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43 Ciclo “Noventa anos de arte moderna” * Poeta, autor de, entre outros, Rua do mundo (2004), Cinemateca (2008) e Sentimental (2012). Também é professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – e desde 2010 atua como consultor de literatura do Instituto Moreira Salles. Como ensaísta, publicou Vinicius de Moraes (2006), na coleção Folha Explica. A proposta modernista: ruptura cultural Eucanaã Ferraz M ário de Andrade abre sua célebre conferência de 1942 refe- rindo-se ao Modernismo em termos amplos: “manifestado especialmente pela arte”, teria “manchando com violência os costu- mes sociais e políticos”. 1 Mais ainda: teria sido “o prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional”. 2 Ao nomear a resultante modernista como “estado de espírito”, Mário parece, à primeira vista, incorrer numa generalização ou num juízo vago. Mas era ainda o parágrafo de abertura do texto e o conferencista, no desenrolar de sua exposição, voltaria às afirmações iniciais revendo-as sob lente mais acurada e detalhista. Julgo, no en- tanto, poder ver naquela mirada crítica menos o esboço de motivos * Conferência proferida em 5 de junho de 2012. 1 “O movimento modernista”, in.: Aspectos da literatura brasileira, São Paulo: Martins, 6. a ed., 1978, p. 231. 2 Idem.

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C i c l o “ N ov e n ta a n o s d e a rt e m o d e r n a ”

*

Poeta, autor de, entre outros, Rua do mundo (2004), Cinemateca (2008) e Sentimental (2012). Também é professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – e desde 2010 atua como consultor de literatura do Instituto Moreira Salles. Como ensaísta, publicou Vinicius de Moraes (2006), na coleção Folha Explica.

A proposta modernista: ruptura cultural

Eucanaã Fer raz

Mário de Andrade abre sua célebre conferência de 1942 refe-rindo-se ao Modernismo em termos amplos: “manifestado

especialmente pela arte”, teria “manchando com violência os costu-mes sociais e políticos”.1 Mais ainda: teria sido “o prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional”.2

Ao nomear a resultante modernista como “estado de espírito”, Mário parece, à primeira vista, incorrer numa generalização ou num juízo vago. Mas era ainda o parágrafo de abertura do texto e o conferencista, no desenrolar de sua exposição, voltaria às afirmações iniciais revendo-as sob lente mais acurada e detalhista. Julgo, no en-tanto, poder ver naquela mirada crítica menos o esboço de motivos

* Conferência proferida em 5 de junho de 2012.1 “O movimento modernista”, in.: Aspectos da literatura brasileira, São Paulo: Martins, 6.a ed., 1978, p. 231. 2 Idem.

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a serem desenvolvidos adiante que uma síntese plena de sugestões. “Arte”, “violência”, “costumes sociais e políticos”, um passado sem limites defini-dos, no qual se “prenunciava”, “preparava” e “criava” o futuro: a assemblage, sob o título “estado de espírito”, parece-me, na sua vagueza conceitual, tocar em pontos importantes. Julgo ser possível, então, pensar as transformações artística dos anos 1920, especificamente aquelas do entorno da Semana de 22, à procura não do fato positivo, mas do vago, do espiritual, da atmosfera. Apurar nomes, fatos, locais, datas, sim, imaginando de saída, porém, poder vislumbrar ali a imaterialidade que se desprende de toda matéria, que pode-mos chamar de “estado de espírito” ou de cultura.

A busca por fatores ou fatos decisivos também guia a conferência de Mário de Andrade. Quem não se lembra da afirmação categórica de que as obras de Anita Malfatti e Victor Brecheret foram as alavancas da nova sensibilidade, responsáveis pelo surgimento dos “primeiros modernistas... das cavernas”3? Quanto às ressonâncias da exposição de Anita, Mário observa:

“Com efeito: educados na plástica “histórica”, sabendo quando muito da existência dos impressionistas principais, ignorando Cézanne, o que nos levou a aderir incondicionalmente à exposição de Anita Malfatti, que em plena guerra vinha nos mostrar quadros expressionistas e cubistas? Parece absurdo, mas aqueles quadros foram a revelação.”4

Mas demoraria até que a “revelação” ganhasse sua forma literária. Momen-taneamente, tudo não passava de “um fenômeno estritamente sentimental, uma intuição divinatória, um... estado de poesia”5. Quanto ao atraso das letras em relação às formas que acabavam de descobrir, é igualmente conhecida ou-tra recordação de Mário:

3 Idem.4 Idem, p. 232.5 Idem.

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“(...) delirávamos de êxtase diante de quadros que se chamavam o “Ho-mem Amarelo”, a “Estudante Russa”, a “Mulher de Cabelos Verdes”. E a esse mesmo “Homem Amarelo” de formas tão inéditas então, eu dedicava um soneto de forma parnasianíssima...”6

Ao episódio, viria somar-se a descoberta, feita inicialmente por Meno-tti del Picchia e Oswald, do escultor Victor Brecheret. É o próprio Mário quem afirma: “Brecheret ia ser em breve o gatilho que faria Pauliceia desvairada estourar...”7

Memória social e pessoal se confundem. Ou, ainda, autobiografia e histó-ria da cultura se solidificam num só molde, a fala de Mário de Andrade, que acabaria por forjar na historiografia de nossa literatura a versão mais corrente: as artes plásticas foram o motor da poesia e da arte modernistas, bem como de sua festa no Teatro Municipal de São Paulo. Com isso, perdeu-se de vista que, já em 1913, uma exposição individual de Lasar Segall mostrara no Bra-sil, pela primeira vez, algumas pinturas expressionistas. De qualquer modo, a mostra não chamou atenção suficiente para engendrar adesões e espalhar sua sensibilidade moderna.

Mário da Silva Brito adota sem problemas o quadro descrito por Mário e afirma:

“O movimento modernista tem, nos seus primórdios, dois fulcros. Um é Anita Malfatti. Outro é, agora, Victor Brecheret. Em torno deles giram os vanguardistas da primeira hora. A pintura primeiro e a escultura depois, estão na raiz do movimento.”8

É bem esta a direção tomada por Aracy Amaral no livro Artes plásticas na Semana de 22. Porém, diante de sua convicção de que os artistas plásticos foram

6 Idem.7 Idem, p. 233.8 Mário da Silva Brito, História do Modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna, 5.a ed., Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1978, p. 114.

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idealizadores e inspiradores da Semana, outro importante estudioso do perío-do, Joaquim Inojosa, lança dúvidas e faz ponderações. Ainda que lhe pareça certo que a exposição de Anita Malfatti, graças às críticas de Lobato, seja considerada um “estopim”, julga mais correto colocá-la ao lado de outras obras pioneiras, como a prosa de Adelino Magalhães, que estreara em 1918, Carnaval, de Manuel Bandeira, publicado em 1919 – do qual, observa, cons-ta o poema “Os sapos” – e Estética da vida, livro que Graça Aranha trouxera pronto da Europa em 1921, sem conhecer os quadros de Anita. Além disso, Inojosa observa:

“Não foi de pintores ou escultores, mas sim de escritores, a caravana que São Paulo enviou ao Rio em outubro de 1921, a fim de convidar os cario-cas a participar da Semana próxima. E não levariam pintura ou escultura como chamariz, mas sim Pauliceia desvairada, para ser lida pelo próprio autor, integrante da embaixada...”9

Para o crítico, o correto seria “admitir que artes plásticas, poesia e prosa se misturaram, sem predominância, no caldeirão do modernismo iniciático (...)”.10

É curioso que Inojosa se refira à leitura de Pauliceia desvairada no Rio de Janeiro e não faça menção à conferência de seu autor em 1942. Também seria preciso considerar que, anterior à leitura do livro, está, obviamente, sua gê-nese, e que esta, segundo Mário de Andrade, se deveu às telas expressionistas de Anita Malfatti e à “Cabeça de Cristo”, de Brecheret. Quanto ao fato de a caravana paulista – composta por Mário, Oswald e Armando Pamplona – não ter levado quadros e esculturas para o Rio, pode-se imaginar a dificuldade de tal empresa, tornando-se também dispensável a presença de pintores ou es-cultores. Além disso, Pauliceia desvairada parecia ser, e o foi, de fato, uma síntese

9 Joaquim Inojosa, “Artes plásticas”, texto datado de 24.11.1971, publicado em Os Andrades e outros aspectos do modernismo, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975, pp. 116-117.10 Idem, p. 117.

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pedagógica das propostas modernistas. À pintura e à escultura, bem como à música e à arquitetura, caberiam outras empreitadas.

Também vale notar que Aracy Amaral não se contrapõe à ideia final defen-dida por Inojosa, a de que, “no caldeirão do modernismo iniciático”, poesia, prosa e artes plásticas se baralharam sem predomínio de umas sobre as outras. Diz ela:

“(...) o alarido foi bem maior que o escândalo que os trabalhos mos-traram. Contudo, as artes visuais não se apresentaram sós, e a fúria dos passadistas se ergueu contra o movimento em si e pelo conjunto das dis-sonâncias que assinalou em relação às manifestações artísticas consagradas até então, fosse música, fosse pintura e escultura e poesia.”11

Wilson Martins também se deteve no que chamou “Caso Anita Malfa-tti”. Inicia sua crônica afirmando que “não é exato ter sido a arte moderna recebida com hostilidade no Brasil”, concluindo que “o contrário seria mais verdadeiro”12. Após se referir a uma boa recepção à exposição de Lasar Segall em 1913, afirma que o mesmo se passou com Anita, referindo-se a uma crítica – presumivelmente de Nestor Rangel Pestana – favorável à sua primeira indi-vidual, em maio de 1914. Wilson Martins não consigna o fato de que Rangel Pestana era amigo da jovem pintora e da família, e que, na verdade, apenas to-mara o cuidado de incentivar um talento que despontava: “É uma vocação que merece ser animada e que se apresenta ao público com documentos eloquentes do seu esforço e do seu amor ao estudo.”13 Mas, sobretudo, Wilson Martins não avalia que Anita, nessa primeira exposição, mostrara quadros em que as pinceladas buscam alguma liberdade, mas nos quais o colorido é ainda rea-lista, convencional, como convencionais são as composições e a relação entre

11 Aracy Amaral, Artes plásticas na Semana de 22; subsídios para uma história da renovação das artes no Brasil, 4.a ed., São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 141.12 Wilson Martins, A ideia modernista, Rio de Janeiro: Topbooks/Academia Brasileira de Letras, 2002, p. 30.13 Op. cit, p. 43.

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figura e fundo; às figuras humanas falta energia e as paisagens denunciam um olhar ainda restrito ao aprendizado impressionista, acrescentando-se a isso uma técnica apenas incipiente. São pinturas, portanto, infinitamente distantes daquelas da célebre exposição de 1917. Daí as diferentes acolhidas. Exemplar é que o mesmo Nestor Pestana, ao ver os quadros produzidos depois da pri-meira mostra, fez a seguinte advertência à artista: “Não nos desaponte.”14 As afirmações de Wilson Martins – que a pintora “sempre encontrou nos perió-dicos mais conservadores uma larga margem de simpatia”15 e que iniciou sua carreira “sob os melhores auspícios”16– devem ser vistas com muita atenção. E, a elas, o crítico acrescenta que mesmo o artigo de Lobato “foi lido mais no título” – “Paranoia ou mistificação?” –, “do que no texto, onde será difícil apontar o que não se contenha dentro dos limites normais de uma crítica desfavorável.”17

Até o aparecimento do texto de Monteiro Lobato, a recepção inicial à ex-posição, segundo Mário da Silva Brito, mostrava, com efeito, alguma simpatia. Os trechos selecionados em História do modernismo brasileiro mostram, contudo, um misto de estranhamento, esquiva e aceitação. O conjunto deixa emergir uma hipótese: os esclarecimentos de que aquela era a arte que se fazia na Europa talvez impedissem uma recusa mais convicta, muito embora também faltasse convicção à boa acolhida, que praticamente se limitava a reconhecer na pintora “um formoso e original talento”.18 A superficialidade de salão que salta daqueles trechos não deixa dúvidas quanto ao mundo das artes plásticas em São Paulo, tanto do lado dos artistas quanto da crítica, se é que se pode falar em crítica.

Quanto à diferença entre a recepção das exposições de 1914 e 1917, Mário da Silva Brito observa ainda que o jornal O Estado de S. Paulo, que abrira “um grande crédito” à pintora em 1914, limitou-se, na mostra de 1917, a “dar

14 Mário da Silva Brito, op. cit., p. 56.15 Wilson Martins, op. cit., p. 30.16 Idem, p. 31.17 Idem.18 Mário da Silva Brito, op. cit., p. 51.

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notícias, sem emitir opinião própria”19. É estranho que Wilson Martins iguale as duas reações, substituindo, na segunda, a carga negativa por uma positivida-de auspiciosa. Mais inusitado ainda é que o crítico tenha avaliado o texto de Monteiro Lobato como estando “dentro dos limites normais de uma crítica desfavorável”. Era preciso observar, em primeiro lugar, a completa ignorância de Lobato. Não vale a pena citar as gaiatices de maior ou menor violência, mas passagens de conservadorismo inculto como esta:

“Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo nem da latitude. As medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na cor, decorrem do que chamamos sentir.”20

Lobato alterna momentos de transigência paternalista com observações em que a estupidez busca se confundir com uma sinceridade objetiva e crítica:

“Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e “tutti quanti” não passam de outros tantos ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado.”21

No extremo oposto de Wilson Martins, Mário da Silva Brito afirma: “Lo-bato foi cruel, além de incapacitado para o mister que exercia.”22

Como sabemos, a inépcia e a grosseria de “Paranoia ou desmistificação?” acabaram por reunir em torno de Anita os futuros modernistas – e alguns sequer se conheciam ainda, como Mário e Oswald –, o que desencadearia, adiante, o próprio movimento e a programática Semana de 1922, que serviria como declaração pública das razões que justificavam atos e obras e em que se

19 Idem.20 Idem, p. 53.21 Idem, p. 55.22 Idem, p. 60. É preciso, a esta altura, resistirmos à vontade de acompanhar passo a passo as análises de Wilson Martins, plenas de mal-entendidos, nascidos talvez de uma vontade de recolocar as consagradas leituras do Modernismo sob um certo olhar desmistificador. O resultado, no entanto, não raro é a má vontade e o equívoco.

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fundamentava a estética modernista. Mas se o ideal vanguardista da ruptura emergia inequívoco nos discursos dos artistas que participavam do evento, uma observação mais atenta das obras mostra o quanto o Modernismo se limitava a um “estado de espírito”, sem formas definidas ou, sobretudo, definidoras de um propósito. No saguão do Teatro Municipal acotovelavam-se, por exemplo, o neo-impressionismo de Vicente do Rêgo Monteiro, o Expressionismo das telas de Anita – que participou grandemente com telas da exposição de 1917 – e as estilizações de Brecheret. Mas a indecisão não se resumia ao choque entre linguagens adotadas por diferentes artistas, marcando antes a procura de caminhos nas obras de um mesmo criador. Nesse sentido, é exemplar o caso de Di Cavalcanti, cujos trabalhos, conforme observa Aracy Amaral, aponta-vam “uma oscilação ansiosa”, pois,“procedente da arte da caricatura, entre o ‘art-nouveau’, um pós-impressionismo, o expressionismo e a estilização”, o pintor “ensaiava também a simplificação de planos abolindo a perspectiva, com tentativa de utilização de cores sem a preocupação do volume”.23

Não são poucos os exemplos de incoerência ou dispersão que emprestaram ao conjunto das obras da Semana de 22 a feição de um ecletismo inconscien-te, por vezes decorrente da hesitação e do desconhecimento, ou da informa-ção superficial, diluída, sem forças para definir escolhas. Havia, no entanto, algo em comum e que não pode ser desconsiderado como valor: o desejo de choque e ruptura. Cito, mais uma vez, Aracy Amaral:

“O objetivo era deliberadamente o chocar. Não havia diretrizes, nem certezas, ao contrário, as oscilações eram muitas. Mas, em apresentando trabalhos que contradiziam aquilo que as exposições regularmente mostra-vam na S. Paulo pacata, o objetivo estava alcançado.”24

A Semana definiu-se, portanto, mais pelo seu “estado de espírito” que pelas obras em si mesmas ou pelo seu conjunto. A ruptura com o que se

23 AracyAmaral, op. cit., p. 95.24 Idem, p. 137.

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nomeou “passadismo” uniu poetas e prosadores, pintores, escultores e arqui-tetos, músicos e compositores. O termo é impreciso – “passadismo” – mas não se confunde com algo bem mais abrangente, “o passado”. Além disso, a imprecisão talvez fosse inevitável, tendo em vista o ambiente artístico e literário de então. Recorro a um texto esclarecedor, “A poesia em São Paulo – Breves apontamentos sobre os vivos”, em que Plínio Salgado tenta uma visão de conjunto da obra dos vários poetas em atividade naquele ano de 1922. A constatação inicial é a de que a poesia, como toda a literatura paulista, mos-trava-se como “expressão [...] complexa de tendências e influências”.25 E ainda: “Todas distintas e interindependentes, as musas dos nossos aedos denunciam personalidades que se acotovelam no cosmopolitismo ambiente e fases da nossa evolução literária estacionadas ou cristalizadas”.26 O conjunto parece ser uma “mostra de variedades”,27 com direito a “neoclássicos, românticos, parnasianos, filosóficos, simbolistas, neoparnasianos, regionalistas, futuristas, nefelibatas e revolucionários independentes”.28 Mas Plínio Salgado prossegue em sua lista: “Não nos faltam mesmo os líricos de boulevard e – pasmem os políticos – uma certa tendência (que não tem ido além de ensaios) para a poesia ruflante das cruzadas sociais”.29 O tom irônico permanece quando os poetas da Semana de Arte Moderna vêm à cena, mesmo sem serem nomeados, comprovando-se a tese de que a poesia daquela hora vivia uma total ausência de orientação:

“Como se vê, não temos uma escola literária predominante. Se precon-ceitos de tal natureza existiam, eles ruíram com fragor na recente carnava-lada futurista que, se revelou certa orientação e, talvez, quase uma indiges-tão de cultura, patenteou, perante um grande auditório escandalizado, que

25 Plínio Salgado, “A poesia em São Paulo – Breves apontamentos sobre os vivos”, Ilustração Brasileira, Rio de Janeiro, n.o 28, 22.09.1922. In.: 22 por 22: a Semana de Arte Moderna vista pelos seus contempo-râneos, org. Maria Eugênia Boaventura, São Paulo: EDUSP, 2002, p. 325.26 Idem, p. 326.27 Idem, p. 327.28 Idem.29 Idem.

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o rebanho apascentado pelo Tratado de versificação de Bilac tresmalhara, revoltando-se e renegando o apolíneo zagal.”30

Diante de tal quadro, Salgado defende que o crítico “não poderá passar de um anotador.”31 Seguindo este preceito, passa a comentar brevemente as obras de 45 poetas. Entre eles, Guilherme de Almeida e Menotti del Picchia – vis-tos com reservas e alguma ironia –, Cassiano Ricardo, que estaria “entre os parnasianos rebuscados”, e, por último, Mário de Andrade:

“Sobre este poeta, que merece lugar de destaque no movimento de nos-sas letras pelo grande pensamento que traz escoltado por uma farândola de disparates, pretendemos falar mais longamente em outra oportunidade.”32

A ainda:

“O autor de Pauliceia desvairada, e adepto do “futurismo” radical, embora o negue, plasma os seus pensamentos no barco das expressões bem humo-radas peculiares ao mulato brasileiro.”33

Do outro lado do vago, impreciso e contraditório “estado de espírito” mo-dernista estava formado, portanto, “um estado de espírito” antimodernista.

É certo, porém, que havia, anteriores e contemporâneos ao Modernismo dos anos 1920, aqueles que não se subjugavam às leis do academicismo ou do beletrismo, artistas e escritores que procuravam soluções originais, fecundas, pessoais. Mas também é preciso considerar que estes agiam por determinação própria, inclinações pessoais; e, talvez por consequência de tal isolamento num ambiente hostil a mudanças, não raro evitavam embates mais traumáticos com

30 Idem.31 Idem, p. 328.32 Idem, p. 341.33 Idem. O livro transcreve “expressões bem namoradas”

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o esteticismo e o ecletismo herdados do século XIX, que, simultaneamente, buscavam superar. 34

Pintores, escultores, arquitetos, mas também poetas, romancistas, músicos, jornalistas e professores criavam e trabalhavam visando à adequação total ou parcial de suas inquietações ao sistema vigente. São Paulo e Rio de Janeiro, sob esse aspecto, não se diferenciavam. O Salão da Escola Nacional de Belas-Artes, sem dúvida o mais importante acontecimento no mundo das artes brasileiras, dava a medida de como as coisas se passavam. Em 1928, Manuel Bandeira, o mais equilibrado dos modernistas, escreveria:

“Para mim, bem entendido, o salão é uma galeria grotesca aonde vou mais para exercer o senso humorístico. Não me pode interessar de outra maneira aquela exibição de um monótono realismo anedótico.”35

E, adiante, acrescenta:

“Dos velhos mestres só se salva a contribuição de Visconti. Esse pintor nada trouxe de novo à nova pintura. Quando moço, pintou sob a influên-cia dos pré-rafaelitas algumas telas que ainda hoje representam o melhor da sua obra. As Oréades, que figuram na pinacoteca da Escola, são, sem dúvida, uma bela composição. Depois que o artista voltou à Europa para executar o teto do Municipal, tão insignificante como desenho, construção e colorido, adotou a técnica impressionista, na qual até hoje persiste como retardatário. Em todo o caso, as suas telas se não chegam a interessar, tam-bém não provocam irreverência.”

34 Na pintura, o Impressionismo quase sempre era até onde iam esses artistas em suas fugas para longe dos moldes acadêmicos. Uma pintora como Georgina de Albuquerque é um caso exemplar, seja por seu papel pioneiro ao lado do marido, Lucílio de Albuquerque, quando praticamente inauguraram o Impressionismo em terras brasileiras, o que significou uma forte reação à pintura acadêmica, seja pela permanência dentro dos limites do Impressionismo até sua morte, em 1962.35 Manuel Bandeira, “O Brasil que insiste em pintar”,A Província, 13.09.1928. In.: Crônicas inéditas 1, 1920-1931, Org. Júlio Castañon Guimarães, São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 132.

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“O mesmo não se pode dizer do senhor Amoedo e Henrique Bernar-delli. Estes estão em completa decadência.36

As duas passagens do artigo de Bandeira são tão eloquentes quanto diretas. Se atentarmos para o ano de sua publicação, 1928, imaginamos sem dificul-dade o ambiente contra o qual se debatiam os modernistas já nos primeiros anos daquela década; e, ainda, a data faz ver o quanto, até aquele momento, o Modernismo pouco influenciara nos rumos das instituições ligadas à arte. Tenhamos em conta, porém, que o “estado de espírito modernista” fizera com que a indiferença institucional pelo avanço das artes se tornasse mais flagrante.

Os ideais de choque e destruição trazidos à cena pelo Modernismo dos anos 1920 foram fundamentais para que se desse uma espécie de salto no vazio, no desconhecido. Os ritmos da convivência, da conivência, da continui-dade e da negociação já não eram possíveis. O relógio da arte brasileira estava por demais atrasado. Era urgente uma mudança de espírito.

Pode-se objetar, a esta altura, que não houve senão uma alteração superfi-cial das coisas, tendo em vista a permanência das formas mais atrasadas nos campos da Literatura e das Artes. As obras da Semana estavam distantes do que as vanguardas apresentavam em Paris, atraso que permaneceria por longo tempo, enquanto os modernistas, logo divididos em grupos, gastariam tempo nas infindáveis discussões acerca do nacionalismo na arte. Não por acaso, às mudanças políticas dos anos 1930, certo Modernismo responderia com o retorno às formas tradicionais e o pedido de falência. A conferência de Mário de Andrade, no início da década seguinte, é o melhor exemplo do modernis-mo que trocou a autoindulgência pela culpa.

Por outro lado, o Modernismo da década de 1920 liberou forças que per-maneciam contidas até então. Graças a isso, os anos seguintes assistiriam à consolidação de Lasar Segall, à emergência de Goeldi, Guignard, Volpi e Pan-cetti. Se 1930 entrou para nossa memória cultural como o ano da publicação

36 Idem, p. 133.

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de Libertinagem (Manuel Bandeira) e Alguma poesia (Carlos Drummond de An-drade), é preciso considerar que esses marcos do modernismo de 1930 reú-nem poemas escritos e publicados ao longo da década anterior. Também é o ano em que Murilo Mendes lança seu primeiro livro. Logo a seguir, a Arqui-tetura brasileira superaria largamente quaisquer previsões de desenvolvimento e faria surgir o prédio do Ministério da Educação e Saúde Pública, que, sem deixar de ser modernista, era bem mais que isso, era um monumento da mo-dernidade. Era a consagração do espírito moderno.

A Escolha – Rita Soliéri

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* Conferência proferida em 12 de junho de 2012.

Autor, entre outros livros, de Praia provisória (Prêmio ABL de Poesia, 2007), As artes de enganar: as máscaras de Gregório de Matos (ensaio) e Malindrânia (contos). Mestre em Teoria Literária e Doutor em Literatura Brasileira pela UFRJ, é professor aposentado da UFC, tendo ensinando também na Université Stendhal Grenoble III-FR e na UFRJ. Membro do PEN Clube e da Academia Carioca de Letras.

A proposta modernista: a revolução na palavra

Adriano Esp ínola

A palavra é metade de quem a pronuncia, metade de quem a escuta.Montaigne

Se é verdade que toda mudança cultural – na política, no com-portamento, na economia, nas artes, na ciência, na literatura –

passa necessariamente pela palavra, com o nosso Modernismo não poderia ser diferente: os artistas e particularmente os escritores e poetas ligados ou comprometidos com a Semana de Arte Moderna trataram logo de defender e pôr em prática uma nova política da linguagem.

De modo que o tema que me foi proposto se volta exatamente para aquilo que é mais central na aguerrida proposta modernista de 1922: a busca da palavra nova. Isto é, de uma nova linguagem. De novos pactos narrativos e vozes, quer na poesia, quer na ficção, quer também no ensaio, sobretudo no ensaio interpretativo do Brasil.

Adriano Esp ínola

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Nas outras artes, procedimentos similares ocorreram. Como, por exemplo, na pintura, em que se buscou nova consciência dos planos, sistemas de cor, de arranjos e geometria, a fim de se obter maior dinamismo de linha, forma e mas-sa. Na música, novos arranjos, agrupamentos de sons e sequências harmônicas foram praticados. Tudo isso como reflexo dos novos tempos. Das novas paixões e sensibilidade. E de uma nova e urgente tentativa de compreender e representar a realidade em torno, seja da cidade, seja do país ou mesmo do mundo.

Evidente que a procura e o processamento duma outra linguagem na litera-tura e nas artes não se fez sem um forte sentido de oposição e/ou de desafio − à tradição, aos cânones estéticos estratificados, à sociedade burguesa, ao capitalismo urbano-industrial, ao Estado ou à autoridade. Daí o seu caráter tensionado – reflexo já das tensões sociais que se manifestavam à época −, ex-presso algumas vezes com estranhamento, agressividade ou mesmo violência.

(Penso, particularmente, no plano das ideias, nos manifestos Futurista e Dadá, mas também penso, no plano da criação literária, em James Joyce, ao afirmar que havia declarado guerra ao inglês e iria até o fim, ao escrever Finnegans Wake...)

Daí a estética do choque. O salto em território desconhecido. O gesto vanguardista de ruptura. Da ruptura continuada e assumida (“a tradição da ruptura”, segundo a conhecida fórmula de Octavio Paz). Em suma, a lingua-gem de confronto do Modernismo volta-se para a própria Modernidade que a gerou. O artista/escritor modernista seria assim uma espécie de Édipo que insulta o Pai, enquanto tenta decifrar, numa esquina agitada, na plataforma duma estação ou à porta duma fábrica, a esfinge da história.

É verdade que o Modernismo brasileiro não deflagrou apenas e simples-mente mudanças estilísticas. Foi além, sobretudo na chamada fase heroica, ao abalar a tradição e ao querer construir, em novas bases, uma outra literatura e arte, no rastro do que ocorreu na revolução modernista europeia. Esta teria tido um caráter cataclísmico, convulsões que demoliram crenças e postulados, deixando em ruínas grandes áreas do passado, ao mesmo tempo que esti-mulando frenética reconstrução artística, cultural e social, como acreditam Bradbury & MacFarlane.

A proposta moder nista : a revolução na palavra

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Herbert Read, ao estudar a obra de Gauguin, Van Gogh e Picasso, diria: “Agora estamos tratando, não de um desenvolvimento da arte pictórica na Europa (...), mas sim de uma brusca ruptura com toda a tradição” (apud Brad-bury & MacFarlane).

Roland Barthes, por sua vez, considerou que a pluralização das visões de mundo, derivada da evolução das novas classes e meios de comunicação, teria levado a totalidade da literatura, de Flaubert até hoje, a ser “a problemática da linguagem” (Idem).

Com efeito, a realidade humana e social, a sua complexidade interativa e móvel, sobretudo nas três primeiras décadas do século XX, representou um desafio constante aos escritores que buscaram expressá-la, através de uma lin-guagem igualmente complexa, não-linear. Fragmentária por vezes. Próxima do real-acontecer.

Que palavra seria essa capaz de apontar a um só tempo para as grandes transformações da hora e para caminhos esteticamente inexplorados? Uma palavra-mantra? Uma palavra-alquímica? Nada disso. Simplesmente a palavra coloquial. Viva, corrente, ligada ao cotidiano, à agitação coletiva da vida urba-na, à interlocução das pessoas na travessia diária das ruas para o trabalho e o desejo. (Que ganharia um sabor épico com James Joyce, em Ulisses).

Mas também a palavra inventada ou reinventada. Dessublimada, dessacrali-zada. Bem-humorada. Solta. Libertária. A palavra plural. A palavra mesclada, adiantemos logo com Eric Auerbach. Que trouxesse, nas suas entranhas so-noras, aquele “frisson nouveau” de sentido que Victor Hugo havia percebido na poesia de Charles Baudelaire.

Assim, a palavra buscada pelos modernistas brasileiros teve, digamos, a sua dia-cronia, a sua evolução, na própria história da modernidade literária, se acreditar-mos que o Modernismo foi um movimento de caráter essencialmente internacio-nal. O nosso, aliás, pagou, como se sabe, pesado tributo à literatura e vanguardas europeias, a fim de obter a franquia de boa parte das suas ideias e inquietações, as quais, por sinal, logo moldariam algumas das suas mais vivas contradições.

Eduardo Portella fala-nos, a propósito, das relações “altamente ambi-valentes” entre o Modernismo e a Modernidade no Brasil. “Se uma hora

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predominava a aspiração cosmopolita, a vontade universalizante”, observa ele, “outra hora a raiz nacionalista assumia conotações religiosas e fundamenta-listas.”

De todo modo, creio que a palavra fundadora do Modernismo inicia o seu percurso com as As flores do mal, despetalada por Baudelaire, em 1857, enquan-to observava, ali por perto, velhinhas decrépitas numa praça, uma esplêndida carniça na curva da rua, cegos numa esquina ou uma mulher majestosa que passava, toda de preto e indiferente a ele, por uma avenida de Paris...

Atenção: o flagrante do cotidiano urbano, do prosaico e do vulgar, como se vê acima, na obra de Baudelaire, realizado através da palavra mesclada, não significa de maneira alguma apenas a troca do sermo nobilis pelo sermo humilis. A operação tem um valor diacrítico, para recordarmos aqui a expressão de José Guilherme Merquior. Ou seja: guarda um valor opositivo, diferencial, ao dar curso ao propósito “sério-problemático do poema”, que passa então a “operar no paradoxo de figurar uma situação ‘elevada’ precisamente através da alusão ao que é tido por não-elevado”. Além disso, como observa Ivan Junqueira, nesse processo, Baudelaire consubstancia pioneiramente, na poesia moderna, “o trânsito do lirismo pessoal ao lirismo da persona”.

Ao lado de Baudelaire, entra em cena, no mesmo ano, o inseparável e escan-daloso casal M. Flaubert & Madame Bovary – criador e criatura, de tal manei-ra que não sabemos, até hoje, quem é um e quem é outro... – que logo agitaria os salões literários, provocaria escândalo, e acabaria por enfrentar a barra dos tribunais. Como arma de defesa, contra a moral burguesa e os ataques daí por diante do tempo, brandiria com maestria a mot juste: a palavra exata, precisa. Estão os dois, ainda hoje, circulando, juntos, por aí.

Um adolescente de gênio entendeu logo de escapar das confusões de Paris, e pegou, bêbado, um barco, para nele passar Uma temporada no inferno, gritando que havia inventado “as cores das vogais e um verbo poético acessível a todos os sentidos!”

Mallarmé, para fugir do cerco naturalista, tratou de conduzir às alturas a poesia, toda ela feita, sim, de palavras não de ideias; não sem antes largar aristocraticamente para a turba ignara a palavra pura, a misteriosa “ptyx”, que

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nenhum dicionário contempla. Sintaxista exímio, lançaria de lá seus dados do fundo de um naufrágio – simbolicamente o caos da sociedade repressiva fi-nissecular − “sobre alguma superfície vacante e superior”, ou seja, sobre uma constelação de silêncios, para que o pensamento não deixe jamais de abolir o acaso das circunstâncias...

Suspeito que, na busca (a) venturosa da expressão essencial, rarefeita ou abstrata de Mallarmé – ao lançar os seus dados – e com eles “as subdivisões prismáticas da Ideia” −, subjaz uma crítica sutil à cultura de uma sociedade pragmática, que usa a palavra quase sempre para fins comunicativos, não on-tológicos ou criativos.

É verdade que, antes, em 1873, um filólogo-filósofo, meio aloprado, quis com o seu martelo dionisíaco quebrar, furioso, a dura castanha conceitual da palavra, a sua casca metafórica, “óssea e octogonal feito um dado”, para nela reencontrar a amêndoa da verdade, a vivência primitiva do sentido, individu-alizada e única, acreditando que as palavras não se relacionam com as coisas, mas com o universo significativo das próprias palavras. E que a linguagem desde seu nascimento é interpretação, “mentira em rebanho”, simples crença de identidade trazida pelo esquecimento...

Justamente aí, no esquecimento, estaria a verdade (recalcada) da história psíquica do indivíduo traumatizado. Um médico vienense, barbudo e libidi-noso, intuiu que, se o paciente conseguisse trazer para a fala indícios verbais ou indiretos de uma imagem ou recordação, seria possível recuperar a cena do trauma e iniciar o processo de cura. Ora, sabendo que no inconsciente não há acaso, acabou criando o método da livre associação das palavras, aí no final do século XIX.

A propósito, num dos pacientes em que experimentou o método, uma mulher, pediu-lhe para que falasse palavras que lhe viessem à mente. A pri-meira foi “porteiro”. Esse porteiro iria abrir à paciente, não só as portas da recordação, mas também simbolicamente, daí por diante, uma nova caixa de Pandora: a caixa-preta do inconsciente. Dela logo se alastraria a “lepra”. Que iria imprimir no homem moderno uma ferida narcísica irreparável. Como o fizeram antes Copérnico, Marx ou Darwin. Mas isso é outra história...

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De todo modo, estava fundado um método, baseado na fala, na palavra, e uma nova mitologia, que se quer até hoje científica, para descrever as funções psíquicas do sujeito.

Depois de rastrearmos rapidamente o percurso pós-baudelaireano da pala-vra e de termos visto que o interesse pela linguagem se deu em vários campos do saber, mais ou menos na mesma época – configurando aquilo que Michel Foucault denominaria de “simultaneidade epistemológica” −, passemos ao modernismo brasileiro.

Não sem antes mencionar – para reforçar essa simultaneidade − o surgi-mento da própria Linguística moderna, com Ferdinand de Saussure, nos três cursos que deu, em Genebra, entre 1906 e 1911, publicados por seus alunos postumamente sob o título de Curso de linguística geral, em que demonstra o caráter sistêmico/estrutural da língua, vista como fundamentalmente instru-mento de comunicação.

Também lembremos a aparição, em 1909, do primeiro Manifesto Futuris-ta, de Marinetti, no qual afirma que “o esplendor do mundo se enriqueceu com uma beleza nova: a beleza da velocidade”. E a do segundo, o Manifesto Técnico, em 1912, onde ressalta que “é preciso destruir a sintaxe, dispondo os substantivos ao acaso, como nascem”, para que as palavras em liberdade pudessem dar curso à “imaginação sem fios” dos poetas futuristas.

Nesse mesmo ano, Oswald de Andrade, tendo conhecido o Futurismo em Paris, ao regressar ao Brasil escreve um poema de versos livres, intitulado “Último passeio de um tuberculoso pela cidade, de bonde”, que causaria zombarias entre os amigos. O original perdeu-se. Sobrou somente o título com o seu tom provocativo, nada acadêmico.

Mas seria com Mário de Andrade, ao publicar Há uma gota de sangue em cada poema, em 1917, sob o pseudônimo de Mário Sobral, que a palavra dissonante se faria notar no corpo dum poema. Um crítico, chamado Nuto Santana, no Cor-reio Paulistano ficara irritadíssimo – quem nos conta é o próprio Mário – “porque eu rimava a palavra ‘voou’ com o verso ‘E o vento com o seu oou’”.

Oswald de Andrade, ao contrário, vibrara com tal verso. Diz-nos Mário da Silva Brito que “a inusitada e agressiva rima de Mário de Andrade – rima bem

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mais de Mário de Andrade do que de Mário Sobral – surgia aos olhos de Oswald, como uma confirmação às suas frustradas tentativas inovadoras”. Eis a estrofe:

Meio-dia. Um crepúsculo indecisogira, desde manhã, na paisagem funesta...De noite, tempestuouchuva de neve e granizo...Agora, calma e paz. Somente o ventocontinua com seu oou...

Se Mário, ao utilizar tal expressão onomatopaica, pretendeu rimar e ex-pressar o vento trazido pela tempestade, parece-nos que, sem se dar conta, apontou para a existência duma outra tempestade, a que ocorreria daí a alguns anos. Refiro-me à tempestade cultural da Semana de Arte de 1922. Que iria quebrar/derrubar, como todos sabem, os telhados e as vidraças de certas con-cepções artísticas e ideológicas. Abrindo caminhos para a atualização artística do Brasil. Para novas experimentações estéticas. E para a formulação de um novo modo de pensar no e sobre o país.

E será o próprio Mário, depois do seu “oou” profético, que irá pessoal-mente trazer a tempestade entre as páginas da sua Pauliceia desvairada, em 22. Aqui, nada de “calma e paz” na paisagem da natureza. Agora, o poeta, agita-do, se joga no meio da rua, com seus versos livres e soltos.

“Arlequinal! Arlequinal!” é a palavra-mote, a palavra-grito, a palavra que cantará “São Paulo, comoção da minha vida!” Não por acaso aparecerá 10 vezes ao longo do livro. E dará, ela, feito um refrão, o tom bem-humorado, sarcástico por vezes, das outras manifestações artísticas. Alegres e provocan-tes. Escandalosas. Submetidas gloriosamente aos assobios, insultos, gritarias e buzinadas do público, durante os três dias em que os modernistas se apresen-taram no Teatro Municipal de São Paulo. De maneira que o “oou” de Mário não só prenunciou a tempestade artístico-literária de 1922, mas também as vaias que a turma da Semana receberia ali. 1

1 Essa última observação devo a Antonio Carlos Secchin, coordenador do Ciclo de Conferências sobre os 90 anos da Semana de Arte Moderna, na ABL, que a fez ao término da minha intervenção.

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É notável, também, na Pauliceia, o “Prefácio interessantíssimo”. Nele, afir-ma, entre outras coisas, que “a língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E possui o admirabilíssimo ão”. E defende aí – seguindo a sugestão de Mari-netti –“as palavras sem ligação imediata entre si (...) [que] se sobrepõem umas às outras”, para compor aquilo que denomina “polifonia poética”, baseada no “verso harmônico”, em vez do melódico. E dá exemplo: “Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!...”

Isso lembra também o método da associação livre das palavras de Freud. E é o próprio Mário quem o recorda, bem-humorado: “Dom Lirismo, ao desembarcar do Eldorado do Inconsciente no cais da terra do Consciente, (...) sofre mais uma visita alfandegária, descoberta por Freud, que a denominou Censura. Sou contrabandista! E contrário à lei da vacina obrigatória.”, procla-ma. Daí parte para fundar a escola poética “Desvairismo”.

Mas será nos dois livros seguintes – Losango cáqui e Clã do jabuti, publicados em 1926 e 27, respectivamente −que expressará, no primeiro, a sua “baita paixão pelo Brasil!” e, no segundo, tentará identificar, gustativamente, eu diria, a fala do homem brasileiro, com suas raízes afro-indígenas: “Brasil.../Masti-gado na gostosura quente do amendoim.../falado numa língua curumim/De palavras incertas num remelexo melado melancólico...”

Com Macunaíma (1928), sua obra-prima, saberá juntar expressões colo-quiais e eruditas, tupinismos e gíria, populismos e regionalismos, lusitanismos e hibridismos, africanismos e galicismos etc., para compor o que seria o in-ventário das nossas idiossincrasias e de uma linguagem brasileira, a partir do polimórfico personagem mítico, que sai do fundo da mata amazônica para o centro de São Paulo, para vivenciar carnavalescamente os encontros e desen-contros da nossa história.

No clima literário polêmico e festivo, instaurado pela Semana, eis que surge o antropófago Oswald de Andrade, o mais formidável desmantelador não só da métrica (como diria a respeito do francês Paul Fort), mas também da sintaxe narrativa e dos esquemas ideológicos vigentes. E o faz publicando o Manifesto Pau-Brasil (1924) e, no mesmo ano, o romance experimental Memórias sentimentais de João Miramar. Com um, cria a obra; com o outro, mostra o Pau-Brasil...

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Dotado de uma intuição fulminante da cultura e da história brasileiras e da cena contemporânea, servido por um estilo bem-humorado e inventi-vo, sintético e incisivo, defende, no Manifesto, “a língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos”.

E isso ocorre efetivamente no livro Poesia Pau-Brasil (1925), reunião de ver-sos despojados, diretos, em que apropriações de textos dos viajantes (Pero Vaz, Gândavo, Frei Vicente do Salvador) recontam a História do Brasil, ao lado de paródias, invenções verbais e deformações da linguagem oral (a tal “contribuição milionária dos erros”) a expressar, sempre com graça, o como-falamos e o como-somos. Por exemplo, no poema “Vício da fala”, em que assume o ponto de vista de um colono português zeloso do idioma, escreve:

Para dizerem milho dizem mioPara melhor dizem mióPara pior pióPara telha dizem teiaPara telhado dizem teiadoE vão fazendo telhados

Ou, ainda, ao gozar a figura do fiscal da língua, ou seja, “O gramático”, anota rapidamente a cena em que −

Os negros discutiamQue o cavalo sipantouMas o que mais sabiaDisse que eraSipantarrou

Invenção, deformação da linguagem oral (sipantou, sipantarrou = se espan-tou), mescla social e racial, nos seus extremos, viajam no mesmo “Bonde”:

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O transatlântico mescladoDlendlena e esguicha luzPostretutas e famias sacolejam.

Nas Memórias sentimentais de João Miramar, o processo inventivo se intensifi-ca. O tom satírico subverte a sintaxe e a narrativa habituais. Neologismos e imagens surpreendentes (“Beiramarávamos em auto pelo espelho de aluguel arborizado das avenidas marinhas sem sol.”), ao lado de associações meto-nímicas inusitadas: cubistas. Cortes, montagens. Deslocamentos (“Um cão ladrou à porta barbuda em mangas de camisa e uma lanterna bicor mostrou os iluminados na entrada da parede”). De tal sorte que, em muitos minicapí-tulos desta obra-prima de irreverência (“O vento batia a madrugada como um marido”) e de recriação sintática e vocabular da língua lusobundobrasileira, as fronteiras entre poesia e prosa simplesmente desaparecem.

Depois de repudiar o lirismo, que “para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo”, e defender a entrada de “todas as palavras, sobretudo os barbarismos universais” e de “todas as construções, sobretudo as sintaxes de exceção”, na praça principal da sua Pasárgada e do seu lirismo libertário, Manuel Bandeira vai-nos dar o talvez melhor exemplo da absorção poética da fala e do modo de ser brasileiro, em “Evocação do Recife” (Libertinagem, 1930). Como o poema é longo, limito-me a assinalar, a meu ver, a passagem mais significativa, quando o poeta afirma, algo para-doxal, que:

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livrosVinha da boca do povo na língua errada do povoLíngua certa do povoPorque ele é que fala gostoso o português do Brasil

Ao passo que nósO que fazemosÉ macaquearA sintaxe lusíada.

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Sem dúvida, Bandeira, no seu livro Libertinagem (1930), “vai ao âmago dessa autêntica linguagem do Brasil, com sua peculiaridade e idiossincrasias, que espelham o temperamento e a perspectivas individuais da sua sociedade mul-tirracial”, como sobre ele afirma Giovanni Pontiero (1986:125).

Se Bandeira se volta para celebrar o seu Recife provinciano, “Recife mor-to, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô”, é porque está consciente de que nas formas de falar regionais se encontra a expressão mais autêntica da sensibilidade nacional, como, àquela altura, o próprio Moder-nismo apontava. Não por acaso, Mário de Andrade vai percorrer o Norte e Nordeste do país, em 1928, para ali colher dados do folclore, da fala, e da dança para o seu trabalho de escritor, etnólogo e musicólogo.

Pois bem. Vale a pena recordar, nesse sentido, o decerto poema regionalista, também primitivista e indianista, mais bem-sucedido do Modernismo: Cobra Norato (escrito em 1928 e publicado em 31), de Raul Bopp. Trata-se, como se sabe, de um poema que narra as andanças do Cobra Norato – mito ama-zônico, símbolo do poder criador ou gerador – pela pátria das águas, atrás da filha da rainha Luzia para casar. Poema rico de imagens de grande intensidade sensorial, sobretudo visual, no qual a linguagem funciona “como um espelho (...) onde se refletem as particularidades regionais de toda a língua”, no dizer de Othon M. Garcia. Um pequeno exemplo: “Aqui um pedaço do mato está de castigo/Arvorezinhas acocoram-se no charco/Um fio de água atrasada lambe a lama.”

Saindo do território encharcado e mítico da Amazônia, voltemos nosso olhar para a região empoeirada e dura do Nordeste, através inicialmente da poesia, quase prosa, de Jorge de Lima. 2Não do Jorge de Lima acendedor de lampiões da rua e escultor dos 14 alexandrinos perfeitos, mas do Jorge de Lima cantor do “Mundo do menino impossível”, que é o Nordeste brasilei-ro, onde o menino/poeta rejeita brinquedos estrangeiros e trata de brincar com coisas da sua cultura: sabugos de milho, tacos de pau, cangaceiros de

2 A inserção aqui do poeta Jorge de Lima deve-se à observação crítica do acadêmico Lêdo Ivo, depois de realizada a conferência, e a quem agradeço.

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chapéus de couro... E canta a “Bahia de todos os Santos”, “Os caminhos da minha terra”, “O Rio São Francisco” e as figuras de “Floriano-Padre Cícero-Lampião”.

Em seus Poemas (1928), será um dos primeiros, senão o primeiro, no Mo-dernismo, a celebrar a cultura afro-religiosa, seus rituais e personagens, em dois poemas: “Xangô” e “Pai João”. (Não esqueçamos que, em Alagoas, terra do poeta, floresceu o Quilombo dos Palmares, na serra da Barriga, a apenas alguns quilômetros da Cidade de União, onde Jorge, filho de senhor de enge-nho, nasceu e cresceu, ouvindo histórias e lendas de Zumbi e da sua gente.) Em “Xangô”, os participantes de uma sessão de umbanda surgem “num sujo mocambo dos Quatro Recantos”; são eles “quibundos, cafuzos, cabinas, ma-zombos” que “mandigam xangô. / Oxum! Oxalá. Ô! Ê!” Também aparecem, dançando ao som do tantã, “caboclos, mulatos, negrinhas membrudas, /aos tombos gemendo, cantando, rodando, /mexendo os quadris e as mamas bo-judas”.

Logo, entidades africanas se misturam aos santos católicos, assim como expressões africanas às portuguesas, num só ritmo invocatório místico-verbal: “Meu São Mangangá/Caculo/Pitomba/Gambá-marundu/Gurdim/Santo Onofre/Custódio/Ogum.”

No segundo poema, “Pai João”, Jorge de Lima narra a vida toda de luta do personagem, quando escravo (“... remou nas canoas. / Cavou a terra. /Fez brotar do chão a esmeralda. /Das folhas – café, cana, algodão”), para depois anunciar que ele vai morrer: “Há uma noite lá fora como a pele de Pai João. / Nem uma estrela no céu. /Parece até mandinga de Pai João.”

Em seus Novos poemas (1932), continua a cantar a raça negra. Abre o li-vro contando a história da célebre “Essa Nega Fulô”, que roubou, nuinha, o Sinhô da Sinhá; evoca a “Serra da Barriga” (“Barriga da África! Serra da minha terra!”) e recorda as “Comidas” africanas: “...efó, /pimenta, jiló!/Iaiá me coma, /sou quimbombô!”). Mais tarde, em 1947, publicará Poemas Negros, reunião de 21 poemas e quatro textos em prosa, todos dedicados de forma direta ou indireta à cultura negra e aos seus personagens históricos, lendários ou espirituais, nos quais vocábulos africanos despontam ritmados:

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Pela fé de Zambi te digo:Obambá é batizado, confirmado, cruzado e coroado. Dá licença, meu pai?Licença venhapara os alufás de babalaô. Licença temo Babá de Olubá. Licença temcacuriqués, cacuricás.

Ainda do chão árido do Nordeste, saltará com força o chamado romance de 30, que tentará, entre outros aspectos, surpreender o linguajar dos persona-gens da região, situando-os, porém, num contexto crítico-social de resistência ao clima e desamparo social. Na impossibilidade evidente de analisarmos aqui os recursos utilizados para tanto por José Américo de Almeida (A bagaceira), Rachel de Queiroz (O Quinze), José Lins do Rêgo (Menino de engenho), Amando Fontes (Os corumbas) ou Jorge Amado (Suor), recordemos apenas o mais empe-nhado estilista de todos os escritores brasileiros de então, Graciliano Ramos.

Embora desconfiasse, bicho do mato, das conquistas literárias do modernis-mo paulistano, foi ele quem deu maioridade e categoria internacional ao roman-ce regional, ao lutar por uma escritura igualmente seca, direta, capaz de incorpo-rar dialética e mimeticamente a aridez, a carência do meio e do homem.

Em São Bernardo (1934), o narrador-personagem Paulo Honório, um su-jeito bruto, de pouca instrução, reúne alguns amigos para dividir o trabalho de redigir suas memórias. O projeto fracassa e ele tem que se valer “dos seus próprios recursos” para dar conta da obra. A crítica que faz à colaboração de dois dos amigos revela, em ricochete, a concepção do próprio Graciliano em relação à linguagem literária.

O primeiro deles, João Nogueira, “queria o romance em língua de Ca-mões, com períodos formados de trás para diante. Calculem”. O segundo, o Gondim, “redator do Cruzeiro apresentou-me dois capítulos datilografados, tão cheios de besteiras que me zanguei: − Vá para o inferno, Gondim. Você

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acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma!”

Vê-se, assim, que o estilo direto e a verossimilhança da fala dos persona-gens torna-se a base estilística do romance e mesmo, pode-se dizer, de toda a ficção de Graciliano.

Com efeito, o escritor alagoano, durante a feitura de São Bernardo, além de remendá-lo a toda hora (“Continuo a consertar as cercas de S. Bernardo. (...) O último capítulo, com algumas emendas que fiz, parece que está bom.”), confessa, em carta dirigida à mulher, Heloísa, que encontrou também “muitas coisas boas da língua do Nordeste, que nunca foram publicadas, e meti tudo no livro. Julgo que produzirão bom efeito. O pior é que há umas frases cabe-ludíssimas que não podem ser lidas por meninas educadas em convento. Cada palavrão do tamanho dum bonde”.

No quadro do Modernismo, não poderia deixar de me referir à poesia de Carlos Drummond de Andrade, à guisa de conclusão. Embora já distante da fase heroica do movimento, quando então cantava a “vida besta, meu Deus” e topava com uma pedra no meio do caminho, a luta com as palavras encontra neste escritor uma celebração ímpar em dois magníficos poemas: “O lutador” (José, 1942) e “Procura da poesia” (A rosa do povo, 1945). Aqui, bem sabemos, a lírica modernista alcança a sua fase clássica, momento de depuração e equilíbrio, em que passa a ser interpretação poética da realidade e da condição humana, em clave universalizante. No primeiro deles, “O lutador”, afirma proverbialmente:

Lutar com palavrasé a luta mais vã. Entanto lutamosmal rompe a manhã. São muitas, eu pouco. Algumas, tão fortesComo o javali. Não me julgo louco. Se o fosse teria

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poder de encantá-las. Mas lúcido e frio, apareço e tentoapanhar algumaspara meu sustentonum dia de vida.

No outro poema, “Procura da poesia”, a reflexão sobre a poesia parece aparentemente se afastar do cotidiano, projetando-se no espaço do incriado, lá onde os poemas se nutrem da fonte original, feita de solidão e mudez, para vir à tona com mais força, independentemente do tema ou do sentimento do poeta, se de gozo ou de dor. Que espaço seria esse? Drummond no-lo diz, ao instar o poeta a penetrar “surdamente no reino das palavras. /Lá estão os poemas que esperam ser escritos”.

É preciso conviver com eles, antes de escrevê-los, aconselha. Para isso, é preciso “chegar mais perto e contemplar as palavras”, pois “cada uma/tem mil faces secretas sob a face neutra”.

Drummond conclui o seu poema – e eu, esta fala −, convidando o leitor/ouvinte a reparar que “ermas de melodia e conceito/elas se refugiaram na noite, as palavras. /Ainda úmidas e impregnadas de sono, /rolam num rio difícil e se transformam em desprezo”.

No que eu acrescentaria: − e em silêncio multiplicado.

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C i c l o “ N ov e n ta a n o s d e a rt e m o d e r n a ”

*

* Conferência proferida em 19 de junho de 2012.

Professor da UFRGS, autor de Literatura Brasileira – Modos de usar (Porto Alegre: L&PM, 2007), entre outros.

Moderno, modernismo, modernista

O peso da Semana de Arte Moder na �nos ombros da l iteratura bras ile ira

Luís Augusto F i scher

1.

Não será a melhor maneira de atrair o prezado leitor essa de começar esculachando o tema escolhido, mas que fazer: a ideia é falar sobre uma questão que, para muitos, nem questão é, mas para vários outros é um tema de grande relevo. Atende pelo nome de re-gionalismo o problema, que para certos cosmopolitas que estão no lado vencedor da vida social de hoje não tem estatuto de problema, ao passo que para muitos dos perdedores, sejam eles provincianos mentais ou não, é tema que vem ao caso. E o tema reaparece, aqui, numa vizinhança bastante improvável: no contexto dos 90 anos da Semana de Arte Moderna, ora celebrados. Qual o nexo entre uma coisa e outra?

Acresce que a conversa é proposta por um professor que nasceu e vive no Rio Grande do Sul. Não apenas por fatalidade geográfica,

Luís Augusto F i scher

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mas também por ela, este que aqui fala se tem ocupado da matéria em vários níveis, o mais saliente dos quais é um livro, Literatura gaúcha – Formação, História e Atualidade (Porto Alegre: Editora Leitura XXI, 2003). Mas, ao lado dele, há ensaios, palpites, cursos de graduação e de pós-graduação, que com alguma pertinácia e talvez algum acerto giram em torno desse tema.

O tema já rendeu muita reflexão, das mais eufóricas (pelo lado do chamado regionalismo, em geral aquelas ligadas a movimentos folclóricos ingênuos, enquanto que, pelo lado dos modernistas, aquelas satisfeitas com o paradig-ma atual de compreensão da literatura no Brasil) às mais críticas. Aqui, nos estreitos limites deste ensaio, será abordado pelos dois lados, aparentemente contraditórios, mas, na verdade, apenas opostos complementares: primeiro, a postulação da existência do problema que vive em torno do conceito de regio-nalismo, particularmente na Literatura; segundo, a arguição da centralidade excessiva que o Modernismo de feição paulistana ocupa na atual descrição da Literatura e da cultura brasileiras. Vamos tentar os dois, pela ordem. A abor-dagem, quase escusava dizer, tomará por base a experiência gaúcha (mas não será exclusiva), por ser a mais familiar para este professor aqui e, não menos, por ser um caso exemplar do problema.

Vale um mergulho na palavra “moderno”, no centro de nosso problema. Como se sabe, é daqueles termos que serve para quase qualquer tarefa: ao longo dos séculos e ao largo da geografia ocidental, tem-se prestado para conteúdos variados. Sem ir muito longe, lembremos que no mundo hispano-americano se chama “modernismo” aquela literatura, particularmente aquela poesia, que se estabeleceu como moda dominante no último quarto do século XIX, na suces-são da moda romântica. Foi o caso notável de Rubén Darío, o poeta nicaraguen-se de tanto sucesso em todo o mundo hispânico. Pois bem: o modernismo de Darío se traduziria, em português brasileiro, como o parnasianismo de Darío, eis que essa foi a regra estética por ele seguida, de mescla com algum Simbolis-mo, como era regra entre os bons poetas do período, em geral.

Se recuarmos mais, encontraremos o latim modernus (a,um) em uso desde o sé-culo IV da Era Cristã, já naquele momento para distinguir entre o que era novo, daquele momento, e o que era antigo, passado. Uma associação rápida com a

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história aponta para a sincronia entre esse uso e a novidade do Império Romano, que se cristianizou sob Constantino e, ao que, tudo indica, imediatamente se reconheceu como algo distinto do passado – como algo moderno. Bem depois, mas em sentido próximo, vai-se chamar Idade Moderna ao período aberto com as grandes navegações, no Ocidente, cujo apogeu estético é chamado de Renas-cimento, em mais um movimento de designação do presente como distinto do passado, o presente sendo então moderno. (A Idade Moderna é sucedida, na cronologia dos manuais de história ocidental, pela Idade Contemporânea, cujo marco inicial é a Revolução Francesa: mais uma nomeação que quer enfatizar a diferença entre o presente, novo, moderno, e o passado, velho.) Em dimensão de tempo mais larga, mas na mesma frequência semântica, vai-se chamar Moder-nidade ao período começado no Renascimento e cujo apogeu teria ocorrido no século XVIII, mas não se teria encerrado com a Queda da Bastilha; eis que se vai falar de modernidade no século XIX também.

Bem, chegamos ao Brasil, e aqui deparamos com o termo “modernismo” para designar um conjunto irregular de novidades estéticas que teriam sido inauguradas na Semana de Arte Moderna de 1922. Por que em nosso país calhou de chamar isso de modernismo? Por que aqui não usamos o termo para a literatura pós-romântica? Sem ir muito longe, lembremos de José Verís-simo, que em sua História da Literatura Brasileira, de 1916, reservou um capítulo inteiro, o XV, para o que chama de “O Modernismo”, consistindo este no movimento de ideias posto em ação pelo Positivismo, o Darwinismo, o Evo-lucionismo, o “Intelectualismo de Taine” e pelo Socialismo. Essa nomeação, porém, perdeu força para a tomada da palavra pelos que fizeram a Semana e/ou a confirmaram criticamente, numa operação bem-sucedida, do ponto de vista historiográfico, a um ponto tal que hoje ainda parece que a palavra modernismo nasceu para designar Mário de Andrade e Oswald de Andrade.

(Atenção lateral mereceria outra discussão: por que a palavra se ligou ape-nas às posições e práticas estéticas dos paulistas, em prejuízo de algumas ou-tras atitudes renovadoras que efetivamente ocorreram nas décadas de 1900 a 1930? Por que o melhor Simbolismo é visto como pré-moderno, quando ele é matriz da, talvez, melhor poesia dita moderna? E o que dizer dos escritores de

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tema rural anticonformistas, poucos mas valorosos, como os desiguais Mon-teiro Lobato e Simões Lopes Neto? E a prosa de João do Rio, em que ela é regressiva ou passadista?)

A realidade dos manuais escolares de história da Literatura Brasileira, as-sim como dos escassos livros acadêmicos do tema, indica que se naturalizou totalmente o emprego de “modernismo” para designar aquilo que foi feito pela obra dos paulistas vanguardistas agrupados a partir de 1922. Agora, aquilo é modernismo, e nada mais, atestando uma prática historiográfica de tipo teleológico, que relata o transcurso dos eventos com escassa noção das contradições presentes nos processos e com abundante noção de um devir inevitável, que organiza de trás para diante todo o relato do passado. Ou pior: aquilo é o modernismo, e no mais o que há, nesses manuais e mesmo na pro-dução acadêmica, é de uma indigência intelectual comovente – o que há, no século XX e mesmo agora, primeiras décadas do século XXI, é ainda e sempre modernismo: teríamos tido um “pré-modernismo”, nas primeiros 20 anos do século passado, mero anúncio da revelação que em seguida despontaria no horizonte, o “modernismo”, este tão forte que teria uma primeira fase, dita iconoclasta, e uma segunda fase, dita construtiva, quando uma terceira fase; e tudo isso seria sucedido, na maioria dos manuais e na confusão mental da historiografia literária brasileira universitária, pelo “pós-modernismo”.

Essa monstruosidade não parece aborrecer, naturalmente porque seus be-neficiários são fortes e influentes, a ponto de apagar da arena crítica o debate sobre o quadro. Quadro que mostra sua precariedade a qualquer observador: se uma palavra, neste caso “modernismo”, é tão plurívoca a ponto de parecer descrever todo o século e tanto entre o último Machado de Assis e o que se faz agora, é porque se trata de uma palavra fetichizada, uma palavra que enfeitiçou a inteligência, anulando-a. Para o autor destas linhas, há uma referência que me-rece ser evocada no combate a tal fetichização: foi no trabalho de Sérgio Miceli, intitulado Poder, sexo e letras na República Velha (São Paulo: Perspectiva, 1977) que li a primeira crítica analítica capaz de desmanchar o encantamento a que me refiro. Diz ele, na página inicial de seu trabalho: “A história literária adotou tal ex-pressão [pré-modernismo] com vistas a englobar um conjunto de letrados que,

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segundo os princípios impostos pela ‘ruptura’ levada a cabo pelos modernistas, se colocariam fora da linhagem estética que a vitória política do Modernismo entronizou como dominante.” Aí estava o ponto: vitória política do modernis-mo, aliás, de um certo modernismo (paulista, de feição vanguardista, seja pelo lado nacional-popular de um Mário de Andrade, seja pelo lado cosmopolita e irônico de um Oswald), como matriz do uso do nome pré-modernismo, assim como dos outros nomes cognatos. Este é o ponto mínimo da conversa.

2.

Mas bem, isso são preliminares. Comecemos, mesmo, o raciocínio central deste ensaio de modo leve e panorâmico: os países sul-americanos de língua espanhola se reconhecem em sua singularidade, em sua separação, mas tam-bém em sua base comum, naquilo que compartilham – a língua espanhola, que veio junto com a colonização, operada a partir de uma mesma metrópole –, a Espanha. Argentinos sabem quem são e têm seus esquemas mentais para pensar nos mexicanos, nos chilenos, nos colombianos, nos cubanos; e assim reciprocamente, numa dimensão que se espalha, se não por todos, pela maio-ria dos países independentes hispano-americanos (alguma exceção deve ser computada para países muito pequenos, que nem chegam a ser característicos de nada, e que, pelo contrário, compartilham com outros as marcas centrais de sua vida, como será o caso das Antilhas de língua espanhola).

Sabendo que são diversos, sabendo que pertencem a países com fronteira nacional, com exército, com moeda e com história, eles podem também usu-fruir um certo grau de compartilhamento de suas singularidades. De alguma forma, colombianos ganham em saber que são como são e que deram origem a um escritor como García Márquez e que, simultaneamente, podem ler e, portanto, aproveitar as experiências de outros países, como a Argentina (mais verdadeiro seria dizer a Buenos Aires) de Borges, o México, de Rulfo, e assim por diante. São países distintos unidos pela língua.

O caso brasileiro, agora. A tradição centralista do Estado nacional brasi-leiro, herdeira do Estado português até mesmo na burocracia pequena e de

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grande poder, foi cevada igualmente pela determinação de manter a base de classe intocada, por um período que superou as maiores tolerâncias do século XIX. Estamos falando da escravidão, claro, que garantiu parte importante da unidade nacional: mesmo em momentos de iminente ruptura de uma provín-cia rebelde com o centro imperial (de que a guerra dos Farrapos é exemplo eloquente, no Rio Grande do Sul), os senhores de escravo do centro e da periferia preferiram abrir mão de posições antes tidas como inarredáveis em favor de manter o instituto da servidão intocado.

Abramos um remanso no curso dessa especulação, para examinar uma comparação de dados empíricos brutos, entre os países da América do Sul, em geral, e o Brasil, em particular:

Populações, PIB e área dos países da América do Sul

População(milhões)

PIB(bilhões USD)

Área (mil km²)

Argentina 41 710 2.780

Chile 17 281 756

Uruguai 3 52 176

Paraguai 7 118 406

Bolívia 10 45 1.098

Equador 13 61 256

Peru 28 170 1.285

Colômbia 45 422 1.138

Venezuela 28 223 916

América do Sul 192 2.082 8.811

Brasil 192 2.492 8.514Fonte: Wikipedia

Alguma coisas ficam claras. A primeira: em números grossos, o Brasil é do tamanho da América do Sul hispânica, nos três quesitos estampados na tabela. Isso explica e mesmo justifica a autopercepção do Brasil como um continente

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inteiro e como uma entidade suficientemente grande para compreender-se como autossuficiente. A segunda: a uma unidade política, territorial, linguís-tica, cultural, o Brasil, correspondem nove outras, nada menos do que nove países, que compartilham a língua (ao menos a língua dominante no plano literário), mas se afastam na dimensão política.

Essa comparação não explica tudo, mas ajuda a encaminhar o tema: foi esse tamanho e o centralismo construído com o Estado nacional brasileiro a matriz mental, ideológica, política, mais propriamente epistemológica, da visão unitarista que a cultura brasileira construiu ao longo do tempo, desde o Romantismo até, especialmente, o Modernismo paulista (e não é que o tema voltou a aparecer aqui?). A história brasileira impôs, em uma proporção fortíssima (e desconhecida em um país novo como os Estados Unidos, ou como a Austrália, por motivos diversos entre si), uma visão unitarista, que não acolheu a diferença regional como válida, e pelo contrário manteve-a à margem como indesejável. Isso foi assim no século XIX, isso se reforçou (para não ficar pegando no pé dos paulistas a toda hora) num momento como o Estado Novo, quando, pela força do veículo modernizante que era o rádio, o samba carioca, em algumas de suas modalidades (o samba-crônica de Noel, mas também o samba-exaltação de Ary Barroso), se transformou na “cara do Brasil”, relegando a patamares subalternos ou mesmo à morte gêneros musi-cais que tinham força ou começavam a ganhar público pela mesma época.

Tivéssemos, os brasileiros, uma visão menos unitarista, menos impositiva, me-nos centralizada acerca de nosso país, poderíamos viver culturalmente usufruindo com mais gosto e eficácia o arquipélago cultural da Língua Portuguesa em nosso país. As diferenças poderiam ser vistas como isso mesmo, diferenças, mas tramadas na base de uma mesma língua, um passado comum, um destino compartilhado.

3.

Sei; essa é uma reflexão idealista, no mau sentido da palavra. Pois então vamos a uma dimensão materialista da coisa. A recente onda de liberalização da econo-mia brasileira, começada por Collor e mantida, em linhas gerais, por Fernando

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Henrique e por Lula, determinou, entre outras providências, que os Estados, as unidades federativas, deveriam desonerar as exportações; haveria uma compen-sação por esse buraco financeiro, na forma de uma transferência da União para os Estados nessa situação – foi a famosa Lei Kandir. Na prática, os Estados que mais fortemente estavam operando exportações, entre os quais o Rio Grande do Sul, ficaram pendurados no pincel, porque a escada do ICMS foi retirada pelo governo central, impiedosamente. O argumento de face era respeitável, aquele de não exportar imposto, que onera o produto final; na vida real diária, o argu-mento transformou-se num gesto unilateral de força.

Não é a primeira, nem será a última vez que se estabelece conflito entre todo e parte, num país. O Brasil viveu episódios notáveis nessa matéria, que valeriam a pena ser historiados em uma sequência específica. (Por exemplo: na República Velha, as províncias puderam, entre outras coisas, taxar as expor-tações com impostos de abrangência estadual; adivinha qual o nome da pro-víncia que mais se beneficiou dessa conjuntura? Um doce para quem acertar. Sim, foi a mesma província que teve renda sobrando até mesmo para inventar uma moderna universidade, incluindo um lote de professores importados di-retamente da França.)

Feitas as contas, hoje temos, no Rio Grande do Sul, uma situação crítica que, em parte, se explica por essa operação: fechada a torneira do ICMS sobre as exportações (couros, carnes, sapatos, soja, móveis, petroquímicos, quase tudo que o Estado produz de significativo), o antigo e agora saudoso welfare-state al-cançado nos anos 1950, com uma previdência estadual exemplar e um sistema de ensino de dar gosto, ficou apenas na memória, e os sucessivos governos só podem é chorar as pitangas, sem expectativa de que elas revertam ao que já foi alguma vez. Assim foi com os últimos governos: Britto teve caixa porque ven-deu quase todo o patrimônio público; Olívio usou o caixa único do Estado e pôde sobreviver; Rigotto tentou de tudo e não teve nada; Ieda vê a situação des-troçada e sem saída, e isso numa conjuntura, é bom lembrar, em que o Estado nacional contrata, leiloa, faz e acontece, com a economia aquecida e a inflação sob controle; Tarso, agora, ao lado de tentar equacionar as coisas dentro do res-trito raio de ação local, o que mais tem feito é atrelar a carroça sul-rio-grandense

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aos fogosos cavalos brasilienses, porque é em Brasília, o centro desse império, onde está o dinheiro, em todas as áreas: as sociais e as econômicas. Nem sombra da antiga altivez autonomizante que o Rio Grande do Sul cultivou e ainda hoje alega, em discurso crescentemente fastasmal.

4.

Uma reflexão que transitasse de modo simplista entre as duas dimensões aqui apontadas, a cultural e a fiscal-financeira, resultaria numa conclusão cí-nica e inevitável: bem, estamos finalmente integrados nacionalmente, de for-ma que agora chega de ilusões autonomistas, numa esfera ou na outra. Sim, mas então o que fazer com o ensino e a saúde, que são de responsabilidade do mesmo cofre que não pode cobrar ICMS da exportação e não recebe a prometida compensação por isso? Mandamos o pessoal pra casa e esperamos morrerem todos analfabetos?

Ocorre que há mais: mesmo com a centralização estupenda dos tributos, mesmo com o esvaziamento da capacidade de gestão do governo estadual, ou talvez por isso mesmo, há entre as pessoas, das mais simples às mais so-fisticadas, um sentimento de pertencimento a esse mundo, ao mundo sul-rio-grandense. No plano popular, o que quer dizer no plano do que resta de singelamente popular e também, majoritariamente, no plano do que já está integrado à engrenagem do mercado na forma de cultura de massas, nunca houve tantos Centros de Tradição Gaúcha (CTG), entidades que são como clubes sociais, de agregação espontânea e voluntária, mas que apresentam a singularidade de serem dedicados ao cultivo de certas tradições (modos de vestir e de dançar, modos de preparar comidas representativas etc.), que são condificadas e controladas por várias instâncias de organização. Nunca houve tanta ênfase nos desfiles chamados de Farroupilhas, realizados nos dias 20 de setembro, marca inicial da guerra iniciada em 1835 e data da proclamação da República do Piratini, em 1836: no Rio Grande do Sul, tais desfiles são mais entusiasmados do que os de 7 de setembro, a data da Independência brasi-leira. Há festivais de música chamada de nativista ou regionalista, de música

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genericamente chamada de gauchesca, e isso por toda parte, incluindo mui-to fortemente regiões sul-rio-grandenses que receberam, ao longo do século XIX, levas sucessivas de imigrantes de língua alemã e de língua italiana, bem como, minoritariamente, poloneses, russos, japoneses, judeus, árabes.

Aqui cabe um parêntese para quem não conhece o tema: o que ficou marca-do como identidade gaúcha está baseado em imagens, símbolos, práticas sociais e valores que originalmente existiam no mundo da estância, isto é, da fazenda de criação de gado em regime extensivo, grandes áreas de campo aberto, gado solto, o vaqueiro tendo aí um papel decisivo, dentro da estância, para manejo do gado, e fora dela, para conduzir as tropas de animais para abatedouros, com vistas a produzir o charque, a carne-seca e salgada que fez parte importante da riqueza do Estado desde o século XVIII. Ora, tal estância foi típica da parte sul do Estado, aquela que fica na vizinhança do Uruguai, e não muito mais que isso; toda a parte norte, topograficamente distinta (em grande parte se trata de serras altas, eventualmente com campos também), foi em sua maior extensão ocupada por minifúndios tocados por mão de obra familiar, por colonos emi-grados do mundo alemão e italiano, majoritariamente, a partir já da década de 1820, os alemães, com reforço notável nos anos 1870, os italianos. O curioso é que, quando o processo histórico definiu aquele gaúcho vaqueiro, o peão da estância, ele e seu mundo simbólico, como o elemento central da identidade do Estado, essas regiões coloniais, que na prática tinham pouca relação com aquele mundo da produção extensiva do gado, adotaram também elas o estilo gauchesco de pensar e ser. O processo não é completamente fechado, como se pode imaginar, havendo núcleos refratários a tal assimilação e havendo inúme-ros episódios de mescla entre coisas gauchescas e coisas coloniais germanizadas ou italianizadas; de todo modo, é certo que a hegemonia da identidade cultural está cifrada naquele mundo da estância, tomado como uma espécie de paraíso perdido para os frequentadores dos CTGs.

Não se trata de um mundo marcado pela sofisticação cultural, está-se ven-do. É gente de escassa leitura, de pouca reflexão sistemática, preponderante-mente oriunda das classes médias e baixas urbanas, algumas vezes (não princi-palmente) com raízes no mundo da antiga estância latifundiária. Mas é gente

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que lê alguma poesia, canta algumas canções, dança; gente comum, para dizer de modo simples e abreviado.

A mesma visão cínica diria, cortando a conversa, que, bem, assim é, os simples vivem subordinados à indústria cultural, que nesse caso guarda certa proximidade com um movimento de raízes folclóricas; tudo isso, no entanto, sendo destinado à grande lixeira geral da cultura de massas de nosso tempo. De acordo, digo eu, em termos amplos; mas, à parte a dimensão humana que pode ser salientada nisso tudo, vale a pena sublinhar que talvez essa modalida-de de cultura trivial seja menos idiota do que, por exemplo, aquela que tomou conta do interior de São Paulo, e não só ali, aquela modalidade de reversão histórica em que saiu o caipira, tragado pela voragem do mercado e sem algo como um Centro de Tradições Caipiras, e foi substituído pelo caipira texano, já de butique, já industrializado, que vem com o modelo de rodeio, de baile, de chapéu e mesmo de sotaque mental, por assim dizer.

5.

A intenção não é fazer um campeonato de horrores, em que no fim das contas só há perdedores, mas de pensar a partir de alguns dados constatáveis, como esses aí de cima, que, por certo, poderiam ser replicados por outros referentes ao mundo pernambucano, ao mundo goiano, talvez a tantos mais, certamente a várias das culturas – passe o termo – regionais do Brasil. Em cada uma delas, haverá casos similares, em que itens da identidade cultural são fortes entre a gente mais simples intelectualmente e apresentam vigência mesmo em patamares refinados de percepção e de produção cultural.

Agora migremos em direção ao mundo da produção cultural mais sofis-ticada, para continuar pensando no tema. O que se verifica nele, seja no Rio Grande do Sul ou em Pernambuco, mas também noutras das regiões brasi-leiras, é a permanência das referências locais, algumas delas bem próximas àquele mundo da cultura popular e/ou massiva. Naturalmente há, em Porto Alegre ou no Recife, artistas que se movimentam esteticamente em patamares alheios aos temas e pressões locais, artistas para quem faria pouca diferença

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viver em uma dessas capitais ou em cidades metropolitanas, como São Paulo, Buenos Aires, Paris ou Nova York. Em primeiro lugar, porque as capitais de província dispõem de certo nível de integração ao mercado e à cultura letrada ocidental que permitem tal situação; em segundo, há a possibilidade real e crescente de um artista produzir para segmentos de mercado que, como ele, vivem por assim dizer no mundo, e não naquela cidade; em terceiro, tudo isso foi potencializado nos últimos tempos pelos extraordinários vetores de integração representados pela internet e tudo que ela proporciona. Tais seriam os casos de gente que compõe rock em inglês, por exemplo, ou de gente que escreve para veículos impressos em outro país; na literatura, é o caso de escri-tores que inscrevem sua produção em fatias do leitorado que independem das referências locais e vivem, ao contrário, da força dos temas que elegem como centro de sua obra; veja-se o caso de João Gilberto Noll ou de Lya Luft, entre outros, para quem o fator local não pesa ou pesa pouco.

Mas há uma força de permanência da identidade local, da formação cul-tural específica da região, que interessa averiguar aqui. Trata-se de uma força perceptível entre artistas de ótimo nível, artistas que, justamente por procura-rem fazer falar os elementos locais no patamar da melhor Arte, não raras vezes vivem o dilema de serem sofisticados demais para o cidadão médio da região, de um lado, e de parecerem muito localistas para o cidadão desligado dela ou para o cidadão metropolitano. Dá para pensar num caso como o de Vitor Ramil, excelente cancionista, que muitas vezes encontra ouvidos surdos por viver esse processo; ou num caso como o de escritores como Luiz Antônio de Assis Brasil, romancista que se ocupa de romances históricos de ótima fatura, ou de Luiz Sérgio Metz, inventivo narrador, falecido precocemente, que re-processou a linguagem gauchesca em enredos de grande força dramática.

Se por um momento ampliarmos o foco, de modo a abranger, num vistaço, o conjunto da história da literatura (e da canção, igualmente) de Língua Portu-guesa aqui na América, quer dizer, aquilo que chamamos de Literatura Brasileira, veremos algumas constantes reveladoras. A primeira delas é que desde o Segun-do Império, o que nos termos da história da literatura equivale ao Romantismo, até agora, sem exceção, a cada novo bloco histórico e a cada correspondente

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alteração importante da moda em matéria de composição literária aparecem romances, poemas, dramas e contos tanto versando sobre a Cidade grande e/ou sobre o Centro (o Rio, depois São Paulo), quanto versando sobre a província, a cidade pequena e/ou o mundo rural; no entanto, nos manuais de história da literatura aparecerão quase que apenas os que operam no primeiro termo, a Cidade grande, o Centro, ficando o restante relegado à condição de – aqui está o termo, de novo, agora em sua versão completa – regionalismo, quer dizer, de coisa vista liminarmente como menor, de alcance acanhado, sem a totalidade que, na visão do Centro, está apenas na grande Cidade ou no Centro mesmo, tudo isso pensado a partir da noção de que a totalidade é que confere estatuto superior à obra de arte. Está mesmo? É mesmo?

Isso não está escrito assim, de modo tão direto e mesmo trivial, em ne-nhum artigo ou livro de história que eu conheça; mas os efeitos dessa pers-pectiva são sensíveis, adivinha, por quem não esteja no Centro, ou discorde dos critérios utilizados para definir o que é maior e o que é menor, em termos de validade. Não está escrito assim mas é assim, me parece: a validação das obras, o carimbo de legitimidade que elas podem receber, pelo menos desde o Modernismo brasileiro, está ligado à ideia de que (a) a Cidade é a totalidade, a Cidade grande em particular; (b) a ponta do processo de modernização é o que importa, em qualquer nível (social, econômico, político), a ponta e não as bordas ou a retaguarda, porque na ponta é que os conflitos se expressariam de modo direto, tornando-se visíveis a pleno; (c) Arte é igual à novidade, a vanguarda, arte verdadeira implica conquista de novo território temático, de novo procedimento formal, e toda arte que apresentar qualquer aspecto de permanência rebaixa imediatamente seu valor.

A soma desses pressupostos, que, repito, não estão escritos assim mas são assim praticados, resulta na equação que perpetua a visão que temos hoje: cidade grande + modernização + vanguarda = arte verdadeira; sem qualquer um desses itens, temos arte velha, irrelevante, desprezível, merecedora, no máximo, de uma nota de pé de página. A soma desses pressupostos resulta na entronização de certo tipo de literatura, não como um estilo, uma variedade, mas como a melhor literatura e, nos casos mais extremos, a única literatura

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(a única arte, nos casos delirantes) válida. O prezado leitor percebeu aqui o mecanismo básico da perpetuação da nefasta categoria “regionalismo”?

6.

Se o leitor for rápido no gatilho, vai jogar no meu metafórico rosto algu-mas contestações, especialmente esta: que Guimarães Rosa, ao contrário da massa de escritores de tema rural, parece regionalista mas não é, porque ele, argumentará meu leitor, transcendeu os dados regionais para alcançar o uni-versal (isso se o leitor for dado à metafísica); porque ele, argumentará o leitor, remexeu no esterco regionalista mas teve – olha aí – teve atitude de vanguarda, adequada, ao recriar a linguagem e tal; porque ele, argumentará meu leitor em caso de ser um modernistocêntrico assumido, fez o que os grandes inovadores do século XX fizeram, como Joyce. Nem vai adiantar em argumentar com ele que Rosa aprendeu parte do que inventou não com a vanguarda europeia, mas com gente nativa que havia experimentado procedimentos inovadores, como por exemplo Simões Lopes Neto. Não vai adiantar porque a visão que esposa meu hipotético antagonista determinou que o que é bom deriva daquela equa-ção, acima exposta, e portanto outras hipóteses simplesmente não existem.

Pois bem: eu queria, mesmo assim, deixar aqui uma sugestão, nem que seja como matéria para uma conversa frouxa, de bar, uma hora dessas. Que é a seguinte: antes de mais nada, preste um pouco de atenção à faca com que está sendo fatiada a História da Literatura Brasileira, e veja que ela existe, para co-meço de conversa; depois tente avaliar a natureza dessa faca, o ângulo de corte que ela opera; depois tente retornar para a Literatura Brasileira ela mesma, quero dizer, para os livros, os importantes e os não importantes, e tente ver se eles não seriam mais bem descritos segundo outras fatias, mediante outros recortes, com o uso de outra faca.

Tenho até mesmo uma sugestão prática para oferecer: enumere, como exer-cício, os romances, para ficar em um gênero apenas, e gênero forte na tradição brasileira, ou mais amplamente nos relatos narrativos, incluindo os contos, mas prestando atenção aos relatos que se ocupam da Cidade e do Centro e, ao

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lado, os que se ocupam do campo, ou da província. O resultado dessa enume-ração, na minha leitura, oferece um panorama de grande eloquência: vai-se ver de perto, e a constatação é que a cada geração, desde o Segundo Império, há relatos importantes sobre o Centro, a urbe, e sobre a periferia, o mundo rural ou provincial, configurando uma dinâmica de enfrentamento, de tensão, que fica visível cá pela minha lente. Sumariamente, em um arranjo cronológico em blocos definidos desde o ângulo da história econômica e política (e, portanto, não de uma suposta história de estilos, que é uma facilidade escolar que quase sempre é também um embuste historiográfico), fica assim:

Momento histórico Relato urbano Relato rural e provincial

I – Segundo Império e hegemonia do café no RJ, anos 1850-1890

Macedo, Alencar; Machado

Alencar, Távora, Bernardo Guimarães, a prosa do Partenon Literário (RS)

II – Primeira República e hegemonia do Café de SP; o Realismo-Naturalismo, anos 1890-1920

Machado; Aluísio Azevedo; Lima Barreto; Antônio de Alcântara Machado

Afonso Arinos, Luís de Araújo Filho, Alcides Maya, Simões Lopes Neto, Roque Callage, Hugo de Carvalho Ramos, Monteiro Lobato, Valdomiro Silveira, Manuel de Oliveira Paiva, Domingos Olímpio, Lindolfo Rocha, Coelho Neto

III – República Pós-30 e modernização econômica; o romance neorrealista dos anos 1930-1950

Erico Verissimo, Dyonélio Machado, Cyro dos Anjos, Octávio de Faria, Jorge Amado, Amando Fontes, Telmo Vergara, Reynaldo Moura, Lúcia Miguel-Pereira, Oswald de Andrade, Lúcio Cardoso, Marques Rebelo etc.

Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo, Erico Verissimo, Cyro Martins, Guimarães Rosa, Murilo Rubião, José Cândido de Carvalho, Rachel de Queiroz, Ivan Pedro de Martins, Abguar Bastos, Cornélio Penna, Jorge Amado, Bernardo Élis, Mário Palmério, Pedro Wayne, Aureliano de Figueiredo Pinto

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Momento histórico Relato urbano Relato rural e provincial

IV – Brasil-Grande durante a Guerra Fria (de JK e da Ditadura Militar); crise da narrativa realista dos anos 1960-1980

Clarice Lispector, Lígia Fagundes Telles, Antônio Callado, Carlos Heitor Cony, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Caio Fernando Abreu, Sérgio Sant’anna, Moacyr Scliar, Ignácio de Loyola Brandão, Marcos Rey, Osman Lins etc.

Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho, João Ubaldo Ribeiro, Josué Guimarães, José J. Veiga, Raduan Nassar, Luiz Antonio de Assis Brasil, Márcio Souza, Tabajara Ruas, Francisco Dantas, Benito Barreto, Dalcídio Jurandir, Alcy Cheuiche, Ivan Ângelo, Antônio Torres

V – Brasil Neoliberal /Globalizado na hegemonia do capital financeiro mundializado; anos 1990

Chico Buarque, Luiz Ruffato, Paulo Lins, Marcelino Freire, Marçal Aquino, Fernando Bonassi, Fausto Fawcett, Marcelo Mirisola, Ferréz, Bernardo Ajzenberg

Luiz Sérgio Metz, Charles Kiefer, Milton Hatoum, Cristóvão Tezza, Wilson Bueno, Juremir Machado da Silva, Marilene Felinto, Paulo Ribeiro, Antônio Carlos Viana, Miguel Sanches Neto

Se o leitor me acompanhou até aqui e se deu o trabalho de percorrer essa modesta tabela, terá visto que faz um certo sentido essa visada que joga no lixo a categoria “regionalismo”, em favor de uma visada abrangente, que não descarta liminarmente os livros ocupados o tema rural ou sobre a vida provin-cial, nem supervaloriza aqueles que lidam com a Cidade Grande ou o Centro. Pode-se mesmo ir um pouco mais longe, e com grande proveito: me parece mais produtivo, menos restritivo, e historicamente mais representativo que se pense de modo dialético nessa disjunção entre cidade e campo, entre urbano e rural (entre metropolitano e provincial). Dialético: enxergando as tensões,

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mapeando as forças em choque, diagnosticando os problemas que estão sendo dramatizados ali, naqueles livros, naquela época.

Um exemplo dessa tensão pode ter origem num conceito vagamente freu-diano, que me ocorreu a partir da leitura de um bom livro sobre Guimarães Rosa, de Kathrin Rosenfield (Desenveredando Rosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007). Nele, a autora comenta a literatura de Guimarães Rosa, a folhas tan-tas, como um trabalho de luto: “Ele concebe a escritura como um intenso trabalho de luto que as transformações históricas – e até reformas bem-sucedidas – exigem no imaginário coletivo” (p. 103). A ideia tem muita capacidade explicativa, não apenas sobre Rosa, digo eu, extrapolando, mas sobre toda a literatura que se ocupa com o lado perdedor, em qualquer das conjunturas históricas. O lado perdedor: aquele que lida com as experiên-cias e as matérias que, em qualquer processo de modernização, vão ficando para trás, que vão sendo largadas pelo caminho, como a vida na província relativamente à vida metropolitana, como a vida rural, relativamente à ur-bana, como a vida dos “sujeitos monetários sem dinheiro” (expressão, salvo engano, de Robert Kurz, por exemplo em O colapso da modernização, São Paulo: Cia. das Letras, 1992).

Se pensarmos em conjuntos, em blocos históricos de recorte relevante (e não segundo as perniciosas categorias estetizantes com que a História da Li-teratura costuma se dividir, se conceber e se satisfazer), por exemplo na linha do que está proposto rapidamente na tabela recém-apresentada, é possível andar mais um passo ainda – conceber cada um desses momentos, que, como insinua-do acima, viram nascer relatos narrativos sobre o Centro e a Cidade grande, tanto quanto sobre a província e o mundo rural, como um campo de tensões, de forças em disputa (forças e tensões que são sociais, mas são também ideológicas, são também estéticas etc.), campo que não se resume, portanto, a um dos lados da equação, campo que só se enxerga amplamente se vistas as forças em sua dinâmica real, para além de juízos sumários com que temos jogado ao lixo as obras carim-badas com o nome nefando de “regionalismo”. Cada um desses momentos, no plano da realização artística como no plano da vida social, se compõe de elementos vencedores e de elementos perdedores, em função da mudança que

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se opera. Pois bem: do lado vencedor, que é o lado da Cidade moderna, do capital, da concentração de poder, do Estado, da tecnologia, está a Arte eu-fórica, tantas vezes expressa como vanguarda, por sinal; do lado perdedor, do lado que requer o luto, está a Arte disfórica, a Arte melancólica, tantas vezes expressa como, desculpe insistir tanto assim, “regionalismo”.

Não estou aqui sugerindo que basta botar em cena um caipira ou um gaú-cho, uma palmeira ou o pampa, para que estejamos diante de arte capaz de realizar em nível esteticamente adequado aquele trabalho de luto, nem que, do lado oposto, basta aparecer fumaça de automóvel e gente andando rápida pelas calçadas para termos Arte eufórica. As coisas são bem mais complexas, e pode perfeitamente haver Arte sobre tema rural que seja eufórica (Catullo da Paixão Cearense, grande parte da poesia tradicionalista gauchesca), assim como Arte sobre a cidade moderna que seja disfórica (Os ratos, de Dyonélio Machado, ou a canção de Chico Buarque de Hollanda). O que estou ten-tando dizer, e não sei se encontrei o jeito adequado, é que muito do que é chamado de regionalismo merece ser lido de modo mais agudo, de tal forma que seus aspectos de trabalho de luto sejam vistos historicamente, como o processamento da perda que a modernização acarretou, processamento que não se opõe a, mas que se complementa dialeticamente com, aquele que a Arte urbana ou metropolitana produz.

7.

Por isto essa conversa toda: para tentar dizer que o que se chama de regio-nalismo, seja por que lado se tome, merece ser submetido a uma leitura mais histórica, a uma leitura rigorosamente materialista, para além das idealidades que tantas vezes têm impedido sua mera visibilidade. Ah, sim, ia faltando eu dizer o nome da idealidade, da fantasia idealista mais problemática que atua no discurso crítico, pedagógico, historiográfico, sobre a Literatura e a cultura brasileiras, há já algum tempo: o nome dessa idealidade que merece ser varrida para a lata de lixo do pensamento crítico, em companhia da outra idealidade (negativa) que é “regionalismo”, é...

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É “Modernismo”. Esse é o inimigo a combater, para que a consciência crítica de nosso tempo, animada da visada materialista e dialética (o que é dia-lética? Eu digo de novo: aquela visada que quer enxergar e descrever as tensões em jogo, a cada quadrante histórico, como alguma vez sugeriu Walter Benja-min para o ideal do trabalho da História – descrever as forças em atuação em seu momento máximo de tensão, antes da ruptura), para que a consciência crítica de nosso tempo, repito, venha a formular uma interpretação mais inte-ligente e mais libertária, capaz de incluir as produções todas em seu horizonte, superando a centralidade excessiva que “Modernismo”, o termo, ocupa; supe-rando igualmente essa espécie de paulistocentrismo igualmente nefasto para nossa capacidade de enxergar a dinâmica tensa, real, contraditória, da cultura brasileira; superando ainda essa tremenda urbanolatria, que assenta suas bases na fantasia desenvolvimentista que varreu São Paulo, mais que qualquer outra parte do país, entre os anos 1920 e os anos 1980 e que vem há alguns anos mostrando faces desgradáveis, mas não menos consistentes historicamente.

Se não ficou claro antes, e para não comprar briga inútil, digo agora de modo explícito: nada contra os paulistas, os paulistanos, os cariocas, os gaú-chos, os baianos, ou quem quer que seja. O que precisamos é perguntar seria-mente pelas formas de pensar o Brasil, de pensar a cultura que temos produ-zido de modo tantas vezes magnífico (e noutras tantas vezes problemático, mas igualmente eloquente desde o ângulo histórico); devemos perguntar pelas categorias com que temos pensado, para enxergar-lhes o condicionamento histórico, para desvendar-lhes os compromissos ideológicos e, mais ainda, os contornos epistemológicos. Para ver com olhos mais livres, para tentar acom-panhar a vida em sua dinâmica complexa, para fazer jus ao trabalho de tantos artistas há tanto tempo.

PS: Tenho um outro argumento para integrar nessa conversa, mas não achei tempo nem caminho lógico para harmonizar sua entrada. É o seguinte: para além ou para aquém de tantas razões para pensar melhor no dito regionalis-mo, em qualquer sentido da palavra (a categoria descritiva, o preconceito, as produções qualificadas com esse rótulo etc.), há uma, bem singela, que pode

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ser enunciada do seguinte modo – assim como se deve preservar a biodiver-sidade de sítios organizados pela natureza em seu longo curso, intervindo no progresso tecnológico que destrói ambientes naturais e mesmo interferindo no processo darwinista puro e simples, com vistas a manter testemunhos do passado em meio ao presente, assim também se deve preservar as culturas regionais; tanto a biodiversidade quando a, desculpe o termo, culturodiversi-dade são importantes, e isso deve ser levado em conta nas políticas públicas da área, mas também nas esferas do pensamento sistemático, o universitá-rio em especial. Este argumento, que espero desenvolver algum dia, poderia acrescentar-se de um exemplo de difícil trato, mas de grande eloquência: as etnias e/ou línguas indígenas, mesmo quando minoritárias e tendendo ao desaparecimento pelas vias naturais e históricas (morte dos falantes por idade, combinada com rarefação da procriação dentro da etnia/língua; dominação deles por cultura e/ou língua diversa da sua; extermínio dos falantes por elementos intervenientes da cultura envolvente, como é o caso de garimpo e exploração da madeira no Norte do Brasil etc.), essas línguas merecem ser preservadas. Ou não merecem?

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C i c l o “ N ov e n ta a n o s d e a rt e m o d e r n a ”

* Conferência proferida em 29 de junho de 2012.

Saldo e legado da “Semana de Arte Moderna de 1922”

Domíc io Proença F ilho

Introdução ȄPassados 90 anos desde a realização da Semana de Arte Moderna

de 1922, os muitos juízos críticos emitidos sobre o acontecimento e suas decorrências deixam pouco a dizer sobre a sua significação e representatividade. Retomar o tema é correr o risco da reiteração.

Diante do tema que me coube neste Ciclo, arrisco-me. Desneces-sário advertir que, basicamente, direi o dito.

Alguma singularidade, se existir nesta fala, será devida à dinâ-mica que impulsiona as águas da cultura, à subjetividade do olhar do observador e à forma de apresentação. Mudam-se os tempos, mudam-se as verdades.

Justifica-me uma constatação tridimensionada: o pensamento navega num oceano de interpretações; a verdade não tem centro e viver é compartilhar discursos.

Ocupante da Cadeira 28 na Academia Brasileira de Letras.

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Mas o tempo é curto, a matéria, vasta, o coordenador, implacável. Passo objetivamente ao assunto, de que procurarei não me distanciar.

Saldo, entre outros significados, remete ao que restou, ao que ficou de algo. A dimensão semântica do termo privilegia um presente imediato.

Algo, no caso, é um ato: a realização do festival de arte concretizado em três dias do mês de fevereiro daquele ano na Cidade de São Paulo.

Legado admite o entendimento como herança, como aquilo que é transmi-tido às gerações que se seguem.

Possibilita ampliações e concretização de resultados. Tem compromisso com o futuro.

Nesse sentido, insere-se num processo. Habita as instâncias do fazendo-se. No caso, no tempo-espaço da cultura brasileira posterior à realização da Semana e dela, de alguma forma, decorrentes.

Comecemos pela configuração do primeiro termo, o saldo da “Semana”.Para melhor nos situarmos, recordemos algumas circunstâncias.Aquele festival singular, sabemos todos, constituiu um ponto de chegada e

um ponto de partida.Resultou, de um lado, de algumas insatisfações, diante do quadro cultural

vigente no país nos fins dos século XIX e começos do seguinte.O testemunho de Capistrano de Abreu é, a propósito, significativo:

“Vejam o índice literário de 1893. À parte um ou outro fenômeno isolado, ou um ou outro caso esporádico interessante e digno de estudo, o quadro é sempre o mesmo. Invariavelmente sombrio e desolador.” ( Abreu, Capistra-no, in: Britto, Mário da Silva. História do Modernismo brasileiro. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1964, p. 16.)

Também comprobatório é o registro do periódico A Semana, relativo àque-les tempos: “As letras retraíram-se quase completamente e o nível intelectual tem descido de modo inquietante, perceptível aos olhos menos sagazes.” (Bri-to, M.S. A Semana, in: op. cit. p.17).

São testemunhos reveladores da óptica dominante na intelectualidade da época e da relatividade dos juízos críticos. Basta lembrar alguns fatos: 1893 é

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o ano de lançamento de Missal e Broquéis, de Cruz e Sousa; Machado de Assis publica Páginas recolhidas, em 1899; Quincas Borba é de 1891, Dom Casmurro, de 1889, Esaú e Jacó, de 1904, Várias Histórias, de 1906; Os sertões, de Euclides da Cunha, data de 1902, os contos de Urupês, de Monteiro Lobato, datam de 1918. O futuro encarregou-se da revisão avaliatória dessas e de outras mani-festações literárias do período.

Estranho? Nem tanto. Tenhamos em conta que o texto literário é eminen-temente conotativo. A conotação, em termos de universo cultural, vincula-se, necessariamente, às diferenças individuais e sociais. A “literariedade” admite ser interpretada como uma conotação sociocultural variável no tempo e nos espaços comunitários. Mudam-se os tempos...

Como quer que seja, o investimento dos insatisfeitos alimentou-se de ou-tros eficazes incentivos: os ecos da agitação espiritual que marcou a Europa dos começos do século XX, configurada notadamente nos múltiplos e multi-facetados movimentos de vanguarda, iluminadores de novas visões de mundo e da arte na contracorrente do pensamento então dominante. Eles se chama-ram Futurismo, Cubismo, Expressionismo, Dadaísmo, Surrealismo.

Dispenso-me de historiar antecedentes signficativos, entre eles os antecipado-res lançamentos de 1917: O poema “Moisés”, de Menotti del Picchia, “A cinza das horas”, de Bandeira, “Há uma gota de sangue em cada poema”, de Mário de Andrade; não detalharei a gênese da festa, sua realização no Teatro Municipal, a repercussão discreta na mídia nacional, as poucas manifestações de repúdio. É matéria de todos consabida e, em certa medida, foi objeto das conferências ante-riores deste Ciclo, nas palavras de meus colegas Eucanaã Ferraz, Adriano Espíno-la, Luiz Augusto Fischer e das agudas pontuações de Antonio Carlos Secchin, a quem agradeço, em nome da Diretoria, ter aceito o convite para coordená-lo.

Lembro, apenas que as propostas exaradas no festival entraram em choque com a resistência à mudança. É próprio de certas estruturas arraigadamente institucionalizadas e servas de condicionamentos.

Nada que não caracterize, tradicionalmente, o estranhamento diante das propostas de vanguarda, afinal, de início, movimentos contra. E mais: era o movimento de um grupo restrito, nuclearizado na Cidade de São Paulo.

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Em termos de comunidade brasileira como um todo, a reação imediata, sabemos, foram a incompreensão e a indiferença.

As ousadas novidades na concreção das Artes Plásticas e na abstração das palavras dos manifestos e dos poemas escandalizaram e irritaram os especta-dores dessa modalidade de banquetes intelectuais e artísticos.

Poderiam ter-se limitado, sem maiores repercussões, à condição vanguar-deira.

Em contrapartida, entretanto, provocaram o despertar para algo que, pouco a pouco, iria impor-se com características tipicamente nacionais, reveladoras, na linguagem, de uma realidade brasileira como tal. Culminaram por instaurar novas dimensões culturais eminentemente brasileiras. Por força, seguramente, da dinâmica da cultura e das circunstâncias, do espírito do tempo.

O impacto era compreensível. Era preciso chocar para mudar. Um estudo da estrutura política e social do Brasil daquela época possivel-

mente revelaria a força das influências vigentes, das ideias preestabelecidas, o confronto de visões de mundo e de arte.

Para evitar os percalços de um sapateiro que vá além dos sapatos, concen-trarei as observações nas manifestações ligadas à Literatura.

O teor das propostas dadas a público na Semana – é matéria de todos co-nhecida – permaneceu incubado durante quase dois anos.

A novidade esperou 1924 para ganhar a divulgação e a atuação das revistas especializadas (Klaxon, que totalizaria nove números publicados em primeiro plano).

Os jovens envolvidos, entretanto, imunes à indiferença, fiéis ao que se pro-punham, seguiam produzindo.

Lançavam-se à busca de caminhos, uma vez que, na feliz síntese de Aníbal Machado, não sabiam definir o que queriam, mas sabiam discernir o que não queriam.

Conferências, subsequentes manifestos e produções deixam depreender, como assinala a percuciência de Luiz Lafetá (1930: A crítica e o Modernismo, São Paulo: Duas Cidades, 1974, p.15), a convergência de dois projetos orientado-res do movimento: o estético, na linha das citadas vanguardas europeias dos

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inícios do século XX, e o ideológico, centrado no conhecimento e na expres-são artística da realidade brasileira. Tais projetos, integrados ou não, situam-se na base de toda a produção literária que se seguiria.

O saldo da Semana ȄE o que fica, o que resta da festa de fevereiro?Sintetizo, didaticamente, com o risco do reducionismo e sem a pretensão

de esgotar o alcance da auditoria.1. O impacto do choque: aos artistas e aos conferencistas coube abalar os

alicerces do comodismo, mobilizar reações.2. A mobilização da consciência da ruptura com a tradição. A proposta,

como destaca Afrânio Coutinho, alicerçava-se num espírito polêmico e des-truidor. Preconizava o abandono de “uma arte artificial, produzida à custa de imitação estrangeira”, a “demolição de ‘uma ordem social e política fictícia, colonial’”. O alvo imediato eram as manifestações parnasianas dominantes no gosto comunitário. O poema “Os sapos”, de Manuel Bandeira, e a “Ode ao burguês”, de Mário de Andrade, são, nessa direção, significativos. Observe-se que o primeiro se vale de verso tradicional e se permite a rima.

3. A abertura para o novo. A Semana emerge sob a égide do Futurismo de Ma-rinetti. O repúdio, entretanto, não tardará. Na verdade, pretende-se a eleição do moderno como um valor em si mesmo, embora “moderno”, na época, carecesse de significação mais precisa, sobretudo em termos de avaliação literária.

4. A proposta da busca de originalidade a qualquer preço, o que implicava a autonomia da obra de arte e a autonomia do artista. Ambos libertam-se da vinculação ao referente e às modelizações preestabelecidas.

5. A pregação da liberdade ampla no uso da língua-suporte da manifesta-ção literária. O tópico não se concretizou em plenitude. A coerção social e o condicionamento foram mais poderosos. Voltarei ao assunto, enunciados adiante.

6. A fragmentação e a constituição de correntes aglutinadoras, na procura dos caminhos do novo. Atingidos os objetivos propugnados, o grupo que

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participou do festival de fevereiro vai, aos poucos, desagregando-se. Unia-os, na verdade, a consciência do que não queriam.

Costuma-se apontar o número de janeiro de 1923 da citada revista Klaxon, consagrado a Graça Aranha, como ponto crucial da desagregação. Passara o momento do embate. Era preciso seguir na concretização do que efetivamente se buscava.

E emergem as diversas correntes e seus numerosos manifestos: dinamista, primitivista ou anarco-primitivista, nacionalista, espiritualista, desvairista, in-timista e esteticista, que se definem nas próprias designações. Centros nucle-ares: São Paulo e Rio de Janeiro. O que não exclui mainfestações em Minas Gerais, em torno de A revista(25) ou da Revista Verde (27); no Nordeste, o discutido manifesto regionalista do Recife (26), liderado por Gilberto Freyre; em Porto Alegre, com a ação, entre outros, de Augusto Meyer.

A presença dos mesmos escritores em várias correntes e movimentos in-dica que não se trata de grupos rígidos e fechados, seguidores radicais desta ou daquela tendência. Buscam-se soluções, ampliam-se caminhos. Enrique-ce-se, sub-repticiamente, a Literatura nacional. Mas ainda nos espaços da vanguarda.

Paralelamente, emergem manifestações e produções de artistas desvincula-dos de grupos.

Em resumo: o festival teve o mérito de sacudir o conformismo e a acomo-dação. Abriu perspectivas. Apontou rumos para a criação artística. Indicou direções relacionadas com o modo de ser e de se dizer do brasileiro. Coincidiu com a expectativa de inúmeras outras insatisfações para além do grupo que participou da Semana.

Esta constitui basicamente um movimento contra: contra o passado, o aca-demicismo, o tradicionalismo e, sobretudo, contra os tabus e preconceitos.

Configura, sobretudo, ao fim e ao cabo, a proposição de um vasto progra-ma, fundado numa visão nova de mundo e de Brasil e ilustrado, no âmbito das diversas manifestações artísticas, com exemplos representativos.

Síntese do saldo do festival de 22 como tal: choque. Abalo. Abertura para o novo, ideológica, artística e culturalmente. Farto e diversificado texto

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programático; manifestações artísticas exemplificadoras na Pintura, na Arqui-tetura, na Música e, em especial, na Literatura. O começo. De baixa volume-tria, é certo, mas de notável potencialidade.

O legado ȄO legado é esse terreno fértil, pronto para ser trabalhado. É o que acon-

tece. Ele se amplifica concretizado nas decorrências das propostas e do seu desenvolvimento e, por força da ampla liberdade preconizada, largamente as ultrapassa.

Essa amplitude da herança perpassa a vasta produção artística nos pri-meiros 30 anos após a Semana, cuja avaliação foi objeto da famosa confe-rência de Mário de Andrade, no Itamarati, em 1942, publicada na edição da Martins dos Aspectos da Literatura Brasileira, citada e comentada ao longo deste Ciclo.

Entendo que se estende, marcado pela sedimentação, até a atualidade do alvorecer do século XXI. Essa permanência justifica a revisita, na comemora-ção dos seus 90 anos.

Culmina, se me é permitido categorizar, na instauração de uma Tradição modernista revisitada.

E tudo isso se verifica a médio e longo prazos, estabilizadas e pouco a pouco as-similadas as propostas. É extremamente lento o processo assimilatório do novo.

O texto avaliatório de Mário dá, a propósito, a primeira medida do resul-tado do balanço.

Na retrospectiva do movimento de que foi uma das lideranças mais atuan-tes, ele define o que pode ser considerado uma espécie de cânon da poética do Modernismo então sedimentado, mas, em termos de incorporação comunitá-ria, ainda objeto de forte resistência.

Na avaliação de Mário, seja-me permitido reiterar, o multifacetado estilo epocal caracterizou-se pela “fusão de três princípios fundamentais”: o “direi-to à pesquisa estética”; a “atualização da inteligência artística brasileira”; “a estabilização de uma consciência criadora nacional”.

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“Direito à pesquisa estética” corresponde a superestimar o Experimenta-lismo, traço, a propósito, comum às vanguardas dos anos 20. A produção modernista brasileira foi, efetivamente, pródiga nesse quesito, sobretudo no âmbito da produção em verso.

A “atualização da inteligência artística brasileira”, em outra clave, implica uma “abertura da arte à realidade nacional”. Ao fundo, “radicação na terra”, nacionalismo, à luz de uma reinterpretação do Brasil.

A estabilização citada define-se por si mesma. Mas não vou parafrasear o texto marioandradino. As contingências e os

limites desta fala levam-me a sugerir a leitura do original e do lúcido comen-tário de José Guilherme Merquior, publicado em Formalismo e tradição moderna, livro de 1974, e ao convite à reflexão sobre as polêmicas observações aqui feitas por Luís Augusto Fischer.

Para subjetivar alguma contribuição, permito-me apontar, sem qualquer pre-tensão de esgotar o assunto, outros aspectos das decorrências da Semana-marco.

No percurso da sedimentação, configurou-se a adoção valorizadora do ver-so livre. No processo, este passou ao bom convívio com o ritmo tradicional.

Observe-se que o versilivrismo já frequentava praticamente todas as cor-rentes poéticas da Europa.

A nova técnica aparece pela primeira vez, de forma ainda tímida, nada me-nos do que com Arthur Rimbaud, em junho de 1886. Com Walt Whitmann, começa a ganhar presença marcante, nesse mesmo ano. Já Gustave Khan pu-blica, em 1887, Les Palais Nomades, parcialmente em verso do gênero.

Entre nós, repelido pelos nossos primeiros simbolistas, aparece pela pri-meira vez no livrinho de Adalberto Guerra Duval, intitulado Palavras que o vento leva... lançado em 1900. Este permanece isolado até o surgimento da História do meu casal, em 1906, de Mário Pederneiras, e em Apoteoses, livro de estreia de Hermes Fontes, de 1908.

A modalidade chegou, instalou-se, superou as resistências e incorporou-se ao fazer poético brasileiro.

Ultrapassado o momento de ruptura e sedimentação, passou a conviver com as técnicas revitalizadas do verso tradicional. Este último, a propósito,

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presentifica-se ao longo de toda a Literatura Brasileira, independentemente de qualquer movimento de vanguarda. E emerge, na contracorrente, com a pro-dução da chamada “Geração de 45”. Mas este é assunto para outra conversa.

Na ampliação do legado, ganha forte presença, na poesia, a valorização poética do cotidiano, numa oposição às modelizações românticas e pós-ro-mânticas, notadamente às peculiares às poéticas parnasianas e simbolistas.

Ao mesmo tempo, atendia-se à perspectiva nacionalista preconizada em alguns dos manifestos. A Arte, e não só a literária, volta-se para a visão da realidade brasileira. Por outro lado, desaurifica-se o fato literário.

Presentifica-se o culto do primitivismo, que também tem seu ponto de partida nas vanguardas europeias. Só que, como explicita Merquior, nessas se identifica com a atitude surrealista-expressionista e caracteriza “a busca niilis-ta do absurdo e a ânsia pararreligiosa da inocência” ( Merquior, J.G. comen-tário à comunicação do professor Guilhermino César in: Proença Filho, D. O livro do Seminário, 1.ª Bienal Nestlé de Literatura Brasileira. São Paulo: L/R ed. 1983) além de converter-se também na busca de formas originais.

No Brasil, porém, ganha peculiaridade: encontra terreno fértil na matéria brasileira e efetiva um cunho nacionalista bastante acentuado.

Nesses termos, configura um “primitivismo temático” valorizador de nos-sas características históricas, míticas e paisagísticas, marcado pelo humor, pela paródia e pela citada valorização do cotidiano e do popular. É ler Cobra No-rato, de Raul Bopp, por ocasião da descoberta do Brasil e História do Brasil, de Oswald de Andrade, Martim Cererê, de Cassiano Ricardo, Macunaíma, de Mário de Andrade, alguns textos de Menotti del Picchia. Entre outros. Lembro, a título de exemplo: “Escapulário”, de Oswald: no pão de açúcar/de cada dia/ dai-nos, Senhor,/ a poesia/ de cada dia. Ou “Mãe preta”, de Cassiano: ouviu-se uma voz de choro/dentro da noite brasileira: druma ioiozinho,/que a cuca já i vem/ papai foi na roça/ mamãe logo vem// e a noite pôs em cada sonho de criança/uma porção de lanterninhas de ouro.

Abrem-se, gradativamente, novos espaços de criação, na direção de um aprofundamento do tratamento dos temas e de um despojamento da lingua-gem, superados, pouco a pouco, o mero ludismo e a gratuidade de algumas

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composições dos primeiros momentos, especialmente os poemas-piada, deli-beradamente assumidos como tal.

Posteriormente, presentificam-se, na produção poética, dimensões metafí-sicas e intelectualizadas nas sendas da dicção consolidada.

Ganha vulto a autonomia do artista, decorrente da ampla liberdade de criação preconizada pelas propostas de 22.

“Estou farto do lirismo comedido/do lirismo bem-comportado/do liris-mo funcionário público com livro de ponto, expediente e manifestações de apreço ao senhor diretor/” ironizava Manuel Bandeira e propunha “abaixo os puristas/ todas as palavras, sobretudo os barbarismos universais/ todas as construções, sobretudo as sintaxes de exceção/todos os ritmos, sobretudo os inumeráveis/.”

Ao lado desses traços, na contracorrente da proposta de Bandeira, perma-nece a tradição do lirismo intimista.

Configura-se a assunção da liberdade plena de criação.Valoriza-se a criação na linguagem, o que implica a luta com as palavras. E

Drummond indica o caminho: “Lutar com palavras /é a luta mais vã/ entan-to lutamos/mal rompe a manhã/.”

Democratiza-se a palavra poética. Perde espaço o sermo nobilis. Cede lugar, já na fase de consolidação plena, “a todas as palavras, como explicita João Ca-bral de Melo Neto: “Poesia, te escrevo /agora: fezes, as/fezes vivas que és./Sei que outras //palavras és, palavras impossíveis de poema.”

Predomina o cultivo da imagística de base subjetiva. Notadamente no poema. Entenda-se, com Carlos Bousoño: a imagem tradicional baseia-se em três possibilidades, que coincidem todas num ponto: o fato de a seme-lhança entre o plano real e o evocado partir sempre de uma condição obje-tiva que pode ser: de caráter físico: “a dama escondeu no lenço as rosas vi-víssimas do rosto”; de caráter moral ou espiritual: “esta menina é um anjo”; de caráter axiológico: “esta jovem é uma pérola”. A segunda modalidade apoia-se no sentimento do autor: “tua presença é uma carne de peixe”(Mário de Andrade) ; “um arco-íris vadio bailava na gaiola”. Ao fundo, a propensão para o hermetismo.

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Dessacraliza-se a Arte, com o predomínio da concepção lúdica sobre a concepção mágica anteriormente dominante. A Arte perde a aura idealizadora que a caracterizava. Esse é um dos raros aspectos em que a Arte modernista presentificada no Brasil, e digo arte e não estética modernista, insere-se nos espaços da modernidade. A propósito, modernista e modernismo, apesar da impropriedade terminológica, revestem-se, na crítica brasileira, de conotação específica. São termos que se referem a realidades multifacetadas e como tal devem ser entendidos. Até porque incorporados à nomenclatura da área de estudos.

Presentifica-se a instauração de um olhar crítico sobre a realidade brasilei-ra. Caracteriza-se, nesses espaços, na literatura, um voltar-se para o conheci-mento e a expressão artística, multidimensionada, da realidade nacional.

Esse aspecto se evidencia acentuadamente na prosa, de presença tardia, em relação à Semana-marco, mais precisamente, no romance, a partir de Macunaíma e de a Bagaceira, de José Américo de Almeida, textos publicados em 1928.

Trata-se de textos-marco, não apenas como referência histórica, mas como exemplificadores de tendências dominantes.

A rapsódia marioandradina, de par com as Memórias sentimentais de João Mira-mar e Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, de São Bernardo, e Vidas secas, de Graciliano Ramos, constituem manifestações do chamado romance moderno, como assinala a agudeza crítica do saudoso João Alexandre Barbosa.

Entenda-se, na palavra do crítico: “O autor ou texto moderno é aquele que independentemente de uma estreita camisa de força cronológica, leva para o princípio da composição, e não apenas de expressão, um descompasso entre a realidade e a sua representação, exigindo, assim, reformulação e rupturas dos modelos “realistas”. Neste sentido, o que se põe em xeque não é a realidade como matéria de literatura, mas a maneira de articulá-las no espaço da lin-guagem que é o espaço/tempo do texto”. (Barbosa, Alexandre. A modernidade no romance. In: Proença Filho (org.) 1.ª Bienal Nestlé de Literatura. O livro do Seminário. São Paulo: L/R editores, 1983, pp. 22-23.)

Por força dessa dimensão, estamos diante dos poucos romances efetiva-mente modernos, dentro da prosa modernista. Modernos como o são os

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romances machadianos a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas, e ainda A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, e Grande sertão: veredas, de João Gui-marães Rosa.

A bagaceira e os demais textos da ficção modernista permanecem fiéis às mo-delizações realistas-naturalistas do século XIX. Secchin o assinalou e, permito acrescentar, marcadas pelo citado olhar crítico sobre a realidade brasileira. Esse, o traço distintivo que as caracteriza.

Assim situadas, configuram também, como a boa crítica já o assinalou, o predomínio de duas linhas de força: o romance regionalista e social centrado basicamente na realidade nordeste, e o romance de cunho urbano e psicológi-co, de tantos e representativos exemplos, nascidos, entre outros, no primeiro caso, da arte de Rachel de Queiroz, de José Lins do Rêgo, de Amando Fontes, de Jorge Amado, que foi além dessa dimensão, entre outros textos, por exem-plo, com os Velhos marinheiros; no segundo caso, da pena de Érico Veríssimo, Cornélio Pena, Otávio de Faria, Lúcio Cardoso, Jorge de Lima, Lúcia Miguel Pereira, José Geraldo Vieira, Geraldo França de Lima, entre muitos.

Caracterizam-se também dimensões urbano-sociais em textos como os de Dionélio Machado, Orígenes Lessa, Alcântara Machado, e também espaços urbanos aliados a introspecção psicológica em textos de Ribeiro Couto, Mar-ques Rebelo, João Alphonsus, Ciro dos Anjos, Aníbal Machado, Luís Jardim e felizmente muitos mais do conhecimento dos que transitam nessas estân-cias. Fischer, aliás, referiu-se a tais textos. Permito-me dizer, a propósito, que, se em algum momento a dimensão regionalista sofreu alguma restrição da crítica, por pouco representativa, ela tem sido há algum tempo criticamente redimida e ressituada. Difícil, aliás, é configurar com precisão o que seja re-gionalismo, na Literatura do Brasil.

Paralelamente, abre-se a produção literária brasileira para a temática uni-versal.

Em termos da língua – suporte, cumpre assinalar, muitas das propostas radicais não passaram dos manifestos programáticos.

A produção modernista, em prosa e verso, fez ampla concessão ao registro formal, ainda que com eventuais aberturas para o coloquial.

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“A contribuição milionária de todos os erros” limita-se a certas composições de Oswald de Andrade, algumas aqui citadas por Adriano Espínola, a que acres-cento exemplos de Mário de Andrade , de Bandeira e de Augusto Meyer.

Do primeiro, nos “Poemas da negra”: Você é tão suave/ vossos lábios sua-ves/vagam no meu rosto/ fecham meu olhar// sol-posto/ é e a escureza su-ave/ que vem de você/ que se dissolve em mim/ que sono... eu imaginava// duros vossos lábios/ mas você me ensina /a volta ao bem. ( Andrade, Mário. Poesias completas. São Paulo: Martins, 1955, pp. 260-1)

De Bandeira, no poema “Irene”: Irene preta/Irene boa/Irene sempre de bom humor// imagino Irene entrando no céu: – Licença, meu branco/ – Entra Irene, você não precisa pedir licença...

Finalmente, de Meyer, no seu “Coro dos satisfeitos”: Pois quem foram que disseram /que esta vida é coisa feia?// quem falaram não souberam/como é firme a pança cheia.”

“Erro”, no caso, necessita de clarificação semântica. Confunde-se com ina-dequação ao registro formal, a chamada norma culta.

É a mesma significação que se depreende da poética de Manuel Bandeira, quando propõe a integração poética da “língua errada do povo, língua certa do povo, porque ele é quem sabe falar o português do Brasil, enquanto nós o que fazemos é macaquear a sintaxe lusíada”.

Curiosamente, a proposição não se concretiza na maioria dos poemas ban-deirianos.

A propósito, pesquisas de fôlego demonstram a fidelidade dos poetas en-gajados na vanguarda proposta ao registro formal.

É ver o estudo de Raimundo Barbadinho Neto sobre a norma literária do Modernismo, de 1977, e o de Luís Carlos da Silva Lessa, intitulado o Moder-nismo brasileiro e a língua portuguesa, de 1976.

As propostas emergentes da Semana, concretizadas pioneiramente por al-guns, em grupo ou isoladamente, e posteriormente por muitos, permanecerão vanguarda, entretanto, ainda por muito tempo.

A realidade didático-pedagógica brasileira o indicia ainda na década de 1950. O programa de Literatura Brasileira da grade curricular do Colégio

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Pedro II, então estabelecimento-padrão do Brasil, não ia além das manifesta-ções simbolistas.

Um dado sintomático e ilustrativo, para amenizar a aridez desta fala: um desavisado estudante do curso clássico do internato daquele educandário, à época, deslumbrou-se diante de um poema.

Entusiasmado e na esperança de algum bônus na nota mensal da disciplina, mostrou-o ao seu velho professor.

Para sua surpresa e desencanto, o mestre franziu os sobrolhos e com ira incontida rasgou a folha de papel e disse horrores do poeta e de seus poemas e, por pouco, não baixou a nota do aluno...

O texto era “A pedra do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade...Tenho a cena para sempre gravada na vida das minhas retinas fatigadas. Felizmente, anos mais tarde, na gloriosa Faculdade Nacional de Filosofia,

em aula memorável, a mestríssima Cleonice Berardinelli redimiu o poeta e o poema e libertou a sensibilidade do seu aluno e de seus colegas.

Outra reminiscência biográfica, por ilustrativa: já professor, por uma dessas coincidências que descem do Além, o antigo aluno do Pedro II é convidado para a sua primeira Conferência Pública. No Pen Clube. Com a parceria do poeta Fernando Py, drummondiano de boa cepa. Um ano qual-quer da década de 1960. O tema: “O poema e a chave”. O texto: “José”, do mesmo poeta itabirano considerado, então, extremamente hermético e difícil...

Em síntese: o grande e revolucionário legado da Semana de Arte Moderna de 1922 é a ampliação do saldo com a decorrente instauração de um estilo epocal multifacetado e, como assinalou Mário de Andrade, de estética “inde-finível”, que se chama Modernismo brasileiro.

E permanecem fortes, ao longo do processo literário do Brasil, as marcas que o caracterizam.

Elas iluminam as vanguardas dos anos de 1950 e 1960: Oswald e João Cabral são citados como modelares no “plano-piloto da poesia concreta”.

Os tropicalistas de 1967-1968 retomam e incorporam a proposta antro-pofágica de Oswald de Andrade: propõem e assumem a deglutição cultural.

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Verdade que se trata de um movimento difuso, uma geleia geral, embora com um pano de fundo ideológico comum.

Nas pegadas da liberação do Tropicalismo, a chamada poesia marginal, marcada por procedimentos que começaram a proliferar significativamente nos anos de 1970, assumido basicamente por jovens, exibe uma produção, variada e irregular. Caracteriza-a um retorno à preocupação conteudística e ao coloquialismo , com ampla liberdade de expressão e retomada dos cami-nhos abertos pelos modernistas de 22 , na direção da valorização poética do cotidiano, do discursivo quase prosa, do predomínio da expressão sobre a construção. Evidencia-se ainda um afastamento da linha esteticista e do formalismo.

São movimentos que permaneceram vanguarda, mas que pontuam signifi-cativamente o processo da Literatura Brasileira.

Todos tiveram seus momentos de impacto, todos dialogaram criticamente com os posicionamentos modernistas, ponto de referência comum.

Na dinâmica do processo, decorridos 90 anos da Semana, o movimento dela decorrente culmina com a instauração de uma tradição modernista na Litera-tura Brasileira, de forte presença na contemporaneidade. Esclareça-se que essa tradição se insere, insisto, numa realidade multifacetada.

Em paralelo, o convívio com linhas de força que perpassam o processo literário: em poesia, a tradição do verso medido, da rima, da imagística de base objetiva; em prosa, a permanência revitalizada dos modelos realistas-naturalistas do Oitocentos.

Marcas modernistas sedimentadas ganham vulto em dezenas de autores. Desde traços das tendências iniciais, com experiências – na fronteira dos li-mites entre o verso e a prosa, até as preocupações metafísicas e o equilíbrio formal da estabilidade do movimento.

Os textos acrescentam-se de novas dimensões, caracterizadoras de singula-rização, notadamente no nível do enfoque da realidade poetizada. Mas o verso livre, os traços do humor, a valorização poética do cotidiano, o vezo metalin-guístico, a preocupação existencial ao lado da perspectiva crítica em relação à realidade brasileira, esta em menor escala, continuam elementos marcantes.

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É quase feérica a iluminação modernista. E entre os modelos privilegiados despontam Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meire-les, Oswald de Andrade, João Cabral de Melo Neto. Há muitos drummon-dianos, cecilianos, oswáldicos e cabralinos em ação.

Em síntese: a preocupação reflexiva com o Brasil, com a cultura brasileira, sem jacobinismo; o enriquecimento das formas de expressão, sem qualquer preocupação com a austeridade redutora; a autoconsciência que passou a do-minar a crítica literária; a ampliação do acervo das manifestações artísticas carregadas de vitalidade comprovam que o investimento no saldo na Sema-na resultou num patrimônio cultural de altíssima rentabilidade, a ponto de configurar um dos mais fecundos e singulares estilos epocais da história da cultura do Brasil.