

— Isso aqui está uma balbúrdia — lamentei.

Ao meu lado, Phoenix materializou-se num círculo luminoso. Ele aparentava estar tenso e com dúvidas.

— Está complicado — concordou. — Essas pessoas, Sable e Mischa, não merecem ter a vida destruída.

— Por nós. — Vislumbrei o que acontecia a essa família se nós provássemos que Kyle havia matado Arizona. Daí, tentei olhar por outro ângulo. — Ei, eles já estão fazendo um bom trabalho em destruir a própria vida.

— E Arizona merece justiça. — Phoenix também conseguiu enxergar de outro modo. — Então vamos em frente?

Assenti.

— Vamos descobrir quem levou Arizona ao Hartmann e por quê.

Os acontecimentos se desenrolaram assim: Jon Jackson encontrou a mãe no centro pouco depois de Sable ter saído com Mischa e não demorou muito para descobrir onde a irmã estava. Cinco minutos depois da chegada de Sable à casa da mãe, Jon apareceu na Softtail preta e lustrosa.

Page 174: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

174

Phoenix e eu continuávamos no carro discutindo estratégias.

Vimos Jon ir direto à porta da frente e gritar por Sable. Como não teve resposta, ele invadiu a casa. Depois de alguns segundos ele, Sable e dois pastores alemães surgiram na varanda da frente da casa.

Meu carro não estava parado perto o suficiente para que eu escutasse aquilo que os irmãos estavam falando, por isso fiquei dependendo de Phoenix.

— Ela disse que não quer falar com ele — ele relatou. — Ela está dizendo para ele dar o fora.

Assisti a Sable encarar o irmão assustador dela bem de perto. Ele era moreno como ela, com sobrancelhas grossas e uma boca carrancuda. A altura dela só chegava à do peito dele, no qual ela batia os dedos a cada palavra que dizia.

— Ela está dizendo a ele que a história dela e de Kyle já terminou. Ele está pedindo outra chance. Tem também um monte de xingamentos das duas partes.

— Vou até mais perto da casa?

— Um pouco. Agora Jon disse que está do lado dela, mais do que ela pode imaginar.

— O que isso significa? — Pude perceber que havia uma relação intensa entre os irmãos e, agora mais perto, tive condições de ouvir por mim mesma.

— Kyle fez algumas coisas, sabemos disso — Jon insistiu. — Mas ele aprendeu a lição.

Sable deu uma risada cínica.

— Então o episódio da noite passada, você chama aquilo de aprender uma lição?

— Fomos até Foxton com um monte de caras — Jon tentou explicar. — Você acredita em fantasmas, Sable? Não, eu também não acreditava até ver o que vi lá naquela serra. Você ouviu os boatos sobre os garotos mortos voltarem para assombrar o lugar? É tudo verdade.

— A verdade da cachaça! — ela zombou e o jogou para fora da varanda. — Bem, você e Kyle, os dois podem detonar a cabeça e fantasiar sobre fantasmas o quanto quiserem. Vá embora agora, Jon, e diga a Kyle para não aparecer mais aqui.

Page 175: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

175

Tarde demais — já tinha havido comunicação entre Jon e Kyle, que veio roncando o motor da Dyna pela Rua Daler no momento em que Sable dizia a fala da ―verdade da cachaça‖.

A aparição me deixou pregada no banco de couro creme do carro onde eu estava e fez Phoenix realizar mais uma vez seu ato de desaparecimento.

Claro que Kyle Keppler me viu e quase arrancou a porta do carro. Ele não gritou — só me lançou um olhar de completo ódio e falou calmamente para que eu saísse do carro, o que foi mais assustador para mim do que a violência típica.

Os cachorros se aproximaram da cerca, rosnando. Na porta da frente, Sable esmurrava o peito do irmão.

Permaneci no limite entre a grama alta e o cascalho, tremendo de medo.

— Qual é a parada? — Kyle perguntou, pegando-me pelo pulso e puxando-me pela rua.

Atrás de nós, ouviam-se os passos de Phoenix pela grama seca. Nossos pés esmagavam as pedrinhas.

— Você está pensando em contar para minha esposa sobre mim e a garota morta? Porque se você abrir a boca e disser esse nome, você é quem vai estar morta.

— Por que eu contaria? — Usei toda a minha força para tentar me soltar dele, a pele do pulso queimava pelo esforço. — Arizona já partiu. Nada vai mudar isso.

— Então pare de meter o nariz onde não é chamada. — Por fim, ele me soltou. — Você está prestes a dar meia-volta e entrar no carro. Eu estou prestes a pedir desculpa a Sable e continuar com minha vida.

A arrogância dele me deixou com raiva.

— Vai precisar de muito mais que desculpas — disse a ele. — Além disso, você perdeu o emprego. Mike Hamill falou para avisá-lo.

Alguns nervos saltaram da mandíbula de Keppler. Ele fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Mais um segundo e eu acho que ele teria me surrado com aquele punho descomunal.

Mas Jon Jackson interveio, carregando uma espingarda. Ele mirou bem em mim.

Page 176: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

176

Encarei o cano longo e pensei tranquila: Então é assim que vai ser. Meus últimos instantes alongando-se em câmera lenta: a grama amarela mexendo na beira da rua, um avião deixando um rastro branco no céu de um azul muito vivo.

Quando Phoenix, Hunter e Arizona materializaram-se de repente, pensei: Então... Agora não, não desse jeito.

Hunter andou entre mim e Jackson, pegou o cano da arma e o inclinou num ângulo de quarenta e cinco graus.

Jackson e Kyle partiram em disparada para cima de Hunter, mas Phoenix derrubou os dois. Eles se espatifaram na grama seca, e a espingarda caiu fora do alcance deles.

Olhei para Arizona. A decepção que havia nos olhos dela vendo seu amor espichado no chão era profunda como o oceano.

— Não consegui nada dele — choraminguei. — Eu tentei, vocês têm de acreditar.

— Então Keppler escolheu o caminho mais difícil. Ele vai viajar no tempo — Hunter falou severamente. — Não pense que chegamos ao fim da linha, Arizona. Ainda há uma coisa que podemos fazer.

Page 177: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

177

Quando se viaja no tempo a dor é indescritível — muito maior que aquela causada pela lavagem cerebral zumbi usada para apagar a memória.

Uma energia opressora nos invade e torce todos os músculos e tendões. A dor se concentra entre as espáduas, uma sensação de que estamos sendo queimados e rasgados até olharmos para trás e vermos nosso lindo par de asas de anjo que se abrem, fecham e sentem o vento roçar nas penas branquíssimas.

Hunter, eu, Arizona, Kyle e Jon Jackson viajamos até exatamente um ano e sete dias atrás para rever a verdade por trás do mistério sobre a morte de Arizona.

Poder-se-ia dizer que voamos pelo ar tempestuoso, exceto pelo fato de que há uma força que rodopia tragando-nos, um tipo de túnel do tempo que nos suga tanto a ponto de as asas não funcionarem até que se saia do outro lado e estejamos de volta ao momento decisivo no lago Hartmann, flutuando acima do solo e assistindo aos atos.

O Hartmann durante o outono — nossa última trincheira, o derradeiro ataque em busca da verdade. O chão continuava congelado, apesar de passar do meio-dia e uma camada fina de gelo se formar na superfície da água.

E a água — com clareza e suavidades deslumbrantes — estava de um azul-esverdeado sem fim. Na margem mais distante, um morro coberto de choupos dourados se elevava até a vereda de pedras. Eu sei, tudo podia estar num folheto de agência de viagens.

Visite as intocadas Montanhas Rochosas. Veja a Natureza em todo o seu esplendor.

E agora calcule o poder de Hunter, mantendo-nos a todos dentro de uma fenda no tempo e fazendo-nos testemunhas oculares dos acontecimentos.

Page 178: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

178

— Esta é a última vez — Kyle diz a ela. — Estou prestes a me casar com minha namorada, então vamos ter esta única conversa antes disso e ponto final.

Arizona está sofrendo. Está muito branca e com profundas olheiras escuras.

— Está me escutando? — Kyle segura o braço dela e a puxa da caminhonete. — Não me ligue mais, não chegue perto da Mike Motores, entendido?

— Quem falou para você? — A voz fraca dela pertence a outra pessoa, não à Arizona orgulhosa e cheia de brios que eu conhecia.

— Eu sei e pronto!

Entre o grupo de observadores invisíveis com asas de anjo, Kyle e Jon entraram em pânico e tiveram vontade de se libertar. Viraram em direção ao lago na tentativa de voar, só que Hunter, usando uma tempestade de asas invisíveis para segurá-los, não deixou.

— Então foi para isso que você me chamou, para me trazer aqui e dizer que não quer mais me ver? —Era a Arizona antes de ser zumbi argumentando pela última vez. — Não acredito em você, Kyle. Já tentou antes, mas eu sei que não consegue me largar.

Voltando ao meu ponto de vista privilegiado o que se podia ver? Duas figuras pequenas e uma caminhonete vermelha no vazio da mata, a geada outonal nas árvores e um cara prestes a perder o controle.

— É melhor acreditar em mim, Arizona, vou me casar com Sable. Eu e você, nós nos divertimos, mas acabou.

A Arizona vive reage como se ele tivesse lhe dado um tapa na cara.

— Nos divertimos? — Ela não consegue entender a expressão. — É isso o que fui para você? E o que me diz das coisas pessoas que me contou, sobre você ser solitário, um garoto perdido que passava dias inteiros aqui à beira do lago sozinho, sobre não se adequar, detestar a família e a necessidade de se libertar?

Kyle dá de ombros.

— Era verdade.

— E para onde foi esse cara que eu amava? De onde veio esse outro que não entendo? — Ela faz uma tentativa de colocar os braços ao redor do pescoço dele, mas ele a afasta.

— Tudo mudou — resmunga. —Temos que seguir adiante.

— E se eu disser não? O que acontece se eu falar com Sable?

Page 179: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

179

Ao meu lado, a Arizona com asas de anjo cobre o rosto de vergonha.

Foi o que faltava para Kyle se descontrolar.

— Tente, Arizona, e você vai morrer.

Morrer — cai como uma pedra dentro d’água, em ondas crescentes.

— Você não pode me impedir — ela contesta. — Sou uma pessoa. Tenho direitos como todo mundo. Você não pode me trancar num armário como se eu nunca tivesse existido.

Ele é cruel — absolutamente cruel.

— Você nunca existiu para mim, no fundo, não — revela com desdém. — Comparada a alguém de verdade como Sable, que fala a minha língua, você não é nada, só uma criança mimada que chora para conseguir as coisas do seu jeito. Quando é que você precisou levantar um dedo para ter aquilo que quis?

— Você acha isso? — Pelo menos ela devolve a agressão. — Você imagina que eu estalo os dedos e as pessoas vêm correndo? Ah, você me conhece e muito!

— Uma criancinha rica e mimada, tão cheia de si que não dá para acreditar. — Ele a empurra para longe da caminhonete, saindo debaixo das sequoias sombrias. Agora eles estão num penhasco rochoso que avança sobre o lago. — Espere até ver quem eu trouxe comigo, aí você vai saber que estou falando sério.

Outra tempestade de asas me disse que Kyle e Jon estavam lutando com Hunter novamente sem conseguir escapar. Ele os segurou bem onde estavam e os forçou a olhar para baixo, para o que acontecia havia um ano.

— Estamos sozinhos aqui — Arizona exclama, olhando em volta descontroladamente. — O que quer dizer? Quem você trouxe?

— Certo, Jon — Kyle fala, mantendo a voz totalmente impassível. —Está na hora.

E Jon Jackson, vestido com uma camiseta preta e calça jeans, sai de trás de uma rocha. Ele não está sozinho, tem Raven consigo.

O irmão desnorteado de Arizona não tem ideia de onde esteja nem do motivo de estar ali. Está apavorado. A Arizona viva está tão aturdida que não emite som algum. A Arizona Beautiful Dead tapa a boca com a mão, horrorizada como um pequeno animal diante de um predador que dá tapinhas na presa antes de desembainhar as garras.

Page 180: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

180

Raven encolhe-se indefeso ao lado de Jackson.

— Fácil, né? — Jackson vangloria-se. — Eu o encontrei perto do lago na escola, não havia ninguém por perto. Colocá-lo na minha caminhonete não foi difícil, ele não pesa mais que trinta quilos.

Arizona corre em direção ao irmão. Ela só consegue dar alguns passos antes que Kyle obstrua seu caminho. Ela tropeça e escorrega para perto da borda do penhasco.

Raven a vê e faz sua própria investida para chegar a ela, antes de ser interceptado por Jackson.

— Eu confiei em você. Por que fui fazer isso? — Arizona está em pedaços por causa do choque, do medo e da desilusão. Kyle continua em pé perto dela. — Nunca na minha vida eu falei de Raven para quem quer que fosse, a não ser você. Kyle, não faça isso com ele, solte-o.

Raven luta contra Jackson. Ele é fraco e sem coordenação, braços e pernas sem muito controle. Jamais na minha vida vi algo tão triste — nunca mesmo.

— Solte-o! — Arizona grita.

O pânico dela chega até Raven. Ele bate os braços franzinos no peito de Jackson. Por um segundo penso que ele vai conseguir escapar, mas aí Jackson faz com que ele se vire e segura os bracinhos atrás das costas do menino, levantando-o antes de jogá-lo no chão ao pé de uma árvore.

Kyle parece não gostar dessa violência que se instala. Ele vira as costas e dá um passo.

Então é a vez de Jackson incrementar as ameaças:

— Chegue a um quilômetro de distância da minha irmã e isso vai acontecer de novo — ele avisa Arizona, apontando para Raven com o polegar e indo para perto dela. — Posso apanhá-lo na escola a qualquer hora e fazer o que quiser com ele, está ouvindo?

— Ei, eu disse para soltá-lo — Arizona implora.

Raven segura os joelhos junto ao peito e começa a balançar para frente e para trás.

Jackson permanece entre Arizona e o irmão.

— Não até você jurar que não vai se aproximar de Kyle ou da minha irmã.

Ela sacode a cabeça desesperadamente.

Page 181: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

181

— Sua ideia era essa? — ela questiona Keppler, que ainda se mantém de costas para eles.

— Não o culpe. Eu é que pensei em raptar o garoto — mais uma vez Jackson conta vantagem. — E é melhor você acreditar, vou machucá-lo de for preciso.

Raven está chorando. Arizona consegue passar por Jackson, caí de joelhos e coloca os braços em torno do irmão.

— Tá tudo bem, querido — ela sussurra. — Vai ficar tudo bem.

Contudo, não ficou e nunca ficaria. Meu coração quase parou enquanto presenciava essa cena com Hunter, Arizona, Kyle e Jackson, todos com suas asas de anjo.

A Arizona Beautiful Dead foi para mais perto do ex-namorado, para confrontá-lo.

— Você estava maluco? Faz alguma ideia do mal que causaria a meu irmão raptando-o?

Kyle não conseguia encará-la.

— Você não me daria ouvidos — ele balbuciou. — Jon e eu tivemos de pensar em algo para fazer você ficar quieta.

— Você e outra meia dúzia de meninas — Jackson alfinetou. —É, Arizona, você não era a única.

Talvez ficasse menos magoada se ele tivesse enfiado uma faca no coração dela... Numa única frase ele aniquilou os cacos dos sonhos que restavam.

— É verdade? — ela perguntou ao Kyle de asas com aquela voz de menininha, como uma súplica.

Mas coisas do ano passado voltam a acontecer no lago. Raven se desvencilha da irmã, levanta-se e começa a correr. Dessa vez ele vai em direção aos pinheiros altos, ao invés da pedra do penhasco, e some dentro das sombras. Kyle está mais perto e corre atrás dele.

Arizona o chama.

— Raven, não corra, fique comigo!

Quando tenta seguir o irmão, Jon Jackson pega pesado com ela — que o empurra para o lado com toda a sua força. Ele perde o equilíbrio e quase escorrega para dentro do lago.

Page 182: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

182

Mas consegue agarrar uma muda de choupo e se segurar. Depois de conseguir se apoiar, ele surge outra vez na beirada da pedra e avança contra Arizona, que tenta chutá-lo de volta para onde estava. Ela usa os pés para atacar, completamente ensandecida. Não é uma disputa justa — Jackson tem quase o dobro do tamanho e da força dela.

Ele a empurra, apertando-a contra o tronco da árvore onde Raven havia ficado encolhido e apavorado. É quase possível ouvir sua falta de ar à medida que ele a esmaga na superfície áspera. Ela levanta os braços para se defender dele, mas ele logo põe as mãos no pescoço dela e a sacode como uma boneca de pano, batendo Arizona na árvore uma, duas, três vezes. Ela para de se debater, ele a solta e a vê escorregar até o chão.

Arizona fica lá estendida por uns cinco segundos, uma eternidade. Jackson hesita, inclina-se sobre ela como se procurasse sinais de vida e, como não os encontra, dá um passo atrás. Ele olha por cima do ombro, perguntando-se aonde Kyle e Raven teriam ido. Não há nem vestígio deles. Ele cutuca o corpo de Arizona com o pé, e ela não reage.

Ela continua deitada de costas sobre uma pedra de granito, a cabeça fazendo um ângulo e os braços abertos.

Então, do mesmo modo que um caçador que abateu um cervo faria, Jackson levanta Arizona e a joga por cima dos ombros, carregando-a até a beira da rocha. Ele inclina o tronco para frente e a deixa escorregar e cair não muito longe da encosta da laje natural e o corpo vai batendo na pedra durante a descida até mergulhar no lago fazendo barulho.

Talvez o contato com a água gelada a tenha reanimado. Por um curto momento Arizona volta à vida, mexe os braços e se esforça para chegar à margem. Ela não se entrega à morte sem lutar.

Agora Jackson está na água — ela pula de cima da pedra já conseguindo pegar Arizona. Facilmente, ele a domina e a arrasta para longe do raso, parecendo um monstro negro do mar que se eleva das águas, com o cabelo escorrido para trás e grudado no crânio, e as mãos na garganta de Arizona. Ele segura o rosto dela debaixo d’água até que não reste vida nenhuma em seu corpo. Ele a mantém lá até que esteja morta.

Em seguida, a criatura obscura se arrasta até a areia. Mais pelo meio do lago, o corpo de Arizona sobe à superfície — os braços esticados e o cabelo longo brotando do rosto alvo como se fossem algas. Os olhos sem expressão fitam o céu.

Estávamos errados. Todos nós estávamos errados, o tempo todo. Arizona não se matou, e tampouco havia sido Kyle Keppler. Hunter, o mestre, mantinha

Page 183: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

183

o culpado na cena do crime usando a força do seu pensamento. Ele nos dava um tempo que parecia não ter fim para encararmos Jon Jackson.

Kyle desfez o silêncio.

— Você me disse que tinha sido um acidente.

Jackson negou.

— Você acreditou no que quis acreditar.

— Você me disse claramente que Arizona caiu e bateu a cabeça.

— Que diferença faz? O seu problema desapareceu, fim de papo. — Se Jackson sentia remorso pelo que fez, conseguia esconder bem. — Eu tirei você de lá sem que ninguém nos visse, não foi? Fui eu quem salvou sua pele.

Eu ainda observava o cadáver de Arizona boiando, a superfície brilhante do lago e seu olhar morto.

A Arizona Beautiful Dead estava ao meu lado. Vimos o Kyle de o ano passado surgir do meio das árvores com Raven e assistimos à sua reação de choque quando enxergou o corpo no lago.

— Você a matou — o Kyle com asas de anjo disse com a voz sem emoção alguma.

— Preparem-se para partir — Hunter falou a todos. — Já vimos o que precisávamos ver.

Page 184: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

184

Viajamos mais rápido do que se pode imaginar, impulsionados pelo vento e flutuando entre milhões de asas. Rodamos em um túnel do tempo, sentimos o vazio do olhar de incontáveis crânios girando no escuro sobre nós. Arizona nos guiou em nossa volta ao presente, ao mato que beirava a Rua Daler.

— Qual é a parada? — Kyle perguntou, pegando-me pelo pulso e puxando-me pela rua. — Você está pensando em contar para minha mulher sobre mim e a menina morta? Porque se você abrir a boca e disser esse nome, você é quem vai estar morta.

— Por que eu contaria? — Usei toda a minha força para tentar me soltar dele — a pele do pulso queimava pelo esforço. — Arizona já partiu. Nada vai mudar isso.

— Então pare de meter o nariz onde não é chamada. — Por fim, ele me soltou. — Você está prestes a dar meia-volta e entrar no carro. Eu estou prestes a pedir desculpa a Sable e continuar com minha vida.

A arrogância dele me deixou com raiva.

— Vai precisar de muito mais que desculpas — disse a ele. — Além disso, você perdeu o emprego. Mike Hamill falou para avisá-lo.

Alguns nervos saltaram da mandíbula de Keppler. Ele fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Mais um segundo e eu acho que ele teria me surrado com aquele punho descomunal.

Mas Jon Jackson interveio, carregando uma espingarda. Mirou bem em mim. Encarei o cano longo e pensei tranquila: Então é assim que vai ser. Meus últimos instantes alongando-se em câmera lenta: a grama amarela mexendo na beira da rua, um avião deixando um rastro branco no céu de um azul muito vivo.

Page 185: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

185

Sabendo o que o cunhado havia feito no Hartmann, Kyle parou entre mim e Jackson, segurou a arma com força e a arrancou das mãos dele, virando a espingarda ao contrário e apertando o cano contra o peito do cunhado.

— Kyle, não faça isso. Não acredito em você! — Jackson engasgou. Mas ele estava com medo, dava para ver e até sentir o cheiro do medo, como dizem que dá.

Keppler foi empurrando-o pela rua, com a arma ainda no peito. Hunter manteve Arizona e eu imóveis onde estávamos.

— Kyle, você viu como Arizona agiu, ela parecia um bicho selvagem. O que mais eu podia fazer?

É horrível ouvir um cara implorando pela própria vida e não sentir compaixão nenhuma. Admito que eu também queria que Kyle puxasse o gatilho.

— Você disse que ela se afogou. — Kyle não escutava Jackson, ele ainda tinha na cabeça as imagens do cunhado batendo Arizona contra a árvore, carregando-a até a beira do lago e jogando-a dentro d’água — para primeiro bater nas pedras e depois afundar.

— Aconteceu assim — eu não planejei nada. Nós dois levamos o menino para a cidade e o largamos lá sem que ninguém nos visse, não foi? Conseguimos escapar.

Sabe Deus como deve ser a sensação de vazio e impotência quando se tem o aço mortal pressionado ao coração, as palavras saírem da boca sabendo que são só um desperdício daquele último fôlego.

Kyle estava de costas para mim, Hunter e Arizona. Não vimos o rosto dele quando apertou o gatilho. O som fez a vizinhança sair às portas, parando o trânsito que ia e vinha da rodovia.

De certo modo, o tiro deu um fim a tudo. De outro, não.

Pessoalmente, nunca vou me esquecer do estouro que saiu da espingarda e foi capaz de fazer os carros parar, e do jeito que ele ecoou por toda Rua Daler. Está bem vivo na minha mente e na de todos que o ouviram.

Jon Jackson cambaleou, os joelhos dobraram e ele caiu sobre as costas. Keppler jogou a arma de lado.

Qualquer pessoa que visse acharia bizarra a reação seguinte do assassino. Via-se que ele se contorcia como se sentisse dor, balançava em pé para frente e para trás e tentava virar-se num esforço de fugir da cena, mas percebia-se

Page 186: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

186

também que suas pernas não respondiam e a expressão do rosto dele estava congelada numa máscara de agonia. Ele girou sobre o próprio eixo e quase caiu sobre o homem morto, mas recuperou o equilíbrio a tempo.

Apenas Arizona, Phoenix e eu sabíamos que aquilo era trabalho de Hunter. Vimos como ele apagava a memória da sua vítima sobre a viagem ao lago Hartmann para um ano e sete dias atrás no tempo.

Agora ele nunca saberia por que atirou em Jackson. Não é uma loucura?

Os psiquiatras descreveriam a situação como uma raiva imensurável, possivelmente alimentada pelo abuso do álcool e uma rusga secreta com Jackson que Kyle se recusava a revelar. Poderiam tachá-lo de psicótico — incapaz de reconhecer as consequências de seus atos — e oferecer-lhe tratamento psiquiátrico enquanto estivesse cumprindo pena.

As sirenes soaram. Arizona, Hunter, Phoenix e eu ainda tínhamos nossas asas. Levitamos sobre as casas, assistindo aos policiais registrar o flagrante e levar Keppler embora.

Hunter permitiu que Arizona fizesse uma última visita a seu querido Raven.

Ele nos transportou — ela e eu — da Rua Daler até a casa estilo Mountain Living dos Taylor, para que Arizona pudesse ver por ela mesma que tudo se encaminhava.

Fui eu quem bateu à porta do número 2.850 da Rua 22 Norte, já sem asas e com Arizona invisível na minha cola.

Para minha surpresa, Peter Hall foi quem me fez entrar.

— Como foi que deixaram você voltar? — perguntei.

— Um milagre. Allyson sofreu uma profunda transformação em seus sentimentos. — Ele cruzou o longo lobby comigo, ostentando um sorriso amarelo. — Frank também está aqui. Além disso, as fotografias de Arizona não estão mais guardadas.

De fato, o rosto incrivelmente fotogênico dela aparecia em molduras de aço escovado, e um retrato em tamanho natural estava pendurado em cima da lareira.

Durante seus últimos instantes na Terra, minha amiga Beautiful Dead respirava ofegante e andava silenciosamente atrás de mim.

— E então, eles vão mesmo vender a casa e se mudar? — quis saber.

Page 187: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

187

Justamente nesse momento, Allyson e Frank surgiram da sala de música. Eu gostaria de falar que também ali havia acontecido uma transformação — que estavam felizes e relaxados, com sorrisos calorosos e uma luz acolhedora nos olhos. Mas não — ambos pareciam exaustos, sem forças, indecisos e confusos.

Allyson deu continuidade ao assunto.

— Tudo está sendo discutido — ela me disse. — A casa, nosso casamento, tudo.

Pelo menos eles estavam conversando — e, para mim, isso era outro milagre.

— Raven é nosso foco — Allyson insistiu. — Ele já passou por muita coisa. Sentimos que devemos dar a ele mais estabilidade, seguir a rotina dele, cercá-lo de objetos familiares.

— E de gente — Frank acrescentou. — Minha esposa disse que você veio visitá-lo e que ele parece ter formado um tipo de vínculo.

Allyson esboçou um sorriso.

— Literalmente — ela recordou. — Raven segurou a jaqueta de Darina, e não havia nada que o fizesse soltar.

— Por isso, ficaremos contentes se quiser aparecer sempre que tiver vontade de nos visitar. — Frank nos conduziu até o fundo da casa, a um grande jardim todo arborizado que tinha uma vista fenomenal, bem distante do pico Amos.

Olhei para Raven sentado à sombra de um choupo com a jaqueta azul-escura fechada até o queixo. Por um segundo, fiquei nervosa ao sentir Arizona sair do meu lado e ir em direção a ele.

Ela deve ter tocado o rosto dele. Vi ele levar a mão na bochecha e tentar tirar alguma coisa — uma, duas, três vezes.

— Raven, a amiga de Arizona veio vê-lo — Allyson falou para ele.

Ele piscou e virou a cabeça em movimentos convulsivos em minha direção. Demorou um pouco, mas ele me ligou a um lugar da sua memória onde eu parecia fazer sentido. Ele se levantou e veio até mim.

— Ei — eu disse.

Ele piscou novamente. Num movimento lento, colocou a mão no bolso e tirou um pedaço de papel dobrado com muito cuidado para me dar.

Desdobrei o papel. Veja, quis falar para Arizona — é o retrato que ele fez de você! Segurei o desenho com as mãos tremendo.

Page 188: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

188

Nossa, como se agitaram e sacudiram aquelas folhas de choupo — o suspiro de Arizona parecia ser o de um coração realmente partido. Pelo menos ela soube que os pais não estavam a ponto de trancar o irmão num lugar qualquer e jogar a chave fora.

Daí Raven nos levou de volta para dentro da casa, pegou minha mão e mostrou as fotografias da irmã, novamente nas mesas e estantes. Ficamos um bom tempo vendo aquela pendurada acima da lareira. Era a imagem de algo incomum — Arizona sorrindo. É, de verdade. O cabelo sedoso, escuro e perfeito, usando uma gargantilha de prata junto com brincos grandes de argola. E ela estava feliz.

— Legal — disse a Raven.

Haviam me dito que o cérebro dele não era capaz de identificar expressões faciais, mas não me convenceram.

Ali em pé, vendo o retrato com a Arizona invisível ao lado, eu poderia dizer que Raven sabia totalmente o que aquele sorriso significava. Que vinha do coração da irmã dele e que estaria lá sempre que ele cruzasse o lobby e olhasse nos impressionantes olhos verdes e amendoados.

— Você conseguiu a justiça e a liberdade — Hunter falou a Arizona. — Mas ninguém prometeu que o gosto não seria amargo.

Ele nos permitiu alguns momentos em Foxton antes de Arizona partir de vez.

Os Beautiful Dead se reuniram no celeiro. Pareciam precisar da segurança e do abrigo oferecidos pela construção sombria.

Eve e Donna ficaram bem ao lado de Arizona, e Summer segurava sua mão. Junto a Phoenix, completamente calado, eu me senti triste e decepcionada por ela.

Arizona pendeu a cabeça para trás.

— Lá no Hartmann vi a mim mesma como realmente era — corroída pelo ciúme, egoísta, burra...

— Um ser humano — Hunter disse sem julgamentos e saindo do celeiro.

A porta fechou e me perguntei quando o veria novamente.

— Hunter está certo — Summer concordou. — Todos já agimos daquele modo.

— Coloquei a vida de Raven em perigo. Estava tão carente... Detesto isso.

Page 189: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

189

Não — pensei. Não se martirize assim.

Phoenix leu minha mente e gesticulou para os outros nos deixarem a sós.

— Estarei por perto — ele me sussurrou ao sair também. Logo o celeiro ficou vazio, a não ser por mim e Arizona. Permanecemos nas sombras frias, eu tentando me esgueirar pela barreira de ódio por si mesma que Arizona havia construído mais uma vez.

— Estou planejando visitar Raven de novo, talvez amanhã — falei baixinho. — Vou levar umas imagens novas de Warhol para ele dar uma olhada. — Era a melhor maneira que eu conhecia para tentar libertá-la daquela barreira.

Ela lentamente fechou os olhos, respirou fundo e disse três palavras simples, que representaram tudo para mim.

— Muito obrigada, Darina.

— Ele me reconhece — insisti. — Ele conecta você a mim.

— Você tem razão — ela concordou. O tempo dela tinha acabado, ela estava sumindo.

— Vou conversar com ele sobre você — prometi. — Não posso ser a sombra dele como você queria ser, mas vou continuar contando a ele como você o amava e amará para sempre. De como você era uma menina louca e forte, de como eu passei a entendê-la e a admirá-la de um jeito que jamais pude imaginar.

Arizona olhou fundo nos meus olhos.

— Desculpe, Darina. Eu lhe dei bastante trabalho.

— Deu, sim. Agora sei o motivo.

— Eu nunca... — Ela procurou as palavras certas. — Eu nunca encontrei meu equilíbrio, nem mesmo enquanto estava viva. Fiquei sempre, sempre balançando na beira do penhasco, prestes a cair.

Assenti, não era necessária nenhuma palavra de minha parte. E, de qualquer modo, ela podia ler minha mente.

— Você sabe como é — ela observou, no momento em que um vento entrava no celeiro, abrindo e fechando calmamente a porta. — Você sabe que estar sempre prestes a cair pode levar qualquer um a tomar decisões desesperadas.

— Algumas vezes.

Page 190: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

190

— Estou falando de Kyle — ela explicou.

— Mas não de Phoenix — contestei, justo na hora em que ele entrava de novo. Sorri para ele. — Ele foi a melhor decisão que já tomei na vida.

— Estou aqui para confirmar — ele me falou e pegou minha mão como se nunca mais fosse soltar.

Arizona suspirou.

— Sorte sua, Darina. E ainda assim você o perdeu.

Phoenix continuou me segurando firme e me dando força. Falei para ele, não para Arizona:

— E aí o achei novamente. Aqui em Foxton, por doze meses.

— Um ano inteiro — ele prometeu.

Fitei seus olhos azul-claros cintilando cristalinos como a água do lago.

— E logo vou me unir a você para solucionarmos o mistério, descobrir por que você morrer.

Phoenix ergueu minha mão e a colocou em seu rosto pálido e frio.

— Você vai me libertar — falou, emocionado. — Darina e eu vamos com você até o Hartmann — ele disse a Arizona.

Ficamos à beira do lago cheio de gelo, enquanto o sol se punha. Phoenix segurou minha mão e assistimos a Arizona entrar na água.

O lago alongava-se até o infinito, as árvores e a outra margem perdidas numa bruma cinza.

Com a água na altura da cintura e os dedos tocando de leve a superfície, ela se voltou para nos olhar.

O cabelo longo estava muito preto, e as asas de anjo de um branco puro.

— Vá — murmuramos.

Ela se virou e olhou para frente. O Hartmann estava imenso e silencioso.

E então a bruma veio da margem oposta, envolveu Arizona e a levou.

Page 191: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

191

Phoenix e eu procuramos por ela na neblina por um bom tempo, tentando escutar qualquer som sem soltarmos as mãos, sabendo que havia partido do mundo dos vivos.

— Vamos — eu enfim falei a Phoenix.

Continua em :

Page 192: A prova de que o amor é capaz de superar até a morte ... · Mas não, eu ainda não estou ouvindo o som das asas batendo, apenas o barulho surdo das batidas do meu coração e minha

192