a proteÇÃo jurÍdica do trabalhador e a copa …

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Rev. Fac. Dir. Sul de Minas , Pouso Alegre, v. 30, n. 1: 47-64, jan./jun. 2014 A PROTEÇÃO JURÍDICA DO TRABALHADOR E A COPA MUNDIAL DE FUTEBOL 2014 LEGAL PROTECTION OF WORKER AND SOCCER WORLD CUP 2014 Victor Hugo de Almeida * RESUMO Publicada em junho de 2012, a Lei n. 12.663 aborda três eventos mundiais, incluindo a Copa do Mundo Fifa 2014. Com cerca de 70 dispositivos, prevê a possibilidade de o Poder Público celebrar acordos com a Fifa, visando à divulgação nos eventos de campanha pelo trabalho decente. Durante a construção das arenas para a Copa do Mundo, o Brasil registrou nove mortes de operários. O objetivo deste estudo é examinar casos de acidentes do trabalho durante a construção das arenas para a Copa do Mundo à luz da efetivação do trabalho decente, considerado o ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos da Organização Interna- cional do Trabalho (OIT), sendo um deles a promoção do emprego pro- dutivo e de qualidade. Este estudo evidencia a correlação entre trabalho decente e os direitos fundamentais à vida, à saúde e ao meio ambiente do trabalho equilibrado. Palavras-chave: Direito do Trabalho; Copa do Mundo; Proteção do trabalhador; Meio ambiente do trabalho. ABSTRACT Published in June 2012, Law No. 12,663 addresses three world events, including the Fifa World Cup 2014. With around seventy devices, provi- des for the possibility of the government to enter into agreements with Fifa, seeking the disclosure in campaign events at work decent. During the construction of arenas for the World Cup, Brazil recorded nine deaths * Professor de Direito do Trabalho na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universida- de Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp/Franca. Doutor em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Mestre pela Faculdade de Filo- sofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Membro pesquisador do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior, Seção Brasileira da Societé Interna- cionale de Droit du Travail et de la Sécurité Sociale. Correspondência para/Correspondence to: Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, Jd. Dr. Antonio Petráglia, Franca/SP, 14409-160. E-mail: [email protected]. Telefone: (16) 3706-8906.

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Rev. Fac. Dir. Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 30, n. 1: 47-64, jan./jun. 2014

A PROTEÇÃO JURÍDICA DO TRABALHADOR E A COPA MUNDIAL DE FUTEBOL 2014

LEGAL PROTECTION OF WORKER AND SOCCER WORLD CUP 2014

Victor Hugo de Almeida*

REsUMO

Publicada em junho de 2012, a Lei n. 12.663 aborda três eventos mundiais, incluindo a Copa do Mundo Fifa 2014. Com cerca de 70 dispositivos, prevê a possibilidade de o Poder Público celebrar acordos com a Fifa, visando à divulgação nos eventos de campanha pelo trabalho decente. Durante a construção das arenas para a Copa do Mundo, o Brasil registrou nove mortes de operários. O objetivo deste estudo é examinar casos de acidentes do trabalho durante a construção das arenas para a Copa do Mundo à luz da efetivação do trabalho decente, considerado o ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos da Organização Interna-cional do Trabalho (OIT), sendo um deles a promoção do emprego pro-dutivo e de qualidade. Este estudo evidencia a correlação entre trabalho decente e os direitos fundamentais à vida, à saúde e ao meio ambiente do trabalho equilibrado.

Palavras-chave: Direito do Trabalho; Copa do Mundo; Proteção do trabalhador; Meio ambiente do trabalho.

ABsTRACT

Published in June 2012, Law No. 12,663 addresses three world events,

including the Fifa World Cup 2014. With around seventy devices, provi-

des for the possibility of the government to enter into agreements with

Fifa, seeking the disclosure in campaign events at work decent. During

the construction of arenas for the World Cup, Brazil recorded nine deaths

* Professor de Direito do Trabalho na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universida-de Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp/Franca. Doutor em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Mestre pela Faculdade de Filo-sofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Membro pesquisador do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior, Seção Brasileira da Societé Interna-cionale de Droit du Travail et de la Sécurité Sociale. Correspondência para/Correspondence to: Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, Jd. Dr. Antonio Petráglia, Franca/SP, 14409-160. E-mail: [email protected]. Telefone: (16) 3706-8906.

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Victor Hugo de Almeida

of workers. The aim of this study is to examine cases of occupational

accidents during the construction of arenas for the World Cup in the light

of the realization of decent work, considered the focal point of the four

strategic objectives of the ILO, one being the promotion of productive

employment and quality. This study shows the correlation between decent

work and fundamental to life, health and the environment of balanced

labor rights.

Keywords: Labor Law; World Cup; Worker’s protection; Work environment.

INTRODUÇÃO

Escolhido em 2007 para sediar a edição de 2014 da Copa do Mundo da Fédé-ration Internationale de Football Association (Fifa), às vésperas do início do evento o Brasil já registrava nove acidentes do trabalho fatais, denúncias de violação de direitos fundamentais e garantias mínimas dos trabalhadores e movimentos sociais pulverizados em inúmeros Estados da Federação, reivindicando a qualidade dos serviços essenciais prestados à população e o combate à corrupção.

Com cerca de 70 artigos, a Lei n. 12.663, de 5 de junho de 2012, também denominada “Lei Geral da Copa”, instituiu medidas à Copa do Mundo Fifa 2014 e inovou o ordenamento jurídico brasileiro, impondo desafios para a harmoni-zação das diretrizes da Fifa ao regramento jurídico interno trabalhista. Dentre as disposições desse regramento, encontra-se a possibilidade de o Poder Público adotar providências para a celebração de acordos com a Fifa, envolvendo cam-panha pelo trabalho decente (art. 29, I, b), um dos compromissos do Brasil pe-rante a OIT.

Este artigo tem por objetivo examinar a proteção jurídica do trabalhador no contexto da Copa do Mundo Fifa 2014. O método de abordagem utilizado foi o dedutivo, visto que o estudo parte de uma análise juslaboral do contexto fático--jurídico da Copa do Mundo 2014, levantado por meio da técnica de pesquisa bibliográfica de materiais já publicados.

Quanto à estrutura, o artigo encontra-se organizado em três partes, inician-do pelas generalidades sobre a Lei n. 12.663/2012 na perspectiva juslaboral e pela casuística dos acidentes do trabalha durante a construção das arenas de futebol; posteriormente, discorre-se sobre a fundamentalidade do direito ao meio am-biente do trabalho equilibrado, à proteção jurídica do trabalhador e à responsa-bilidade civil pelos acidentes do trabalho; e, por fim, passa a examinar o legado e a efetivação do trabalho decente no contexto da Copa do Mundo Fifa 2014.

A COPA DO MUNDO FIFA 2014: AsPECTOs GERAIs

Fundada em 1904, a Fifa é uma associação sediada em Zurique, regida pela legislação suíça e composta por 208 federações nacionais. Possui, aproximada-

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mente, 310 colaboradores de 35 países e é constituída pelo Comitê Executivo (órgão executivo), pela Secretaria-Geral (órgão administrativo) e pelo Congres-so (órgão legislativo), que é a instância máxima composta por todas as federações afiliadas1, incluindo o Brasil.

De acordo com o artigo 2º, I, da Lei n. 12.663/2012 (a Lei Geral da Copa)2, e com o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), a natu-reza jurídica da Fifa é de associação voluntária e internacional de sujeitos de direito privado, constituída mediante tratado e regida por regulamento e órgãos diretivos próprios3.

A missão da Fifa é desenvolver o esporte, aperfeiçoando e promovendo globalmente os valores unificadores, educacionais, culturais e humanitários do futebol; construir um futuro melhor por meio da força unificadora do futebol, considerado, na perspectiva da organização, uma ferramenta para o desenvolvi-mento social e humano; e sensibilizar o mundo mediante a paixão pelo futebol, por meio de competições, dentre elas a Copa do Mundo da Fifa4.

Originada na França, em 1928, e também conhecida como Campeonato Mundial Fifa, a Copa do Mundo é uma competição de futebol aberta a todas as federações filiadas à Fifa, que ocorre a cada quatro anos, envolvendo duas fases, as eliminatórias da Copa e o campeonato propriamente dito, sediado pelo país anfitrião designado pela Fifa.

Escolhido em 2007 para sediar a edição de 2014 da Copa do Mundo, o Bra-sil teve pouco mais de seis anos para se preparar para receber o campeonato e construir ou adequar seus estádios ao padrão Fifa, espalhados em 12 cidades--sede: Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.

Generalidades sobre a Lei n. 12.663/2012 relacionadas ao trabalho

Com cerca de 70 artigos, a Lei n. 12.663, de 5 de junho de 2012, também de-nominada “Lei Geral da Copa”, instituiu medidas à Copa das Confederações Fifa

1 FIFA. Entidades. Disponível em: <http://pt.fifa.com/aboutfifa/organisation/bodies/index.html>. Acesso em: 15 abr. 2014.

2 BRASIL. Lei n. 12.663, de 5 de junho de 2012. Dispõe sobre as medidas relativas à Copa das Confederações FIFA 2013, à Copa do Mundo FIFA 2014 e à Jornada Mundial da Juventude – 2013, que serão realizadas no Brasil; altera as Leis n. 6.815, de 19 de agosto de 1980, e 10.671, de 15 de maio de 2003; e estabelece concessão de prêmio e de auxílio especial mensal aos jogado-res das seleções campeãs do mundo em 1958, 1962 e 1970. Planalto, Brasília, 5 jun. 2012. Dis-ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/Lei/L12663.htm>. Acesso em: 29 abr. 2014.

3 STJ, Conflito de Competência n. 108.742 – PA – 2009/0211970-0, Rel. Min. João Otávio de Noronha, publicação em: 16.02.2011.

4 FIFA. Missão. Disponível em: <http://pt.fifa.com/aboutfifa/organisation/mission.html>. Acesso em: 15 abr. 2014.

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2013, à Copa do Mundo Fifa 2014 e à Jornada Mundial da Juventude de 2013; e alterou a Lei n. 6.815/80, que define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, bem como a Lei 10.671/2003, que dispõe sobre o Estatuto de Defesa do Torcedor.

No que pertine ao trabalho, a Lei Geral da Copa inovou o ordenamento jurídico brasileiro, impondo grandes desafios para a harmonização das diretrizes da Fifa ao regramento trabalhista interno. Sob o pálio do incremento da econo-mia por meio do turismo e da celebração do maior espetáculo do futebol, o país se curvou à Fifa, como condição para a realização da Copa Mundial de Futebol em terras brasileiras, diferentemente do que ocorreu com outros países que em outras oportunidades já se candidataram para receber esse evento esportivo.

A autorização de trabalho a estrangeiros é ato administrativo para a con-cessão de vistos permanentes ou temporários a estrangeiros que pretendam permanecer no Brasil a trabalho, cuja competência pertence ao Ministério do Trabalho. Para a viabilização do espetáculo, a Lei Geral da Copa prevê, em seus artigos 19 e 20, regras para a permissão do trabalho de estrangeiros no Brasil, visando ao desempenho de atividades relacionadas ao evento, inovando a Lei n. 6.815/80, que define a situação jurídica do estrangeiro no país.

Condicionando a emissão de permissão de trabalho ao prazo de validade do visto de entrada no país, a Lei Geral da Copa garante a entrada no Brasil a todos os membros da delegação da Fifa e, vinculados a ela, funcionários das Confederações e das Associações Estrangeiras, membros das seleções participan-tes, equipe dos parceiros comerciais, equipe emissora fonte da entidade, equipe das emissoras e agências de direitos de transmissões, seus prestadores de serviços, clientes de serviços comerciais de hospitalidade, representantes de imprensa e espectadores com ingressos válidos ou confirmação de aquisição.

Todavia, o que de fato tem suscitado questionamentos é a situação juslaboral daqueles que trabalharam durante o evento, cuja prestação é tratada no artigo 57 da Lei Geral da Copa como serviço voluntário, e as condições de trabalho às quais foram submetidos os operários que ergueram as arenas de futebol brasileiras.

Por início, nota-se no caput do artigo 57 a clara intenção do legislador da Fifa de afastar a possibilidade de caracterização de relação de emprego entre aqueles que trabalhassem para realização do evento, o Poder Público brasileiro e a Fifa. Além de prever que a prestação de serviço voluntário na Copa Mundial não gera vínculo empregatício e obrigações (art. 57, § 1º, I), a legislação sequer menciona as palavras “trabalhador” e “contrato” e, em substituição, adota o termo “serviço voluntário” e “termo de adesão”. Já o Governo Federal adotou a terminologia “Brasil Voluntário”5 para se referir a esses trabalhadores.

5 PORTAL da Copa. Voluntariado. Brasília, abr. 2014. Disponível em: <http://www.copa2014.gov.br/pt-br/tags/voluntariado>. Acesso em: 25 abr. 2014.

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Definido pela Lei n. 9.608/98 como “a atividade não remunerada, prestada por pessoa física à entidade pública de qualquer natureza, ou à instituição pri-vada de fins lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade” (art. 1º), o trabalho voluntário não interessa ao Direito do Trabalho, salvo quando a pres-tação é descaracterizada, configurando típica relação de emprego, em caso de haver efetiva contraprestação pelo trabalho, o que, necessariamente não se inclui o ressarcimento de despesas previsto, por exemplo, no § 3º do inciso II do artigo 57 da Lei Geral da Copa.

No entanto, o trabalho voluntário (ou “serviço voluntário”) deve ser gra-cioso, não podendo ser contraposto ao trabalho obrigatório6, que possui caráter de dever assentado na própria natureza bilateral do ajuste, prevendo obrigações e direitos recíprocos entre as partes contratantes.

Ademais, nos termos da Lei n. 9.608/98, deve ser prestado por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada de fins não lucrativos, não sendo esse o caso do trabalho voluntário na Copa do Mundo 2014, posto se tratar de um evento indiscutivelmente lucrativo, considerado uma gran-de oportunidade econômica e realizado por uma entidade que possui vultuoso patrimônio.

Com mais de 46 mil candidatos inscritos (6.203 em São Paulo, 5.130 em Manaus, 4.976 no Rio de Janeiro, 3.740 em Recife, 3.232 em Brasília, 3.420 em Belo Horizonte, 2.427 em Curitiba, 2.400 em Salvador, 2.247 em Fortaleza, 2.230 em Cuiabá, 2.198 em Natal e 2.007 em Porto Alegre), cerca de 1.500 voluntários foram selecionados em cada uma das 12 cidades-sede para trabalhar no evento, submetendo-se, primeiro, a um treinamento virtual. O trabalho voluntário visa ao auxílio a torcedores, visitantes e imprensa não credenciada em diversos espa-ços, como aeroportos, áreas de fluxo (por exemplo, centros comerciais, pontos turísticos etc.), em torno dos estádios, eventos de exibição pública, áreas de mobilidade urbana (por exemplo, terminais de ônibus, estações de metrô etc.) e centro aberto de mídia7.

Ao final do mês de abril de 2014, os candidatos receberam convocação por e-mail para treinamento presencial, coordenado pela Universidade de Brasília em parceria com o Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal, organizações de voluntariado e mais 17 instituições públicas de ensino das 12 cidades-sede da Copa. Com duração de um mês, o treinamento presencial englobou quatro di-

6 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho. 6. ed. Niterói: Impetus, 2012.7 PORTAL da Copa. Brasil Voluntário finaliza inscrições com mais de 46 mil candidatos. Brasil

Voluntário, Brasília, 17 mar. 2014. Disponível em: <http://www.copa2014.gov.br/pt-br/noti-cia/brasil-voluntario-finaliza-inscricoes-com-mais-de-46-mil-candidatos>. Acesso em: 28 maio 2014.

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ferentes temas (segurança e primeiros socorros, integração, turismo e mobilida-de) e foi ministrado para três turmas de voluntários, aos sábados e domingos, do período de 26 de abril a 25 de maio de 2014, com cinco horas de duração diária. Após, esse treinamento, apenas os candidatos selecionados foram convocados para atuar nos pontos indicados no momento da inscrição8.

Além das 50 razões de toda sorte para ser voluntário na Copa do Mundo Fifa 2014 listadas pelo Governo Federal (por exemplo, experiência para a vida toda, fazer parte de um dos maiores eventos esportivos do mundo, culturas do mundo inteiro, mercado de trabalho, diferencial no currículo, entender como um aeroporto funciona de perto, histórias para a vida toda, unir esforços, cida-dania, sair da rotina, ajudar seu país, doação, benefícios à saúde, entre outras)9, esclareceu a Fifa em seu site a inexistência de qualquer tipo de salário ou ajuda de custo para hospedagem, garantindo apenas o fornecimento de uniformes, auxílio para deslocamento até o local de trabalho e alimentação enquanto estiver como voluntário. Porém, advertiu que o trabalho teria duração de até 10 horas diárias e o trabalhador voluntário teria de ter disponibilidade de, pelo menos, 20 dias corridos na época do evento10.

Em contrapartida, a Fifa avisou aos voluntários da Copa do Mundo 2014 que não teriam assentos disponibilizados para assistir aos jogos e que, embora alguns estivessem trabalhando nas arquibancadas ou em áreas com visibilidade para o campo, deveriam se lembrar que estariam trabalhando e, por isso, não sobraria tempo para assistirem aos jogos, o que apenas poderia ser feito no Cen-tro de Voluntários, por alguns minutos durante os intervalos do horário de trabalho.

Pois bem, primeiro, quanto às condições de trabalho impostas aos traba-lhadores voluntários da Copa do Munda Fifa 2014, evidente que a imposição de jornada de até 10 horas diárias de trabalho viola tanto o caráter gracioso do labor voluntário como o limite máximo da duração do trabalho prescrito no artigo 58 da Consolidação das Leis do Trabalho, cuja intenção do legislador foi limitar o tempo dedicado ao trabalho visando à saúde e à segurança do trabalhador, pos-tas em risco em situação de fadiga. E, ainda quanto à duração do trabalho, pouco disse a Fifa acerca do tempo dos intervalos concedidos a esses trabalha-

8 PORTAL da Copa. Brasil Voluntário finaliza inscrições com mais de 46 mil candidatos. Brasil Voluntário, Brasília, 17 mar. 2014. Disponível em: <http://www.copa2014.gov.br/pt-br/noti-cia/brasil-voluntario-finaliza-inscricoes-com-mais-de-46-mil-candidatos>. Acesso em: 28 maio 2014.

9 PORTAL Brasil. 50 razões para ser um voluntário da Copa de 2014. Brasília, 24 abr. 2014. Dis-ponível em: <http://www.brasil.gov.br/esporte/2014/04/50-razoes-para-ser-um-voluntario>. Acesso em: 30 abr. 2014.

10 FIFA. Perguntas frequentes – Inscrições do Programa de Voluntário. Disponível em: <http://pt.fifa.com/worldcup/organisation/volunteers/faq/index.html>. Acesso em: 22 abr. 2014.

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dores voluntários que, diante da jornada prevista, jamais poderia ser aquém de uma hora para refeição e descanso, nos termos do artigo 71, e 11 horas entre duas jornadas, conforme o artigo 66, ambos da Consolidação das Leis do Trabalho.

Não bastasse, deixou claro a Fifa a inexistência de assentos disponibilizados para que os voluntários assistissem aos jogos, porém esqueceu-se de se compro-meter em garantir assentos para o descanso desses trabalhadores durante a jor-nada de trabalho, frise-se, de até 10 horas diárias. Corre-se o risco de se impor um trabalho penoso aos voluntários convocados para trabalhar na Copa do Munda Fifa 2014, assim caracterizado pela prestação exaustiva em razão do labor predominantemente em pé.

Ademais, em detrimento da proteção ao menor consubstanciada na legis-lação brasileira (Constituição Federal, Consolidação das Leis do Trabalho e Es-tatuto da Criança e do Adolescente), o Conselho Nacional de Justiça, por meio da Recomendação n. 3/2013, passou a permitir, em benefícios dos interesses da Fifa, a exploração do trabalho infantil em atividades ligadas aos jogos (por exem-plo, a de gandula), cuja prestação era defesa em campeonatos organizados pela Confederação Brasileira de Futebol, desde 2004.

Parece-nos inadequado prever a Lei Geral da Copa (art. 29, I, b) a possibi-lidade de o Poder Público adotar providências envolvendo campanha pelo tra-balho decente para a celebração de acordos com a Fifa, haja vista que a garantia de direitos mínimos, efetivamente ignorada nesse contexto, constitui elemento basilar da efetivação do trabalho decente e da proteção à dignidade da pessoa humana consagrada no artigo 1º, III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Segundo a OIT, o trabalho decente converge quatro objetivos estratégicos, quais sejam: (a) respeito aos direitos do trabalho, sobretudo aqueles definidos em 1998 como fundamentais pela Declaração aos Direitos e Princípios Funda-mentais no Trabalho; (b) liberdade sindical e o efetivo reconhecimento do direi-to à negociação coletiva; (c) eliminação do trabalho infantil; (d) eliminação de todas as formas de discriminação em emprego e ocupação, promoção do empre-go produtivo e de qualidade, extensão da proteção social e fortalecimento do diálogo social11. Em suma, é o trabalho adequadamente realizado e remunerado, capaz de garantir uma vida digna a quem o executa.

Assim sendo, independentemente da modalidade de prestação e do contex-to em que ela se efetiva, cabe ao Direito do Trabalho a garantia a todos os cidadãos do acesso a um trabalho digno, por meio de uma “política de promoção dos direitos humanos fundamentais inspirada pelo artigo 1º de nossa Constituição,

11 ORGANIZAÇÃO Internacional do Trabalho. O que é trabalho decente. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/content/o-que-e-trabalho-decente>. Acesso em: 20 abr. 2014.

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que aponta a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República”12.

ACIDENTEs DO TRABALHO NA CONsTRUÇÃO DAs ARENAs PARA A COPA DO MUNDA FIFA 2014

Para sediar uma Copa do Mundo, atualmente a Fifa exige do país candida-to, ao menos, 12 arenas de futebol condizentes com os padrões da entidade, que possua capacidade mínima para 40 mil pessoas, com exceção do estádio onde ocorrerá a final do campeonato, que deve ter capacidade mínima para 60 mil expectadores. Dentre os padrões exigidos, podem-se citar: cobertura sofisticada para as arquibancadas, estacionamento o mínimo de 10 mil veículos, espaço para imprensa e convidados VIP, acesso a internet, entre outros.

Após a escolha das cidades-sede em 2009, 12 estádios brasileiros de futebol foram completamente erguidos ou totalmente reformados para se adequarem ao padrão Fifa: Arena Fonte Nova (Salvador/BA), Estádio das Dunas (Natal/RN), Estádio Castelão (Fortaleza/CE), Arena Pernambuco – São Lourenço da Mata (Recife/PE), Arena Amazônia (Manaus/AM), Estádio Nacional – Mané Garrin-cha (Brasília/DF), Arena Pantanal (Cuiabá/MS), Arena Corinthians (São Paulo/SP), Estádio do Maracanã (Rio de Janeiro/RJ), Estádio Mineirão (Belo Horizon-te/MG), Arena da Baixada (Curitiba/PR) e Estádio Beira-Rio (Porto Alegre/RS).

De junho de 2012 a maio de 2014, durante a construção dessas arenas de futebol, o Brasil registrou nove ocorrências fatais relacionadas aos trabalhadores que se ativavam na preparação do País para a Copa do Mundo Fifa 2014, cuja cifra é triplamente superior ao número de mortes em obras da Copa do Mundo Fifa 2010, sediada pela África do Sul.

O primeiro acidente do trabalho fatal ocorreu em junho de 2012, nas obras de construção do Estádio Mané Garrincha, em Brasília, quando um trabalhador caiu de uma altura de 30 metros. Em junho do mesmo ano, outro operário sofreu uma parada cardiorrespiratória e foi a óbito durante o trabalho de reforma do Estádio Mineirão, em Belo Horizonte, não se sabendo ao certo se o ocorrido possuía alguma relação com as condições em que o trabalho era prestado.

Pouco mais de seis meses depois, em fevereiro de 2013, na Arena Amazônia, em Manaus, um operário desmontava as peças de um guindaste quando foi atingido por uma delas na cabeça. No mês seguinte, em março de 2013, na mes-ma arena, em Manaus, um operário sofreu traumatismo craniano e faleceu após cair de uma altura de cinco metros quando tentava passar de uma coluna para

12 SILVA, Otavio Pinto e. Relações de trabalho e relações de consumo: o futuro da Justiça do Trabalho. Revista do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 143-162, jan./jun. 2006.

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um andaime no canteiro de obras. Sete meses depois, em novembro de mesmo ano, a Arena Corinthians, em São Paulo, registrou o quinto óbito na contagem geral, quando um guindaste, que içava um módulo da estrutura da cobertura do estádio, tombou, derrubando parte da estrutura na área de circulação de traba-lhadores, levando dois deles a óbito.

Após um mês, em dezembro de 2013, um operário faleceu ao cair de uma altura de 35 metros na Arena Amazônia e, cerca de seis horas depois, outro ope-rário sofreu um infarto enquanto trabalhava nos serviços e limpeza e terraple-nagem para o asfaltamento do Centro de Convenções da Amazônia, ao lado da Arena Amazônia, em Manaus, também não se sabendo se o ocorrido estava re-lacionado com as condições em que o trabalho era prestado.

Em março de 2014, mais uma vez a Arena Corinthians, em São Paulo, pro-tagonizou outro acidente do trabalho fatal. Um operário faleceu após cair de uma altura de oito metros, enquanto trabalhava nas obras das arquibancadas provi-sórias daquele estádio, registrando a oitava morte nas obras das arenas brasileiras para o campeonato mundial de futebol de 2014.

E, quase às vésperas do início da Copa do Mundo, em 8 de maio de 2014, um operário faleceu durante a obra da Arena Pantanal, em Cuiabá, vítima de descarga elétrica no setor leste do estádio.

Grande parte das notícias veiculadas na mídia relacionadas aos acidentes fatais comentadas neste estudo avisava ao público que os acidentes não interfe-riram na continuidade das obras dos estádios, pouco dizendo sobre a investiga-ção das causas dos infortúnios e da responsabilização dos causadores dos danos.

Diante desse cenário, indaga-se o que se fez pelos trabalhadores durante a construção das arenas de futebol para a Copa Mundial Fifa 2014, cuja precariza-ção das condições de trabalho se evidenciou pelo saldo de nove óbitos em diver-sas obras espalhadas pelo Brasil, afora outros acidentes do trabalho não fatais que, porventura, podem não ter sido conhecidos e divulgados pela imprensa.

Talvez seja esse o momento de mais uma vez refletir sobre a revisão da organi-zação sindical brasileira e a necessidade de ratificação pelo país da Convenção n. 87 da OIT, que trata da liberdade sindical, haja vista que, desde o primeiro acidente fatal, em junho de 2012, nenhuma ação sindical se viu para cobrar melhores condições de trabalho para esses operários; considerando-se que é prerrogativa dos sindicatos a representação, perante as autoridades administrativas e judiciárias, dos interesses gerais da categoria ou dos interesses individuais relativos à atividade exercida, incluem--se questões relacionadas à saúde e à segurança no trabalho (art. 513, a, da CLT).

A fundamentalidade do direito ao meio ambiente do trabalho equi-librado e à proteção jurídica do trabalhador

O sistema jurídico deve visar à regulação da preservação da vida, das con-dições de existência humana em sociedade e da integridade biopsicossocial,

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assegurando pleno bem-estar ao ser humano. Desta feita, conquanto fundamen-tado numa ordem econômica capitalista voltada para a atividade produtiva, deve o sistema jurídico, antes de tudo, ocupar-se da tutela à vida com dignidade13.

A Constituição Federal de 1988 elevou o meio ambiente, incluindo o do trabalho, ao patamar de direito fundamental (arts. 225 e 200, VIII), qualifican-do-o como bem difuso pertencente a todos, impondo sua preservação não só ao Poder Público, mas a toda coletividade; trata-se de “um direito de todos e de cada um ao mesmo tempo e, uma vez violado, a agressão atinge toda a sociedade”14.

Porquanto não se veja na norma constitucional a definição de meio ambien-te do trabalho, explica Guilherme Guimarães Feliciano se tratar de uma mani-festação particular, ou seja, uma unidade autônoma com leis próprias, porém dependente da estrutura sistêmica ambiental a seguir elucidada:

Doutrinariamente, o meio ambiente do trabalho aparece ao lado do meio

ambiente natural (constituído pelos elementos físicos e biológicos nati-

vos do entorno: solo, água, ar atmosférico, f lora, fauna, e suas interações

entre si e com o meio); do meio ambiente artificial (constituído pelo

espaço urbano construído, que compreende o conjunto de edificações

– espaço urbano fechado – e dos equipamentos públicos – espaço urbano

aberto; alguns autores referem, ainda, o meio ambiente rural, relativo ao

espaço rural construído); do meio ambiente cultural (constituído pelo

patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico e turístico,

que agregou valor especial pela inspiração de identidade perante os

povos), sendo todos manifestações particulares da entidade meio am-

biente, que acima concebíamos como gestalt15.

Relembra Julio César de Sá da Rocha que, na Conferência em Genebra de 1988, antes mesmo da vigente Constituição Federal brasileira, a OIT já conside-rava o meio ambiente do trabalho como parte integrante do meio ambiente geral16, reconhecendo o vínculo entre as diversas manifestações ambientais, razão pela qual aponta Sebastião Geraldo de Oliveira que “é impossível alcançar qualidade de vida sem ter qualidade de trabalho, nem se pode atingir meio ambiente equi-librado e sustentável, ignorando o meio ambiente do trabalho”17.

13 ROCHA, Julio Cesar de Sá da. Direito ambiental e meio ambiente do trabalho: dano, prevenção e proteção jurídica. São Paulo: LTr, 1997.

14 MELO, Raimundo Simão de. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador: responsa-bilidades legais, dano material, dano moral, dano estético, indenização pela perda de uma chance, prescrição. 4. ed. São Paulo: LTr, 2010.

15 FELICIANO, Guilherme Guimarães. Meio ambiente do trabalho: aspectos gerais e propedêu-ticos. Síntese Trabalhista, Porto Alegre, v. 14, n. 162, p. 122-153, dez. 2002. p. 126.

16 ROCHA, 1997.17 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 4. ed. São Paulo:

LTr, 2002. p. 129.

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A proteção jurídica do trabalhador e a Copa Mundial de Futebol 2014

Por ser o trabalho essencial à condição e ao desenvolvimento humano, justifica-se a importância do contexto e do local da prestação laboral para a garantia da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República brasileira. Isto posto, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê o direito dos trabalhadores à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7º, XXII), e ao meio ambien-te do trabalho saudável e equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida (arts. 225 e 200, VIII). Tais postulados geram ao empregador, direito e indireto, a obrigação de cumprir normas relacionadas às condições de execução do trabalho, sobrevindo também os deveres de diligência e fiscalização de todos os benefici-ários da exploração da força de trabalho humano18.

Diante da casuística relacionada aos acidentes fatais ocorridos durante a construção das arenas de futebol para a Copa do Mundo Fifa de 2014, evidente o desequilíbrio do meio ambiente do trabalho e, consequentemente, a violação desse direito fundamental consubstanciada na inobservância das normas de saúde e segurança do trabalho. Surge, portanto, o dever de averiguar a respon-sabilidade civil e penal para a efetiva reparação dos danos causados, inclusive pela ausência de fiscalização.

A responsabilidade civil pelos acidentes do trabalho durante a cons-trução das arenas para a Copa do Munda Fifa 2014

Uma vez que a norma constitucional impõe a todos a preservação do meio ambiente do trabalho, a obrigação do cumprimento de normas relacionadas às condições laborais e o dever de diligência e fiscalização que incumbe aos bene-ficiários da exploração da força de trabalho humano, pode-se cogitar, em tese, a responsabilidade do Poder Público pelos acidentes do trabalho na construção das arenas de futebol para a Copa do Mundo Fifa 2014, sobretudo se constatada a aceleração do ritmo de trabalho em condições degradantes para a conclusão das obras, por influência do Poder Público e da Fifa.

Contudo, a responsabilidade civil da União Federal relacionada à Copa do Mundo Fifa 2014 está prevista nos artigos 22 e 23 da Lei n. 12.663/2012. Esses dispositivos preveem a responsabilidade da União pelos danos que causar, por ação ou omissão, à Fifa, seus representantes legais, empregados ou consultores, bem como a responsabilidade pelos efeitos por todo e qualquer dano surgido em função de eventuais incidentes de segurança relacionado ao evento, salvo se a Fifa ou a vítima houver concorrido para o dano.

18 COSTA, Aline Moreira da; GONÇALVES, Leandro Krebs; ALMEIDA, Victor Hugo de. Em-pregado terceirizado: consequências do acidente de trabalho e da doença profissional. Revista Trabalhista, Rio de Janeiro, v. 38, p. 142-161, 2011.

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Observa-se, portanto, constar da Lei Geral da Copa dispositivo legal espe-cífico relacionado à responsabilidade civil por dano gerado à Fifa, porém nada havendo em relação os danos causados aos trabalhadores que viabilizaram o evento, incluindo os operários que se ativaram na construção das arenas e os voluntários selecionados para o trabalho durante a Copa do Mundo. Parece-nos correta a ideia de Guilherme Guimarães Feliciano, ao ponderar sobre a existên-cia de uma “dupla cidadania” em matéria de responsabilidade civil19, por ter o trabalhador um tratamento aquém do conferido a outras pessoas, incluindo as jurídicas, como se menor valor social tivesse.

Sabendo-se que o trabalho na construção das arenas brasileiras de futebol para a Copa do Mundo Fifa 2014 se dá na modalidade de terceirização, não se discute a responsabilidade objetiva das empresas tomadoras e prestadoras do serviço pelos acidentes do trabalho já relacionados.

Isto porque a tomadora de serviço é sempre responsável pela adoção, uso e fiscalização de medidas coletivas e individuais de proteção e segurança dos tra-balhadores, nos termos do artigo 19, § 1º, da Lei n. 8.213/91. Assim sendo, também responde pelo acidente sofrido pelo trabalhador terceirizado, por ter se benefi-ciado economicamente da exploração da força de trabalho.

Destaque-se que a responsabilização da tomadora de serviços concebe dois aspectos distintos, quais sejam: por um lado, pune a empresa por não cumprir com os deveres relacionados à saúde e segurança do trabalhador; e, por outro, inibe o descumprimento de dessas normas mediante a natureza pedagógica da penalidade sofrida.

Na seara penal, embora não seja essa a abordagem relevante deste estudo, o artigo 19, § 2º, da Lei n. 8.213/91 prevê hipótese de contravenção penal passível de multa àquele que deixar de cumprir as normas de segurança e higiene do trabalho, incluindo todas as normas regulamentadoras, principalmente as rela-cionadas na Portaria n. 3.214/78 do Ministério do Trabalho e Emprego.

Por fim, pouco se crê na responsabilização do Poder Público pelos acidentes fatais, embora preveja a Constituição Federal a responsabilidade de todos pela preservação do meio ambiente do trabalho e a obrigação do cumprimento e fiscalização das normas relacionadas à saúde e à segurança do trabalhador por todos os beneficiários da exploração da força de trabalho humano. Isto porque, se a ministra das Relações Institucionais do Brasil já descartou a possibilidade de o Governo assumir riscos da Copa junto à Fifa20, mesmo diante da existência

19 FELICIANO, Guilherme Guimarães. Tópicos avançados de direito material do trabalho. Atua-lidades forenses. São Paulo: Damásio de Jesus, 2006. v. 1.

20 MILITÃO, Eduardo. Ideli descarta governo assumir riscos na Copa. Congresso em foco, São Paulo, 2 fev. 2012. Disponível em: <http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/ideli-descar-ta-governo-assumir-riscos-na-copa/>. Acesso em: 18 abr. 2014.

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de previsão legal específica nesse sentido (arts. 22 e 23 da Lei n. 12.663/2012), não se pode supor outro desfecho senão uma longa batalha judicial, travada pelos familiares dos operários que foram a óbito, contra as empresas tomadoras e prestadoras dos serviços relacionados à construção das arenas; e, evidentemen-te, uma batalha judicial marcada pela negação recíproca de responsabilidades entre essas empresas, visando à perversa culpabilização da vítima.

O LEGADO DA COPA DO MUNDO FIFA 2014 E O TRABALHO DECENTE

Discute-se qual o legado de um evento realizado às expensas dos direitos fundamentais dos trabalhadores nele envolvidos e dos cofres públicos, haja vista que 97% dos custos relacionados à construção dos estádios terem sido satisfeitos com recursos públicos21, ainda que a administração pós-Copa dessas arenas seja de responsabilidade de consórcios ou de empresas investidas por meio de licitação.

Os movimentos sociais deflagrados no período próximo à realização da Copa do Mundo Fifa 2014 revelaram a insatisfação dos brasileiros em relação aos serviços essenciais em diversos Estados do País, incluindo saúde, educação e transporte público. Por meio de manifestações, questionaram a qualidade dos serviços prestados aos brasileiros em face da importância bilionária injetada na realização do campeonato mundial de futebol.

As promessas de melhoria relacionadas à mobilidade urbana, à tecnologia da informação e da comunicação e aos aeroportos, entre outras que consistiriam o verdadeiro legado deixado aos cidadãos brasileiros, não foram concluídas ou jamais saíram do papel.

Os operários também questionaram as condições de trabalho, denunciando jornadas excessivas de até 16 horas, pagamento “por fora”, assédio moral, dis-pensa coletiva, desestabilização de Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa), oferta de alimentação inadequada (estragada, com bichos ou validade expirada) e ausência de pagamento e de benefícios, como, por exemplo, plano de saúde, cesta básica e participação nos lucros e resultados. Entre o início da pre-paração do país para a Copa do Mundo até abril de 2012, 8 das 12 arenas enfren-taram greves de trabalhadores.

Em contrapartida, a Justiça Especializada do Trabalho se comprometeu a estabelecer um sistema de plantão para garantir a celeridade dos julgamentos, não se referindo à precarização das condições de trabalho dos operários na cons-trução dos estádios, mas sim aos movimentos grevistas, por considerar que “as

21 SEGALLA, Vinícius. Previsão oficial de custo dos estádios da Copa já subiu R$ 992 mi; dinhei-ro público vai pagar 97%. UOL Copa, São Paulo, 27 abr. 2012. Disponível em: <http://copado-mundo.uol.com.br/noticias/redacao/2012/04/27/previsao-oficial-de-custo-dos-estadios-da--copa-ja-subiu-r-992-mi-dinheiro-publico-vai-pagar-97.htm>. Acesso em: 18 abr. 2014.

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greves têm custo para os trabalhadores, empregadores e população” e não pode

ser usada para “expor o país a uma humilhação internacional, como no Carnaval,

quando houve greve de garis”22.

Na perspectiva econômica, segundo Jorge Luiz Souto Maior, “ainda que,

imediatamente, se possa chegar a algum resultado financeiro positivo, conside-

rando o que se gastou e o dinheiro que venha a ser atraído para o mercado na-

cional, é fácil projetar um balanço negativo em razão da quebra de confiabilida-

de” internacional do Brasil23. Na perspectiva social, segundo o jurista, o cenário

é igualmente desastroso, pois seria impossível assistir aos jogos da Copa do

Mundo, nos estádios ou pela televisão, sem lembrar do assalto à soberania, do

Estado de exceção, da violência dos despejos de habitantes dos arredores dos

estádios, dos gastos públicos e dos acidentes do trabalho24.

E nem há que se cogitar que existe algum legado no campo do trabalho,

ainda que mencionasse a Lei Geral da Copa alguma preocupação com a efetiva-

ção do trabalho decente, um dos compromissos do Brasil perante a Organização

Internacional do Trabalho. O trabalho em jornadas extraordinárias em ritmo

acelerado, os acidentes do trabalho, os benefícios suprimidos, o passivo traba-

lhista gerado e a degradação das condições de trabalho que custou a saúde de

muitos operários não se compensa por pagamento, ante a violação de direitos

fundamentais, essenciais à condição humana.

Para Erich Beting, “uma das maiores crises relacionadas à Copa do Mundo

está no fato de que soubemos aproveitar nem um pouco o projeto de legado

positivo que o evento realmente trará”, ao contrário de Londres, sede dos Jogos

Olímpicos de 2012, que obteve sucesso ao demonstrar o emprego de 9 bilhões de

libras em benefícios diretos aos ingleses. Acrescenta que, quanto ao Brasil, nin-

guém se perguntou se o país possuía capacidade para sediar um evento desse

porte, cuja resposta se evidencia pelo tempo que se perdeu discutindo assuntos

distintos (por exemplo, estádio de abertura, requisições da Fifa etc.), em vez de

se discutir ações que fossem verdadeiramente voltadas para um legado pós-Copa25.

Por isso, para Jorge Luiz Souto Maior, “o período da preparação para a Copa,

portanto, pode ser apontado como um atentado histórico à classe trabalhadora,

22 SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. A Copa já era! UOL Esporte, Blog do Juca Kfouri, 21 abr. 2014. Disponível em: <http://blogdojuca.uol.com.br/2014/04/a-copa-ja-era/>. Acesso em: 21 abr. 2014.

23 Ibidem.24 Ibidem.25 BETING, Erich. O legado de Copa que não se soube vender. UOL Copa, São Paulo, 29 maio

2014. Disponível em: <http://negociosdoesporte.blogosfera.uol.com.br/2014/05/29/o-legado- de-copa-que-nao-se-soube-vender/>. Acesso em: 29 maio 2014.

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que jamais será compensado pelo aludido ‘aumento de empregos’, até porque, como dito, tais empregos, no geral, se deram por formas precárias”26.

Diante disso, não se discute que o Brasil sediou o campeonato mundial de futebol da Fifa porém, a festa da Copa do Mundo esperada pelos brasileiros, jamais.

CONsIDERAÇÕEs FINAIs

Com cerca de 70 artigos, a Lei n. 12.663, de 5 de junho de 2012, também denominada “Lei Geral da Copa”, instituiu medidas à Copa do Mundo Fifa 2014 e alterou a Lei n. 6.815/80, que define a situação jurídica do estrangeiro no Bra-sil, bem como a Lei 10.671/2003, que dispõe sobre o Estatuto de Defesa do Tor-cedor. Não bastasse, inovou o ordenamento jurídico brasileiro, impondo grandes desafios para a harmonização das diretrizes da Fifa ao regramento trabalhista interno.

Durante a preparação do País para a Copa do Mundo Fifa 2014, o Brasil se tornou um canteiro de obras e enfrentou o descontentamento dos movimentos sociais, incluindo manifestações da população de diversos Estados brasileiros, reivindicando melhores condições de mobilidade urbana, saúde, educação e combate à corrupção. Os movimentos sociais também partiram do interior dos estádios de futebol, ainda em construção para a Copa do Mundo, por meio de greves por melhores condições de trabalho, ainda que a Lei Geral da Copa pre-visse a possibilidade de o Poder Público adotar providências envolvendo campa-nha pelo trabalho decente para a celebração de acordos com a Fifa.

A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece princípios bá-sicos que regem o esporte no País, incluindo a autonomia das entidades despor-tivas, recepcionada pela Lei n. 9.615/98. Afora a submissão do Estado às deter-minações da Fifa para a realização do Mundial de futebol, comprometendo a segurança jurídica e a soberania brasileira, revelou-se a incapacidade do Brasil em sediar um evento do porte da Copa do Mundo Fifa, pois não se cumpriu o cronograma imposto pela entidade, não se garantiu o legado esperado e prome-tido aos brasileiros e não se observaram os direitos fundamentais dos trabalha-dores ao trabalho e ao meio ambiente do trabalho equilibrado.

Estas linhas podem perder a novidade após a realização da Copa do Mundo Fifa 2014, porém jamais perderão o intuito pedagógico, evidenciando que o Brasil ainda tem muito a aprender em matéria de saúde e segurança do trabalha-dor antes de assumir compromissos que possam denunciar o descompromisso brasileiro com a efetivação dos direitos fundamentais, incluindo o direito ao trabalho e ao meio ambiente do trabalho equilibrado.

26 SOUTO MAIOR, 2014.

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Data de aprovação: 30/11/2014