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LUCIA AMORIM MOUTINHO A PRODUÇÃO ICONOGRÁFICA DE ANGELO DONATI NO CONTEXTO ILUSTRADO PORTUGUÊS Curitiba 2006

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LUCIA AMORIM MOUTINHO

A PRODUÇÃO ICONOGRÁFICA DE ANGELO DONATI NO CONTEXTO ILUSTRADO PORTUGUÊS

Curitiba 2006

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LUCIA AMORIM MOUTINHO

A PRODUÇÃO ICONOGRÁFICA DE ANGELO DONATI NO CONTEXTO ILUSTRADO PORTUGUÊS

Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel, ao Departamento de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Orientador Prof. Dr.: Magnus Roberto de Mello Pereira.

Curitiba 2006

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AGRADECIMENTOS Agradeço em primeiro lugar ao meu professor orientador, que percorreu esse

caminho comigo, tendo muita paciência ao ler e reler o texto e me mostrar que

escrevemos para um interlocutor e não para nós mesmos, por infinitas razões,

sem ele esse trabalho não teria sido possível.

Agradeço à minha mãe e meu pai pelas pessoas que são e por estarem sempre do

meu lado, com qualquer humor, de qualquer jeito.

Agradeço ao Rodrigo, meu amigo, meu amor, por acreditar.

Agradeço aos meus irmãos e às minhas famílias.

Agradeço à minha sobrinha Maria Luisa por me fazer rir e dar esperança.

Agradeço à professora Ana Luisa Fayet Sallas por me estender as mãos, mesmo

que eu não tenha conseguido aproveitar.

Agradeço às minhas amigas e amigos queridos que fizeram da Universidade um

lugar de aconchego.

Agradeço aos meus colegas de trabalho por entenderem.

Agradeço a todos que de uma forma ou de outra possibilitaram a concretização

deste trabalho.

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RESUMO

No contexto do Iluminismo português, a conjunção de interesses da Coroa e da Ciência resultou na construção de instituições destinadas ao desenvolvimento das Ciências Naturais, como o Real Jardim Botânico d’Ajuda e seus anexos. Nesse sentido também se deu a inclusão da disciplina na Universidade de Coimbra Reformada e a construção do Jardim Botânico da Universidade. Domingos Vandelli, naturalista italiano ligou-se a todos esses projetos, também planejou e concretizou as chamadas Viagens Filosóficas. Essas viagens tinham o objetivo de inventariar as potencialidades dos domínios coloniais portugueses, de forma científica, este trabalho foi feito por equipes de naturalistas, escolhidos por Vandelli. Estes naturalistas ficaram concentrados no Complexo museológico d’Ajuda, lá receberam as instruções de viagem e tiveram aulas de desenho, na Casa do Risco. As imagens iconográficas do desenhista-naturalista Ângelo Donati que foram analisadas neste trabalho foram produzidas nesta fase que antecipou a viagem. Através da análise dessas estampas pretendeu-se entrever a historicidade contida nessa obra. Palavras chave: Iluminismo português; Desenho e Ciências Naturais; Viagens Filosóficas.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................. 01 1ª PARTE Contextualização.................................................................................................. 03 Os Jardins Botânicos na Europa.......................................................................... 10 A chegada de domingos Vandelli e o Jardim Botânico d’Ajuda......................... 12 Reforma da Universidade de Coimbra.................................................................14 Expedições Filosóficas........................................................................................ 19 2ª PARTE: O desenho e a História Natural......................................................... 25 Análise de fontes 1)Frontispício/ Alegoria ao Novo Mundo............................................................41 2)Naturalista em viagem..................................................................................... 47 3)Ilustração científica......................................................................................... 52 CONCLUSÃO.....................................................................................................54 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................... 55 ILUSTRAÇÕES: Ilustração 1: Capa Systema Naturae de Lineu .....................................................05 Ilustração 2: Aquarela naturalistas em viagem ....................................................23 Ilustração 3: Ilustração científica fauna ...............................................................26 Ilustração 4: Ilustração científica flora ................................................................26 Ilustração 5: Prospecto..........................................................................................30 Ilustração 6: Ilustração científica peixes ..............................................................35 Ilustração 7: Ilustração científica peixes detalhe..................................................36 Ilustração 8: Ilustração científica peixes detalhe..................................................36 Ilustração 9: Ilustração científica conchas ...........................................................36 Ilustração 10: Naturalista em contato...................................................................41 Ilustração 11: Alegoria ao Novo Mundo .............................................................42 Ilustração 12: Ilustração científica ave ............................................................... 44 Ilustração 13: Naturalista in loco..........................................................................47 Ilustração 14: Naturalista in loco 2 ......................................................................50 Ilustração 15: Ilustração científica conchas .........................................................52 Ilustração 16: Ilustração científica conchas .........................................................54 Fotografia 1: Conchas ..........................................................................................54

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INTRODUÇÃO Com a confiança do sujeito e a certeza de sua

segurança na fé luterana, nasce a confiança na natureza. O homem se aproxima da natureza para

conhecê-la; e florescem de novo as ciências empíricas e prosperam com maior beleza do que na Grécia. As

ciências se separam da Igreja católica. O "outro" só é verdade para o homem livre, que não busca na coisa

particular a manifestação do divino, senão que considera o mundo exterior como exterior, em efeito, e

se volta de maneira prática para ele. G. W. F. HEGEL - Lições sobre a filosofia da História

Universal

Hegel refere-se ao nascimento da confiança na natureza e da aproximação do

homem com o mundo natural. Esse trecho capta o clima cultural que será

esmiuçado nas próximas páginas. No contexto do século das Luzes e do

desenvolvimento científico, as ciências naturais tiveram destaque. O apoio político

às Ciências e às Artes foi atitude recorrente no período. Em Portugal a História

Natural recebeu especial atenção do poder, dentro do pragmatismo pombalino, essa

disciplina se mostrava útil ao desenvolvimento do reino.

O italiano Domingos Vandelli esteve ligado aos empreendimentos oficiais

referentes à História Natural, como a construção do Real Jardim Botânico, a

implantação da Faculdade de Filosofia Natural e as Viagens Filosóficas. Essas

Viagens tinham objetivo de inventariar as potencialidades dos territórios coloniais.

A preparação e a efetivação desse projeto reuniu um material de especial valor,

como é caso das pranchas presentes no trabalho. O desenho assumiu um papel

importante para História Natural, pelo seu valor informativo, sobretudo no registro

das espécies exóticas que não podiam ser transportadas ou remetidas ao reino. O

objeto de análise do presente trabalho foram as obras pictóricas produzidas pelo

italiano Ângelo Donati, no período de preparação para as viagens.

A primeira parte do presente estudo trata-se de uma introdução ao contexto

de produção destas obras, perpassando pela instauração das instituições referentes

às Ciências Naturais em Portugal até o planejamento das viagens filosóficas. A

segunda parte se concentra nas questões relacionadas ao desenho: a importância do

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risco na História Natural, as possibilidades de trabalho com fontes iconográficas e a

análise propriamente dita.

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A maneira de produzir ciência sofreu alterações de fundo entre os séculos

XVII e XVIII, mesmo com as limitações impostas pela igreja, foi um quebra de

paradigma que muitos historiadores chama de Revolução Científica. No século

XVII, as inovações baseavam-se muito nas ciências exatas, tendo a matemática

como grande matriz dos novos estudos. No século seguinte, o interesse deslocou-se

para as ciências empiristas, que partiam do “real” e não de suposições abstratas

como acontecia na geometria, por exemplo. É o caso das ciências naturais, que

partiam da observação direta do objeto, da realidade. As ciências matemáticas

acabaram perdendo terreno. Em contrapartida, as ciências naturais adquirem maior

importância, principalmente no século XVIII. A natureza passa a ter grande

importância neste período, inclusive passa a estar presente e mesmo ser objeto de

tratados de campos diversos como a política e a religião.

Existe uma diferença entre o saber renascentista vigente até então e o saber

da chamada “nova ciência”, caracterizado pelo “abandono dos aspectos simbólicos

da natureza em troca de um comprometimento com as suas propriedades

observáveis”1. Inicia-se assim a procura por um método universal, por sistemas

classificatórios universais para as novas descobertas. O inglês Francis Bacon (1561-

1626), foi um precursor nesse sentido. Ele dizia que para o desenvolvimento da

ciência era necessário romper com o passado, com os antigos mestres e seus

métodos, e que a nova ciência deveria basear-se na experiência e na observação

sistemática. Pregava a conjunção dos cientistas em busca progresso de uma ciência

racional e empírica. Bacon influenciou muito a geração setecentista de iluministas.

Outro exemplo desta mudança de mentalidade é o inglês John Ray (1627-1705),

estudioso da história natural, que procurou conhecer o maior número possível de

espécies, fazendo coleta e observação no ambiente natural, in loco.

Na cena científica, outro personagem de grande influência foi Isaac Newton

(1643-1727), que se valia dos princípios matemáticos para explicar os fenômenos

1 PRESTES, M. E. B. A investigação da natureza no Brasil Colônia. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2000, p.38.

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físicos, a denominada física experimental2. A sua obra também teve grande

repercussão no século XVIII, sendo traduzida para diversas línguas.

A razão regendo o mundo, as relações humanas, ou entre homem e natureza,

essa mudança de paradigma se reflete em todos os ramos: na ciência, na educação,

na arte. O conceito de razão, passa a ter um novo sentido no século das luzes. O

termo iluminismo vem do conceito de trazer o homem à luz da razão, emancipá-lo

de um estado de ignorância através do conhecimento, mesmo das coisas mais

comuns. Tratava-se da produção de um conhecimento útil, aplicável, daí os

inúmeros manuais que são escritos nesse período (instruções para agricultura,

instruções para as viagens filosóficas, dentre outros). O homem passa a buscar este

esclarecimento em relação ao mundo, reflexo deste fenômeno que chamamos

Iluminismo. A observação torna-se cada vez mais objetiva, científica. Dentro deste

contexto, cresceu o interesse do público leigo pela ciência, assim como o número de

curiosos e colecionadores. Os experimentos de química e física são apresentados

como divertimento, com demonstrações de cientistas nas ruas. A eletricidade, por

exemplo, fascinava o público.

Os naturalistas eram um novo tipo de cientista, fruto dessas mudanças.

Normalmente vinham da classe média, e eram educados de acordo com princípios

esclarecidos. Muitos deles misturavam a teologia com a ciência, como foi o caso do

personagem estudado pelo historiador Urrich Im Hof, o naturalista Johann Jakob

Scheuchzer de Zurique, que comparou a nova ciência com os escritos bíblicos,

pretendendo “o conhecimento de Deus a partir da natureza”3. Desvendar a natureza

serviria para o bem do homem, para o progresso técnico e até espiritual da

humanidade.

O investimento em novos campos do conhecimento era pensado para

benefício do homem, desta maneira, os estudos deveriam trazer a possibilidade de

aplicação no mundo prático, na medicina e na agricultura, por exemplo. Os centros

para o estudo de engenharia desenvolveram-se, levando a construção de grandes

obras nesta área como a construção de canais e estradas. Estava em voga a teoria

2 Uma obra importante de Newton é Philosophie Naturalis Principia Mathematica (Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, de 1687), onde especifica as leis do movimento dos corpos. 3 IM HOF, U. A Europa no século das Luzes. Lisboa: Ed. Presença, 1995, p. 183.

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mecanicista de funcionamento do mundo, onde cada “peça” teria funções fixas. O

próprio corpo humano foi frequentemente comparado a uma maquina. Neste

período, os avanços na medicina foram grandes, inclusive a medicina veterinária

começa a ganhar terreno, com escolas especializadas nesta área.

As Academias de leituras, os Gabinetes e as coleções particulares crescem

nessa época. As coleções abarcavam desde da tradicional numimástica até as

plantas exóticas, formando gabinetes de “curiosidades do mundo”. Seguindo esta

tendência muitos herbários são construídos, reunindo as espécies trazidas do novo

mundo ou do Oriente.

O naturalista sueco Lineu publicou em 1735 uma obra decisiva para o

desenvolvimento da ciência natural, Sistema Naturae Tratava-se de um sistema

classificatório global, capaz de ordenar toda a natureza existente, conhecida ou não.

O Sistema Naturae, baseado em critérios geométricos e matemáticos de observação expressos em linguagem unívoca de grande rigor lógico, parecia ter realizado o sonho dos taxinomistas de constituir a classificação botânica como ciência exata4.

Ilustração 1: Capa da obra de Lineu, reeditada por toda Europa, mas mantida no latim, língua adotada na nomenclatura e descrição das espécies.

Nem todos se empolgavam com este tipo de teoria, como foi o caso do

naturalista francês Conde de Buffon, que não acreditava num sistema baseado nas

ciências exatas aplicado às ciências naturais. Um sistema natural pensado dessa

4 CRUZ, A.L. R. B., Verdades por mim vistas e observadas oxalá foram fábulas sonhadas... Tese de doutorado. História: UFPR, Curitiba, 2004, p. 43.

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forma seria incapaz de englobar a natureza como ela se apresenta, particular, única.

Este naturalista realizava vastas descrições de cada elemento da natureza,

detalhando as mudanças de acordo com os diferentes ambientes. O que Lineu

propunha era algo mais global, para possibilitar o conhecimento do maior número

de espécies possíveis. Dentro do espírito de conhecer e ordenar o mundo vigente,

sua teoria teve grande aceitação e influência.

Nem mesmo Buffon teria resistido à “necessidade” de organizar o saber, e

por fim teria tentado abarcar o mundo natural na sua enciclopédia de História

Natural, iniciada tempos depois da obra pilar de Lineu. Para esmiuçar esta questão é

importante salientar que a diferença entre estes naturalistas era a concepção de

sistemas da natureza: estático para Lineu e dinâmico para Buffon. Lineu

preocupava-se com a classificação das espécies, com a ordenação dentro de um

sistema, e a multiplicação “infinita” das espécies conhecidas. Já Buffon

preocupava-se com entender as transformações da natureza.

No século XVIII, o crescente interesse na natureza, na ciência natural,

desencadeia a prática de construção de Jardins Botânicos que tornou-se cada vez

mais freqüente na Europa, normalmente associados a uma Universidade ou a um

Palácio. Portugal faria o mesmo, como veremos, construindo tanto o Jardim

Botânico d’Ajuda, anexo ao Palácio d’Ajuda, quanto o Jardim Botânico da

Universidade de Coimbra.

É importante ressaltar que o fenômeno do Iluminismo não é um movimento

uniforme, e se deu de diferentes maneiras na Europa. O reino português tinha

características específicas dado ao seu “passado de glória”. Os descobrimentos, a

conseqüente aproximação e preocupação com as colônias haviam distanciado um

pouco Portugal do resto da Europa. Com a propagação das luzes no século XVIII, a

idéia de um homem cultivado também passa a ser apreciada no reino português.

Ainda no Renascimento, existiu em Portugal uma geração de homens ligados

à expansão, que estudavam as rotas marítimas. Eram cosmógrafos e matemáticos,

que foram chamados de intelectuais do mar. O seu conhecimento era construído a

partir da prática, da experiência. O português Garcia de Orta, que escreveu os

Colóquios dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia, publicado em 1563 a

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partir de sua experiência em Goa, foi um desses intelectuais. Ele era médico e

iniciado no uso dos simples5. Foi para o Oriente como médico pessoal do capitão-

mor português Martim Afonso de Sousa, acabando por instalar-se na Índia. A sua

obra foi alvo da Inquisição. Posteriormente foi autorizada e traduzida para outras

línguas excluída, porém, a parte filosófica do livro. Este corte na obra a transformou

em um mero catalogo de plantas. A parte revolucionária que foi banida, trazia

justamente a proposta de um novo método científico baseado no conhecimento

empírico, isso antes de Bacon.

Passado este período de certo obscurantismo provocado pela Inquisição,

gradativamente as mudanças na sociedade européia atingem Portugal. O período

joanino era ainda uma época de transição, que o autor português João Carlos Pires

Brigola situa entre o barroco e as luzes. Não era porém “culturalmente frívolo e

mentalmente retrógrado”6 como foi rotulado por uma historiografia que costuma

creditar a modernização do reino somente ao momento pombalino da história de

Portugal. Apesar do escolasticismo, havia uma certa abertura, pois já se caminhava

na direção de alinhamento com as novas idéias. É necessário esclarecer este ponto,

para mostrar que não foram apenas a partir sas reformas pombalinas que Portugal

abriu suas portas para Europa culta, para renovação dos paradigmas.

Nesta época houve um certo estímulo às novas ciências. O rei mandou

construir um observatório astronômico, um horto botânico e também incentivou os

colecionadores. Os inúmeros gabinetes e as coleções7 passam a ser ostentadas pelo

rei D. João, pela aristocracia e também por membros da Igreja. Ainda tratava-se de

uma ilustração “cortesã”, que não ultrapassava os limites da corte portuguesa.

Muitas destas coleções particulares de produtos naturais agregavam outras coleções.

Eram relativamente desorganizadas, no sentido que os colecionadores não tinham

um método, nem na hora de recolher e escolher aqueles objetos, nem na hora de

agrupá-los. Eram gabinetes privados que tentavam abarcar o universo num único

5 Plantas medicinais. 6 BRIGOLA, J. C. P. Coleções, Gabinetes e Museus em Portugal no século XVIII. Fund. Calouste Gulbenkian, maio 2003., p. 51. 7 “De acordo com as características dominantes no coleccionismo barroco, os principais esforços dirigiam-se, neste período (joanino), quer para obras de arte em geral, e para pinturas em particular, quer sobretudo para a medalhística e para a arqueologia.” Ibidem, p. 51.

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ambiente, queriam ser um resumo do mundo, numa tentativa de fundir Arte e

Natureza. Entretanto, o terremoto de Lisboa, na metade do século XVIII, destruiu

grande parte destas coleções, restando somente seus registros (catálogos e

memórias).

Com a morte de Dom João em 1750, assume o trono Dom José, que teve

uma educação erudita e continuou o projeto de modernização do Estado. O período

ficou mais conhecido como período pombalino pela proeminência do primeiro

ministro Sebastião José de Carvalho e Mello, que posteriormente recebeu o título de

Marquês de Pombal. Neste período muitas reformas foram executadas, no sentido

de racionalizar a administração do Estado. A mudança na organização da educação

foi um ponto importante dentro destas reformas pombalinas. A tragédia do

terremoto em Lisboa em 1755 fez com que a família real fosse transferida para o

complexo d’Ajuda, onde foi construída a Real Barraca (de madeira). Na seqüência

construíram o Palácio, que não foi ocupado pela família real, e os anexos: o Jardim

Botânico, a Casa de Risco e o Laboratório Químico. Dado que o reino enfrentou

certas dificuldades, Pombal esperava reverter este quadro através de suas reformas.

A educação tinha um papel importante nesse processo, pois a partir da reforma

universitária visava-se a formação de um corpo de administradores especializados

que pudessem servir ao Estado.

As transformações políticas encabeçadas pelo Marques de Pombal atingiam

todos os níveis da sociedade. Um dos seus planos era a mudança na organização

“burocrática” da administração, onde a nobreza acostumada a participar da

administração do Estado seria substituída gradativamente por funcionários com

formação específica, normalmente advindos da burguesia mercantil, dentro da

lógica de modernização do Estado. A educação serviria também para formar

funcionários para estas novas práticas. A criação do Colégio dos Nobres em 1760

tinha o ilustrar os filhos da nobreza, com interesse nos assuntos da ciência. Este

projeto não obteve sucesso. O ensino8 em escolas passou a existir em 1772, na

mesma época que se deu a reforma na Universidade de Coimbra. É importante

ressaltar que todas essas atitudes faziam parte da tentativa de alinhar Portugal às

8 Sobre a educação ilustrada em Portugal ver capítulo 3, sobre as Luzes CRUZ, A.L., op. cit.

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atitudes em voga na Europa ilustrada. As reformas foram executadas na forma do

despotismo esclarecido exercido pelo primeiro ministro Marques de Pombal.

Inspirado pelo modelo político, cultural e econômico que conheceu no período que

permaneceu em Viena (1745-1749) na Áustria.

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Os Jardins Botânicos na Europa

Muito antes da construção de Jardins para uso científico, já existia na Europa

uma tendência a edificar hortos botânicos. Os primeiros Jardins Botânicos

pertenciam às ordens religiosas, ainda na Idade Medieval. Não eram espaços de

visitação, eram lugares de elevação espiritual, a que só os membros daquelas ordens

poderiam ter acesso. Cultivavam-se plantas e frutos destinados principalmente à

alimentação, e também ao uso medicinal.

Na época do Renascimento, começam a surgir Jardins Botânicos,

normalmente financiados pelas coroas. Estes estabelecimentos tinham o intuito de

possibilitar e estimular o gosto pela natureza e a investigação científica a respeito da

História Natural, ou seja, acontece uma mudança de significado e uso deste tipo de

instituição. Eles passaram a possibilitar a experiência e a observação, a ter cunho

cientifico, inicialmente com ênfase na química, na retirada das substâncias para

transformação em remédios ou outros produtos como a tinta, o anil, e

gradativamente o foco transfere-se para a História Natural, o estudo das plantas.

Neste período inicial do Renascimento foi criado o Jardim Botânico de

Pádua, na Itália, com fins de pesquisa, justamente onde havia uma Universidade

famosa pelo seu bom desenvolvimento na área da medicina e da botânica. As

plantas cultivadas eram destinadas ao estudo dos seus usos medicinais, aos

naturalistas e estudantes.

O Jardim Botânico de Leiden, na Holanda, também foi construído com esse

objetivo, seu criador e administrador foi Carolus Clusius9 (1526-1609), um notável

botânico que viajou por toda Europa coletando e investigando as plantas.

Conquistou assim a confiança de vários reis. Por fim, foi convidado para criar o

Horto Botânico junto à Universidade de Leiden onde ficou até sua morte. Clusius

fez inúmeras traduções de obras de interesse científico, inclusive da obra do

português Garcia da Orta, Colóquios dos Simples e Drogas da Índia.

9 Também chamado de Charles l’Ecluse.

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Na Espanha, o príncipe Filipe II tinha um grande interesse nos simples10, e

para seu estudo construiu um Jardim Botânico junto ao Palácio de Aranjuez. Na

França, o rei também passou a ter um Jardim que estreitou os laços da Coroa com os

novos estudiosos, reforçado posteriormente com a criação de uma Academia de

Ciências em 1666. Por toda Europa o interesse na construção de Jardins Botânicos

se espalhou. O reino português também agiu nesse sentido, construindo um horto

em Xabregas em 1661. No século XVIII, Portugal construiu mais dois Jardins, um

dentro do complexo d`Ajuda, após o terremoto de Lisboa, e outro ao lado da

Universidade de Coimbra.

Na Inglaterra o processo foi diferente, pois em seus jardins botânicos sempre

foi dado um grande valor para a jardinagem, o que significou que estes

estabelecimentos mantivessem a ciência natural na mesma altura da jardinagem e o

cultivo de alimentos. Esse tipo de jardim os “Kew Gardens” tornaram-se muito

populares. O sentido utilitário destes Jardins também está relacionado ao modelo

político adotado, em contraposição aos pomposos Jardins para o simples deleite dos

reis do Antigo Regime continental.

Um outro papel que o Jardim assumia era estimular a sociabilidade,

sobretudo da nobreza que tinha acesso aos Jardins dos Reis. Os passeios nos Jardins

Botânicos afirmavam um elevado grau de “civilidade”, era o lugar apropriado para

os “passeios agradáveis (...) alívio e recreação dos estudiosos e aplicados”, sem

esquecer do uso prático destas instituições como “o embelezamento dos arredores

(...) cultivaçoens úteis (...) saúde dos povos”11, como afirmou num discurso o

ministro português Rodrigo de Sousa Coutinho, político ilustrado, interessado nas

Ciências da Natureza.

10 Plantas medicinais. 11 Discurso de Sousa Coutinho (1802) apud BRIGOLA, J. C. P. Coleções, Gabinetes e Museus em Portugal no século XVIII. Fund. Calouste Gulbenkian, maio 2003, p. 267.

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A chegada de Domingos Vandelli e o Jardim Botânico d`Ajuda

Como já dissemos, um Jardim Botânico já vinha sendo implantado no

complexo d`Ajuda em Lisboa. Tinham como objetivos dar uma educação ilustrada

ao monarca, e também permitir a pesquisa de espécies da flora que tornar-se-iam

rentáveis ao reino, propagando assim o interesse pelas ciências naturais no reino

português.

Com vista na educação ilustrada, o rei português convida mestres,

principalmente italianos, para educar a elite portuguesa nos moldes europeus em

voga. Inicialmente, foi trazido um preceptor para os príncipes, o italiano Miguel

Franzini. Por influência deste estudioso, o naturalista Domingos Vandelli12 chega

em Portugal em 1764 a convite do rei. Ele veio, na realidade, com o objetivo de

lecionar no Colégio dos Nobres. Uma vez que o projeto não deu certo ele foi

deslocado para um outro plano do reino, a construção do Jardim Real d`Ajuda e

anexos, o Laboratório Químico e a Casa de Risco.

O Jardim e o Museu foram concebidos com sentido didático para os

membros da família real. Os príncipes foram estreitando seus laços com estes

espaços e desenvolvendo um “gosto pela natureza”, bem aos moldes ilustrados. Eles

faziam passeios diários no Jardim13. Tudo era pensado para tornar o homem culto,

podemos falar até em termos de formação de caráter, como dizia Rousseau para

quem a partir do conhecimento da natureza o homem poderia encontrar seu lugar no

mundo e se regenerar no sentido moral.

O complexo botânico d`Ajuda acabou por transformar-se em referência. O

Real Museu tinha o papel de conservar e exibir as novas espécies da fauna e flora

advindas de coleções particulares, de trocas entre naturalistas e instituições

12 Vandelli era um homem ilustrado, escrevia sobre ciência, teve sua formação na Universidade de Pádua. Um homem polêmico, acusado de plágio por descrições de espécies descobertas pelos conterrâneos com quem estudava e pesquisava. 13 “Quer em passeios, quer em festejos, quer em outras distracções, a família real mantinha diariamente um estreito contato com a natureza. Nada alterava as suas saídas e jornadas diárias. Nem as ocasiões de doença” e nem de luto como a autora mostra com trechos de narrativas da época. ABECASSIS, M.I.B. A família real e o gosto pela natureza: o Jardim Botânico e o Museu de História Natural. In: CASTEL-BRANCO, C. (e outros) Jardim Botânico da Ajuda. Lisboa. Jardim Botânico da Ajuda, 1999, p. 132.

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homólogas da Europa. O Laboratório Químico servia para experiências para área da

medicina e também para uso prático, leia-se econômico, e finalmente a Casa do

Risco, onde aconteciam as aulas de desenho. Quanto ao Jardim Botânico, no

princípio ele foi guarnecido por uma enorme variedade de plantas trazidas do além-

mar, de expedições científicas e exploratórias destes territórios. Milhares de plantas

exóticas foram aclimatas e estudadas no Jardim d`Ajuda, e essa atitude tinha

interesse tanto científico quanto político.

Vandelli escreveu tratados aliando esses interesses, onde explanava sobre a

importância e a utilidade dos Jardins Botânicos para o desenvolvimento cientifico,

ressaltando o aspecto ligado ao naturalismo econômico. A aclimatação das espécies

nestas instituições tinha também o objetivo econômico, de identificar os modos

mais eficientes de cultivo, para melhorar a exploração agrícola14 daquelas espécies e

tornar mais rentável ao reino, dentro do conceito de economia natural. Segue uma

afirmativa sua a esse respeito:

Quanto grande seja a utilidade de hum Jardim Botânico (além do gosto de ver juntas a as plantas de todas as partes do Mundo; do proveito, que delas recebem a Medicina, as Artes, o Comércio & para a agricultura só o ignora aquele, que não sabe quantas plantas de regiões remotas, por meio dos Jardins, são hoje commuas, e ordinárias na Europa 15 Além do naturalista italiano trazido com a missão de instalação do Jardim

Botânico d’Ajuda, um jardineiro especializado foi contratado para sua manutenção.

Julio Mattiazzi era da mesma nacionalidade, e tinha relações pessoais com

Domingos Vandelli, que chegou a homenagear o jardineiro dando seu nome para

uma planta.

Entretanto, Vandelli também foi incumbido de outras tarefas, entre elas, a

criação de mais um Jardim na Universidade de Coimbra e a instrução dos futuros

naturalistas na própria Universidade. Acaba deixando a Ajuda aos cuidados de Julio

Mattiazi, jardineiro experiente, porém parece que este último não consegue

14 Tendo em vista que “A sciencia da agricultura consistie principalmente no conhecimento dos vegetais e da sua natureza, e do clima e terreno em que nascem, na causa da fertilidade da terra, na influencia do ar sobre os vegetais e nas regras práticas necessárias para uma boa cultura.” VANDELLI, D. Memoria sobre a utilidade dos Jardins Botânicos a respeito da agricultura e principalmente da cultivação das charneceas. Lisboa: Reggia Officina Typografica, 1770, p 1. 15 Ibidem, p 7.

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continuar o trabalho iniciado e muitas das “produções naturais” adquiridas

acabaram morrendo16, segundo relatório de Vandelli.

Percebemos que os resultados da fusão entre a argumentação econômica e o

interesse cientifico foram rápidos. Tanto os estudiosos, quanto a classe política

passaram a apoiar as medidas necessárias para a incrementação do estudo das

plantas. Os políticos ilustrados percebiam o valor do desenvolvimento cientifico.

Vandelli foi apoiado pelos ministros Martinho de Mello e Castro e Dom Rodrigo de

Souza Coutinho, que acumularam a função de inspetores do Jardim Botânico

d`Ajuda, cargo que obtiveram pelo reconhecido interessa na História Natural. Pode-

se observar através das decisões administrativas do reino que o pensamento sobre a

utilidade do estudo da natureza passou a ser prioridade. Como vamos ver, a Ciência

e a Administração (leia-se política) passaram a ser aliadas, ou melhor, uma

dependia da outra. A reforma da educação portuguesa, principalmente do ensino

superior, o patrocínio das Expedições Filosóficas são reflexos dessa união Poder e

Ciência que se dá no século das Luzes.

Reforma da Universidade de Coimbra

No reinado de Dom José foram realizadas muitos projetos com vistas à

modernização de Portugal. Trataremos aqui das reformas educacionais ocorridas no

período, que foram denominadas na historiografia por reformas pombalinas, por

terem como mentor o ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de

Pombal.

Tais reformas atingiram todos os níveis da educação, desde o ensino primário

até o nível superior. Com a expulsão dos jesuítas, em 1759, a reforma no primeiro

nível do ensino foi executada com urgência, já que a Ordem se ocupava

tradicionalmente desta parte. No ensino superior, as transformações foram mais

lentas e planejadas.

16 Vandelli escreve uma carta ao rei quando volta ao Jardim lamentando a falta de cuidados com o Jardim que ele implantou, apud CASTEL-BRANCO, C. (e outros) Jardim Botânico da Ajuda. Lisboa, 1999, p 62.

Page 21: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

15

Essa atitude de Pombal também tinha o sentido de alinhar Portugal com a

Europa culta. As reformas na educação já vinham sendo feitas há algum tempo,

impulsionadas pelo movimento iluminista. As sociedades de ciência, de literatura,

de temas afins reuniam os homens esclarecidos para discussões, o hábito da leitura

era incentivado por estas instituições. A preocupação com a educação aumenta, as

cartilhas e os manuais multiplicam-se, assim como o número de pessoas

alfabetizadas.

A alfabetização das pessoas em geral, não somente a elite, era herança da

Reforma e Contra-Reforma. O protestantismo precisou alcançar os novos adeptos e

pregava a leitura direta da Bíblia, para isso precisavam alfabetizar as pessoas e o

faziam através de cartilhas de catecismo. O Iluminismo aproveitou-se dessa

situação, mas seus manuais tinham o sentido de formar um homem livre e

esclarecido.

No período, a formação universitária ainda baseava-se nas profissões mais

tradicionais: Direito, Medicina e Teologia. Novas profissões foram ganhando

terreno e escolas para suas especialidades, a formação técnica de arquitetos,

engenheiros, e também escolas de Comércio para os ofícios práticos. Esses estudos

restringiam-se ainda a uma pequena parte da população. Atingir um maior número

de pessoas a escolarização das crianças foi uma preocupação dos reformadores

iluministas. Para alcançar os adultos com certa instrução foram criados muitos

manuais práticos sobre assuntos do próprio trabalho.

Havia um interesse em alfabetizar e educar a população que não tinha acesso,

mesmo os donos das terras viam um ponto positivo nessa ação, pois aumentariam a

produção. Os escritos da ciência natural chegavam aos agricultores com

informações úteis de plantio, melhor cultivo, pragas, sendo um instrumento de

ligação entre os estudiosos e o público geral. O Iluminismo tentou integrar o

homem comum através da educação, pois queria atingir, esclarecer, formar e atingir

um ideal de homem livre, racional. As reformas nos Estados são reformas

racionalizadoras.

Neste sentido, Pombal fez a passagem de um reino barroco a um reino que

abriu as portas às novas idéias, inclusive a uma nova organização política. Afastou a

Page 22: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

16

Igreja da responsabilidade pela educação, inclusive expulsou a Ordem dos Jesuítas

do reino, criou o Colégio dos Nobres, a Escola de Comércio, destinada a formação

técnica para fins comerciais. Também instituiu um Colégio para os plebeus, e

concretizou a reforma na Universidade de Coimbra. Todas estas ações tinham o

sentido de formar pessoas especializadas nas suas funções, em racionalizar os

ofícios, como já comentado, pretendia-se transformar o Estado Português, onde os

funcionários não seriam mais membros da nobreza com cargos hereditários, e sim

pessoas formadas com um saber técnico que as capacitariam para exercer aquele

trabalho.

Em Portugal, o crescente interesse pela História Natural culminou na criação

da Faculdade de Filosofia, leia-se Filosofia Natural, com o currículo direcionado às

ciências naturas, físicas e químicas. Segundo os estatutos da Universidade

reformada, o curso Filosófico tinha duração de quatro anos e dividia-se nas

seguintes matérias anuais: Filosofia Racional e Moral; História Natural; Física

Experimental e Química.

Os estatutos citados acima foram escritos no sentido de orientar o

funcionamento da Universidade em todos os detalhes, tanto que possuíam partes

que determinavam não só a grade curricular, mas também a metodologia a ser

seguida e os assuntos incontornáveis. No que respeita à História Natural, esse

cuidado com a organização das aulas (o conteúdo e as obras17 a serem trabalhadas)

foi meticuloso. Ressaltavam a necessidade dos mestres incentivarem seus alunos à

observação direta da natureza.

Um detalhe interessante da reforma foi a inclusão do curso de Filosofia

Natural na grade curricular de outros cursos, como teologia, direito e medicina, o

que significava um aumento de tempo para a conclusão dos cursos. Entretanto, os

reformadores da Universidade acreditavam na utilidade de os teólogos, por

exemplo, seguirem todo o Curso Filosófico para “maior segurança desta instrução

17 “A tal propósito recordam os Estatutos uma obra célebre da Antiguidade que os estudantes, de modo nenhum, deverão desconhecer: a História Natural de Plinio.” Esta obra, além de informar, levaria os leitores à elevação do espírito, fato necessário para o estudo filosófico. CARVALHO, R. A história natural em Portugal no século XVIII. Lisboa: Inst. de Cultura e Língua Portuguesa, 1987, p. 41.

Page 23: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

17

(teologia) e das outras noções filosóficas”18, e também para interpretarem melhor as

diversas passagens bíblicas alusivas à natureza.

Para o ensino completo da disciplina de História Natural a criação de um

Museu de História Natural e de um Jardim Botânico na Universidade de Coimbra

era necessário, pois os estudantes precisavam observar os exemplares da natureza

nos seus detalhes19 reais e visuais, treinando o olhar, somando a espécie descrita

com a visualização da mesma. O gosto por coleções de objetos naturais era

crescente desde o reinado de D. João, no esforço de enquadramento com o mundo

europeu esclarecido. Os Estatutos previam a doação deste tipo de coleção ao

Gabinete de História Natural de Coimbra, para que estes acervos tivessem utilidade

pública, para instrução. Provavelmente o Museu iniciou seu acervo com duas

coleções extensas, a de Domingos Vandelli, professor naturalista que

posteriormente assume a cátedra de História Natural na Universidade coimbrã, e a

do estrangeiro José Rollen Van-Deck, que deixa em testamento sua coleção para o

Gabinete universitário. A organização dos objetos da natureza dentro desta

instituição era uma grande preocupação, para que ele fosse tanto instrutivo quanto

interessante, e representasse um Teatro da Natureza.

Como já vimos, a implantação de um Jardim Botânico ao lado das

Universidades era comum na Europa desde o século XVI, pois neles eram

cultivadas plantas exóticas e úteis aos médicos e aos boticários. Tendo em vista esta

tendência e a necessidade de estudar as plantas vivas nos seus diversos estágios de

desenvolvimento, os Estatutos previam a construção do Jardim Botânico, tanto para

lições de matérias referentes à História Natural, quanto para o cultivo de plantas

úteis à Faculdade de Medicina. O aparato que estava sendo criado na Universidade

capacitaria profissionais especializados que poderiam ser aproveitados no

18 Ibidem, p. 42 19 Sobre o Gabinete de História Natural os Estatutos dizem “Sendo manifesto que nenhuma coisa pode contribuir mais para o adiantamento da História Natural do que a vista contínua dos objectos que ela compreende, a qual produz idéias cheias de mais força e verdade do que as descrições as mais exactas e as figuras mais perfeitas, é necessário, para fixar dignamente o estudo da Natureza no centro da Universidade, que se faça uma colecção dos produtos que pertencem aos três Reinos da mesma Natureza.” Estatutos apud CARVALHO, R. op. cit., p. 45.

Page 24: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

18

funcionamento do Estado, e é essa uma justificativa do largo investimento na

reforma coimbrã.

A Reforma aumentou o tempo de duração de todos os cursos da

Universidade de Coimbra e acabou afastando muitos dos estudantes metropolitanos,

que migravam para outras universidades com cursos com currículos mais enxutos,

pois preferiam seguir as profissões mais tradicionais sem a passagem pela Filosofia

Natural. Em contrapartida, muitos estudantes das elites coloniais passaram a estudar

em Coimbra, principalmente vindos do Brasil. Com esse incentivo aos coloniais

formou-se uma geração de luso-brasileiros que serão aproveitados nas atividades de

cunho científico patrocinadas e incentivadas pela Coroa, inclusive nas viagens

exploratórias aos domínios coloniais portugueses, que veremos na seqüência.

Page 25: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

19

Expedições Filosóficas

As viagens exploratórias no período ficaram conhecidas como “Viagens

Philosophicas”. Essas Expedições foram organizadas pela Coroa e tinham o intuito

de inventariar as riquezas naturais dos territórios de além-mar. A partir dessas

investigações, a agricultura e a extração de minerais seriam melhor exploradas,

tornando-se mais rentáveis para o reino português. O naturalista Domingos Vandelli

tinha importante apoio político para seus projetos. Ao escrever tratados e relatórios

de atividades para a Coroa, Vandelli conseguiu conquistar espaço e credibilidade.

Após criar os jardins botânicos portugueses, Vandelli envolveu-se na

preparação das viagens filosóficas. A criação dos jardins, do Complexo d’Ajuda e o

planejamento das viagens filosóficas ligavam-se à noção de um naturalismo

econômico que, por sua vez, atendia os preceitos do pragmatismo pombalino. Em

relação às expedições mais um interesse estava envolvido, era a ocupação e

demarcação de território, que estava em andamento, na divisão espacial das colônias

da Espanha e de Portugal.

Vandelli queria que seus melhores alunos fossem enviados nessas viagens. A

elite intelectual luso-brasileira formada na Universidade de Coimbra reformada foi

também direcionada para este ambicioso projeto. Originalmente a Coroa tinha

pensado em formar uma Grande Expedição ao Brasil, que era considerada a melhor

parte do Império Português. Contudo, essa Expedição, que seria chefiada pelo

naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, foi dividida, e os naturalistas foram

enviados para todas as partes do Império em 1783. Joaquim José da Silva e Ângelo

Donati foram para Angola. Os desenhos do italiano serão analisados na ultima parte

deste trabalho. Alexandre Rodrigues Ferreira20 partiu para o Brasil. João da Silva

Feijó21 foi enviado para Cabo Verde. Manuel Galvão da Silva segue para Goa e,

dali, para Moçambique.

20 Expedição vastamente explorada pela historiografia a respeito da História do Brasil, da Ciência e do Império Português. 21 Para conhecer a trajetória deste jovem naturalista ver obra de PEREIRA, M. R. de M., Um jovem naturalista num ninho de cobras: a trajetória de João da Silva Feijó em Cabo Verde, em finais do século XVIII. Revista História: Questões & Debates, Curitiba, n. 36, p. 29-60, 2002. Editora UFPR

Page 26: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

20

Seria bom ressaltar a importância que Vandelli creditava à produção de

desenhos nas viagens, ela pode ser observada pelo número de desenhistas enviados,

dos dez integrantes das equipes, cinco eram desenhistas22. Joaquim José Codina e

José Joaquim Freire acompanharam a Expedição ao Brasil. Antônio Gomes seguiu

para Moçambique. O desenhista-naturalista já citado Ângelo Donati partiu para

Angola na companhia do desenhista José Antonio.

Todos estes naturalistas e desenhistas transformaram-se em funcionários da

Coroa e foram inseridos no projeto de fortalecimento do Império Português. Os

territórios que seriam explorados não eram totalmente virgens, viajantes já haviam

percorrido aqueles domínios, mas não de forma sistemática, leia-se científica, e

oficial como fizeram estes viajantes naturalistas em nome da ciência e do Império

Português.

Nestas viagens os naturalistas deviam seguir os preceitos do estudo da

História Natural: coletar, descrever e analisar as produções da natureza dos reinos

vegetal, animal e mineral. Numa fase anterior às viagens eles faziam uma espécie de

“estágio”, tratava-se de uma preparação para o tempo em viagem e o bom

aproveitamento desta. A equipe que foi escolhida ficou concentrada no Complexo

d’Ajuda, e lá tinham aulas de Filosofia Natural Aprendiam a coletar espécies da

flora, dissecar animais, todas ações com o objetivo de remeterem a Lisboa as

produções naturais das colônias. Na Casa do Risco eles tinham lições de desenho,

mesmo aqueles que não eram desenhistas tinham noções básicas de traçados. Sobre

a questão do desenho veremos o papel fundamental que ele assumiu para o

desenvolvimento dessa disciplina, já que a ilustração científica foi o documento

produzido destinado à publicação e divulgação dos objetos naturais do mundo

tropical. As produções das memórias de viagens e das ilustrações científicas seriam

destinadas à grande obra História Natural das Colônias, segundo o plano de

Vandelli.

Neste período que antecipava as viagens, os integrantes da equipe liam

manuais de instruções para viajantes, inclusive ilustraram e escreveram partes

22 FARIA, M. F., A imagem útil. José Joaquim Freire (1760-1847) desenhador topográfico e de história natural: arte ciência e razão de estado no final do antigo regime. Lisboa: Universidade Autônoma de Lisboa, 2001, p. 153.

Page 27: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

21

destes “guias” para viajantes curiosos. Este gênero de leitura ficou popular nesta

época, em que o gosto pelo exótico atiçava a mente de muitos curiosos que se

lançavam em viagens particulares, eles indicavam o que e como deviam coletar

nesses novos territórios. Um exemplo dessa produção foi publicação portuguesa

Breves Instrucções aos correspondentes da Academia das Sciencias de Lisboa,

sobre as remessas dos productos, e noticias pertencentes a Historia da Natureza,

para formar hum Museo Nacional23, de 1781.

No caso dos naturalistas-funcionários eles estavam atentos às instruções de

Vandelli de como e para o quê dirigir o olhar nos territórios coloniais. É

impressionante o volume de obras de Vandelli a esse respeito, ele se preocupou com

todos os detalhes das expedições.

A respeito da importância de se produzir diários e como o fazer, o que

observar:

Mui pouca seria a utilidade das peregrinações Filosoficas, se o Naturalista fiando-se na sua memoria, quizesse fazer suas relações e discripçoes, sem ter notado antecedentemente com a penna todos os objectos, que fosse encontrando no seu descobrimento. Naõ há hoje uma só pessoa, que não esteja persuadida da necessidade dos Diários. Naõ basta que o Naturalista conheça os produtos da Natureza, também he necessário que ele assine os diversos lugares de seu nascimento, os caminhos e jornadas que fez nas suas peregrinações (...)24 Instruções sobre o que observar, principalmente em territórios pouco

explorados, como era o Brasil:

O Filosofo que viaja pela Europa deve ter lido, e levado mesmo em sua companhia a Flora dos Paizes, por onde for, que lhe possa servir de guia no conhecimento das plantas; porem o que viaja pelo Brasil destituído de todos esses socorros, vese metido no meio de hum mundo novo, ainda hoje tão desconhecido, como no primeiro dia de seu descobrimento (...) só a abservaçaõ, e a experiencia o podem por em estado de penetrar por este vatissimo paiz: e experiência o confirmará nas suas tentativas, e a observaçaõ e comtemplaçaõ da Naturesa, lhe ensinaraõ toda a Sciencia da H.N. (...) Por isso devendo o Filosofo seguir a Naturesa na indagaçaõ das plantas, deve começar por conhecer a sua habitaçaõ, observando os lugares em que vegetaõ, os litoraes das Fontes, dos Rios (...)25

23 Lisboa, Na Regia Officina Typografica, 1781. 24 VANDELLI, D. Viagens Filosoficas ou Dissertaçaõ: Sobre as importantes regras que o Filosofo Naturalista deve principalmente observar. Academia de Ciências de Lisboa, série vermelha 405. Transcrito por Rosangela Maria Ferreira dos Santos e Ana Lucia Rocha Barbalho da Cruz. In: CRUZ, A. L. R. B., Verdades por mim vistas e observadas oxalá foram fábulas sonhadas... Tese de doutorado. História: UFPR, Curitiba, 2004, p. 276. 25 Ibidem, p. 290-291.

Page 28: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

22

Vandelli continua a dar as direções de tudo que deve ser observado e

registrado: todas as formações naturais daquele território. Nesse outro extrato ele

sublinha a devida atenção à utilidade da flora local:

(...) a examinar cereaes, a saber trigo, senteios, cevadas, arrozes, milhos, favas, feijões, grãos, lentilhas, &c. No Brasil mais particularmente notará a mandioca (...) sobre isso se deve vigiar muito, principalmente sobre as sementeiras do arroz e do trigo, buscando os melhores grãos e fazendo os semear, para se informar da riqueza da colheita (...) fazendo logo o calculo para vir no conhecimento do lucro, que pode o Reino tirar destes generos de primeira precisaõ. 26

Vandelli arquitetou as Expedições, incluindo o período no Complexo

d’Ajuda, pois queria preparar os naturalistas em todos os sentidos, tanto na técnica,

quanto no espírito, pois a missão desses homens não era fácil. Eles provavelmente

tinham um espírito aventureiro para se candidatarem a tal tarefa. Eles se deparavam

com um mundo novo, não civilizado, com povos de culturas diferentes, com uma

natureza exuberante, onde acampavam para fazer as observações e coletas in loco.

A importância da equipe e da divisão de tarefas era fundamental para o bom

andamento da Expedição. O ambiente de trabalho deles era a natureza selvagem, ou

comunidades nativas, hostis àquelas figuras estranhas vestidos dos pés à cabeça

debaixo de chuva e de sol escaldante, que carregavam instrumentos para caça,

coleta, medições de terreno, também caixas de madeira para armazenamento dos

objetos da natureza. Mesmo nas cidades coloniais, eles eram agentes da ciência e

do Estado, num mundo colonial distante de idéias ilustradas. No período das

expedições, eles eram fadados ao deslocamento.

26 Ibidem, p. 292-293.

Page 29: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

23

Ilustração 2 Aquarela que representa uma equipe de naturalistas em viagem. Observamos que mesmo em terras selvagens a bandeira com o brasão lusitano está presente, lembrando sempre que essa viagem fazia parte de um projeto maior de Estado português. Aqueles naturalistas tinham o papel de agentes do Estado, que tinham que cumprir objetivos e interesses específicos naquelas expedições.27

É importante ressaltar que muitas vezes os naturalistas acumulavam funções

burocráticas nessas viagens, o que por vezes dificultou seu trabalho como cientista.

Como dissemos, o papel do naturalista ainda não era bem definido dentro da

hierarquia social. Quando eles iam para as colônias, encontravam uma estrutura de

poder onde não tinham muita autonomia, já que não eram nem militares, nem

políticos. Eram agentes do Estado, com múltiplas atribuições, em uma nova função,

sem espaço definido ou conhecido, ainda mais nas colônias, onde o

desenvolvimento e conseqüente valorização da Ciência ainda era incipiente. A

citação da historiadora Maria Emília Madeira Santos é esclarecedora a esse respeito:

Ainda muito pouca gente compreendia o que andavam aqueles homens a fazer perseguindo pássaros ou insectos, colhendo folhas e frutos que não davam de comer a ninguém, escavando a terra para retirar um pouco de barro ou de gesso (...) O naturalista nem sequer beneficiava do apoio dos quadros militares. (...) O naturalista exprimia, pelo contrário, os novos interesses científicos, recebidos na Universidade. Não possuía a audiência do funcionário real nem o prestígio prático do militar. (...) Ele ‘aparece’ em cargos administrativos, que lhe conferiam uma certa autoridade e um mínimo de estabilidade econômica, mas a sua função nem sempre estava aí prevista. Isto quando não tinha de lançar mão do comércio e internar-se no sertão por sua conta e risco, carregando herbários e mercadorias para venda.28

27 Disponível em: http://www.cedope.ufpr.br/viagens_&_expedicoes.htm 28 Apud BRIGOLA, J. C. P. Coleções, Gabinetes e Museus em Portugal no século XVIII. Fund. Calouste Gulbenkian, maio 2003, p. 241.

Page 30: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

24

Por ser o Brasil a principal colônia, a expedição e esta região recebeu maior

atenção. Isso acarretou em dificuldades aos naturalistas que foram lançados para

terras africanas. Nos casos de Angola e Cabo Verde isso ficou muito claro. Para

Cabo Verde foi enviado João da Silva Feijó, sozinho e inexperiente sofreu com os

obstáculos entrepostos diariamente. Por vezes pediu reforço para o bom

cumprimento de sua função cientifica sem sucesso. Assim como aconteceu com

Joaquim José da Silva, que após a morte de Ângelo Donati e José Antonio,

diminuindo o envio de remessas para Lisboa, tendo a Coroa até pensado em

suspender sua missão, pela falta de resultados, que não justificariam o gasto grande

com o envio de um desenhista para aquelas terras.

Page 31: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

25

2ª parte: O desenho e a História Natural

Remontamos até aqui o quadro do período da produção das obras de Ângelo

Donati. As transformações ocorridas em Portugal partindo das idéias decorrentes do

pragmatismo de Pombal até a concretização do projeto das Viagens Filosóficas

onde Donati foi incluído. A parte seguinte vai tratar da importância que o desenho

adquiriu nesse contexto e a análise dos desenhos do italiano desenhista e naturalista.

No período do Iluminismo, o desenho passou a ser considerado essencial

para o desenvolvimento científico, para registro “exato” das espécies. Seguindo a

tendência do espírito enciclopedista, livros a respeito das floras de todo o globo

foram editados, no sentido de conhecer e classificar o maior número de espécies

possível, de acordo com o projeto de Lineu. Com a crescente valorização da

representação iconográfica, as obras que não possuíam esse atributo eram pouco

valorizadas. Descrições em latim, segundo o sistema natural de Lineu deveriam ser,

quase que obrigatoriamente, acompanhadas de ilustrações.

O incentivo a História Natural em Portugal esteve ligada ao interesse

científico e ao naturalismo econômico. A orientação recebida pelos naturalistas era

o de tentarem um registro rigoroso do objeto, de modo a captar a “realidade” dele.

Lembremos que a fotografia não existia ainda.

O desenho, no período em análise, transcendeu esse aspecto de ‘base e fundamento das artes’-renovando sua utilidade. (...) Essa valorização da imagem didática e documental (...) atingiu uma expressão relevante no quadro do Iluminismo Setecentista. 29 A mudança de foco para a imagem didática não significa em absoluto que a

produção daquele tipo de imagem era alheia a preocupações estéticas, ou que era

alheia a preocupações artísticas. O que se pode afirmar a esse respeito, é que o valor

informativo era a questão principal. Porém, mesmo nos discursos oficiais, a imagem

também assumia um sentido de contemplação, o desenho fazia uma espécie de

ponte entre os diferentes mundos da ciência e da arte. O próprio Alexandre

29 FARIA, M. F., op. cit., p. 31.

Page 32: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

26

Rodrigues Ferreira admitia que o desenho tinham que “excitar o gosto e a dar o útil

adoçado com o deleitável”30

É interessante constatar como os registros iconográficos científicos eram

construídos. Por exemplo, para o desenho de uma espécie era traçado primeiramente

o animal, em primeiro plano destacado, e posteriormente o seu habitat era incluído,

muitas vezes a espécie retratada apresentava uma escala diferente da do ambiente.

Quanto às representações botânicas, elas traziam todo o ciclo (flor, fruto, semente)

da espécie na mesma prancha, pois estes eram os elementos necessários para

estabelecer a classificação taxinômica de Lineu para cada espécie. O ilustrador

poderia ampliar detalhes importantes

Ilustração 3: Imagem de mamífero da viagem filosófica para Angola, observa-se que o animal está em primeiro plano e que a paisagem aparece como secundária.31

Ilustração 4: Representação botânica com todo o ciclo da espécie.32

Normalmente as representações iconográficas traziam notas abaixo do

desenho, o texto e o desenho se complementavam nesse sentido. Entretanto, as

30 Apud FARIA, M. F., op cit,. p. 24. 31 In Riscos de alguns Mammaes, Aves e Vermes do Real Museu de Nossa Senhora da Ajuda. Arquivo Histórico do Musue Zoológico Bocage da Universidade de Lisboa. 32 Disponível em : http://www.cedope.ufpr.br/images/freire%20flor.jpg

Page 33: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

27

descrições pictóricas permaneciam as mesmas, enquanto as descrições de texto

mudavam freqüentemente, pelas novas descobertas. O historiador Miguel Faria

chama atenção ao fato de que, para as espécies exóticas ao mundo europeu, as

pranchas tornaram-se documento de especial valor, já que a maioria daqueles

exemplares não podia ser transportada para Europa. Ele, inclusive, afirma que para

o mundo tropical o “dicionário visual tornara-se superior ao verbal”33.

A concepção de representação pictórica do naturalista alemão Humboldt,

ressaltava a importância da “representação do contexto”, significando que a

paisagem deveria estar presente na ilustração no mesmo plano da espécie, trazendo

o contexto global às ilustrações. Isso já uma transição para o estilo do romantismo

que se afirmou no século XIX, onde o gosto pelo exótico traduzia-se na

representação de toda a paisagem. Todavia, grande parte das ilustrações científicas,

sobretudo as que serão analisadas aqui, basearam-se num modelo pré-humboldiano

de representação.

***

O complexo museólogico d’Ajuda proporcionou o desenvolvimento dos

projetos administrativos relacionados ao naturalismo econômico. Numa primeira

fase os naturalistas-funcionários se concentravam nesta Instituição para fins

didáticos e de preparação; na outra fase os funcionários que ali estavam foram

responsáveis pelo recebimento e tratamento de todas as remessas de produtos

naturais, que eram enviadas para Lisboa (Ajuda). A Casa do Risco assumiu o papel

de papel importante nesse processo, ela teve primeiramente a função de formar

desenhistas para direcioná-los às viagens e num segundo momento transformou-se

em Casa da Gravura, que tinha o intuito de gravar as ilustrações enviadas pelas

Expedições para publicar aquela produção.

Sobre a criação da Casa do Risco em 1780:

Pela occasião de copiar-se huma coleção de riscos de plantas do Peru e Chyle, que vierão no Gallião, que foi tomado pelos Inglezes na última guerra, vierão da Fundição três hábeis Dessinadores, que unidos com dois outros[grifo nosso] que estavam no Jardim para o risco do mesmo, que tãobem trabalhavão em huma muito útil obra para facilitar o estudo da Botânica, e consistia nas figuras de todas as frutificações dos generos das plantas athe agora conhecidos, derào principio a com os Aprendizes a attual Casa do Risco.34

33 Ibidem. p. 86. 34 VANDELLI, D. apud FARIA, M. F., op. cit., p.153.

Page 34: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

28

O historiador Miguel Faria e a pesquisadora Ermelinda Pataca indicam a

possibilidade de Ângelo Donati ser um desses dois outros desenhistas que já

estavam no Jardim d’Ajuda, pois ele estava incluído nos planos de Vandelli para

Expedição ao Pará, formulados provavelmente entre 1779 e 178035.

Domingos Vandelli não deixou de ser responsável pelo complexo d’Ajuda,

mas no período em que se dedicou às aulas em Coimbra, 1772 até 1791, ele

designou o jardineiro conterrâneo Julio Mattiazi. Vimos que passado o período

citado, Vandelli ao retornar definitivamente criticou a atuação de Mattiazi, inclusive

acusando-o de descuido com o Jardim. Em trechos de relatórios a esse respeito o

naturalista relata que o interesse do jardineiro pelas conchas e outras produções da

natureza, o teria afastado dos cuidados com a flora, assim, muitas espécies raras

teriam morrido por isso.

Todavia, Mattiazi cultivou a amizade dos naturalistas que lá se instalavam

antes de embarcarem na aventura cientifica. O envio de correspondências dos

naturalistas em viagem para o jardineiro revela este fato, sendo que por vezes, ele

serviu de intermediário entre os viajantes e os políticos responsáveis pelas

Expedições. Neste acervo de cartas, está um dos raros registros de Ângelo Donati,

que escreve em tom pessoal ao jardineiro, pouco tempo antes de sua morte.

Mesmo os naturalistas não desenhistas tiveram uma passagem pelas aulas de

desenho. Assim como os desenhistas também tiveram aulas de conhecimentos

básicos em História Natural, atitude de formação global da equipe, todos deveriam

ser capazes de cumprir a função do outro, dentro do espírito enciclopedista de

conhecimento36.

Vandelli previa em seus textos direcionados aos jovens naturalistas que os

produtos da natureza que não pudessem ser remetidos ao Reino por razões diversas,

35 PATACA, E.M., Terra, água e ar nas viagens científicas portuguesas (1755-1808) Tese de doutorado. Ciências. Unicamp. 2006, p. 154. 36 Ao falar sobre o que e como observar ao chegar no local “Daqui collige quam indispensaveis saõ aaos naturalistas os conhecimentos de Trigonometria plana, e risco das plantas, e Pintura: porque ainda que aqueles se podem supprir levando consigo hum homem instruído na Mathematica, como Engenheiros, e aos últimos indo acompanhado de hum Pintor, nem sempre isso he praticável; tanto porque aqueles podem faltar como tem mostrado a experiência, em quanto á Pintura como porque as plantas que há mais exactas saõ as que nos deraõ, os que ao mesmo tempo eraõ Filosofos, e Pintores.” VANDELLI, D. Idem. CRUZ, A. L. R. B., op.cit., p. 276.

Page 35: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

29

deveriam ser “perfeitamente delineados, e se for possível, iluminados ao natural”37.

O próprio naturalista italiano se encarrega de indicar o que seria digno de ser

representado através dos desenhos:

Tudo o que fosse estranho (...); tudo o que não pudesse ser descrito (...); ou ainda tudo que não pudesse ser transportado (...), em síntese condicionalismos plenos de parentescos que encontram no recurso à imagem a solução convergente. Uma linguagem que, no entanto, deveria ser cuidadosamente gerida seguindo um principio fundamental, repetidamente enunciado nas Instruções: o da exactidão.38 Essa preocupação em registrar graficamente o que não tinha condições de

chegar ao Velho Mundo era geral, todos os países que patrocinavam viagens

orientavam seus cientistas nesse sentido. Por vezes, a informação visual superou a

informação textual, principalmente para aquelas espécies ainda desconhecidas para

os europeus, já que não existia a possibilidade de recriar o ambiente artificialmente,

a reprodução gráfica falava mais diretamente que palavras.

Os integrantes da equipe das viagens tinham aulas e treinavam desenhos na

Casa do Risco, observavam as espécies no Jardim Botânico d’Ajuda. Os desenhistas

(riscadores ou desenhadores, como também eram chamados) tinham formação

artística e técnica. É sabido que alguns eram técnicos de engenharia militar que

foram contratados para esta nova função, como mostrou a fala de Vandelli

referindo-se aos três hábeis desenhistas da Fundição.

Os desenhos deveriam corresponder aos interesses da Ciência e do Estado, e

as instruções objetivas que recebiam neste período tinham esse intuito. As

ilustrações deveriam referir-se à fauna, flora e aspectos geográficos da região

explorada. Eles deveriam ser capazes de executar os chamados prospectos, que

eram mapas, paisagens, que continham informações geográficas daquelas regiões.

37 VANDELLI, D. manuscrito 405, da Academia de Ciências de Lisboa, série vermelha. 38 Ibidem.

Page 36: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

30

Ilustração 5 Exemplo de prospecto, produzido por Ângelo Donati Prospecto da embocadura do Rio Dande.Detalhe aos naturalistas trabalhando in loco, representados no canto direito.39

Como vimos os manuais de instruções de viagens foram parte do

aprendizado no complexo d’Ajuda. Esse tipo de manual do viajante indicou o olhar

que o viajante deve dirigir para as sociedades com as quais se defrontaria e como

deviam agir cientificamente frente a esse novo mundo. Com o olhar assim

direcionado, esses naturalistas partem para essas viagens com uma visão unitária.

São a primeira geração de naturalistas da Coimbra Reformada, a qual se agregou

nosso personagem de destaque Ângelo Donati.

Nesse contexto, os desenhistas executavam desenhos de expectação, de

preparação para a viagem, imaginando o que iriam encontrar e enfrentar nas

Expedições, um exercício que tinha também o objetivo de preparar o “espírito” dos

futuros viajantes. Também produziam obras com sentido didático, destinadas ao

público amador ilustrado, com o objetivo de incentivar a História Natural, em

especial os curiosos a recolherem produtos naturais em viagens, como o Methodo de

Recolher, Preparar, Remeter e Conservar os Productos Naturais. Segundo o plano,

39 Disponível em: http://www.cedope.ufpr.br/joaquim_silva.htm

Page 37: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

31

que tem concebido, e publicado alguns naturalistas para uzo de curiozos que

visitao os Certoins e Costas do mar, de 178140, que permaneceu manuscrito. Donati

fez ilustrações para esta obra, e Alexandre Rodrigues escreveu partes dela.

A preparação das viagens correspondia a primeira etapa do processo, já que

os artefatos enviados, os desenhos, os animais, as plantas, só passariam a ter

utilidade efetiva a partir das operações museológicas, na divulgação e exibição dos

objetos coletados. As pesquisas que tinham o valor sigiloso não passavam pelo

mesmo processo.

Os desenhos que chegavam na Casa do Risco eram classificados nas

seguintes categorias: desenhos originais, cópias in loco, e cópias a limpo. Os

originais eram acabados pelos próprios desenhistas, as cópias in loco eram desenhos

feitos no local, e as cópias a limpo, era onde os desenhistas que não partiam em

viagem atuavam, eram obras iniciadas pelos desenhistas e posteriormente copiadas

e concluídas pelos copistas. Nesse último tipo de desenho, detalhes estrangeiros

eram incluídos, essa atitude podia fugir do objetivo das ilustrações, de representar o

real. Todavia, quando esses desenhos eram copiados a limpo, eles ficavam

adequados ao gosto da época, já num gosto pela paisagem exótica nos termos do

romantismo.

Os naturalistas recebiam instruções de se exercitarem na arte do desenho

mesmo na viagem em alto-mar, nos locais inóspitos, justamente por isso deviam

aprender técnicas adequadas a esses ambientes. Usavam muita aquarela, pois era

mais prática que a tinta óleo, adequava-se melhor para o processo posterior da

gravura. Faziam uso dos lápis também. Em relação às cores adotadas e levadas na

bagagem, as cores primárias faziam parte do seu repertório, pois elas podiam ser

misturadas, além de vários tons de verde, o branco e o preto.

40 Manuscrito depositado no Museu Bocage.

Page 38: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

32

Quanto ao personagem cujas obras serão abordadas nesse ensaio não se sabe

quando exatamente ele foi incluído no projeto das viagens. Sabemos apenas que

Ângelo Donati participou da fase preparação na Casa de Risco, provavelmente no

período de 1780 a 1783, existe a desconfiança que ela possa ser filho ou parente do

naturalista italiano Vitalino Donati41. Antes de sua morte, ele enviou uma carta ao

jardineiro Julio Mattiazi contando da sua viagem e da chegada em Angola. Neste

documento, consta uma anotação de Mattiazi da notícia da morte do desenhista, 02

de maio de 1784, em Luanda, Angola. Não sabemos se esta data refere a data da

morte exatamente ou a data de recebimento da notícia. Situaremos então o período

possível, desde a chegada em 10 de setembro de 1783 até a data conhecida de maio

de 1784.

Donati se refere à longa viagem de 116 dias, onde a produção científica em

alto mar foi pouca. Mostra seu olhar maravilhado com o mundo natural exuberante

que encontra, os pássaros, os insetos, as plantas “tudo diferente” do que ele

conhecia. Sendo desenhista, prestou muita atenção às cores como se depreende da

leitura, “os habitantes tem costumes e cores diferentes”, assim como o colorido do

mundo natural com as cores inéditas maravilhou o desenhista-naturalista.

Per Mare facei pochissime osservazioni, e qualque dissegno. Ora mi ritrovo in terra in um Mondo per me tottalmente nuovo: costumi, colore degli abbitanti, piantes, insetti, ucelli tutto differente dal nostro. Io mi ritrovo qualque volta si sorpreso Che se acuno mi riguadase in disparte, mi prenderebbe facilmente per um insensato42

Entretanto, a outra parte da carta nos traz o medo do europeu frente aos

desafios da viagem, da vida em território desconhecido. Ele faz um apelo para que

Mattiazi o apóie nos pedidos de ajuda, e diz que voltará a escrever quando puder.

Sr. Giulio la prego ricordasi di suo Patriota che sta nel Congo; Lei è o l’único che mi può difendere, sostenemi, in caso che la malignità, l’invidia,l’ingiusta vendetta (...)de Sª Eccllª contro di me. Son certo chei lei stesso riceverà delle insinuazioni, delle lettere, delle notizie che mi discrediterranno. (...) Lei si arriccordi che sono um povero Forestieri in mezzo a nemeci, e a barbari: motivo per cui merita la mia situazione um poco più de pietá (...)

41 Vitalino Donati viajou para o Oriente Médio financiado pelo Rei de Sardenha e conhecia Vandelli. PATACA, E.M., Dicionário Biobliográfico de artistas, naturalistas, engenheiros e governadores envolvidos nas viagens científicas portuguesas.In: _____,.Terra, água e ar nas viagens científicas portuguesas (1755-1808) Tese de doutorado. Ciências. Unicamp. 2006, p 55 e 56. 42 Carta de Ângelo Donati a Julio Mattiazi (10 de setembro de 1783), Arquivo Histórico Museu Bocage, CN/D-6.

Page 39: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

33

Lei avrà la bontá di passare i miei rispetti al Sr. Dr. Franzini (...) al. Sr Dr. Vandelli (...) scriverò in miglior tempo. 43 Além disso, não existe praticamente documentação a respeito da vida e obra

do italiano Donati, por esta razão tomaremos como parâmetro justamente esse

pertencimento à geração que realizou as viagens filosóficas, e analisaremos sua

produção a partir disto. Assim, não se deve esquecer que era uma arte a serviço da

Ciência e, sobretudo do Estado, já que eram funcionários da Coroa portuguesa,

dentro de um projeto de reconhecimento científico das colônias. Eles eram

orientados ao um determinado modo de olhar, leia-se um olhar europeu ao mundo

tropical. A produção de memórias44 também era uma das orientações oficiais.

Uma obra importante sobre o processo em questão é a do historiador

português Miguel Ferreira Faria. Ele estudou a trajetória de José Joaquim Freire,

desenhista que seguiu na Expedição Filosófica ao Brasil comandada por Alexandre

Rodrigues Ferreira, também integrada pelo desenhista Joaquim José Codina. O

autor foca sua análise na importância do desenho no contexto do desenvolvimento

científico do Iluminismo, e na própria formação dos filósofos naturalistas. Ele toma

o Freire como um personagem paradigmático, representando essa geração de

desenhistas naturalistas da qual Ângelo Donati fez parte.

***

Partiremos do princípio que essas imagens foram produzidas dentro desse

projeto de união da Ciência e do Poder, ou seja, que os desenhistas eram orientados

ao que e como deveriam ver, como inspirou o trabalho do historiador citado acima.

As cúpulas científicas e políticas necessitavam o olhar o Ultramar e foi o desenho o elemento preponderante nesta aproximação. Ultrapassando o comum aspecto artístico, estes testemunhos visuais revalorizam-se na perspectiva de constituírem uma fonte rara para o estudo da sociedade portuguesa do final do Antigo Regime. Os artistas cumpriam ordens, executando no terreno das directrizes traçadas com rigor. Por isso, o produto do seu labor, serve para situar exemplarmente o que o poder queria ver, pelo que o significado

43 Ibidem. Ele reclama ser um forasteiro num território de inimigos e bárbaros, teme que Martinho de Mello de Castro tome alguma atitude contra ele, e pede ajuda e piedade de Mattiazi que intervenha caso seja necessário, pois ele seria o único que poderia ajudar o compatriota. 44 A respeito da leitura dos diários de viagens consultar o artigo de CRUZ, A. L. R. B. da, As viagens são os viajantes: dimensões identitárias dos viajantes naturalistas brasileiros do século XVIII. Revista História: Questões & Debates, Curitiba, n. 36, p. 61-98, 2002. Editora UFPR.

Page 40: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

34

dessas produções gráficas se prolonga para além da informação ocasional e da intenção estética. 45 O historiador brasileiro Ronald Raminelli trabalhou com análise iconográfica

e publicou artigos a esse respeito, Raminelli que vai nos inspirar trata justamente da

Expedição ao Brasil comandada por Alexandre Rodrigues Ferreira e às estampas

referentes aos índios que foram produzidas nesta viagem. Ao analisar as pranchas

da referida viagem ele percebeu que a representação dos índios era muito

semelhante entre si. O que os distinguia eram as deformidades produzidas por

algum tipo de costume, e os artefatos de cada nação indígena. Todavia, o próprio

Ferreira identificava os nativos americanos como pertencentes a um grupo maior: o

tapuia. Queria classificar as nações dentro desse grupo, e a similitude dos traços

demonstra essa necessidade de inserção das diferentes tribos dentro de um todo

igual. “Há, com efeito, em todos eles uma certa combinação de feições e um certo

ar, tão privativamente seu, que nele se deve estabelecer a característica de uma

figura americana”.46

A busca pelo exemplar, pelo indivíduo protótipo foi uma característica do

Iluminismo. No contexto do espírito enciclopédico não havia lugar para as longas

explicações das particularidades. A vontade de organizar o caos do mundo,

significava classificar, categorizar e inserir num todo. Daí o sucesso dos sistemas

classificatórios globais, que resumem essa vontade de ordem. No que diz respeito à

História Natural, isso também se afirma. A relação entre texto e imagem deveria ser

de complementaridade, aquilo que para as palavras descreverem seria difícil, ou

extenso, a estampa anunciava de forma direta. Os padrões científicos de

representação tinham justamente o intuito de uniformizar a linguagem, tornando-a

acessível.

45 FARIA, M. F., A imagem útil. José Joaquim Freire (1760-1847) desenhador topográfico e de história natural: arte ciência e razão de estado no final do antigo regime. Lisboa: Universidade Autônoma de Lisboa, 2001, p.100. 46 FERREIRA, A.R., Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Memórias: zoologia/botânica. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972, p. 82. In: RAMINELLI, R. Do conhecimento físico e moral dos povos: iconografia e taxionomia na Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. Revista História, ciências, saúde, vol. VIII. 2001.

Page 41: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

35

A respeito da ilustração científica, a pesquisadora Ermelinda Pataca

comparou os desenhos de peixes das Expedições ao Pará e a Angola. Os desenhistas

dos peixes eram José Joaquim Freire na primeira, e o de Angola não era Ângelo

Donati, pois, como dissemos, ele adoeceu na chegada ao destino, e a produção ficou

a cargo do outro desenhista José Antonio. No caso da representação científica o

maior esforço do riscador era manter a maior fidelidade ao objeto, e ela parte de

certos esquemas de traçados pré-estabelecidos nas aulas de risco. Ao confrontar as

estampas, Pataca não encontrou diferenças significativas, confirmando a tese de que

a preparação no Complexo d’Ajuda incluiu o ensino de desenho técnico para que as

estampas se aproximassem do “real” observado, lá eles também tinham aulas de

conhecimentos básicos em História Natural.

Ilustração 6 Aquarela de José Antonio, confeccionada no trajeto Lisboa-Angola 47

A estrutura do desenho dos peixes é a mesma, eles eram retratados de perfil,

salvo algumas espécies cujas particularidades não podiam ser exploradas com esse

tipo de plano. A representação sempre no mesmo plano, seguindo padrões

representativos é a maior característica do desenho científico. Os riscadores

levavam consigo obras como a de Lineu, que já traziam padrões científicos para o

desenho de objetos naturais, que influenciavam também a confecção das estampas.

Abaixo estão representados os peixes advindos da viagem filosófica para Angola e

ao lado da aquarela da mesma espécie observada no trajeto da viagem ao Brasil. A

47 Disponível em: http://www.cedope.ufpr.br/joaquim_silva.htm

Page 42: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

36

autora nos chama a atenção para os padrões de representação adotados, ao comparar

a mesma espécie representada por artistas diferentes percebeu a semelhança dos

dois, percebendo o uso de padrões advindos de uma tradição de representação

científica, que provavelmente foi reforçada na Casa do Risco.

Ilustração 7 Detalhe da espécie de peixe Rêmora, retratada por José Antonio.

Ilustração 8 Cópia de desenho enviado da Expedição ao Brasil, produzido ou por Freire ou Codina, a pesquisadora analisa a semelhança deste peixe com o desenho enviado por José Antonio, da Expedição para Angola.48

As ilustrações científicas de Donati seguem esses mesmos padrões fixos de

representação, como é o caso da representação de conchas, elas são desenhadas de

com dois planos fixos, inclusive o modo de posicionar o objeto observado é muito

semelhante no caso dos peixes analisados pela pesquisadora e as conchas. Como

mostra essa estampa abaixo.

Ilustração 9 Ilustração científica de Ângelo Donati, representando uma concha ele segue o mesmo padrão e plano para o desenho dos peixes.49

48 PATACA, E. M. A confecção de desenhos de peixes oceânicos das "Viagens philosophicas" (1783) ao Pará e à Angola. Revista Hist. ciência. saúde-Manguinhos vol.10 no.3 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2003.

Page 43: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

37

Peter Burke ao analisar a possibilidade do uso da imagem como fonte

histórica realiza uma revisão sobre os autores que trataram dessa questão, inclusive

cita o Gombrich que tanto inspirou o presente estudo. Ele acredita na necessidade

de conhecer a cultura que produziu aquela representação pictórica, para ser possível

desvendar o código cultural presente na representação. Atenta para o fato de que os

detalhes são carregados de significados culturais que devem ser esmiuçados50.

O historiador da arte Ernst Gombrich criou o conceito de que nenhuma

imagem é totalmente nova, o que acontece é que dentro de certos esquemas mentais

o homem passa a reproduzir estereótipos. Para compreender a produção gráfica

devemos pensar na chamada psicologia da percepção, isso significa pensar o modo

de ver do artista, que, por sua vez, é influenciado pelo seu contexto sócio-cultural.

Os estilos artísticos transformam-se pelas diferentes visões do mundo, pelos

diferentes objetivos e também pelo aperfeiçoamento da técnica. A despeito do tipo

de representação científica que trataremos aqui, que é produzida a partir da

observação direta do objeto, pretensamente objetiva, diremos que seu estilo é

científico, pois essa era intenção do desenhista. Os estilos são exemplos de

tradições, do clima cultural da época que o artista vivia.

Enquanto não tivermos hipótese melhor para oferecer, a existência de modos uniformes de representar o mundo é um convite à fácil explicação de que tal unidade se deva a algum espírito supra-individual, o “espírito da idade”. 51 Tendo em vista esse conceito de Gombrich que o clima cultural influencia o

modo de ver do artista, o desenhista naturalista em questão, Ângelo Donati tinha o

olhar impregnado pelo chamado espírito da idade. Pois além de ter o olhar

influenciado pelo Iluminismo com o preceito da razão como mãe das ações

humanas, ele fez parte de um projeto de Estado, que conjugava o olhar científico ao

olhar utilitarista. Os seus desenhos são, portanto fonte importante de informação

sobre o contexto em questão. 49 In: Riscos de alguns Mammaes, Aves e Vermes do Real Museu de Nossa Senhora da Ajuda. Arquivo Histórico do Musue Zoológico Bocage da Universidade de Lisboa 50 BURKE, P. Testemunha ocular: história e imagem. Trad. Vera Maria dos Santos. Bauru: SP: Edusp, 2004, capítulo 2. 51 GOMBRICH, E. H., Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. Tradução Raul Barbosa. 1ª edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 17.

Page 44: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

38

Os próprios debates do século XIX sobre a “a arte de ver a natureza” diziam

que os sentidos deviam ser educados para enxergar a natureza “verdadeira”, tratava-

se, portanto, de uma arte adquirida, aprendida. Os sentidos são ativados por um

processo mental, o que significa que qualquer impressão do sentido é um fato da

mente52. Para a elaboração gráfica de um objeto qualquer o artista recorre a

formulas pré-existentes, ou seja, tenta encaixar o que vê àquilo que conhece e sabe

representar, dentro de uma tradição conhecida. Por este raciocínio que o intelectual

francês André Malraux chegou à máxima de que a arte nasce da arte e não da

natureza53. É lógico que esse processo mental da formação e interpretação das

imagens não é simples, direto, muito menos consciente, e não cabe aos historiadores

desvendá-lo. Entretanto, tomaremos como base para nosso trabalho que na

produção de representações gráficas o artista se baseia num esquema tradicional de

representação.

O historiador da arte Gombrich nos traz exemplos elucidativos a esse

respeito. Para ele o estilo da época somado ao estilo do artista definem um contexto

mental. A técnica e os materiais escolhidos também limitam o artista, que se vai

usar lápis deve dirigir seu olhar às linhas do objeto, ao contrário se tiver em mãos

um pincel ele vai analisar seu objeto como “massa” 54.

Os desenhistas fazem uso recorrente de estereótipos, eles adaptam um

esquema pré-estabelecido, incluindo características próprias do objeto, até se

aproximarem da “realidade” específica daquilo que estão reproduzindo. Sendo

assim percebemos que o desenho “começa não com a sua própria impressão visual,

mas com a idéia, ou conceito que tem”55. Recorrer ao esquema é o primeiro ato

mental do artista, depois ele passa a moldar seu esquema para que ele se aproxime

com as formas do que quer representar.

No século XVI uma nuvem de gafanhotos invadiu a Alemanha, o ilustrador

da notícia construiu um gafanhoto a partir de uma imagem tradicional da Bíblia do

Apocalipse, da invasão das pragas, somado ao significado que o termo gafanhoto

52 GOMBRICH, E.,.Idem, p. 13. 53 Ibidem, p. 19. 54 Ibidem, p 55. 55 Ibidem, p. 63.

Page 45: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

39

assume em alemão, heupferd, cavalo-de-feno, ele o representou com a postura do

cavalo adaptando a antiga fórmula, e afirmou que aquela figura era idêntica à

espécie retratada, e disse isso não por querer “enganar” o leitor, mas no seu

contexto mental aquele animal correspondia ao “real”56.

Gombrich traz muitos exemplos como este, pois isso ocorreu repetidamente

na Europa antes do advento da fotografia, quando as novas espécies vindas de toda

a parte do Globo, eram retratadas, já que não tinham esquemas de representação

delas, conformavam o que viam ao que sabiam formar.

O familiar será, sempre, o ponto de partida para a representação do desconhecido; uma representação existente exerce sempre um certo fascínio sobre o artista, mesmo quando ele se esforça para registrar a verdade.57 Inclusive, por vezes, um artista repetia o equívoco do outro, como foi o caso

do Rinoceronte. A primeira ilustração de um exemplar foi pintada por Dürer no

século XVI, a partir de relatos de viagens aliados ao imaginário do dragão, já que os

relatos diziam do corpo encouraçado do animal, ele construiu a idéia de como seria

um Rinoceronte, esse ser construído foi modelo para outros Rinocerontes até o

apogeu da História Natural no século XVIII, que apesar de insistir na objetividade

da representação científica, ainda repetiu alguns dos erros que a primeira imagem

encadeou58.

Portanto, a schemata age também na ilustração científica, porém as

adaptações são mais precisas, pois derivam de observação sistemática do objeto,

reunindo assim informações visuais mais próximas do “real”. O esquema é a

primeira categoria na qual ele se baseia para ilustrar o “real”59.

As imagens estão ligadas com a experiência, e o modo de construção delas

está relacionado com a intenção e necessidade do contexto de produção destas. A

imagem “não é o registro fiel de uma experiência visual, mas a construção fiel de

um modelo relacional”60.

56 Ibidem, p 69. 57 Ibidem, p. 72. 58 Ibidem, p. 70. 59 “O artista não menos que o escritor, precisa ter um vocabulário antes de poder aventurar-se a uma ‘cópia’ da realidade.” Ibidem, p. 76. 60 Ibidem, p. 79.

Page 46: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

40

Burke analisa a questão da visão do outro, as reações possíveis em relação ao

outro ele classifica de duas maneiras: assimilação do outro através de analogias ou a

construção da imagem do outro “como oposta à nossa própria”61. Exemplos

pictóricos desses dois tipos de atitudes são muitos, como, por exemplo, em gravuras

referentes ao mundo oriental, o monge tibetano foi representado como um padre do

Oriente, sua realidade não poderia ser captada, pois é “através da analogia que o

exótico se torna inteligível, domesticado”62. Quando o outro é entendido como

oposto, as estampas relacionadas a ele provavelmente tomaram feições

monstruosas, isso aconteceu repetidamente nas primeiras representações do Novo

Mundo, largamente reproduzidas.

O encontro de culturas normalmente é assimilado, pelo menos inicialmente,

por uma imagem estereotipada. Como no caso da figura abaixo que representa o

contato dos europeus com a população do Novo Mundo. Eles representam o outro

exótico pelo outro que já estavam mais acostumados a representar, a figura humana

dos personagens não apresentam diferenças gritantes, o que as diferencia são os

trajes, os adereços, os exóticos nativos usam um turbante na cabeça, e portam

bigodes. Nesse caso são povos considerados mais civilizados, são retratados

totalmente vestidos, tem feições pacíficas, estão interagindo com os europeus,

talvez fazendo algum tipo de negociação para comércio, ou algo do gênero. O

importante a reter é que o outro só transformou-se em não-europeu pelos adereços

inseridos na imagem. As palmeiras ali presentes não são palmeiras, são padrões

representativos de flora referentes ao estereótipo do mundo tropical.

Burke, assim como Raminelli, observou “que gravuras européias de índios

americanos eram muitas vezes composições que combinavam aspetos de diferentes

regiões para criar uma imagem geral”63. Os bustos da alegoria analisada na

seqüência apontam isso, eles parecem fazer referências à índios norte-americanos,

diferentes dos índios a que pretendiam referenciar ali, mas eles traduziam a idéia de

índio, e isso bastou. Na alegoria, diferentemente do desenho científico, não se

buscou a proximidade com o real.

61 BURKE,P., p. 154. 62 Ibidem, p. 154. 63 Ibidem, p. 156.

Page 47: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

41

Ilustração 10 Estampa retratando contato entre as culturas nas Viagens Filosóficas.64

64 FONSECA, M. T. In: Riscos de alguns Mammaes, Aves e Vermes do Real Museu de Nossa Senhora da Ajuda. Arquivo Histórico do Musue Zoológico Bocage da Universidade de Lisboa

Page 48: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

42

Análise das fontes

Page 49: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

43

1) Frontispício/ Alegoria ao Novo Mundo65

A análise da presente alegoria inspirou-se na análise do frontispício do Atlas

de Martius de 1831, realizada pela professora Ana Luisa Fayet Sallas, em sua tese

de doutorado66.

Esta representação de Ângelo Donati faz parte da coleção confeccionada na

Casa do Risco do Complexo d’Ajuda, local já citado onde ele e outros riscadores

ficaram concentrados antes de embarcarem para as Viagens Filosóficas, lá tiveram

aulas de desenho, além das instruções para as expedições.

Esta imagem é uma alegoria ao Mundo Tropical, que serviria de frontispício

a uma publicação sobre a Flora do Novo Mundo. A própria alegoria tem o papel de

resumir, de informar rapidamente aquele que vê os objetivos da representação, e o

faz a partir de símbolos capazes de figurar o todo sem ser um específico. Em

destaque, no centro e acima de tudo, está do brasão português e logo acima a coroa.

O contraste cima/baixo correspondem ao papel que o poder queria assumir nesse

empreendimento científico. A figura estar localizada no centro tem o significado de

princípio, e “é também o símbolo da lei organizadora. (...) é o poder organizador do

Estado(...)”67. Essa localização central tem o claro objetivo de mostrar a Coroa

como protetora das Ciências, ideal comum às monarquias ilustradas. O brasão está

enfeitado num estilo rococó68, bem ao gosto da época.

É importante notar que, apesar de se tratar de uma alegoria de regiões

tropicais, todo o enquadramento da representação é europeu. A moldura remete ao

período clássico, volutas referentes a capitéis jônicos acima, e nas laterais volutas

como referência as a folhas de acanto provavelmente. São padrões representativos

aplicados na arquitetura e artes desde o período clássico greco-romano.

65 In: Riscos de alguns Mammaes, Aves e Vermes do Real Museu de Nossa Senhora da Ajuda. Arquivo Histórico do Musue Zoológico Bocage da Universidade de Lisboa 66 Professora do Departamento de Ciências Sociais da UFPR. SALLAS, A.L.F., Ciência do homem e sentimento de natureza: viajantes alemães no Brasil do século XIX. Tese de Doutorado: História, UFPR, Curitiba, 1997, p. 76-81. 67 CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A., Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997, verbete CENTRO, p. 220. 68 Estilo do século XVIII, situado entre o Barroco e o Neoclassicismo. “Literalmente rococó é o exagero do Barroco”.In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Arquitectura_rococ%C3%B3

Page 50: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

44

Encontramos reproduções de schematas e adaptações em várias das figuras

aqui tomadas como símbolos. No lado direito, encontramos um índio recostado na

voluta em forma de folha. Conseguimos identificá-lo como índio pelos adereços que

ele porta, como o cocar na cabeça, a flecha na mão. Se tirássemos estes elementos

citados, encontraríamos uma figura humana do mundo europeu, repetidamente

reproduzida. A figura desenhada não tem traços de indígenas, como por exemplo, o

nariz fino, ele também não apresenta o porte físico de um índio.

O macaco do lado esquerdo não é um macaco específico, uma espécie

identificável, ele é um esquema de macaco. Assim como o pássaro que está no

tronco, não é nem um papagaio, ou uma arara, é o estereótipo de um pássaro que os

europeus acreditavam existir no mundo tropical. O pássaro representado na viagem

para Angola não aparece como este da alegoria. Ele é representado de perfil, seus

detalhes distintivos são destacados, como formado do bico, cor das penas, existe

uma diferença essencial, o pássaro de Angola deve ter sido desenhado a partir da

observação direta, segundo os padrões científicos, não como o pássaro da alegoria.

O desenho científico está atento aos detalhes por fazer observação sistemática do

objeto, aliada à técnica de representação científica.

Ilustração 12 Representação científica de Ave, pranchas da Expedição para Angola.69

Gombrich nos fala que sempre partiu-se do conhecido ao representar o novo.

Nesse caso específico Donati não conhecia o Novo Mundo, a não ser pela

69 In: Riscos de alguns Mammaes, Aves e Vermes do Real Museu de Nossa Senhora da Ajuda. Arquivo Histórico do Musue Zoológico Bocage da Universidade de Lisboa

Page 51: a produção iconográfica de angelo donati no contexto ilustrado

45

experiência de outros europeus. A informação que tinha já era filtrada pelas

memórias e ilustrações de outros viajantes. Ao ler a parte de sua carta que se refere

à natureza exuberante que encontrou quando desembarcou em Angola demonstra

que mesmo com as informações que recebeu do que supostamente encontraria, nada

substituía a sua própria experiência ao ver a explosão de cores do mundo tropical.

Ora mi ritrovo in terra in um Mondo per me tottalmente nuovo: costumi, colore degli

abbitanti, piantes, insetti, ucelli tutto differente dal nostro.70

Mesmo sem conhecer esse mundo, ele conseguiu representá-lo, mas como?

Ele só poderia fazer isso a partir do quadro mental construído a partir de idéias já

estabelecidas sobre esse mundo.

A presença do fruto já é um símbolo de abundância e prosperidade71. As

frutas ligadas por uma fita têm a forma de uma guirlanda tradicional européia, o que

mudou foram as frutas figuradas nela, nesse caso frutas tropicais, para trazer à idéia

do mundo tropical para aquele que olhar para alegoria. O desenhista não deixa de

pintar as frutas como ilustrações científicas, nos seus mínimos detalhes, por falta de

habilidade. Ele não o faz aqui por não ser necessário, são frutos tropicais

exemplares e isso bastava, na alegoria ninguém almejaria identificar a espécie,

família da flora desenhada. A guirlanda assumiu a dupla função de enfeitar a

moldura da imagem e de firmar a referência ao tropical.

Ao fundo, com menos detalhes, enxergamos folhagens que se assemelham

com palmeiras, mais uma vez vemos que o imaginário do tropical é o que basta, a

paisagem não é tropical, o tipo do tronco, as águas nascentes na montanha ao fundo

não figuram a realidade dos trópicos. Todavia, todos estes elementos juntos retratam

o imaginário europeu do Novo Mundo.

Os bustos nos cantos inferiores referem-se provavelmente a índios da

América do Norte, pelo tipo do cabelo que é representado, com o modo de prender

no topo da cabeça, isso não correspondia em absoluto aos índios brasileiros, que

seriam os personagens representados aqui na alegoria ao Novo Mundo. Entretanto

70“Agora me encontro num mundo totalmente novo:costumes,cores dos habitantes, plantas, insetos, pássaros todos diferentes dos nossos.” Carta de Ângelo Donati a Julio Mattiazi (10 de setembro de 1783), Arquivo Histórico Museu Bocage, CN/D-6. 71 CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A., verbete FRUTO, p. 453.

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esse tipo de índio se “encaixava” perfeitamente na idéia de índio do europeu, então

cumpria seu papel na alegoria, que era formar a idéia do mundo tropical. O que

interessava aqui não era a representação do que era o mundo tropical, e sim o que

os europeus acreditavam ser esse mundo. O espaço entre eles seria o lugar do título

da obra.

A alegoria está repleta de estereótipos adaptados ao que queriam simbolizar,

o índio apesar de não ter traços de um, transformou-se num índio. Assim como a

transmutação da guirlanda e assim por diante. Esses padrões pictóricos são

derivados de leituras do mundo mediterrânico, que os europeus já conheciam e

representavam há séculos. Donati já tinha uma schemata pré-estabelecida, que

acabou transferindo e adaptando para a temática do mundo natural dos trópicos.

O leitor da imagem, sobretudo, o leitor europeu ilustrado, provavelmente

conseguiria assimilar os elementos nela presente de forma rápida, sem precisar de

interlocutores ou textos explicativos, caso eles existissem só reforçariam a idéia que

a alegoria trazia. Essa função a alegoria cumpriria, de “antecipar” o conteúdo e já

criaria a expectativa de que o mundo tropical seria tema de discussão daquela obra.

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2)Naturalista em viagem72

Essa estampa de Donati também foi produzida no complexo d’Ajuda, antes

da viagem para Angola. Ela ilustrou o livro de instrução73 aos viajantes curiosos

produzido no complexo no período anterior às expedições. É um quadro, no sentido

de Buffon, pois apresenta uma descrição histórica e dinâmica74 dos acontecimentos,

no caso um simulacro do que seria o cotidiano do trabalho dos naturalistas em

viagem. Portanto, não se trata de uma ilustração que parte da observação direta do

objeto retratado, trata-se da materialização do imaginário que o desenhista

construiu. Uma idéia possivelmente formada a partir de relatos de viagens

científicas anteriores, da experiência de outros naturalistas. É um exercício didático,

um desenho de expectação e preparação para o embarque para as viagens

filosóficas.

Trata-se de uma idealização do mundo natural, é a concepção de um “Teatro

da Natureza”. Do lado esquerdo está a montanha, a cachoeira e o rio, que são

protótipos da riqueza natural e da vastidão, não é a paisagem de um lugar

específico, não é uma paisagem tropical, trata-se de uma adaptação de uma

paisagem européia transformada em uma paisagem tropical. Os elementos que

mudam o contexto da paisagem são as palmeiras, que por sua vez, não são

palmeiras especificas, são figuras protótipos dentro do esquema mental de um

europeu, que ao imaginar uma árvore do Novo Mundo, construiu a árvore que

vemos ali representada.

Em primeiro plano estão os viajantes naturalistas numa simulação do

trabalho de campo: recolha, descrição, classificação e remessa de objetos da

natureza. A divisão de trabalho está demonstrada, no canto inferior esquerdo estão

os jardineiros, ocupados com seus afazeres, extraindo uma espécie nativa, para

72 DONATI, A.In: Riscos de alguns Mammaes, Aves e Vermes do Real Museu de Nossa Senhora da Ajuda. Arquivo Histórico do Musue Zoológico Bocage da Universidade de Lisboa 73 Methodo de Recolher, Preparar, Remeter e Conservar os Productos Naturais. Segundo o plano, que tem concebido, e publicado alguns naturalistas para uzo de curiozos que visitao os Certoins e Costas do mar, de 1781, Manuscrito depositado no Museu Bocage. 74 “O quadro, segundo Buffon, pretendia captar a dinâmica, o movimento dos fenômenos que não foram contemplados nas descrições estáticas.” RAMINELLI, R. Do conhecimento físico e moral dos povos: iconografia e taxionomia na Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. Revista História, ciências, saúde, vol. VIII. 2001, p. 987.

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análise do naturalista e do riscador. No canto inferior direito estão os naturalistas

com vestes vermelhas observando, um está sentado escrevendo ou desenhando, não

há como identificar a ação. Outro naturalista em azul manuseia uma arma de caça.

No centro da paisagem está um animal abatido, aberto para preparação da remessa,

que poderia ser somente do couro, ou o animal empalhado. O cavalo branco está

sendo segurado por um integrante da equipe, ele remete ao mundo europeu

civilizado, pois o cavalo é um animal domesticado, o homem racionalizou o uso

daquele animal, transformando-o num animal útil para o transporte das cargas, das

charretes. O animal provavelmente seria usado para carregar ao local devido os

produtos naturais coletados.

No fundo da paisagem estão os nativos dançando, num ritual, com pedras na

mão, armas rudimentares, que mostram o baixo grau de civilização que eles tinham

atingido até aquele momento, já que a tecnologia das armas era uma medida do grau

de evolução de uma sociedade, como mostrou o historiador Ronald Raminelli em

seu artigo sobre o conhecimento físico e moral dos nativos, a partir da análise das

pranchas produzidas por Codina e Freire na Expedição Filosófica para Amazônia,

comandada por Alexandre Rodrigues Ferreira. O uso de roupas também foi um fator

analisado, quanto mais vestido estivesse um nativo, mais perto da civilização ele

estaria, escondendo suas vergonhas. O índio que veste a tanga vermelha apresenta

um tom mais claro de pele que o outro índio, está representado como mais

civilizado, vestido, o outro está de lado, pois, os desenhistas evitavam o nu frontal, a

coxa ficava sobreposta às partes íntimas. Os naturalistas estão vestidos com os

“trajes próprios para a viagem: botas, chapéus e rifles”75.

A bagagem que o naturalista levava para estes territórios era, sobretudo

cultural, o naturalista é apresentado nessa prancha como agente civilizador, através

da Ciência, nesse caso. Todo o instrumental levado para as viagens (instrumentos de

dissecação e necessários às atividades científicas, armas, caixas para remessas)

eram instrumentos civilizados também, eram pensados e construídos para cada tipo

de ação em campo.

75 SALLAS, A.L.F., Ciência do homem e sentimento de natureza: viajantes alemães no Brasil do século XIX. Tese de Doutorado: História, UFPR, Curitiba, 1997, p.122.

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A estampa permite a leitura da a historicidade do momento de sua

produção76, é uma auto-representação do viajante, que ao se defrontar com a

natureza exuberante e o homem em estado de natureza (índios) deveria agir de

modo objetivo, leia-se científico. Um modelo de atuação organizado pela ciência,

que tinha o apoio do poder, este último, por sua vez, tinha objetivos específicos e

bem delineados. Como resultado da conjunção desses fatores, ciência e poder no

Iluminismo, temos esse tipo de produção pictórica.

Essa outra imagem77, do mesmo tipo, uma imagem de expectação da viagem

produzida por Manuel Tavares da Fonseca apresenta as mesmas características da

estampa de Donati.

Essa paisagem útil de Manoel Tavares explica, em síntese as várias operações recomendadas aos naturalistas em campanha nas chamadas Viagens Filosóficas. A composição desdobra-se em sucessivos planos, em pleno teatro natural, ao longo dos quais a equipe recolhe, prepara, classifica e desenha os diversos espécimes localizados.78

76 Ibidem, p. 122. 77 FONSECA, M. T. In: Riscos de alguns Mammaes, Aves e Vermes do Real Museu de Nossa Senhora da Ajuda. Arquivo Histórico do Musue Zoológico Bocage da Universidade de Lisboa 78 FARIA, M. F., A imagem útil. José Joaquim Freire (1760-1847) desenhador topográfico e de história natural: arte ciência e razão de estado no final do antigo regime. Lisboa: Universidade Autônoma de Lisboa, 2001, p. 30.

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Nessa representação percebemos ainda mais a divisão de tarefas, e podemos

observar que nela está presente claramente a figura do desenhista no canto inferior

esquerdo, com uma veste roxa, ele olha para todos os acontecimentos ao seu redor

na tentativa de captar o momento, ou o movimento nesse caso. A semelhança de

temática, mostra como essas estampas relacionavam-se intimamente com o contexto

de produção desses artistas, das instruções que recebiam para preparação para as

expedições científicas.

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3) Ilustração científica79

No caso das ilustrações científicas, faremos uma comparação com as

representações referentes às conchas recolhidas e retratadas na Expedição Filosófica

para Angola. Como vimos, o desenho científico segue padrões representativos,

sobretudo a partir da criação do sistema classificatório de Lineu, que queria abarcar

todas as espécies do Globo num único sistema da natureza. Portanto ele recebia

material de estudiosos de todo o mundo, e o parâmetro científico de representação

foi determinado. Sobretudo para representação da flora, que como vimos deveria

conter todo o ciclo da espécie, para possibilitar o reconhecimento e o conseqüente

enquadramento no Systema Naturae.

O parâmetro que tornou-se científico já era fruto de uma tradição anterior de

representação aliado à técnica, à prática e à observação sistemática do objeto.

(também ao contexto ilustrado)

A influência da schemata não impediu a emergência da ilustração científica que, por vezes, consegue reunir até maior número de visuais corretos na imagem que aqueles contidos na fotografia, Mas os mapas diagramáticos de músculos nas nossas anatomias ilustradas não são ‘transcrições’ de coisas vistas, mas resultado do trabalho de observadores treinados, que constroem a imagem de um espécime que lhes foi revelado por anos de estudo paciente.80

79 In: Riscos de alguns Mammaes, Aves e Vermes do Real Museu de Nossa Senhora da Ajuda. Arquivo Histórico do Musue Zoológico Bocage da Universidade de Lisboa. 80GOMBRICH, E. H., Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. Tradução Raul Barbosa. 1ª edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 73.

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Ilustração 16 Representação científica de conchas. Século XVIII.81

Fotografia 1: Conchas que apresentam o mesmo padrão científico de representação. Século XXI.82

As conchas aqui representadas apresentam sempre o mesmo padrão e plano

de representação, isso só se altera se a espécime possuir alguma especificidade que

não ficar clara nos planos pré-estabelecidos, necessitando de mais um para captar a

realidade daquele objeto. Para efeito de comparação do registro rigoroso da

informação visual produzida no século XVIII, incluímos uma foto atual de conchas

dispostas nos mesmos planos, para observamos como a ilustração científica foi

capaz de captar detalhes, nuances de cores e movimentos das espécies retratadas.

81 In: Riscos de alguns Mammaes, Aves e Vermes do Real Museu de Nossa Senhora da Ajuda. Arquivo Histórico do Musue Zoológico Bocage da Universidade de Lisboa 82 Fotografia encontrada no site: http://www.specimenshells.de/bilder/volutas/olla_1147.htm.

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CONCLUSÃO

Ao traçar um quadro sobre o contexto ilustrado português, pretendeu-se

entender as estampas de Donati, à luz de seu tempo de concepção. Essas obras

estavam marcadas pelos interesses que convergiam para a construção deste. O

interesse da Coroa em se afirmar como protetora das Artes, tendo por trás disso o

interesse no resultado prático que o investimento depositado poderia trazer. Somado

ao interesse do desenvolvimento científico.

O olhar científico para o mundo natural, não estava isento de deslumbre e

estereótipos como vimos nas estampas de Donati. Mesmo a formação para a

ilustração científica não estava alheia à beleza, pois estas estampas apresentam

beleza singular. Donati tinha sim uma schemata pré-definida para representação do

mundo tropical, tinha um “cenário mental” dessa natureza. Como pudemos entrever

na leitura de sua prancha sobre o imaginário do naturalista in loco quando desenhou

uma espécie de “Teatro Natural”.

Percebemos que para estudar a fundo a fonte iconográfica, precisamos ter em

mente códigos culturais do período, realizando comparações de imagens e leituras

que não foram comtempladas para este estudo. Todavia, esse foi o primeiro

exercício de reflexão da historicidade de um objeto pictórico, captada com o olhar

ainda pouco treinado a esse tipo de trabalho. E como aprendizado foi válido.

O texto, ou melhor, as palavras que concretizaram este trabalho não foram

facilmente conjugadas, encontradas. Elas refletem somente os primeiros passos de

um caminho pelo jardim do conhecimento que tivemos grande dificuldade, mas

agora sentimos o prazer de começar a trilhar.

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www.cedope.ufpr.br (link inserido)