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1 A propriedade privada e a questão da emancipação humana: aspectos históricos e jurídicos Ramon Mapa da Silva * Fernando Gaudereto Lamas ** Resumo: Nossa intenção é abordar o papel da propriedade privada para a formação do homem moderno. Para atingirmos esse objetivo levaremos em consideração a formação do discurso jurídico moderno, especialmente em Rudolph Von Jhering e Savigny, que será analisado em sua inserção no momento histórico em formação, assim como as transformações sócio-econômicas que condicionaram o referido discurso e da conseqüente jus filosofia, que será abordada como forma teórica justificadora da propriedade privada e das relações sociais que nascem de sua consolidação. Nosso trabalho mostrará que a propriedade privada, além de gerar relações sociais até então ineditas, contribui para a formação ontológica do homem moderno, refletindo em suas concepções éticas e existenciais. A análise da ideologia que se desenvolve no em torno da propriedade privada, justificando-a e naturalizando-a, será um dos momentos chaves do trabalho, inserindo o mesmo na teoria do realismo crítico e na problemática da emancipação humana. Palavras-chave: Propriedade privada; Emancipação humana; História do Direito. The private propriety and the issue of the human emancipation: historic and juristic aspects Summary: Our intention is to talk about the implication of the private propriety to the formation of the modern man. In order to reach this objective we will consider the conception of the legal modern speech, specially in Rudolph Von Jhering and Savigny, that will be analyzed in its introduction at the historic moment, as well as the socio economics transformation that kept such speech and the consequent philosophy that will be treated as a theoretical former justify of the private propriety and the social relationships that was born of its consolidation. Our work will show that the private propriety besides generating social relationships, never seemed so far, helps the ontological formation of the modern man, reflecting in its ethical and existential conceptions. The analyze of the ideology that is developed around the private propriety, justifying it and naturalizing it will be one of the key moments of the work, introducing the same on the theory of the critic realism and on the problem of the human emancipation. Key-words: Private propriety; Human emancipation; History of the Law * Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). ** Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em História Econômica e Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor substituto do departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

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A propriedade privada e a questão da emancipação humana: aspectos históricos e jurídicos

Ramon Mapa da Silva*

Fernando Gaudereto Lamas** Resumo: Nossa intenção é abordar o papel da propriedade privada para a formação do homem moderno. Para atingirmos esse objetivo levaremos em consideração a formação do discurso jurídico moderno, especialmente em Rudolph Von Jhering e Savigny, que será analisado em sua inserção no momento histórico em formação, assim como as transformações sócio-econômicas que condicionaram o referido discurso e da conseqüente jus filosofia, que será abordada como forma teórica justificadora da propriedade privada e das relações sociais que nascem de sua consolidação. Nosso trabalho mostrará que a propriedade privada, além de gerar relações sociais até então ineditas, contribui para a formação ontológica do homem moderno, refletindo em suas concepções éticas e existenciais. A análise da ideologia que se desenvolve no em torno da propriedade privada, justificando-a e naturalizando-a, será um dos momentos chaves do trabalho, inserindo o mesmo na teoria do realismo crítico e na problemática da emancipação humana. Palavras-chave: Propriedade privada; Emancipação humana; História do Direito. The private propriety and the issue of the human emancipation: historic and juristic aspects Summary: Our intention is to talk about the implication of the private propriety to the formation of the modern man. In order to reach this objective we will consider the conception of the legal modern speech, specially in Rudolph Von Jhering and Savigny, that will be analyzed in its introduction at the historic moment, as well as the socio economics transformation that kept such speech and the consequent philosophy that will be treated as a theoretical former justify of the private propriety and the social relationships that was born of its consolidation. Our work will show that the private propriety besides generating social relationships, never seemed so far, helps the ontological formation of the modern man, reflecting in its ethical and existential conceptions. The analyze of the ideology that is developed around the private propriety, justifying it and naturalizing it will be one of the key moments of the work, introducing the same on the theory of the critic realism and on the problem of the human emancipation. Key-words: Private propriety; Human emancipation; History of the Law * Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). ** Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em História Econômica e Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor substituto do departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

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1 - Introdução:

Debater os aspectos históricos e jurídicos da propriedade privada nos dias atuais

não é uma das tarefas mais simples, especialmente porque esse tipo de propriedade

apresenta-se como eterna e natural. Dentro dessa lógica, qualquer questionamento

aparece sempre associado a uma utopia, isto é, completamente descolado da realidade

concreta. O que ora iremos desenvolver caminha na direção oposta, ou seja, na

constatação de que a perenidade da propriedade privada, assim como a sua justificativa

jurídica e jus filosófica, é uma construção ideal e não um fato constatado

historicamente.

Partindo da perspectiva acima apresentada aprofundaremos os aspectos

ontológicos referentes à justificação jusfilosófica da propriedade privada, defendendo

que a formação do homem moderno, melhor dizendo, da individualização do ser

humano, deve ser entendida a partir da construção do processo de individualização da

propriedade privada. Em outros termos, buscaremos mostrar os fundamentos

ontológicos do homem moderno a partir da reconstrução de uma historicidade da

propriedade privada.

Para atingirmos nosso intento vamos nos respaldar em uma análise marxista, na

medida em que percebemos que essa perspectiva pode nos auxiliar de forma mais

aprofundada no entendimento tanto da historicidade da propriedade privada quanto na

formação ontológica do homem moderno.

2 – Propriedade privada: argumentos em torno do direito natural e o recurso à

Moral.

A ideia de uma propriedade privada entendida como parte de um direito natural

a todo homem foi defendida primeiramente pelo filósofo inglês John Locke. Segundo

Edgar José Jorge Filho propriedade possui dois significados na obra de Locke, a saber,

um associado à ideia de direito em geral, ou a soma dos direitos à vida, à liberdade, e

aos bens materiais e outros ligado especificamente ao direito aos bens materiais. 1 Este

mesmo autor destacou que a propriedade privada em Locke sustenta-se em uma

1 JORGE FILHO, Edgar José. Moral e história em John Locke. São Paulo: Loyola, 1992, p. 77.

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concepção moral, isto é, na teoria da utilização necessária à reprodução social e

biológica do homem.

Locke considera que a sociedade civil desenvolveu-se essencialmente para

conservar a propriedade. Dentro dessa lógica, o poder político deve constituir-se como

um depósito confiado pelos proprietários a outros proprietários. 2 A perspectiva

adotada por Locke coloca a propriedade privada, portanto, não somente como algo

natural como também como principal catalisador do processo de evolução humana.

Nesse sentido, assim como a liberdade e o raciocínio, a propriedade privada não poderia

ser historicizada, na medida em que ela seria inerente ao ser humano.

Se levarmos em consideração os argumentos de Locke, perceberemos que a

função da administração pública, ou do governo civil, é de legitimar e proteger a

propriedade. Tais funções somente podem ser postas em prática o bem-estar e a

prosperidade do conjunto da sociedade, através da formulação de leis e da execução de

uma justiça que preservem a racionalidade e a busca pela felicidade. Contudo, essas

garantias jurídicas e civis devem ser respaldadas por fortes princípios morais, que no

entendimento de Locke são superiores aos princípios religiosos. 3

Mesmo reconhecendo que os princípios morais estão acima dos religiosos,

Locke não descarta a importância do desígnio divino e nem sua presença no meio

político. Contrariamente aos escritores medievais, o filósofo inglês entende que a

escolha do governante deve ser realizada mediante um critério racional, porém, esse

critério baseia-se nas leis naturais, isto é, nas leis divinas. O pacto social que produz a

sociedade civil não pode na concepção lockiana se sobrepor aos direitos naturais (ou

divinos), ou seja, o direito à vida, à liberdade e à propriedade. 4

Importante ressaltar que Locke não considera a propriedade privada um direito

inato do homem, apesar de natural. A sua concepção se avança muito claramente na

direção que nosso trabalho quer apontar, ou seja, de que a propriedade foi uma das

formas de criação do indivíduo, fazendo parte de sua constituição ontológica. Em

Locke, mais do que em qualquer outro, a propriedade tem o condão de individuar,

separar do comum.

2 TOUCHARD, Jean. História das idéias políticas: do Renascimento ao Iluminismo. Vol. II. Tradução: Mário Braga. Sintra: Europa-América, s.d., p. 158. 3 TOUCHARD, Jean. Op. cit., p. 159. 4 ABBAGNANO, Nicola. . História da filosofia vol. 6. 5° ed. Tradução: Antônio Ramos Rosa. Lisboa: Presença, 2000, pp. 177-178.

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A propriedade é um conceito a que Locke dedica uma robusta investigação. Sem

exagero podemos dizer que toda sua análise política se funda nas relações estabelecidas

pela propriedade privada, como o Primeiro e O Segundo Tratado Sobre o Governo Civil

bem demonstram. Nessas obras a propriedade é vista como a forma natural que a

evolução nos legou para garantir nossa subsistência biológica. O direito a ela nasceria

do trabalho despendido para retirá-la da massa comum de bens que Deus concedera aos

homens através de Adão e Eva. Em Locke a propriedade é, num primeiro momento,

comunal, uma vez que a razão garante a todos os homens igualdade e que a natureza

não forneceu a um mais do que a outro. Contudo, através do trabalho a propriedade se

individualiza e se torna de quem a cultivou: 27. Ainda que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens, cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa; sobre esta ninguém tem qualquer direito, exceto ela. Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade. 5

O problema da apropriação se resolve justamente pelo trabalho, que teria o

condão, segundo Locke, de gerar uma ligação entre pessoa e coisa, ligação essa que

deve ser respeitada por todos. A atividade humana acrescenta substância à coisa

trabalhada, e isso não pode ser retirado, essa substância seria uma extensão do corpo de

quem realiza o trabalho, portanto é justo que ele se torne o dono da coisa: Espécie de troca: pelo trabalho que é incorporado às coisas, o indivíduo lhes incorpora sua própria substância e, por esse fato, tem o direito de incorporá-las a si (elas são uma extensão do seu próprio corpo. Espécie de corpo próprio estendido aos objetos de que ele se apropria).6

Locke soluciona o problema da apropriação da propriedade comum

incorporando sua existência ao do indivíduo, que passa a ser diferenciado, único, por ter

uma extensão de seu corpo na propriedade. Locke não avança no problema do capital e

da divisão de trabalho, e portanto, não se questiona sobre a propriedade de bens que não

5 LOCKE, John, Segundo Tratado sobre o Governo Civil: ensaio sobre a origem, os limitese os fins verdadeiros do governo civil / John Locke ; introdução de J.W. Gough ; tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. – Petrópolis, RJ : Vozes, 1994 – (Coleção clássicos do pensamento político). 6 ALTHUSSER, Louis, Política e História: de Maquiavel a Marx, Martins Fontes, São Paulo, SP: 2007.p.323.

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são trabalhados, ou, mais ainda, trabalhados por outros. A pretensão de sua teoria é

mostrar como alguém se torna dono de algo, como aquilo se incorpora a ele, ao mesmo

tempo individualizando pessoa e coisa.7 O que Locke não considera é que a mudança é

muito maior na pessoa que na coisa. O homem passa a se sentir diferente, a ver

diferente, acreditar diferente. A propriedade o transforma muito mais do que o

contrário.

Dentro dessa concepção a teoria política lockiana estaria em conformidade com

a teoria econômica de Adam Smith, uma vez que este também baseava suas

argumentações econômicas em sustentáculos morais. Segundo Stanley Brue o

pensamento de Adam Smith, assim como dos demais autores pertencentes à corrente

clássica devem ser compreendido a partir da influência exercida pela mecânica

universal de Newton. Em outros termos, um dos principais baluartes do pensamento

clássico seria uma extensão do mecanismo harmonioso e automático do funcionamento

do universo à economia. Nas palavras de Brue, o laissez-faire seria a forma mais alta

de sabedoria nas questões sociais. As leis naturais guiariam o sistema econômico e as

ações das pessoas. 8

Em outros termos, o pensamento clássico deu grande valor às leis naturais,

entendendo-as como universais e imutáveis, sem preocupar, portanto, com os contextos

históricos e sociais que forjavam a propriedade privada. Nas palavras de Brue: (...) o pensamento newtoniano (...) forneceu uma ideologia que justificou as rendas da propriedade. Como a lei natural é melhor quando deixada desobstruída e como a poupança privada e a moderação contribuem para o bem da sociedade, a renda, o juro e os lucros são apenas recompensas para a propriedade e o uso produtivo da riqueza. 9

Também para Locke a propriedade é uma conseqüência da evolução da relação

que o homem estabelece com a terra através de seu uso produtivo, ou seja, do trabalho.

Para ele é uma tendência natural, divina10, que o que antes era comum torne-se privado.

7 “Essa dedução perceptível na definição da propriedade em geral dada por Locke; em se tratando de um indivíduo, por propriedade é preciso entender sua vida, sua liberdade e seus bens. Essa ampliação do conceito de propriedade tem o objetivo de fundamentar a propriedade dos bens como o fenômeno da propriedade de um homem sobre si mesmo.” ALTHUSSER, Louis, Política e História: de Maquiavel a Marx, Martins Fontes, São Paulo, SP: 2007, p.322. 8 BRUE, Stanley. História do pensamento econômico. 6° ed. Tradução: Luciana Penteado Miquelino. São Paulo: Thompson, 2006, p. 47. 9 BRUE, Stanley. Op. cit. p. 47. 10“Deus deu o mundo aos homens em comum; mas desde que lhos deu para seu benefício e para que dele retirassem as comodidades da vida de que fossem capazes, não se poderia supor que Ele pretendesse que ela permanecesse sempre comum e inculta. Ele a deu para o uso industrioso e racional (e o trabalho deveria ser o título), não para satisfazer o capricho ou a ambição daquele que se mete em querelas e disputas. Aquele que tinha a sua disposição, para fazer frutificar, um lote tão bom quanto aqueles que já

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Locke estabelece uma justificativa que, ao mesmo tempo em que naturaliza a

apropriação da propriedade como algo inerente à condição racional do homem e sua

ação industriosa, se tornaria a base das definições jurídicas sobre aquisição e perda da

propriedade no século XVIII e XIX. Essas concepções percebem na vontade de

domínio, no animus domini, expresso através do trabalho e do cultivo uma das formas

principais de aquisição de propriedade. Podemos dizer que não é a forma primordial

porque a propriedade, depois de trabalhada e convertida em mercadoria passa a ser

transferida através do instituto jurídico da compra e venda.

A relação do trabalho com a propriedade, da forma que Locke a coloca,

constitui também uma forma de projeção da pessoa sobre a coisa, uma vez que é

importante lembrar sempre que para Locke, o corpo, os sentidos e as ações realizadas

através dele também são propriedade. A partir do momento em que o indivíduo realiza

certo trabalho, transformando a natureza de alguma forma, é justo, de acordo com essa

concepção, que o que fora transformado se torne seu. Há uma relação de consciência

estendida, para usar um termo caro à filosofia da mente, entre a coisa trabalhada e quem

a trabalha: O trabalho constituía a propriedade; não se podia privá-los dela, uma vez que fixassem este trabalho em algum lugar. Assim sendo, percebemos que existe um elo entre o fato de subjugar e cultivar a terra e adquirir o domínio sobre ela. Um garantia o título do outro. Da mesma forma que Deus, ao dar a ordem para subjugar as coisas, habilitou o homem a se apropriar delas. A condição da vida humana, que necessita de trabalho e de materiais para serem trabalhados, introduz forçosamente as posses privadas.11

Locke comete o erro que Nietzsche acusa todos os filósofos que ignoram a

história de cometer. O de colocar os resultados das ações humanas como sua origem. De

colocar o fim no início. Por isso ele enxerga o indivíduo e seu trabalho como a origem

da propriedade, e não consegue ver que é a individuação da propriedade comum que

diferencia um sujeito dos demais. Ele passa a ser proprietário, visto pelo que possui,

haviam sido tomados, não tinha o direito de se queixar nem devia se imiscuir no trabalho que o outro já havia posto em funcionamento; se assim o fizesse, é claro que desejava o benefício do sacrifício do outro, a que não tinha direito, nem à terra que Deus lhe havia dado em comum com os outros para nela trabalhar, pois os espaços disponíveis eram iguais à superfície já tomada e às vezes até superavam os meios de utilização do interessado e o campo de sua indústria.” LOCKE, John, Segundo Tratado sobre o Governo Civil, : ensaio sobre a origem, os limitese os fins verdadeiros do governo civil / John Locke ; introdução de J.W. Gough ; tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. – Petrópolis, RJ : Vozes, 1994 – (Coleção clássicos do pensamento político).p. 101-102. 11 LOCKE, John, Segundo Tratado sobre o Governo Civil, : ensaio sobre a origem, os limitese os fins verdadeiros do governo civil / John Locke ; introdução de J.W. Gough ; tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. – Petrópolis, RJ : Vozes, 1994 – (Coleção clássicos do pensamento político).p. 102

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diferente dos demais que ainda não tem nada. E, se é a ação sobre a natureza que, ao

mesmo tempo em que projeta o indivíduo estabelece a propriedade, não erramos em

dizer que a constituição do indivíduo passa, fundamentalmente, pela criação histórica da

propriedade privada. Marx nos daria indícios disso em sua análise da propriedade pré-

capitalista, em que a propriedade significava a assunção de uma relação de

pertencimento a um grupo ou uma tribo, numa pré-condição para o estabelecimento de

uma vivência intersubjetiva. A análise justificadora de Locke naturaliza a propriedade

privada a ponto de torná-la uma verdade ahistórica e sagrada.

Smith compartilha dessa mesma visão divina e moralizadora da propriedade

privada. Assim como em Smith, em Locke a moralidade permeia a relação de

propriedade, uma vez que fruto de desígnios naturais e divinos, muito anteriores ao

direito e ao Estado.

Segundo Ian Simpson Ross, Smith, ao redigir a “Teoria dos Sentimentos

Morais” manteve-se na tradição da lei natural mantida na Universidade de Glascow,

que enfatiza a natureza intrinsecamente sociável do homem e o incentivo da moralidade

num estabelecimento social. 12 Ainda segundo Ross, “A riqueza das nações” mantém a

crença nos princípios naturais baseados no jus-naturalismo. 13Em outros termos, as

bases da economia smithiana localizam-se na crença em princípios naturais,

especialmente a liberdade e a propriedade, e no ordenamento destes por uma justiça de

fundo moralizante.

Ricardo Feijó destaca que a “Teoria dos Sentimentos Morais” e a “Riqueza das

Nações” são obras complementares. Se a princípio podemos imaginar uma contradição,

pois enquanto na primeira Smith aponta a conduta ética como principal característica da

natureza humana e na segunda obra o agente egoísta como propulsor da procura por

mais riqueza, Feijó aponta que ambas, no entendimento de Smith, se completam na

realidade econômica, uma vez que a busca exclusiva por riqueza, por exemplo, embora

não tenha mérito intrínseco, produz o efeito de angariar a aprovação dos demais pelos

efeitos benéficos que a riqueza pessoal produz na sociedade. 14

O entendimento do pensamento smithiano somente pode ser completado se

levarmos em consideração sua vinculação, mesmo que apenas parcial, às doutrinas

naturalistas e mecanicistas típicas do pensamento filosófico dos setecentos. Sua “Teoria

12 ROSS, Ian Simpson. Adam Smith: uma biografia. São Paulo: Record, s.d., p. 238. 13 ROSS, Ian Simpson. Op. cti., pp. 371-372. 14 FEIJÓ, Ricardo. História do pensamento econômico. São Paulo: Atlas, 2001, p. 126.

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dos Sentimentos Morais” é uma tentativa de rompimento com tais doutrinas. Justamente

em função disso, Smith apega-se ao julgamento, não somente daquele realizado pelo

próprio homem, mas também aquele realizado pela sociedade. Nesse sentido, Smith,

apesar de perceber a desigualdade social, confere a ela uma responsabilidade individual,

na medida em que acreditava que os indivíduos recebiam, todos, as mesmas satisfações. 15

Nicola Abbagnano destaca que a análise econômica de Adam Smith encontra-se

fundada no pressuposto de uma ordem natural, de origem providencial, a qual garante

em todos os casos a coincidência do interesse particular com o interesse da

coletividade. 16 A tal ordem natural a qual fez referência Abbagnano implica na

liberdade pela busca de prosperidade e riqueza, que aflige todos os indivíduos (interesse

particular) e consequentemente beneficia a sociedade (interesse coletivo). Daí resulta

que a condenação a toda e qualquer forma de interferência no campo econômico

defendida por Smith sustenta-se em princípios metafísicos, a saber, a liberdade, definida

apenas pela busca da felicidade (aqui entendida como prosperidade) e guiada tanto pela

ordem natural quanto pelo desígnio providencial.

Além do desígnio divino destacado por Abbagnano a teoria de Adam Smith

pressupunha outro regulador social, a saber, a competição. Como aponta Robert

Heilbroner a competição entre os produtores acarretaria o benefício social na medida em

que ninguém desejaria ser ultrapassado por outrem. Logo, como no livro A Teoria dos

Sentimentos Morais os motivos próprios dos homens transmutam-se por interação para

render o mais inesperado dos resultados: harmonia social. 17 Em outros termos, as duas

obras constituem um complemento da análise social de Smith na medida em que a

Teoria dos Sentimentos Morais discutia as forças morais que restringiam o egoísmo e

uniam as pessoas, enquanto que na Riqueza das Nações o foco voltava-se para mostrar

como o indivíduo é guiado e limitado pelas forças econômicas. 18

Em ambos os casos o moralismo atua como regulador de uma sociedade

relativamente pequena frente a meios de produção (especialmente a terra) ainda muito

fartos. Esta compreensão acerca da propriedade privada exclui, em nossa forma de

15 DENIS, Henri. História do pensamento econômico. Tradução: Antônio Borges Coelho. 4° ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1982, pp. 191-192. 16 ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia vol. 7. 4° ed. Tradução: Antônio ramos rosa e Antônio Borges Coelho. Lisboa: Presença, 2000, p. 23. 17 HEILBRONER, Robert. A história do pensamento econômico. Tradução: Therezinha M. Deustsch & Sylvio Deutsch. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 55. 18 BRUE, Stanley. Op. cit. p. 65.

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entender, todos os aspectos econômicos e sociais que estão por traz dela enquadrando-a

apenas dentro de uma perspectiva jurídica isolada. Dentro dessa perspectiva, a

afirmação de David Hume de que a propriedade privada me parece estar quase tão

segura numa monarquia civilizada européia como numa república19 apresenta-se

perfeitamente natural e correta.

Devemos salientar que Locke, assim como Hume e Smith não poderiam deixar

de recorrer à Moral como fundamento de seus argumentos na medida em que percebiam

a propriedade privada um direito tão natural ao homem quanto a liberdade. Em outros

termos, nenhum dos três pensadores defendeu a idéia de uma sociedade baseada na

desigualdade natural da propriedade uma vez que consideravam o acesso àquela a partir

de argumentos morais. Alguns deles, como o próprio Smith, chegaram a classificar a

desigualdade social como um problema a ser seriamente investigado. Contudo, os

autores em questão sustentavam uma moralidade que gradativamente não condizia mais

com a realidade concreta, ou seja, com as transformações sócio-econômicas que

estavam em curso no período em que escreveram (entre final do século XVII e final do

século XVIII). O descompasso entre os fundamentos morais da propriedade privada e

sua efetivação no plano da realidade concreta justifica-se em função de que o processo

de individualização da propriedade opõe-se à perspectiva social dos princípios morais

defendidos pelos autores.

Nessas análises jurídico-científicas da propriedade, vemos o problema ético da

sua existência e mesmo o questionamento de seu papel histórico ser colocados de lado.

Ainda presos a um paradigma historiográfico voltado para a ideia da história como

progresso e evolução, os juristas só conseguiam mirar a propriedade como fruto de uma

evolução, e, por isso mesmo, já justificada. As relações de dominação e poder político

que a propriedade gerava não passavam mais pela lente discursiva dos filósofos, nesse

momento já pouco preocupados com discussões éticas e jurídicas, e restavam

abandonadas a uma nova classe de “cientistas”: os juristas. Se até o século XVIII

bastava a justificativa moral para naturalizar a propriedade privada, a partir do século

XIX era preciso uma justificativa que se mostrasse científica e racional. Era essa base

que o direito moderno pretendia lançar, com prejuízos éticos ainda não totalmente

contabilizados:

19 HUME, David. Da liberdade civil. In: Hume (Os pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 244.

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O discurso político é conduzido essencialmente do ponto de vista filosófico e com isto se configura em uma parte decisiva como crítica ética da dominação e funda, nesta forma, uma ética filosófica do direito e do Estado. Esta tradição, entretanto, se interrompe durante o século XIX. Sobretudo os grandes filósofos dedicam, quando muito, atenção secundária ao discurso do direito e do Estado. Mais interessados em teoria social, hermenêutica, fenomenologia e teoria da ciência, deixam aos juristas o estudo da teoria do direito e do Estado. Estes não perdem certamente o contato com a filosofia; assim, por exemplo, a escola histórica do direito (F. K. Von Savigny, Jacob Grimm, R. von Jhering, O.von Gierke) se inspirará em Herder e Hegel; Hans Kelsen é inspirado pelo neokantismo e H. L. A. Hart se situa na tradição britânica de Hobbes, no utilitarismo (J. Bentham) e na filosofia analítica do direito. Mas os estímulos filosóficos praticamente não incluem impulsos éticos. Dominam nas ciências do direito e do Estado o historicismo e o positivismo, ambos descrendo da perspectiva ética e, em parte, até recusando essa perspectiva. Com a alienação da filosofia das ciências do direito e do Estado se desenvolve uma alienação de ambos, da ética, perdendo-se com isto a ética do direito e do Estado. Passageiramente, o discurso do direito e do Estado poderá tornar-se, desta maneira, mais concreto do ponto de vista histórico e jurídico. E além disto se liberta do risco de um moralismo precipitado. Perde, entretanto, também a perspectiva da justiça e com ela a crítica discursiva da dominação.20

A partir desse momento a justificação moral da propriedade, forte de Locke aos

economistas liberais como Ricardo e Smith, é substituída pela sua explicação enquanto

categoria jurídica. Não é exagero dizer que a própria ideia de sujeito passa a ser uma

categoria jurídica. A personalidade jurídica é a conversão do patrimônio em vontade,

atrelado ao conceito de liberdade que Smith e Locke já apontavam. Tanto que um

atentado à propriedade ou a posse é, nas palavras de Jhering, um atentado também à

personalidade: Cometer um atentado ou ferir uma relação possessória na qual se realizou, e de certo modo incorporou, a personalidade ( ou a vontade) é atentar ou ferir a personalidade mesma. Dirigir um atentado contra a relação possessória é lesar a personalidade.21

Pasukanis é incisivo ao dizer que não existe sujeito de direito sem propriedade,

pois na verdade é ela, a propriedade privada, o objeto primordial do direito.

3 – A crítica da perspectiva jus-naturalista ou historicizando a propriedade

privada.

20 HÖFFE, Otfried, Justiça Política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado, Martins Fontes, São Paulo, SP: 2006.p.3 21 JHERING, Rudolph Von, Teoria Simplificada da Posse, bibliografia incompleta, pág 85. É importante destacar que a separação entre posse e propriedade que Jhering desenvolve tem o condão de justificar a existência de propriedade privada sem trabalho, sem o exercício de sua “função econômica”. Enquanto algo só tem valor enquanto colocada no mercado, a separação entre posse e propriedade só tem um sentido ideológico, distante da realidade da apropriação e valoração da coisa.

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Até o presente momento apresentamos os argumentos que relacionavam a

propriedade privada ao Direito Natural e, portanto, aos direitos inerentes ao ser humano.

Esta perspectiva, como foi anteriormente mostrado condicionava esse direito natural à

propriedade a um argumento moral. Não poderia ser diferente, uma vez que na ausência

de dados e pesquisas históricas que comprovassem tal argumento, o recurso à Moral era

inevitável.

Somente a partir de meados do século XIX essa argumentação começou a ser

desconstruída. Especificamente, foi em Karl Marx que ela encontrou seu primeiro

grande opositor. Para Marx, a propriedade privada deveria ser historicizada, isto é,

entendida a partir de um processo histórico e enquadrada dentro das necessidades

econômicas e políticas de cada época. Em outros termos, a propriedade privada não

pode ser compreendida a partir de argumentos morais e nem mesmo a partir de uma

visão jus-naturalista, na medida em que essa perspectiva oblitera o real entendimento

sobre seu surgimento.

Friedrich Engels, em obra clássica, destacou a historicidade da propriedade

privada ao discutir a origem das transformações sociais que impuseram essa forma de

propriedade em detrimento da propriedade coletiva. Segundo o autor: O desenvolvimento de todos os ramos da produção – criação de gado, agricultura, ofícios manuais domésticos – tornou a força de trabalho do homem capaz de produzir mais do que o necessário para a sua manutenção. Ao mesmo tempo, aumentou a soma de trabalho diário correspondente a cada membro da gens, da comunidade doméstica ou da família isolada. Passou a ser conveniente conseguir mais força de trabalho, o que se logrou através da guerra. 22

Em outras palavras, a propriedade privada nasceu do acúmulo de bens, fruto da

melhoria das técnicas agrícolas e agropecuárias, fato que gerou a necessidade de

aumento do trabalho diário exercido pelo ser humano e que, por sua vez, acarretou no

surgimento de uma divisão social do trabalho extremamente desigual, na medida em

que se baseava na escravidão, ou seja, na realidade social dividida entre possuidores e

despossuídos.

Podemos criticar Engels por não precisar exatamente quando isso ocorreu apesar

desse assunto pertencer mais ao âmbito da pré-história, ciência que ainda dava seus

primeiros passos à época em que a obra foi produzida. Contudo, suas observações, em

um plano mais geral, estão corretas. Em outra obra, esta marcada por maior precisão

22ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado. In: Karl Marx & Friedrich Engels. Obras escolhidas vol. 3. São Paulo: Alfa-Ômega, s.d., p. 128.

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histórica, Karl Marx, assinala a peculiaridade da propriedade durante o medievo. Nas

palavras de Marx: A propriedade, portanto, significa pertencer a uma tribo (comunidade) ter sua existência subjetivo-objetiva dentro dela e, por meio do relacionamento desta comunidade com a terra, como seu corpo inorgânico, ocorre o relacionamento do indivíduo com a terra, com a condição externa primária de produção – porque a terra é, ao mesmo tempo, matéria-prima, instrumento de trabalho e fruto – como as pré-condições correspondentes à sua individualidade, como seu modo de existência. 23

Evidentemente, as transformações analisadas estruturalmente por Marx e Engels

não ocorreram sem conturbações. Nesse acaso, a análise do historiador Edward

Thompson auxilia-nos no entendimento de tal questão. Estudando as formas de

resistência populares em relação aos cerceamentos dos campos, Thompson destacou que

as pressões por reformas, especialmente na questão da posse e propriedade da terra

geraram reações populares muito intensas e que uma das conseqüências foi o

surgimento do folclore. 24 Ainda acompanhando o raciocínio de Thompsom: (...) frequentemente esquecemos que o laisser-faire emergiu não como a ideologia de alguns lobbies manufatureiros nem como a lorota intelectual produzida pela indústria têxtil algodoeira, mas no grande cinturão cerealista. 25

O que o historiador inglês tentou mostrar foi justamente que a criação da

propriedade privada, nos moldes modernos, isto é, capitalistas, não se deu sem

resistências por parte de boa parte da população. Tal resistência referenda a idéia de que

a propriedade privada não fez parte de um processo natural e muito menos teve base em

um argumento moral. A questão da historicidade, isto é, da procura pelo lado concreto

das instituições modernas corresponde, em Marx, a procura do entendimento da

formação do homem moderno. Nas palavras de Raymond Aron, a história cujo

fundamento é o homem, o homem real, espécie natural, que prossegue com suas metas.

Mas, através do desenvolvimento da atividade humana prossegue, igualmente, como

veremos, o desenvolvimento da história. 26

23 MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas. 5° ed. Tradução: João Maia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 86. 24 THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Tradução: Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 13. 25 THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos ingleses. In: NEGRO, Antônio Luigi & SILVA, Sérgio (orgs.). E. P. Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: EDUNICAMP, 2001, p. 94. 26 ARON, Raymond. O marxismo de Marx. 2° ed. Tradução: Jorge Bastos. São Paulo: ARX, 2005, pp. 212-213.

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Tal análise, apesar de ser oriunda de um crítico do marxismo, corrobora nossa

visão, na medida em que corresponde a uma realidade do pensamento marxista, a saber,

a procura pelo entendimento concreto da realidade humana a partir do estudo das

relações sociais concretas e não de sua sombra jurídica e/ou filosófica. Especificamente

para o caso da propriedade privada, Marx, assim como Engels, procurou entende-la a

partir de pressupostos concretos, neste caso histórico e não no campo abstrato da Moral

ou do direito Natural.

A historicidade da propriedade privada, especialmente quando analisada dentro

do universo burguês/capitalista, passa, obrigatoriamente, pelo entendimento do tempo

da história e este, por sua vez passa, obrigatoriamente, também, pela pluralização do

tempo apresentado pela perspectiva marxista, pois como nos diz Daniel Bensaïd,

somente Marx possibilita tal pluralização na medida em que percebe que o tempo não é

mais o motor da História, seu princípio secreto dinamizado em força, mas a relação

social conflitual da produção e da troca. 27

Em outros termos, se a propriedade privada pode, e deve ser historicizada, isto é,

localizada em um determinado momento histórico e não aceita como eterna e imutável,

ela deve, também, ser entendida, a partir de seu “nascimento” e de seu

desenvolvimento, por um novo prisma, que não leve em consideração apenas seu papel

específico, mas que releve e revele sua dimensão pluri-temporal, ou seja, aquela

associada à exploração específica do trabalho capitalista e que se encontra associada à

questão do tempo de trabalho (produzido e alienado).

Dentro dessa perspectiva, a propriedade privada apresenta-se como o solo de

onde as relações humanas brotam nas mais diversas formas. A formação do indivíduo

moderno é-lhe atrelada de forma indissociável. O discurso moderno enxerga no trabalho

e na liberdade aspectos ontológicos essenciais, sem os quais o agente não se forma. O

trabalho não pode ser entendido sem as divisões que o caracterizam, e sua base está

justamente na propriedade privada.

Para o direito essa divisão é fruto da mera vontade contratual, em que o sujeito

aceita e quer trabalhar por determinado salário. Mesmo em Proudhon e outros autores

críticos do liberalismo a divisão de trabalho é vista como uma forma de simples

categorização de funções e atribuição a pessoas, ainda que gere miséria quando

administrada perversamente. Marx se opõe a essas visões simplistas, mostrando que a

27 BENSAÏD, Daniel. Marx, o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica (séculos XIX e XX). Tradução: Luiz Cavalcanti de M. Guerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 109.

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divisão de trabalho precisa ser historicizada, pensada nos vários contextos e na

complexidade de formas de vida que levou ao desenvolvimento. Na perspectiva

marxista revelar as nuances da divisão de trabalho equivale a desnudar as relações

sociais, despindo as mesmas das vestes naturais que as transvestem para a maioria das

pessoas.28

Como a propriedade pré-capitalista trazia consigo uma relação de pertença, a

uma tribo, a um clã, à uma família, e seu valor era medido pela quantidade de bocas que

poderia alimentar é perfeitamente compreensível que o indivíduo só conseguisse se

enxergar como parte desse todo que ele dividia com os demais. Com o desenvolvimento

do capitalismo, a propriedade começa a ser medida por sua capacidade de gerar lucro e

sua concentração passa a ser o caminho natural, uma vez que a maior riqueza dependia

do maior domínio. Se a propriedade definiu, na antiguidade, a relação entre senhor e

escravo, no feudalismo entre senhor feudal e servo, na modernidade ela passa a definir a

definir a relação entre patrão e empregado. A questão que mais nos importa até aqui é

que, nos momentos anteriores à modernidade o indivíduo ocidental ainda não existia. A

ideia de vontade, por exemplo, fundamental para se definir não só a culpabilidade de um

agente, mas, para nossos olhos modernos, sua relação com a propriedade, não existia na

Grécia até o século IV a.C. A noção de indivíduo, tão própria à modernidade, está

atrelada justamente as relações sociais e ideológicas que a propriedade privada, como

base da economia faz nascer. E é em Marx que iremos buscar essa análise histórica: Foram precisos três séculos inteiros, na Alemanha, para estabelecer a primeira grande divisão do trabalho, que é a separação das cidades e dos campos. À medida que se modificava esta simples relação da cidade com o campo, toda sociedade se modificava. Considerando apenas esta face da divisão do trabalho, teremos as Repúblicas antigas ou o feudalismo cristão; a antiga Inglaterra com seus barões ou a Inglaterra moderna com seus senhores de algodão. Nos séculos XIV e XV, quando ainda não havia colônias, quando a América ainda não existia para a Europa, quando a Ásia só existia por intermédio de Constantinopla, quando o Mediterrâneo era o centra da atividade comercial, a divisão do trabalho tinha uma forma completamente diferente, um aspecto completamente diferente do século XVII, quando os espanhóis, os portugueses, os ingleses, os franceses tinham

28 “A esperança de Marx é que, tão logo sejam “forçados a enfrentar (...) suas verdadeiras condições de vida e suas relações com outros companheiros”, os homens desacomodados das classes operárias se unirão para combater o frio que enregela a todos. Essa união gerará a energia coletiva capaz de alimentar uma nova vida comunitária. Um dos objetivos primordiais do Manifesto é apontar o caminho para escapar do frio, para nutrir e manter unida a aspiração de todos pelo calor comum. Como só podem superar a aflição e o medo pelo contrato com os mais íntimos recursos individuais, os trabalhadores lutarão pelo reconhecimento coletivo da beleza e o valor do indivíduo. O comunismo, quando chegar, será uma espécie de manto transparente, que ao mesmo tempo mudará aquecidos os que vestem e deixará à mostra sua beleza desnuda, de modo que eles possam reconhecer-se aos demais em seu pleno esplendor.” BERMAN, Marshall, Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade, Companhia das Letras, São Paulo, 1986. P. 101.

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colônias estabelecidas em todas as partes do mundo. A extensão do mercado e sua fisionomia dão à divisão do trabalho nas diferentes épocas uma fisionomia, um caráter que seria difícil deduzir da simples palavra dividir, da idéia, da categoria.29

É justamente essa fisionomia que Marx destaca que cria o indivíduo na

modernidade. A propriedade privada gera a divisão de trabalho, a superestrutura

ideológica, a forma de ver o mundo. Se são as condições materiais que criam as

“realidades” metafísicas é preciso condições muito específicas para ver nascer o

indivíduo, esse ser metafísico por excelência, símbolo da modernidade. Se o

cristianismo gera uma visão nova do homem, universalizando sua existência enquanto

imago dei foi somente com o capitalismo e com a nova relação entre propriedade

privada e trabalho que o indivíduo pode surgir. Novas formas de vida foram criadas,

formas antigas foram desmistificadas e muitas vezes abandonadas. O interesse nu criou

um universo de relações. A tudo isso corresponde o indivíduo moderno, o homem

ocidental. O que caracteriza o homem ocidental não é o cristianismo, porque outras

religiões existiram e existem com características muito semelhantes ao cristianismo e a

visão de mundo que ela gera está umbilicalmente ligada às condições materiais da época

em que surgiu.

A metafísica tradicional, fundamento das antigas relações, é substituída por uma

nova estrutura simbólica, forjada sobre a ideia de lucro e interesses particulares. A

dificuldade de sua assimilação se compara a força com que permanece arraigada até os

dias de hoje. O indivíduo enquanto sujeito histórico, criação da modernidade, divide

espaço com outros sujeitos históricos, as classes econômicas. É a oposição das mesmas

que determina o movimento histórico. A ideologia dominante insiste no aspecto egoísta

do indivíduo para que ele não se identifique com a classe a que pertence, para que não

encare suas reais condições de vida e aceite as relações estabelecidas como naturais e

necessárias. Ela substitui a metafísica, se transformando em uma nova estrutura

simbólica que disfarça seu potencial destrutivo: Nas condições atuais, os próprios bens da fortuna convertem-se em elementos do infortúnio. Enquanto no período passado a massa desses bens, na falta de um sujeito social, resultava na chamada superprodução, em meio às crises da economia interna, hoje ela produz, com a entronização dos grupos que detêm o poder no lugar desse sujeito social, a ameaça internacional do fascismo: o progresso converte-se em regressão. O facto de que o espaço higiénico da fábrica e tudo o que acompanha isso, o Volkswagen e o Palácio dos Desportos, levem a uma liquidação estúpida da metafísica, ainda seria indiferente, mas que eles próprios se tornem, no

29 MARX, Karl, A Miséria da Filosofia: resposta à filosofia da miséria de Proudhon, Editora Escala, São Paulo, SP: 2007.p.116.

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interior do todo social, a metafísica, a cortina ideológica atrás da qual se concentra a desgraça real não é indiferente.30

Nesse ponto, torna-se necessário que a interpretação ideológica burguesa confira

um sentido ahistórico tanto da propriedade quanto do indivíduo. É preciso que ele seja

visto como se tivesse existido desde sempre, imune aos ventos da história. O indivíduo

enquanto construção sócio-histórica não pode ser admitido, porque seria necessário

admitir sua extinção futura. Em verdade não passa o indivíduo ocidental moderno de

uma interpretação burguesa das relações de produção. É preciso que a propriedade,

agora diferenciada, se atrele a “algo”, e esse algo é o indivíduo. Mas, o que

individualiza a propriedade então? Aí é que está. Em verdade ela nunca é

individualizada. Sua separação da propriedade comunal é também uma relação

simbólica, por vezes até mística. Interessante lembrar que na transitio romana, aquele

que transfere a propriedade precisa dar três voltas ao redor da coisa antes de passá-la a

quem a recebe. Esse ritual, um tanto ridículo, foi substituído progressivamente pelas

formalidades jurídicas, pelos contratos e escrituras, que pretendem reforçar a ilusão de

que realmente de que o proprietário possui com a propriedade a mesma relação que

possui com os membros de seu corpo: No direito privado, exprimem-se as relações de propriedade existentes como sendo o resultado de uma vontade geral. O próprio jus utendi e abutendi exprime, por um lado, o fato de que a propriedade privada se tornou completamente independente da comunidade e, por outro lado, a ilusão de que essa propriedade privada repousa sobre a simples vontade privada, sobre a livre disposição das coisas. Na prática, o abuti tem limites econômicos bem determinados para o proprietário privado, se este não quiser ver sua propriedade, e com ela seu jus abutendi, passar para outras mãos; pois, afinal de contas, a coisa, considerada unicamente em sua relações com a vontade, não é absolutamente nada, mas somente no comércio, e indepentemente do direito, torna-se uma coisa, uma propriedade real (uma relação, aquilo que os filósofos chamam uma idéia)31

Essas relações, posteriormente justificadas pelo arcabouço jurídico, tem sua

origem na forma de produção hegemônica e é, justamente esse aspecto que,

desconsiderado pelo pensamento burguês, é fundamental para explicar a formação do

homem ocidental. Cada forma de produção, em sua época específica, exige uma nova

forma de vida, produzida por ela. Para olhos eminentemente burgueses o trabalho não

produz nada além de objetos, mercadorias. Mas a reprodução social do trabalho

30 ADORNO, Theodore, HORKHEIMER, Max, Dialética do Iluminismo, in Os Pensadores – Adorno, Editora Nova Cultural Ltda, São Paulo, 1999 31 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, A ideologia alemã, Martins Fontes, São Paulo, SP: 1998.p.76

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condiciona indelevelmente a formação ontológica de sua época, se, em verdade, não a

determina.

Se, na esteira de Foucault, as relações de poder formam novos sujeitos, tal é

mais verdadeiro no que tange as relações de poder nascidas das formas de produção.

Um exemplo interessante disso seria a conformação dos gêneros. Engels argumenta

nesse sentido, colocando as relações entre homem e mulher como fruto das formas de

produção. Para ele isso é mais claro com a família monogâmica, formada com o fito de

legar aos filhos a propriedade privada do pai. Ou seja, o intuito primordial da família

monogâmica, como a conhecemos até os dias de hoje, seria unicamente patrimonial, o

de garantir a permanência da propriedade enquanto propriedade privada sem permitir

seu retorno ao patrimônio comum. Nesse ponto é interessante notar que o assim

chamado direito de família, bem como o direito sucessório, reafirmam essa verdade. As

questões familiares, vistas pela moral burguesa como questões de sentimento e de

entrega quase religiosa, ou como o espaço de união entre duas pessoas é mostrada pelo

direito familiar, em seu núcleo mais intocável. O direito de família nos mostra que todas

as discussões sobre o casamento monogâmico deságuam, inevitavelmente, na discussão

maior sobre a titularidade da propriedade dos bens desse casamento. Incapaz de lidar

com condutas humanas desligadas da propriedade, o direito nada faz além de reafirmá-

la, naquilo que ela tem de mais cruelmente peculiar, ou seja, sua inexistência para uma

grande maioria das pessoas. As disputas conjugais são um sintoma poderoso de toda

essa problemática. Não é a toa que Marx declara que a primeira divisão de trabalho “é a

que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos” 32

Tanto Gramsci quanto Althusser repensam a relação entre estrutura de produção

e superestrutura ideológica para encontrar respostas mais elaboradas sobre a

conformação social do que essa divisão, simplista até certo ponto, segundo eles, pode

oferecer. Frigga Haug33 concorda, e diz que isso é mais verdade no que tange as

relações de gênero. Contudo, existe um ponto de concordância entre eles: de que todas

essas relações, seja as de produção e sua divisão de trabalho, seja a de (re) produção

social, seja a própria identificação ontológica do homem, orbitam a propriedade privada.

32 ENGELS, Friedrich, A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Ed. Escala, São Paulo, SP: 2007, p.75. 33 HAUG, Frigga, Para uma teoria das relações de gênero, in A teoria Marxista Hoje: problemas e perspectivas/compilado por Atílio A. Boron; Javier Amadeo; Sabrina Gonzáles – 1ª Ed. Buenos Aires: Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais – CLACSO, São Paulo: Expressão Popular, 2007, pág 313-326

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A política da divisão de gêneros, bem como a ontologia do ser humano são

instâncias simbólicas geradas pelas relações materiais de sua época, e modificadas

quando essas relações mudam. Ainda que exista certa autonomia nessa instância

ideológica, no último momento o que a define é base material. A propriedade privada,

nesse sentido, altera a percepção que o homem tem do mundo a ponto de criar um outro

homem e um outro mundo para ele: Partimos de homens reais e ativos, e, com base em seu processo de vida real, demonstramos o desenvolvimento dos reflexos e dos ecos ideológicos do processo de vida. Os fantasmas criados no cérebro humano são também, necessariamente, idealizações de seu processo de vida material, que é empiricamente verificável e ligado a premissas materiais. Moralidade, religião, metafísica – toda a ideologia restante e suas formas de consciência correspondentes – deixam então de parecer independentes. Não tem história nem desenvolvimento; os homens, porém, ao desenvolverem sua produção material e suas relações materiais, alteram além disso sua existência real, seu pensamento e os produtos do seu pensamento. A vida não é determinada pela consciência, mas a consciência pela vida. 34

O ignorar essas condições materiais, todo o processo de construção da vida real

é que leva o pensamento burguês à incapacidade de resolver os problemas que ele se

coloca. A visão, turvada pelas névoas do unicamente transcendente, não atinge o fundo

das questões mais vitais. O homem é aceito então como um ser ahistórico, pré-dado, que

conforma a realidade de acordo com sua vontade soberana, fruto do poder concedido a

ele por Deus, seu pai de quem é imagem e semelhança. As relações familiares seriam a

união sagrada com o fim de manter a espécie, e a família monogâmica o ápice da

conciliação entre homem e mulher. Esses enganos ideológicos transformam-se no

horizonte existencial do homem, incapaz de questioná-lo, a não ser que o inclua numa

perspectiva histórica. É o que Engels faz com a família, basicamente com a família

monogâmica, mostrando como um conceito visto até então, como natural, fruto da

evolução das relações entre homem e mulher, tem sua origem em formas de dominação

e controle muito mais profundas: Surge, conforme foi demonstrado, da família pré-monogâmica, no período de transição entre a fase média e a fase superior da barbárie. Seu triunfo definitivo é uma das características da civilização nascente. Baseia-se no domínio do homem com a finalidade expressa de procriar filhos cuja paternidade fosse indiscutível e essa paternidade é exigida porque os filhos deverão tomar posse dos bens paternos, na qualidade de herdeiros diretos. A família monogâmica se diferencia do casamento pré-monogâmico por uma solidez muito maior dos laços conjugais que já não podem ser rompidos por vontade de qualquer das partes. Agora, como regra, só o homem pode rompê-los e repudiar a mulher. Ao homem, igualmente, é concedido o direito

34 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, The German Ideology, 1978:5, apud. MORRISON, Wayne, Filosofia do Direito: dos gregos ao pós-modernismo, Matins Fontes, 2006, pág.307.

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à infidelidade conjugal, sancionado ao menos pelo costume ( o Código de Napoleão outorga-o expressamente ao homem, desde que não traga a concubina ao lar conjugal), e esse direito se exerce cada vez mais amplamente, à medida que se processa o desenvolvimento social. Quando a mulher, por acaso, recorda as antigas práticas sexuais e tenta renová-las, é punida mais rigorosamente do que nunca.35

As bases da nossa política de dominação, de nosso carnofalologocentrismo, para

usar uma expressão sintomática de Derrida36, são relações materiais que estruturam

nossa forma de produção. Se nossa hipótese está correta, a propriedade privada, como

base da divisão de trabalho, cria uma nova forma de produção social responsável pela

existência do indivíduo, modelo ontológico do homem ocidental. A pertinência dessa

hipótese se mostra maior no atual momento histórico, uma vez que as metanarrativas

que justificavam o homem ocidental não tem mais a força que um dia demonstraram ter

e, contudo, a identificação do homem branco ocidental ainda permanece. Isso decorre

do fato de que a base dessas metanarrativas ainda permanece, ou seja, a propriedade

privada, a condição material para essas realizações ideológicas, ainda existe. As

mudanças históricas na relação do homem com a propriedade é que levaram ao

descrédito das antigas formas de explicação do mundo, mas sua base ainda permanece.

Normativamente é interessante notarmos que formas pré-romanas de direito nos

são praticamente incompreensíveis, mas que o direito romano, apesar de todos os

séculos que nos separam de sua época, ainda é acessível a nossa inteligência. Tal não se

dá por ser o direito romano a base histórica de nossa formação jurídica, como muitos

querem fazer crer, mesmo porque durante o Sacro Império, a influência do direito

bárbaro foi até maior do que a do direito romano, iminentemente imperial e incapaz de

regular as situações da época. Nossa capacidade de compreender o direito romano vem

do fato de que a propriedade privada em moldes romanos é muito próxima da

propriedade privada que conhecemos. Ainda que suas nuances tenham gerado formas de

produção diferentes da nossa, em essência é a mesma propriedade. Inclusive o seu não-

existir para a maioria esmagadora da população.

Essa propriedade realmente “privada” de nove décimos das pessoas é o que as

define enquanto sujeitos de direito. Mesmo os direitos presentes na declaração dos

direitos do homem, com seu caráter universal, não as beneficiam, porquanto o homem

35 ENGELS, Friedrich, opus cit. p.72. 36 DERRIDA, Jacques, Força de Lei: o fundamento místico da autoridade, Martins Fontes, São Paulo, SP: 2007.

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objeto dessa declaração é o homem que possui alguma relação com a propriedade

privada, ainda que seja lhe servindo, enquanto empregado em uma linha de produção.

Nesse sentido Kant estava errado e o centro do conhecimento continua sendo o

objeto, ainda que esse seja o homem identificado ao objeto, o homem que se reifica em

um mundo que tem seu centro nos objetos e na mercadoria como forma primordial de

valor. Nessa realidade, que no atual momento impera com um vigor cruel, pouco resta

ao humano se conformar à situação de coisa, de objeto. O processo de humanização

deságua, perversamente, num processo de reificação do homem: O objeto é aquilo que desapareceu no horizonte do sujeito e é do fundo desse desaparecimento que ele envolve o sujeito em sua estratégia fatal. É então o sujeito que desaparece no horizonte do objeto. Isso é verdade para o objeto sexual, poderoso por sua ausência desejo, isso é verdade para as massas, poderosas por seu silêncio. O desejo não existe, o único desejo é ser o destino do outro, tornar-se para ele o acontecimento que excede qualquer subjetividade possível, que absolve o sujeito de seus fins, de sua presença e de toda a responsabilidade quanto a ele mesmo e ao mundo, numa paixão enfim definitivamente objetiva. A possibilidade, a vontade do sujeito de se situar no centro transcendental do mundo e se imaginar como causalidade universal, sob o signo de uma lei que ele continua dominando, essa vontade não impede o sujeito de invocar o objeto em segredo como amuleto, como talismã, como figura de inversão de causalidade, como local de uma violenta hemorragia de subjetividade. “Por trás da subjetividade das aparências, existe sempre uma objetividade oculta”. Todo o destino do sujeito passa pelo objeto. A ironia substitui a causalidade universal pelo poder fatal de um objeto singular. 37

E essa inversão, fatal em seu movimento e inarredável em sua objetividade, em

que o humano é substituído pela condição do objeto, em sua iminência parda é o que

marca o homem ocidental. É seu signo e seu legado, o medir-se pelas coisas, ainda que

as transcenda a ponto de criar outra dimensão, com deuses piedosos, demônios

tentadores, culpa e redenção. Como o personagem de Becket ao contemplar pela última

vez seu espelho: “leve-o daqui, ele não precisa mais de mim.”

37 BAUDRILLARD, Jean, As estratégias fatais, Rocco, Rio de Janeiro, RJ, 1996, p. 103,

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