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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS FACULDADE NACIONAL DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO (PPGD/UFRJ) A PRODUÇÃO DE DIREITO NO CINEMA. UM ESTUDO SOCIOLÓGICO NÁDIA TEIXEIRA PIRES DA SILVA RIO DE JANEIRO 2011

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Page 1: A PRODUÇÃO DE DIREITO NO CINEMA. UM ESTUDO … · certeza, também me trouxe até aqui. Sou grata também ao querido professor Luiz Eduardo Figueira, por sua dedicação, interesse

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS

FACULDADE NACIONAL DE DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO (PPGD/UFRJ)

A PRODUÇÃO DE DIREITO NO CINEMA. UM ESTUDO SOCIOLÓG ICO

NÁDIA TEIXEIRA PIRES DA SILVA

RIO DE JANEIRO

2011

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NÁDIA TEIXEIRA PIRES DA SILVA

A PRODUÇÃO DE DIREITO NO CINEMA. UM ESTUDO SOCIOLÓG ICO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientadora: Profª. Drª. Juliana Neuenschwander Magalhães

RIO DE JANEIRO

2011

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Pires, Nádia. A produção de direito no cinema. Um estudo sociológico / Nádia Teixeira Pires da Silva – 2011.

140 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Faculdade de Direito. Bibliografia: f. 129-140.

Orientadora: Juliana Neuenschwander Magalhães. 1. Teoria do direito 2. Sociologia jurídica 3. Direito e cinema 4. “5 x favela agora por nós mesmos” – Dissertação I. Neuenschwander Magalhães, Juliana. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas. Faculdade de Direito. III. Título.

CDD 340.2

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NÁDIA TEIXEIRA PIRES DA SILVA

A PRODUÇÃO DE DIREITO NO CINEMA. UM ESTUDO SOCIOLÓG ICO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito.

Data da aprovação: 01 de junho de 2011.

Banca Examinadora:

____________________________________________________ Presidente da Banca Examinadora – Profa Dra. Juliana Neuenschwander Magalhães Adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

_____________________________________________________ 2º Examinador – Prof. Dr. Raffaele de Giorgi Titular da Università degli Studi di Lecce, Itália

_____________________________________________________ 3º Examinador – Prof. Dr. Alexandre Bernardino Costa Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB)

_____________________________________________________ Suplente – Prof. Dr. Luiz Eduardo Figueira Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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À querida Anícia. Presente da vida.

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AGRADECIMENTOS

Não poderia deixar de iniciar meus agradecimentos por minha querida orientadora,

professora Juliana Neuenschwander Magalhães que, em 2005, acolheu-me em seu recém

criado Grupo de Pesquisa Direito e Cinema. Por ela tive a oportunidade de conhecer a

complexa matriz sociológica de Niklas Luhmann, mobilizada no âmbito dessa dissertação.

Sob sua orientação foi possível experimentar novas formas de observar e descrever,

sociologicamente, o direito. A presença da professora Juliana na minha vida acadêmica

arrancou-me, com a força de um tornado, das certezas enraizadas e lançou-me num

redemoinho de incertezas criativas. Serei sempre grata por essa experiência, que é definitiva.

Não posso deixar de registrar a importância das rigorosas críticas apresentadas por

meu caríssimo professor Ricardo Nery Falbo e pelo professor José Eisenberg, durante a

qualificação do meu projeto de dissertação. Daquela rica experiência tentei reter o máximo.

Minha opção teórica, contudo, me fez teimosa em relação a certas sugestões. Outros “puxões

de orelhas” poderão vir, mas fazem parte da riqueza de se tentar pensar de forma dissonante.

Quis correr esse risco.

Aos professores Margarida Maria Lacombe Camargo e José Ribas Vieira meu

agradecimento muito especial. Sempre muito gentis, demonstrarem sincero entusiasmo com

meu trabalho, desde os tempos de Jornadas de Iniciação Científica. O incentivo deles, com

certeza, também me trouxe até aqui.

Sou grata também ao querido professor Luiz Eduardo Figueira, por sua dedicação,

interesse e, é claro, por sua bem-humorada forma de ser, o que sempre possibilitou momentos

de muita descontração quando a tensão e o cansaço ameaçavam instalar-se.

É mais do que necessário registrar meu apreço aos funcionários da secretaria de Pós-

graduação, em especial ao Renato Martins e Silva, por sua incansável solicitude.

Aos colegas do Grupo de Pesquisa Direito e Cinema, Eric Santos Lima e Carolina

Genovêz Parreira – jovens e promissores pesquisadores – agradeço a oportunidade de

exercitar ricas horas de orientação de estudos. Meu agradecimento muitíssimo especial a

Felipe Chaves Pereira, companheiro constante nas incontáveis horas de estudos luhmannianos

e, principalmente, nas horas de aflições e incertezas. Carinho eterno, meu grande amigo.

E por fim, meu agradecimento a FAPERJ – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo

à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, pela concessão de bolsa de Mestrado Emergente

durante o período de 10/2009 a 02/2011. Sem esse suporte minhas atividades acadêmicas

seriam impossíveis.

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Si se quiere hacer justicia a la realidad social no debe prescindirse del hecho de que todas las formas de sentido ahí empleadas tienen un lado opuesto que incluye lo que – a en el momento de ser utilizadas – se excluye.

Niklas Luhmann (La sociedad de la sociedad, p.23)

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RESUMO

Essa dissertação está inserta nas atividades do Grupo de Pesquisa Direito e Cinema da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi elaborada desde dois propósitos mais gerais, e fundamentais. Um, de caráter epistêmico: refletir sobre elementos da Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann, e daí indicar a possibilidade de se conhecer sociologicamente o direito desde formas teóricas ainda pouco usuais. Para alcançar tal intento se faz uma breve apresentação de conceitos cruciais à teoria dos sistemas, cotejando-os com alguns similares produzidos por teorias sociais já consagradas, estabelecendo aproximações e distanciamentos. Outro propósito: considerar o acoplamento direito-cinema como uma das formas possíveis de se observar o direito, para então apontar prováveis ganhos teórico-práticos com essa forma específica de acoplamento direito-arte. Defende-se que a arte – e, portanto, o cinema – é capaz de oferecer ao direito a possibilidade de se observar, de aprender sobre si, vislumbrar seu sentido a partir de um ponto diferente de observação e descrição e, talvez, se transformar. Assim, o objetivo específico desse trabalho é explicitar a complexidade que envolve a observação do direito a partir do cinema descrevendo, sociologicamente, como se dá esse específico acoplamento desde uma obra cinematográfica particular, a saber, 5 x favela agora por nós mesmos. Cogita-se, ao escolher tal obra, que o cinema designado como “popular”, da “periferia” ou da “comunidade” ao tornar o direito tema implícito ou explícito de suas comunicações, tanto pode reproduzir sentidos já canonizados de direito quanto permitir a estabilização de certas descrições do direito – e, portanto sentidos de direito – ainda não amplamente generalizadas. Sendo a produção de sentido um evento, i.e, um fenômeno efêmero, só é possível “capturá-lo” no momento mesmo que acontece, que se constitui à observação. Acolhe-se, então, a indicação de Luhmann quando afirma ser o método fenomenológico – observação do mundo tal como ele aparece à observação – o mais apropriado à descrição sistêmica da sociedade.

Palavras-Chaves: sistema social, comunicação, acoplamento direito-cinema, sentido de direito, descrições sociais.

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ABSTRACT

This dissertation is inserted in the works of the Law and Cinema Research Group of the Law School of the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ). It has been elaborated from two more general and fundamental aims. One has an epistemic character: to reflect about elements of Niklas Luhmann’s Social Systems Theory and then to indicate de possibility of knowing law sociologically as from theoretical forms still a little unusual. To reach such intent, it is done a brief presentation of concepts that are crucial to the systems theory, confronting them with some similar systems produced by renowned social theories, establishing approximations and dissociations among them. Another purpose: to consider the law-cinema coupling as one of the possible ways to observe law, so then to point possible pratic-theoretical gains of this specific form of law-art coupling. It is defended that art – and, therefore, cinema – is capable of offering to the law the possibility of observing itself, of learning about itself, of descrying its meaning from a different point of observation and description and, maybe, of transforming itself. Thus, the specific aim of this work is to evidence the complexity that comprehend the observation of law as from cinema, describing, sociologically, how this specific coupling is constituted as of a particular movie: 5x favela agora por nós mesmos. It is considered, by choosing such cinematographic work, that when the cinema taken as “popular”, “marginal” or “local” makes law an implicit or explicit plot of its ways of communication, it can either reproduce the meanings of law already renowned or allow the stabilization of certain descriptions of law – and therefore, law meanings – still not widely generalized. Assuming the production of meaning as an event, that is, an ephemeral phenomenon, it is only possible to “capture” it in the very moment it happens, when it is constituted to observation. It is taken into account the indication of Luhmann when he affirms that the phenomenological method – the observation of the world as it displays to observation – is the most appropriate to the systemic description of society. Keywords: social system, communication, law-cinema coupling, meaning of law, social descriptions.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10

PARTE I. DIREITO E ARTE: UMA OBSERVAÇÃO SOCIOLÓGICA ...................... 23

Capítulo 1. SISTEMAS SOCIAIS E COMUNICAÇÃO ...................................................24

1.1 Por que uma abordagem sociológica sistêmica?........................................................... 24

1.2 Sistemas sociais e comunicação...................................................................................... 28

Capítulo 2. A PRODUÇÃO DE SENTIDO E A COMUNICAÇÃO ................................ 38

2.1 Sentido: produção e requisito de sistemas sociais ........................................................ 39

2.2 Sentido como meio e forma............................................................................................. 43

Capítulo 3. DIREITO E ARTE COMO SISTEMAS SOCIAIS ........................................ 49

3.1. Estabilizando expectativas normativas: comunicação jurídica.................................. 49

3.2 Observando o mundo no mundo: comunicação artística ............................................ 55

PARTE II. CONSTRUÇÃO DE SENTIDO DO DIREITO NO CINEM A ..................... 61

Capítulo 4. DIREITO-CINEMA. O QUE PODE RENDER ESSE ACOPLAMENTO? .62

4.1 Direito-cinema. O direito se reflete nas imagens-movimento...................................... 63

4.2 O acoplamento direito-cinema e a produção do direito ............................................... 69

Capítulo 5. SENTIDO DO DIREITO NO CINEMA “POPULAR” ................................ 76

5.1 Descrevendo a policontexturalidade: “comunidade” e cinema “popular” ............... 78

5.1.1 “Comunidade” ................................................................................................................ 78

5.1.2 Cinema “popular” ........................................................................................................... 84

5.2 Direito no cinema “popular”. Novo ou velho sentido de direito? ............................... 87

5.2.1 5 x favela agora por nos mesmos....................................................................................89

5.2.1.1 Por que agora por nós mesmos? Breve ensaio de memória .......................................89

5.2.1.2 Fonte de renda............................................................................................................. 95

5.2.1.3 Arroz com feijão........................................................................................................ 100

5.2.1.4 Concerto para violino................................................................................................ .106

5.2.1.5 Deixa voar................................................................................................................. 111

5.2.1.6 Acende a luz............................................................................................................... .115

5.2.2 O que 5 x favela agora por nós mesmo trouxe de diferente ......................................... 120

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. .126

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. .129

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INTRODUÇÃO

O trabalho ora apresentado se sustenta em dois propósitos mais gerais, e

fundamentais, os quais o inserem nas atividades precípuas do Grupo de Pesquisa Direito e

Cinema1 da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Um desses

propósitos, de caráter epistêmico, é refletir sobre elementos da Teoria dos Sistemas Sociais de

Niklas Luhmann e daí indicar a possibilidade de se conhecer o direito desde formas teóricas

ainda pouco usuais. O segundo propósito é mobilizar essa discussão teórica e refletir acerca

da aproximação direito e arte cinematográfica – cinema – como sendo uma das formas

possíveis de conhecer o direito, bem como apontar os possíveis ganhos teórico-práticos dessa

aproximação. Sem ter qualquer pretensão de estar “descobrindo a pólvora” ou “inventando a

roda” esse trabalho é, tão somente, tentativa de refletir sobre certa forma de construir

conhecimento acerca do direito, de observar o direito.

A aproximação direito e arte vem, há certo tempo, lançando raízes nos âmbitos da

prática, pesquisa e ensino jurídicos. No caso específico do cinema, este tem sido, já com certa

freqüência, mobilizado com fins jurídico-pedagógicos: filmes são tomados como “textos”

mais palatáveis, capazes de superar a aridez própria dos manuais jurídicos2. Esse filão, talvez

o mais corrente, é denominado na literatura concernente de law and film3 – numa alusão ao

1 O Grupo de Pesquisa Direito e Cinema, que surgiu em 2005 objetivando verificar possíveis relações entre direito e cinema, desenvolveu o projeto Representações do Direito sob a Ditadura no Cinema com o financiamento do CNPq e apoio do Max Planck Insititut für Europaische Rechstgeschichte (MPIER). Com registro no Diretório de Grupos de Pesquisa no Brasil, do CNPq, o Grupo filia-se à linha de pesquisa Sociedade, Direitos Humanos e Arte do Mestrado em Teorias Jurídicas Contemporâneas na FND da UFRJ. Com o aporte financeiro de diversas instituições – FUJB-BB, FAPERJ E CNPq – e em parceria com a Unb e a UFPR, foram realizados 05 Seminários Internacionais que, além de produzirem anais fílmicos (2006, 2007 e 2009), também se lançou, em 2009, o primeiro livro Construindo Memória. Seminários Direito e Cinema, com artigos e transcrições de palestras proferidas durante os seminários de 2006 e 2007. Cogita-se que, por ocasião do 6º Seminário Internacional Direito e Cinema: Visões da Igualdade, Liberdade e Fraternidade, a ser realizado em junho de 2011, seja lançado o segundo livro Construindo Memória II. Seminários Direito e Cinema referente aos seminários 2008 e 2009. 2 À guisa de exemplo vale destacar, dentre as inúmeras experiências em âmbito mundial – na Espanha, Inglaterra, Israel, Canadá, Brasil, Argentina e em incontáveis universidades dos EUA – aquela verificada no curso de bacharelado em Direito da UERJ, que incluiu em sua grade de eletivas a disciplina “Direito e Cinema”; também já bastante conhecida a experiência desenvolvida por Gabriel Lacerda no âmbito do curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas do RJ, da qual resultou a obra O direito no cinema. Rio de Janeiro: FGV, 2007. 3 Dentre os representantes dessa vertente cite-se: GREENFIELD, Steve; OSBORN, Guy. The living law: popular film as a legal text. 29. The Law Teacher 33, 1995. Disponível em: <http://www.blackwellsynergy.com /links/doi/10.1111/1467-6478.00174>. Acesso em: mar de 2006; CHASE, Anthony. Movies on trial: he legal system on the silver screen. New York: The New Press, 2002; KAMIR, Orit. Why law-and-film and what does it actually mean? A perspective. Continuum: Journal of Media and Cultural Studies, vol. 19, n. 2, pp. 255-278, 2005. University of Michigan. Disponível em <http://sitemaker.umich.edu/Orit_Kamir/files/law_filmfinal.pdf>. Acesso em: jan 2006.

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movimento law and literature 4, também bastante consolidado – e busca observar a forma

pela qual o direito aparece nas imagens fílmicas.

Ainda no âmbito das pesquisas jurídicas, vale fazer o registro da vertente law as film,

cujo escopo é buscar nas teorias sobre cinema – também com correlato na literatura5 – aportes

epistemológicos à produção de conhecimento do direito e do fazer jurídico. Desde esse viés,

tem-se o entendimento que a poética do cinema influencia os diversos âmbitos de produção de

sentidos sociais como a própria literatura, o teatro, a educação, a política, o direito, dentre

outros. A compreensão da poética jurídica – que sob essa perspectiva é, muito amiúde,

reduzida à dimensão legal do direito ou à prática de tribunal – passaria, necessariamente, pela

compreensão da poética cinematográfica6, identificando-se entre elas certa correlação

funcional: o direito cumpriria, em alguma medida, função estética; a estética uma certa função

normalizadora.

Também vale registrar pesquisas que, no campo da antropologia jurídica, tomam

filmes como suportes empíricos de investigações acerca da construção de uma cultura legal

popular. Nesses casos, filmes participariam diretamente na produção dessa cultura legal

popular e esta concorreria para a construção de teorias sociais do direito. Tratando o direito

como uma variável que depende da sociedade, tais teorias sociais jurídicas funcionam como

contraponto necessário às teorias legais que defendem a autonomia radical do direito frente à

sociedade.7

Tantas outras experiências poderiam ser aqui evocadas8, mas parece ser

suficientemente ilustrativo encerrar essas referências mencionando que vem sendo publicada,

nos últimos dez anos, na Espanha, a coleção Cine y Derecho, já com cerca de 40 títulos.

4 O movimento law and literature busca observar o modo através da qual o direito foi e é representado nos textos ficcionais da literatura. 5 Trata-se do movimento law as literature, do qual Ronald Dworkin é um dos maiores expoentes. Ao desenvolver seu conceito “romance em cadeia”, tomando com suporte a poética da produção literária, Ronald Dworkin sinaliza sua aproximação ao referido movimento. Cf. DWORKIN, Ronald. Integridade no Direito in: O Império do Direito . São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp.271-331. 6 ALMOG, Shulamit and AHARONSON, Ely. Law as Film: Representing Justice in the Age of Moving Images Canadian Journal of Law & Technology, v.3, n. 1, march 2004. Disponível em <http://cjlt.dal.ca/vol3_no1/index.html>. Acesso em: set 2005. Desde esse viés analítico vale citar, no Brasil, dentre várias obras da mesma autora: FRANÇA, Andréa. O cinema, seu duplo e o tribunal em cena. Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia, n. 36, agosto de 2008, pp. 91-97. Porto Alegre: PUCRS. Disponível em <http://revcom.portcom.intercom.org.br/ index.php/famecos/article/view/5476/4974>. Acesso em: jan 2009. 7 Como representante dessa vertente Cf. FRIEDMAN, Lawrence M. Law, lawyers, and popular culture. Yale Law Journal. v.98, n.8, 1989. Disponível em: <http://tarlton.law.utexas.edu/lpop/etext/friedman.htm>. Acesso em: jan 2006. 8 Um panorama de todas essas tendências analíticas pode ser verificado em: BELLEAU, Marie-Claire, BOUCHARD, Valérie, JOHNSON, Rebecca. Droit, cinema et doute: Rapport minoritaire. Lex Eletronica. Reveu du centre de recherche en droit public, v. 14, n.1, 2009. Disponível em <http://www.lex-electronica.org/ docs/articles_230.pdf>. Acesso em: dez 2010.

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Contando com a contribuição de renomados juristas como Robert Alexy9, a referida coleção

por si só corrobora a pertinência e atualidade da pesquisa ora apresentada.

Portanto, não é propriamente uma novidade propor uma pesquisa aproximando

direito e cinema. Mas então o que este trabalho tem a contribuir com um campo de produção

de conhecimento em franca consolidação?

Talvez a primeira contribuição a ser apontada deva ser a própria matriz teórica

adotada – a sociologia sistêmica tal como proposta por Niklas Luhmann. Entende-se, em

consonância com Luhmann, que a contemporaneidade tornou-se de tal forma complexa, que

as interpretações procedidas desde esquemas teóricos mais tradicionais mostram-se, hoje,

limitados em suas pretensões explicativas.

Contudo, tomar o paradigma da complexidade como fulcro de observações da

sociedade10 não é uma opção epistemológica exclusiva de Luhmann. Edgar Morin – indicado

por muitos como aquele que introduziu o paradigma da complexidade nos estudos sócio-

antropológicos – apontou como necessária à constituição de um pensamento complexo, capaz

de enfrentar uma realidade que se caracteriza por certas impossibilidades: encontrar certezas;

formular leis em uma ordem de mundo não mais concebida como absoluta; evitar as

contradições; observar o mundo de forma unidimensional; essas são algumas das

impossibilidades. Complexidade, afirma Morin, “(...) es, efectivamente, el tejido de eventos,

acciones, interacciones, retroacciones, determinaciones, azares, que constituyen nuestro

mundo fenoménico”.11

Com Morin, tem-se uma re-configuração de um projeto humanista, agora à luz do

entendimento de que o homem é parte constitutiva da realidade social ao mesmo tempo em

que é constituído por essa realidade, que é complexa, multifacetada, auto-constituída e que

9 Trata-se da obra: ALEXY, Robert; FIGUEROA, Alfonso García. Star Trek y los derechos humanos. Valencia: Tirant lo Blanch, 2007. Para inteirar-se de outros títulos da coleção Cine y Derecho conferir catálogo da editora em: http://www.tirant.com/index2?patron=0115&level=2&beg=0&step=10. 10 Acerca do tema complexidade veja-se, dentre outras, as obras de Niklas LUHMANN: Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983; idem, Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009a; idem, Complejidad y modernidad: de la unidad a la diferencia. Edicción y traducción de Josetxo Beriain y José María Garciá Blanco. Madrid: Trotta, 1998. Também os artigos de: NEVES, Clarissa Ercket Baeta; NEVES, Fabrício. O que há de complexo no mundo complexo. Sociologias. Porto Alegre, ano 8, nº 15, jan/jun 2006, pp. 182-207. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/soc/n15/a07v8n15.pdf>. Acesso em: jun 2007; RAIZA ANDRADE Y CADENAS, Evelin; PACHANO, Eduardo; PEREIRA, Luz Marina; TORRES, Aura. El paradigma complejo. Un cadáver exquisitio. Cinta de Moebio. Revista electronica de epistemologia de ciencias sociales, n. 26, 2006, pp.1-41, Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Chile. Disponível em <http://redalyc.uaemex.mx/pdf/ 101/10101407.pdf>. Acesso em: dez 2010; e ainda MORIN, Edgar. Introducción al pensamiento complejo. Barcelona: Gedisa 1997. 11 MORIN, Edgar. Op.cit, p.32.

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toma a si mesma como referência. Morin busca, então, desenvolver uma teoria, um

“pensamento complexo” que “(...) pueda resultarle conveniente al conocimiento del hombre.

Por lo tanto lo que se busca aqui es la unidad del hombre y, al mismo tiempo la teoria de la

más alta complejidad humana”.12 Nesse passo, compreender a sociedade é compreender a

complexidade humana e vice-versa.

Diversamente, a matriz teórica proposta por Luhmann não assume qualquer

compromisso com aquilo que se designou, tradicionalmente, projeto humanista13. Tal como

Morin, Luhmann busca proceder à construção de uma teoria complexa da sociedade

complexa, porém dele distancia-se ao afirmar que a sociedade não se explica pelos homens.

Luhmann então radicaliza o conceito de auto-referência da sociedade e dos homens, ao

deslocar cada um para fora do âmbito de constituição do outro.

Sociedade e homens constituem a si mesmos a partir de referências próprias – são

autopoiéticos –, e tais referências são construídas no ato mesmo de eles se constituírem como

sociedade e como homens, de se diferenciarem de tudo mais que está em seus entornos: não

são os homens em suas ações, interações, reflexões ou gostos que constroem a sociedade; nem

é a sociedade que, sendo construída e constituída por homens, os constroem. Por serem

sistemas autopoiéticos sociedade e homens, i.e, sistemas sociais e sistemas psíquicos não se

determinam mutuamente. Contudo, são imprescindíveis um ao outro e, portanto, se acoplam,

operando certas conexões modeladas por auto-referências, o que lhes permite “aprender” com

o entorno – hetero-referência.

O operar de sistemas sociais e psíquicos é, desde essa matriz teórica, observação. A

observação nos sistemas psíquicos ou sistemas de consciência realiza pensamentos, enquanto

que nos sistemas sociais, comunicações. Mas como toda observação tem um ponto cego que

só pode ser observado por um observador que observa a observação, sistemas sociais e

homens são sistemas cibernéticos, são capazes de observar as observações uns dos outros,

proceder às observações de segunda ordem o que produz, ainda e sempre, mais complexidade

12 MORIN, Edgar. Introducción al pensamiento complejo. Barcelona: Gedisa 1997, p.39. 13 A crítica mais recorrente a Luhmann, e que lhe rende o epíteto de anti-humanista, deve-se principalmente a sua posição totalmente cética quanto ao caráter emancipacionista de que se reveste a tradição teórica herdeira do humanismo das Luzes. Considerando-a totalmente desajustada à realidade complexa da sociedade moderna, propõe um rompimento com essa tradição que coloca os sujeitos na centralidade dos processos de construção e conhecimento da sociedade, para aí colocar a própria sociedade, autônoma em suas operações constitutivas, auto-constitutiva, portanto, operações de comunicação. A sociedade é um sistema autopoiético e auto-referente de comunicações e, desde esse viés, não mais poderá ser explicada por ações e agenciamentos humanos, pois os homens não podem mais ser entendidos como elementos constitutivos da sociedade, mas seu ambiente.

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na complexidade, pois sempre traz à luz possibilidades não vislumbradas na observação de

primeira ordem.

Radicalizando a Teoria dos Sistemas Sociais com os conceitos de autopoiese e de

observação cibernética, Luhmann defende que o modo mais criativo de se descrever a

sociabilidade, o fluxo das comunicações na contemporaneidade da sociedade moderna é

assumir a complexidade como um horizonte de infinitas possibilidades de experiências

preceptivas e cognitivas (dos sistemas psíquicos), e também comunicativas (dos sistemas

sociais), frente as quais observações (seleções) são sempre exigíveis sob pena de tornar

inviável qualquer pensamento e qualquer comunicação. Observar é, portanto, forma que torna

possível operacionalizar a complexidade, reduzindo-a a cada seleção do sistema, ampliando-a

a cada redução. E a Teoria dos Sistemas Sociais, como qualquer teoria, é também uma forma

de observação de observações e deve assumir isso ao operar.

Observar é selecionar, e seleções sempre podem afrontar outras seleções, sempre

podem resultar em algo totalmente diverso daquilo que é esperado, trazendo sempre implícito

o perigo das frustrações, e a possibilidade de danos futuros, incorrendo em riscos. Uma tal

possibilidade de riscos e frustrações indica, sobremaneira, o caráter contingente da

sociabilidade na contemporaneidade 14, sua complexidade, portanto.

Ao tomar complexidade e contingência não só como categorias explicativas da

realidade social moderna, mas como características dessa realidade, Luhmann aponta para a

existência de uma superabundância de elementos indeterminados e de infinitas possibilidades

relacionais entre eles, o que permitiria atualizá-los, selecioná-los e alçá-los assim da condição

de possibilidade – realidade ainda indiscernível, uma potencialidade – à condição de realidade

– uma possibilidade atualizada –, criando mais complexidade e mais possibilidades.

Está-se, pois, frente a um horizonte de contingências e riscos decorrentes da

avassaladora capacidade da sociedade moderna de, ao reproduzir-se, produzir sempre e cada

vez mais complexidade, de produzir sempre mais diferenciações para fazer frente a essa

crescente complexidade. A sociedade moderna é um paradoxo muitíssimo criativo.

Sob essa ótica, tem-se que lidar com uma realidade cujas características inviabilizam,

como já de certa forma mencionado, o potencial descritivo e analítico das teorias sociológicas

14 Cf. LUHMANN, Niklas. A improbabilidade da comunicação. Tradução de Anabela Carvalho. 4ed, Lisboa: Vega, 2006a; idem, Sociologia del riesgo. Traducción de Sylvia Pappe y Brunhilde Erker. 3ed. México: Universidad Iberoamericana; Tlaquepaque: ITESO, 2006b; também DE GIORGI, Rafaelle. Direito, democracia e risco. Vínculos com o futuro. Porto Alegre: SAFE, 1998.

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tomadas como clássicas. E a referida inviabilidade decorre do fato, dentre outros, de tais

teorias firmarem suas proposições quer na pretensa centralidade ocupada pelo indivíduo no

processo de construção da sociedade, quer na sobrevaloração explicativa de algum dos

elementos constitutivos da sociedade em detrimento de outros, como por exemplo, a

excessiva valoração da economia, ou da política, ou do direito, ou da moral.

As teorias clássicas possibilitariam a redundância necessária à reprodução do

subsistema das ciências sociais e a produção de atualizações, sempre com novas colorações e

nuances, mas sem possibilitar a produção de diferenças que realmente possam produzir

diferenças estruturais no sistema das ciências sociais. Seriam, portanto, formas descritivas

generalizadas. A generalização de certas formas descritivas, ou semânticas, tende a adensar o

ponto cego de toda observação possibilitada pelas formas, isso pelo simples fato de tais

semânticas se constituírem auto-referências da observação, aquilo que cria uma redundância

necessária a todo observar, ainda que sejam verificáveis variações, distintas “colorações” ao

longo de sua mobilização recursiva. As variações da forma, permitidas pela forma, devem ser

entendidas como decorrências das diferenças introduzidas pelo sistema desde a sua

sensibilização face ao ambiente. Variações são decorrências de hetero-referências que toda

forma admite e das quais não pode prescindir, vez que a atualização de seus elementos

constitutivos decorre dessa abertura cognitiva ao ambiente.

A sociologia luhmanniana indica, portanto, que o afastamento dos esquemas teóricos

reducionistas, esquemas estabilizados e generalizados, poderia trazer um ganho teórico

promissor. Os paradoxos deixariam de ser descritos como problemas engendrados na teoria,

para serem entendidos como operações constitutivas da própria realidade social, devendo ser

enfrentados enquanto tais. Face às argumentações de caráter humanistas o argumento

contrário de que a sociedade só é conhecível desde a sociedade, i.e, desde suas operações de

autoconstituição, suas comunicações. Contra a sobrevaloração de um único elemento

explicativo, o fato inequívoco de que ao observar-se a contemporaneidade da sociedade

moderna não é possível indicar um único centro responsável pela produção de sentido

comunicativo. A sociedade não pode mais ser entendida como uma construção de sujeitos,

posto que estes são o ambiente da sociedade e vice-versa. A observação não é uma

prerrogativa de sujeitos, sendo também operação da sociedade e de seus sistemas sociais

constitutivos.

Face à matriz sociológica adotada o desafio de fundo dessa pesquisa é: como

observar o direito no marco de uma sociedade complexa, assumindo a complexidade como

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paradigma para toda observação? Observar o direito desde o paradigma da complexidade tem

por suposto enfrentar o problema de sua hetero-referência. Isso implica em saber como é

possível autopoiese sem autarquia? Ou em outros termos: de que modo o sistema jurídico se

conecta ao seu entorno para dele, a cada momento, se distinguir?

Uma segunda contribuição derivada da primeira pode ser atribuída a esse trabalho.

A arte, como também a sociologia – e todos os demais âmbitos sociais enquanto produtores

de sentido – ao observarem o direito constituem um horizonte de possibilidade de produção

de direito. Não se objetiva, aqui, tomar filmes como manuais menos áridos de direito.

Também não se busca subsídio em outras disciplinas, no caso a estética, para melhor

compreender o direito; não se trata de um esforço de entendimento do direito por via da

interdisciplinaridade, embora esta não esteja afastada do propósito dessa pesquisa. Assumindo

uma diretriz teórica de base sistêmica, o que importa é observar o direito como sistema social

desde um observador que o observa de fora, para aferir a hipótese que de uma tal forma de

observação do direito é possível produzir direito.

Observar como se realiza o acoplamento direito-cinema pode ser indicado como uma

terceira contribuição desse trabalho. Busca-se não somente identificar os ganhos operativos de

ambos os sistemas envolvidos, mas indicar como opera o acoplamento entre ambos, vez que é

possível se verificar que as aproximações direito-cinema, por sua generalização, tende a certa

naturalização, não suscitando grandes reflexões e descrições acerca do que está ocorrendo, e

como. Nos termos de uma análise sociológica sistêmica, pode-se mesmo dizer que o

acoplamento já se tornou de tal forma redundante, que as operações procedidas para a

realização dessa aproximação se tornaram imperceptíveis aos observadores, um ponto cego da

observação. A pesquisa aqui proposta se impõem também, como uma observação de segunda

ordem, um esforço de explicitar a complexidade que envolve a observação do direito desde o

cinema, esforço em descrever, sociologicamente, como se dá o específico acoplamento

direito-cinema.

Partiu-se do suposto que a contemporaneidade se caracteriza por uma sociabilidade

constituída e constituinte de comunicações que se generalizam na forma de imagens, uma

sociabilidade imagética.15 E, para corroborar tal hipótese, basta evocar a profusão de imagens

– em movimento ou não – com a qual se está em contato cotidianamente. Imagens 15 A idéia de se viver, na contemporaneidade, uma sociabilidade imagética encontra-se desenvolvida em PIRES, Nádia. A imagem do direito e a imagem como direito na sociabilidade contemporânea. Esboço para uma observação sociológica desde a matriz sistêmica de Niklas Luhmann. Trabalho de conclusão de curso apresentado a FND da UFRJ, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Profa. Dra. Juliana Neuenschwander Magalhães. Dez/2008.

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fotográficas, de satélites, de televisão, cinema, internet, e outras, disponibilizadas a todo

instante, tornando sempre mais céleres os fluxos comunicativos entre os cada vez mais

diversificados âmbitos de sociabilidade. Sendo certo que os meios de difusão fazem circular

comunicações – possíveis informações – na forma de imagens, é certo também que os

diferentes media, visuais ou sonoros, se acoplam por intermédio de imagens, criando uma

tendência de o sistema dos meios de comunicação operar sua reflexividade, se auto-

observarem, por imagens.

Nesse passo verifica-se, cada vez mais, que revistas ganham um reforço imagético e

de comercialização, e ampliam assim seu âmbito de difusão, quando suas matérias se tornam

pauta de uma transmissão televisiva. Uma reportagem da Revista Época se tornará

informação, com massivo grau de generalização, quando transformada em pauta de um

noticiário de televisão e ali repercutida por alguns dias. Por sua vez, programas de rádio

lograrão maior difusão ao produzirem e reproduzirem sua programação na internet – a estação

de rádio local pode agora ser mundialmente vista. É preferencialmente na forma de imagens

que os meios da comunicação tornam-se temas da comunicação. Em ambas as situações têm-

se, simultaneamente, imagens concorrendo tanto à aceleração da difusão quanto à redefinição

da forma comunicativa de determinados meios de comunicação. Em ambas as situações têm-

se, de forma inequívoca, que o sistema de meios de comunicação se deixam irritar por

demandas de imagens disponibilizadas no ambiente, na sociedade e nos sistemas de

consciência.

Imagens difundem e vinculam informações; informações assumem a forma de

imagens; imagens difundem e vinculam imagens, e toda essa superabundância visual

redimensiona a percepção visual já potencializada, outrora pela leitura do texto impresso.

Imersa em um ambiente de incontáveis formas imagéticas, a visualidade exacerba-se mais e

mais na contemporaneidade da sociedade moderna. Redutoras e produtoras de complexidades,

imagens parece que são, elas mesmas, meio e forma da comunicação. E uma tal visualidade,

tornada forma comunicativa dos próprios meios de comunicação, importa em um altíssimo

grau de reflexividade dessa sociedade que deliberadamente se expõem, ao tornar cada vez

mais observável suas diferenças, sua pluralidade, seus paradoxos.

Toda essa exposição permite que se vislumbre o caráter discrepante das idéias de

consenso, progresso, universalidade do direito, finalidades últimas, e demais semânticas que

vagueiam por aí tal como aquele dinossauro que desperta e perambula toda noite por um

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museu. Todas elas sobrevivências fósseis. Frente a toda essa reflexividade e reflexão que

trazem as imagens não poderia ficar indiferente o vetusto, e quase jurássico, sistema jurídico.

Para ilustrar a sensibilização imagética por que passa o direito, pode-se aqui evocar

o exemplo do Supremo Tribunal Federal brasileiro que incorporou, a seus procedimentos

rotineiros, tecnologias imagéticas de comunicação. Notório também o fato de transmitir ao

vivo, por um canal de televisão por assinatura, seus julgamentos em plenário. Igualmente

ilustrativo é o uso, sempre crescente, de recursos audiovisuais na construção de teses, tanto de

defesa quanto de acusação, em julgamentos no Tribunal do Júri. No Rio de Janeiro os casos

do “ônibus 174” e da “Rua Bambina”,16 difundidos e repercutidos pelos mass media, tiveram

suas imagens levadas aos plenários do tribunal. Em ambos os julgamentos as imagens

apresentadas assumiram a forma de sentidos reconhecidos e amplamente aceitos pela

sociedade, constituindo uma semântica imagética mobilizada na construção da “verdade

jurídica”, i.e, da produção de certa informação exigível em toda comunicação jurídica desse

tipo.

Todos esses exemplos corroboram a escolha que se fez, no âmbito desse trabalho,

por observar-se o acoplamento entre o direito e uma arte imagética ao invés da literatura ou

do teatro, artes textuais já tão próximas ao mundo jurídico. A opção por uma arte imagética

deve-se, primeiramente, à percepção que imagens mecanicamente reproduzidas estão

presentes, maciçamente, nos diversos âmbitos da sociedade contemporânea. E, em meio a

enorme profusão de imagens, as imagens em movimento – televisão, cinema, vídeo –

assomam como aquelas que, de certo modo tendencial, são atualizadas enquanto meio/forma17

preferencial da comunicação e da difusão da comunicação. A arte a ser considerada, então, só

poderia ser o cinema, a arte das imagens-movimento como bem definiu Gilles Deleuze.18

Erigiu-se, então, a hipótese geral: a arte cinematográfica ofereceria ao direito àqueles

sentidos de direito constituídos no mundo, dando ao direito a possibilidade de se sensibilizar

16 Acerca do caso do “ônibus 174” Cf. FIGUEIRA, Luiz Eduardo. O ritual judiciário do Tribunal do Júri . Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008; sobre o caso da “Rua Bambina”, PIRES, Nádia; PINHEIRO, Eliane. “Crime e castigo”: por uma breve incursão etnográfica no palco do III Tribunal do Júri do Rio de Janeiro. Trabalho apresentado como requisito parcial à disciplina Antropologia Jurídica do curso de Graduação da Faculdade de Direito da UFRJ. Nov 2007. 17 Os conceitos meio e forma serão aprofundados posteriormente. Contudo vale antecipar: por meio se designa elementos que ligados frouxamente possibilitam que formas se distingam, se constituam. Desde o ponto de vista da forma, meio é complexidade fluida; o ambiente de um sistema é meio. Por forma se designa o estabelecimento de relações mais restritamente articuladas entre elementos sendo, portanto, complexidade organizada; o sistema é forma. 18 DELEUZE, Gilles. A imagem movimento. Cinema 1. Tradução Rafael Godinho. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004.

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por esses sentidos e de transformá-los em sentidos generalizados de direito, em informação

jurídica e, portanto, constituídos enquanto direito. Nesse passo buscar-se-ia indicar e

descrever modos de produção do sentido de direito dentro e fora do direito. Mas como buscar

sentido jurídico fora do âmbito jurídico?

A sociedade contemporânea e seus sistemas sociais constitutivos – funcionais,

relacionais e organizacionais – produzem comunicações e tecem uma tessitura social que

oferta um excedente de sentidos. Cada forma social, comunicativa, é forma de

inclusão/exclusão de sentidos; e cada elemento constitutivo dessa forma admite múltiplas

observações e auto-observações: não há uma única forma de observar e de se auto-observar,

de produzir sentido.

Segundo Luhmann, “(...) la utilización del sentido en los sistemas sociales siempre

lleva aparejadas referencias a lo desconocido, a lo excluído, a lo indeterminado, a las

carências de información, a la ignorancia.”19 Significa que toda observação é uma forma de

inclusão/exclusão, e isso traz pressuposto que a inclusão de uma coisa exclui outra, ao mesmo

tempo em que indica que o excluído está incluído na distinção, no outro lado da forma e que,

portanto, ambos os lados da forma, do sistema que eles constituem, são constituídos pela

operação de observação do sistema. Desse modo, defende Luhmann, um sistema social, e

também a sociedade como sistema inclusivo de todos os sistemas sociais, “(...) puede

observarse a si mismo simultânea ou sucessivamente de maneras muy diversas – diríamos

que ‘policontexturales’,”20 mesmo que cada observação rechace ou mesmo desconheça as

demais.

Desdobrando-se da hipótese mais abrangente, trabalha-se com a idéia que o cinema

designado aqui como “popular”,21 ao tornar o direito tema implícito ou explícito de suas

comunicações, pode permitir a estabilização de certos sentidos de direito ainda não

amplamente generalizados, sentidos que ao sensibilizar o direito podem por ele ser

transformados em estruturas normativas. Nesse passo, busca-se como suporte empírico às

reflexões obras cinematográficas que, além de terem a “comunidade”, a favela, a “periferia”

19 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Taducción de Javier Torres Nafarrate. México: Heder; México: Universidad Iberoamericana, 2007a, p.22. 20 Ibdem, p.62. 21 Por falta de uma terminologia mais precisa, designa-se por cinema “popular” aquele produzido por segmentos populacionais indicados como moradores de “periferia”, de favela, de “comunidade”. A intenção é destacar que os artistas e os temas comunicativos postos em foco são percebidos como oriundos desses segmentos populacionais descritos e que descrevem a si mesmos como “comunidades”. Suas produções são patrocinadas e difundidas por ONGs tais como a CUFA – Central Única das Favelas, Observatório de Favelas, Nós do Morro, dentre outras que atuam em espaços reconhecidos como espaços de exclusão.

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como tema, são produzidas por artistas oriundos desses âmbitos sociais. E um tal recorte se

deve, sobretudo, à compreensão de que as referidas obras de arte podem fazer aparecer à

observação tanto sentido de direito que é mera reprodução daquele já generalizado e

estabilizado, quanto trazer inovações por estar do lado negativo da forma sentido/não-sentido,

sendo sentido excluído e, portanto, ainda tomado como não-sentido ou sem-sentido,

constitutivo assim do horizonte indiscernível do direito, um horizonte de possibilidades. O

filme escolhido e mobilizado para tal propósito é o 5 x favela agora por nós mesmos,22

sensação do cinema brasileiro no Festival de Cannes de 2010 .

É possível objetar-se que uma pesquisa nos moldes convencionais poderia

igualmente apontar esses novos sentidos, caso existam. Qual o ganho de se fazer uma

observação desde outra observação? Qual o ganho de se observar sentido de direito desde a

arte?

Dentre todos os sistemas cibernéticos, talvez a arte seja o mais radical observador de

observações. Pode-se mesmo dizer que sua função precípua é apontar a cegueira de toda a

observação. O que isso significa? A arte permite a todo observador acessar seu horizonte

indiscernível de sentidos, um horizonte de possibilidades de sentidos, de potencialidades. À

arte é possível transformar em tema da comunicação todas as coisas do mundo e, essa que é

sua forma própria de operar, radicaliza ao fazer passar por mundo aquilo que ela constrói, o

mundo fictício. Mas, ainda que sob a forma ficcional, a realidade do mundo construída pela

arte é realidade e mundo, constitui o mundo, vez que só é possível no mundo. A arte, assim,

permite que o mundo se observe ao constituir-se no mundo. E faz isso atingindo, antes de

tudo, a sensibilidade, a imaginação criando assim condições de possibilidade para novas

formas de descrição da sociedade, referências mobilizadas na auto-constituição da sociedade.

Com isso em vista, o desafio aqui foi observar o direito desde uma observação

sociológica acerca do enlace entre esses dois âmbitos sociais, direito e arte, tendo sempre à

vista que não há possibilidade de se produzir uma única verdade acerca desses âmbitos; e

mais, que o resultado desses enlaces – ou acoplamentos, numa terminologia mais

luhmanniana – são os próprios âmbitos que, observados, também se observam e fazem

escolhas e se re-configuram em decorrência deles. Tais acoplamentos possibilitam que ambos,

direito e arte, tomem como referências elementos externos que, de outra forma, poderiam não

sensibilizá-los.

22 5 X FAVELA AGORA POR NÓS MESMOS. Wagner Novais, Rodrigo Felha, Cacau Amaral, Luciano Vidigal, Cadu Barcellos, Luciana Bezerra, Manaíra Carneiro. Brasil, 103 min, 2010.

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As matrizes sociológicas já consolidadas possibilitam observações desde as já

redundantes distinções semânticas teoria/prática, conhecer/fazer, pares de conceitos que se

mostram menos capazes de estabelecer correlações com as materialidades por eles descritas,

ainda que essa seja a pretensão. Hoje, talvez mais do que antes, é extremamente difícil

estabelecer e sustentar rígidas linhas divisórias entre o que é teórico e o que é prático quando

se tem o entendimento que teoria e prática são lados de uma mesma forma. A mobilização dos

referidos conceitos oculta então, a unidade que a distinção por eles procedida tenta desfazer,

porque paradoxal. O conhecido bordão “na prática a teoria é outra” promove o ocultamento

do paradoxo da unidade da diferença que a distinção teoria/prática constituem, lados distintos

de uma mesma forma.

Observando como opera essa forma canônica de observar, tem-se que a atualização

desses pares conceituais torna-os, de certa forma, “conceitos fósseis”,23 presentes no presente,

mas referidos a um passado teórico que no presente se quer configurador, determinante

mesmo, de conhecimento construído no presente e no futuro; uma semântica que ao vincular

passado, presente e futuro esconde a inevitabilidade da contingência do presente de todo

passado, de todo presente, de todo futuro. Assim, buscou-se observar a construção de sentidos

de direito fora do direito descrito como âmbito jurídico oficial; buscou-se por uma forma não

standard de produção do direito.

Após essa introdução, a presente dissertação organiza-se em duas partes. A primeira

delas traz o título DIREITO E ARTE: UM ESTUDO SOCIOLÓGICO . Composta de três

capítulos tem por objetivo apresentar os marcos teóricos mobilizados ao longo de todo o

trabalho. O capítulo um é SISTEMAS SOCIAIS E COMUNICAÇÃO, cujo escopo é fazer

breve apresentação acerca da opção pela Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann

como referencial teórico, bem como introduzir dois conceitos basilares aqui mobilizados, a

saber, sistema social e comunicação.

A PRODUÇÃO DE SENTIDO E A COMUNICAÇÃO é título do segundo

capítulo. Nele ressalta-se que sistemas de comunicação têm como condição de possibilidade a

existência de um meio de sentidos desde o qual possam, por si mesmos, constituir-se, ao

mesmo tempo em que produzem mais sentidos. 23 “Conceito fóssil” é terminologia que Juliana Neuenschwander Magalhães, seguindo Reinhart Koselleck, mobiliza em sua tese de doutoramento intitulada: A formação do conceito de direitos humanos, defendida na Università del Sarlento, Lecce, Itália. Cópia eletrônica gentilmente cedida pela autora (inédito). Também Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

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22

Por fim, no terceiro capítulo, DIREITO E ARTE COMO SISTEMAS SOCIAIS ,

se indica e descreve tais sistemas da comunicação – direito e arte – e suas respectivas funções

sociais, quais sejam, estabilizar expectativas normativas e permitir a observação do mundo no

mundo.

Intitulada A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO DO DIREITO NO CINEMA , a

segunda parte desse trabalho traz desenvolvimento de dois capítulos. No capítulo de número

quatro, busca-se discutir o modo pelo qual o direito, deixando-se sensibilizar pela arte, pode

observar a policontexturalidade e refletir sobre si mesmo desde as imagens que, construídas

pelo cinema, permitem vislumbrar outras formas de se descrever o direito, e como essa

reflexão pode ser internalizada pelo direito, passando a integrar suas operações de produção

de direito. Seu título: DIREITO-CINEMA. O QUE PODE RENDER ESSE

ACOPLAMENTO?

SENTIDO DO DIREITO NO CINEMA “POPULAR”, quinto e último capítulo

dessa dissertação, é a tentativa de um exercício de observação de como distinções e

acoplamentos são possíveis. Observa-se, primeiramente, como os conceitos de “comunidade”

e cinema “popular” são produzidos, mobilizados e re-significados para descrever certos

contextos – a favela – e suas produções comunicativas – o cinema “popular”. Tomando-se

como objeto de observação o já referido filme 5 x favela agora por nos mesmos, o capítulo

analisa cada um dos cinco episódios que constitui essa obra cinematográfica para indicar, em

cada um deles, como sentidos de direito podem ser vislumbrados nesse contexto social – a

favela – , e daí apontar para as possíveis aproximações ou distanciamentos de tais sentidos

face aquele canonizado, mais generalizado. Em outros termos, a observação do filme

possibilita o vislumbre de um horizonte de sentidos jurídicos desde o qual certos sentidos se

atualizam e outros tantos se mantêm tão somente como potencialidades.

A proposta de pesquisa visou, modestamente, produzir uma diferença na forma de

observar o direito sem, obviamente, pretender ter o condão de superar toda a limitação, toda a

cegueira de um modelo generalizado do qual ela mesma, a pesquisa, traça sua distinção ao

indicar como sentidos-guias aqueles constitutivos de um referencial pouco convencional. A

diferença introduzida pela forma de observar aqui proposta certamente produziu novo tipo de

cegueira; e esse é fenômeno comunicativo que não pode ser afastado.

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PARTE I

DIREITO E ARTE: UMA OBSERVAÇÃO SOCIOLÓGICA.

El camino que conduce hacia lo concreto exíge desviarse hacia la abstracción.

Niklas Luhmann (El amor como pasión, p.25)

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Capítulo 1

SISTEMAS SOCIAIS E COMUNICAÇÃO

A proposta de reflexão dessa dissertação tem como ponto de partida o entendimento

que direito e a arte são formas da comunicação e, portanto, sistemas sociais operacionalmente

cerrados e cognitivamente abertos. Trata-se, desse modo, de uma reflexão sociológica de base

sistêmica.

Fazendo breves cotejos com outras teorias que trazem como temas a comunicação, o

direito e a arte, este capítulo organiza-se em 4 itens, e tem por escopo introduzir alguns

conceitos da Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann, chaves que permitirão

descrever possíveis relações direito-arte.

Por que uma abordagem sociológica sistêmica? Esse primeiro item discorre sobre

a opção teórica desse trabalho, apresentando sumariamente a Teoria dos Sistemas Sociais tal

como concebida por Niklas Luhmann. Em Sistemas sociais e comunicação, descreve-se os

conceitos sistema social e comunicação tal como entendidos na referida matriz teórica,

cotejando-a brevemente com outras teorias que trazem esses mesmos conceitos em suas

reflexões.

1.1 Por que uma abordagem sociológica sistêmica?

Ao se propor no âmbito desse trabalho um estudo sociológico sistêmico opta-se por

uma matriz teórica que se diferencia de outras por tomar o conceito sistema como central em

sua construção, sua marca distintiva. E de pronto uma questão se põe: a teoria sistêmica já não

é um clássico no âmbito das ciências sociais? Há algum ganho diferencial em se optar por

fazer uma abordagem sistêmica? O que há de novo na velha abordagem sistêmica?

Sabe-se que toda marca distintiva por ser relativamente estável, por tornar-se

recursivamente mobilizável, assume um caráter tautológico que possibilita sua naturalização,

tirando-lhe de vista a seleção que a constituiu como marca. Um breve relato histórico talvez

ilustre, razoavelmente, esse fenômeno de ocultação da seletividade e naturalização de toda

seleção.

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Quando combatentes na campanha contra Antonio Conselheiro retornaram ao Rio de

Janeiro, passaram a ocupar o morro da Providência chamando-o de morro da Favela em clara

alusão a serra da Favela, situada no sertão baiano, e coberta de arbusto do mesmo nome. Lá,

na serra baiana, os seguidores de Conselheiro se concentravam; lá muitos combatentes

constituíram família. Contudo, o substantivo próprio passou, no Rio de Janeiro do início do

século XX, a adjetivar um morro específico por razões específicas. De lá para cá, o termo foi

re-significado, re-substantivado e generalizando como designativo de qualquer morro

ocupado por habitações improvisadas e precárias.

Assim, as sucessivas seleções se ocultaram e, Favela passou a ser favela porque

assim sempre foi, não se fazendo qualquer distinção semântica entre ambos os sentidos.24 A

memória social – entendida aqui como operação de distinção, correlata as demais operações

dos sistemas, que permite a estes reproduzirem continuamente a diferenciação entre o

recordar e o esquecer25 – funcionou como uma expressão redutora das operações seletivas,

possibilitando a recursividade das operações ao mitigar tanto a necessidade de elaboração de

novas informações quanto o esforço da memória individual em operar suas seleções. Todo

morro é agora favela, e vice-versa. Não há muito mais a se dizer desde essa perspectiva.

Inventou-se, no presente, a favela e a memória sobre ela, passando-se a operar tal memória

para se proceder sempre mais distinções sempre a ela referidas.

O processo de ocultação da seletividade que está por trás de toda descrição e,

portanto, de toda memória social não difere de quando se observa a constituição e atualização

de conceitos científicos, quando se tem em mira, por exemplo, o conceito sistema, tão

amplamente utilizado e duramente criticado, mormente por aquelas ciências sociais

produzidas nas décadas de sessenta e setenta do século passado. Hoje, certa significação

atribuída a esse conceito estabilizou-se e generalizou-se, i.e, foi naturalizada. E a definição

canonizada de sistema é aquela que o entende como sendo chave de uma teoria funcional,

epíteto quase sempre utilizado quando se quer atribuir uma carga negativa a uma construção

teórica. Designar uma teoria de funcional significa atribuir-lhe uma carga reacionária. Uma tal

24 Sobre a construção do conceito favela na memória social ver ao menos duas interessantes obras: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (orgs). Um século de Favela. 5ed, Rio de janeiro: FGV, 2006; VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela. Do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005. 25 DE GIORGI, Raffaele. Direito, tempo e memória. Tradução de Guilherme Leite Gonçalves. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 58-59. Ainda sobre memória social, Cf. ESPOSITO, Elena. La memoria sociale. Mezzi per comunicare e modi di dimenticare. Roma: Laterza, 2001.

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teoria estaria preocupada com a manutenção do status quo e não com a transformação das

estruturas sociais opressivas; o funcional não se interessaria pela mudança, portanto.

Estabilização e generalização de determinada forma descritiva traduz redução da

capacidade reflexiva e inovadora da descrição, pois, ao reentrar no sistema que descreve

possibilita a produção de diferença na diferença, de sutilezas nas diferenças que descreve,

contudo, não diferenças radicalmente diferentes. Produz, portanto, modificação ao invés de

transformação já que, como diria Hans-Georg Gadamer, modificação “(...) sempre sugere que

aquilo que se modifica permanece e continua sendo o mesmo (...). Transformação, ao

contrário, significa que algo se torna uma outra coisa, de uma só vez e como um todo (...)”.26

Ao generalizar-se uma certa definição de sistema, colocou-se o conceito em um rol

de antípodas à Teoria Crítica, sendo esta entendida como aquele conjunto de propostas

teóricas indicadas como sendo mais comprometidas com a transformação social e com o

conflito como fonte geradora da transformação. Um antípoda deve ser mobilizado para ser

contraditado e, assim, realizar a função de contraponto necessário – referência às avessas,

negativa, o lado negativo de uma distinção – à consolidação de teses que se lhes apresentam

como antagônicas. As teorias que se querem críticas devem descrever-se como

antifuncionalistas, anti-sistêmicas, antievolucionistas.

Optar por uma abordagem sistêmica, ou falar em função no âmbito das ciências

sociais é, ainda hoje, desconfortável mesmo que, paradoxalmente, a expectativa de

transformação e emancipação que as ditas teorias críticas trazem resultem – ainda na esteira

de Gadamer – tão somente em mudança, nuances de uma cor já conhecida.

A descrição negativa do conceito sistema – e também do conceito função – funciona

como um imunizador às teorias generalizadas e estabilizadas como referenciais necessários a

toda produção em ciências sociais. A descrição canonizada do conceito mantém ao largo, em

um horizonte indiscernível, outras possibilidades de significação, de re-significação do

conceito, outras descrições enfim. Cabe então perguntar: o que se oculta por trás do clássico

conceito de sistema? O que há no seu horizonte de possíveis? Como poderá ser atualizado e

com que ganho?

A proposta aqui é cruzar de um lado para outro da distinção que a descrição

estabilizada estabelece, ir daquilo que é canonizado para o que ainda é uma possibilidade

teórica, atualizá-la e torná-la criativa, tentando assim retirar a imunidade dos cânones e,

26 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flavio Paulo Meurer. 10 ed, Petrópolis: Vozes, 2008, p.166.

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talvez, estabelecer outros, seguindo aqui Pierre Bourdieu quando fala na disputa travada nos

campos sociais pela melhor forma de dizer da estruturação desses campos.27 Trata-se então de

observar e descrever, minimamente, como a Teoria dos Sistemas Sociais re-descreveu o

conceito sistema social e, a partir daí buscou revigorar sua capacidade explicativa de modo a

possibilitar a criação de eventos reflexivos novos.

Sensibilizado por conhecimentos produzidos em diferentes áreas das ciências28

Luhmann retomou os clássicos29 – modus operandi das ciências sociais. Essa maneira de

operar permite às ciências sociais se produzirem e reproduzirem desde a mobilização

recursiva de obras ou autores por elas indicados como clássicos. A semântica do clássico

procede a “naturalização” de autor e obra cuja contribuição à ciência e à sociedade são

considerados singulares e permanentes.

O retorno ao clássico tem por função permitir ao subsistema das ciências sociais

descrever-se e operar enquanto ciência, conferindo-lhe um critério de verificabilidade e

veracidade já que suas teorias e análises não são construídas e ratificadas desde

experimentações, cânone científico par excellence. Inserto em um movimento de

reflexividade, tem-se que a constituição ou distinção do clássico mitiga o risco da

deslegitimação da ciência social enquanto ciência, ao mesmo tempo em que indica o lado

negativo – o que não é considerado clássico ou o que não segue o clássico – da distinção

como sendo inviável em seus propósitos explicativos. O clássico funciona, portanto, como

uma fórmula de contingência30, como um elemento que permite ao subsistema continuar

operando a despeito dos constantes riscos de sua desconstituição enquanto ciência.

Elaborando uma matriz teórica em âmbitos acadêmicos já resistentes às abordagens

tidas funcionalistas, Luhmann buscou revigorar não só o conceito sistema como também re-

27 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, Rio de Janeiro: Bertrand, 1989. 28 Luhmann recolhe da cibernética os conceitos de sistema auto-organizativo (auto-referente) e ambiente; da biologia e neurociências extrai o conceito de autopoiese; da lógica, o conceito de forma. Um panorama acerca dessas e outras aproximações teóricas procedidas por Luhmann pode ser conferido em: BAETA NEVES, Clarissa Eckert; NEVES, Fabrício Monteiro. O que há de complexo no mundo complexo? Niklas Luhmann e a Teoria dos Sistemas Sociais. Sociologias, UFRGS, n.15, pp.182-207, jan/jun, 2006. Disponível em <http://www.scielo.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/>. Acesso em: mar 2007; também ARNAUD, André-Jean; LOPES JR, Dalmir (org). Niklas Luhmann: do sistema social à Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 29 Essa interessante temática da constituição dos clássicos em ciências sociais pode ser mais amplamente repercutida em: ALEXANDER, Jeffrey. A importância dos clássicos in: GIDDENS, Anthony; TURNER, Jonathan. Teoria social hoje. Tradução de Gilson César Cardoso de Sousa. São Paulo: UNESP, 1999, pp.23-89. 30 Sobre fórmula de contingência, verificar LUHMANN, Niklas. La religión de la sociedad. Traducción de Luciano Elizaincín. Madrid: Trotta, 2007b, pp.129-162; Idem. El derecho de la sociedade. Traducción de Javier Torres Nafarrate. 2 ed, México: Heder; México: Universidad Iberoamericana, 2005c; um uso interessante da categoria pode ser conferido em PEREIRA, Felipe Chaves. Os críticos que me perdoem, mas o paradoxo é fundamental: uma observação sobre a comunicação jurídica e moral. No prelo.

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configurar a própria teoria social, apontando limites às matrizes clássicas, propondo outra

forma de observar como se procede a construção do social, o conhecimento acerca dessa

construção, e o lugar dessa produção de conhecimento na própria constituição do social.

Uma teoria social proposta nesses termos desde logo indicou insuficiência daquelas

formas já estandardizadas – sistêmicas ou não – de observar31, face às complexidades da

sociedade moderna, mormente em sua contemporaneidade altamente reflexiva e contingente.

Não se tratava de considerá-las errôneas, mas observá-las como reducionistas: tomando uma

dada forma – economia, política, subjetividade, ou outra qualquer – como determinante da

formação social, ocultam todo procedimento seletivo do qual resulta a redução. Tratava-se,

antes de tudo, de construir uma teoria suficientemente abstrata e capaz de observar

observações; de considerar os paradoxos como constitutivos da própria realidade; de

confrontar o observável ao possível, o atualizado pelo sistema àquilo que ainda está no

horizonte indiscernível, a forma ao meio do qual distingue-se; e também, considerar que o

observador faz parte daquilo que é observado – a teoria da sociedade faz parte da sociedade,

constitui a sociedade ao se constituir como teoria, como parte da semântica social.

À realização dessa ambição apontou-se, como requisito, a construção de uma teoria

tão reflexiva quanto a realidade que com ela se pretendia descrever, uma teoria capaz de se

auto-observar como parte daquilo que observa e poder daí proceder outras observações.32

1.2 Sistemas sociais e comunicação

Uma teoria sistêmica acerca do social haveria de ser constituída no âmbito de uma

teoria geral dos sistemas, indicando assim que o social é uma forma específica de sistema,

sistema social. Desde essa matriz teórica, sistema não é tão somente um suporte analítico,

uma construção descritiva da realidade, um conceito; é também um dado dessa realidade que

31 As reflexões de Luhmann acerca das teorias sociológicas canônicas são encontráveis ao longo de toda a sua obra. Tem-se um vislumbre de seu embate com a clássica teorização acerca do direito em: LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. Acerca do que ele denomina “semântica da antiga Europa”, ver: LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Taducción de Javier Torres Nafarrate. México: Heder; México: Universidad Iberoamericana, 2007a. 32 IZUZQUIZA, Ignacio. Introducción: la urgencia de una nueva lógica in: IZUZQUIZA, Ignacio (org). Sociedad y sistema: la ambición de la teoría. Barcelona, Buenos Aires, México: Ediciones Paidós, 1990, pp. 9-39.

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o conceito descreve. “El concepto de sistema designa lo que en verdad es un sistema (...)”,

diz Luhmann.33

E do mesmo modo que o conceito de sistema designa algo que realmente é um

sistema, autopoiese e auto-referência – dois outros importantes conceitos da mesma matriz

teórica – são características sistêmicas de determinados sistemas, operações procedidas por

sistemas e, portanto, também tem o estatuto de realidade, de realidade sistêmica.34 Enquanto

operações, autopoiese e auto-referência, permitem construir a distinção entre sistema e

entorno – ambiente, meio – vez que é a relação sistema/entorno que constitui o sistema

enquanto tal. É com base nessas premissas que Luhmann indica a existência de três sistemas

autopoiéticos e auto-referentes: os sociais, cuja autopoiese se dá com base na comunicação; os

psíquicos, que se auto-reproduzem com base na consciência; os orgânicos ou vivos,

constituídos desde uma autopoiese bio-físico-química.

Sistema é, pois, a constituição da diferença sistema/entorno, uma forma que

distingue dois lados irremediavelmente indissociáveis. E como se dá essa diferenciação? Por

via de uma seleção, forçada e operada por e no sistema, de elementos que estão frouxamente

articulados no ambiente e que se tornam consistentemente acoplados no sistema. O ambiente

é sempre muito mais complexo do que o sistema; o sistema é sempre complexidade

organizada. A constituição da diferença, da distinção configura-se, desse modo, redução de

complexidades do ambiente no sistema.

A organização da complexidade sistêmica decorre do fato de no interior do sistema

ser possível um número incalculável de relações, o que força o sistema a operar seleções,

observar: ele tem que escolher e indicar dentre as relações possíveis quais serão atualizáveis.

Não há como predizer qual será a indicação seletiva e, portanto, qual relação será marcada,

atualizada, observada como relação; sabe-se tão somente que há seleções, não importando se

intencionais ou não, controladas ou não, descritas ou não.

Operações de organização, que é auto-organização constante, permitem, a um só

tempo, que os sistemas se distingam de seu ambiente e constituam a si mesmos ao constituir

seus elementos ou relações no momento mesmo em que se distinguem. O sistema traça uma

distinção – no caso do sistema jurídico, direito/não-direito – e marca o lado a partir do qual

essa distinção será considerada, o lado positivo da distinção a partir da qual o sistema irá se 33 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. Lineamientos para una teoria general. Traducción de Sylvia Pappe y Brunhilde Erker. Barcelona: Anthropos; México: Universidad Iberoamericana; Santafé de Bogotá: CEJA, Pontificia Universidad Javerina, 1998a, p.37. 34 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Taducción de Javier Torres Nafarrate. México: Heder; México: Universidad Iberoamericana, 2007a, p.425.

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reproduzir e se atualizar. O direito, por exemplo, diz o que é o que não é direito e descreve-se

desde a diferença que estabelece entre si mesmo e o ambiente. Tem-se, então, que,

(...) la diferenciación de los sistemas sólo puede llevarse a cabo mediante autorreferencia; es decir, los sistemas solo pueden referir-se a sí mismos en la constitución de sus elementos y operaciones elementales (lo mismo en el caso de los elementos del sistema, de sus operaciones, de su unidad). Para phacer possible esto, los sistemas tienen que producir y utilizar la descripción de sí mismos; por lo mesmo, tienen que ser capaces de utilizar, al interior del sistema, la diferencia entre sitema y entorno como orientación y principio del processamiento de información.35

A organização sistêmica sempre exige escolhas atualizadoras, levando o sistema,

paradoxalmente, a uma inevitável instabilidade. Significa que o sistema está sempre buscando

adaptar-se ao ambiente, i.e, manter-se capaz de selecionar desde esse ambiente. Contraditando

o senso mais corrente, a estabilidade é – desde a perspectiva aqui adotada – mais amplamente

encontrável no ambiente com frouxas relações entre seus elementos constitutivos, do que nos

sistemas e suas relações mais firmemente articuladas, coordenadas. A estabilidade da

organização sistêmica é, portanto, razão de sua instabilidade.

Essa forma de entender sistema difere, radicalmente, daquela estabilizada em teorias

sociológicas já canônicas. Desde uma perspectiva mais clássica o conceito de sistema remete,

grosso modo, a uma organização social estável, constituída por indivíduos em uma trama de

relações recíprocas, em interações sociais mutuamente orientadas por um acervo cultural

compartilhado – estrutura – que define posições relativas dos indivíduos e suas respectivas

fórmulas de atuação no sistema – papéis sociais. Assim, sistema social é pensado como

epifenômeno de sujeitos em interação.

E mais, entende-se que ao proporcionar um consenso integrador, o acervo cultural

compartilhado sustenta as expectativas de ação dos indivíduos e garante a integridade do

sistema face ao ambiente, per se, desorganizado, caótico. O sistema tem, portanto, em sua

estrutura o mecanismo organizativo capaz de preservá-lo, enquanto o ambiente do sistema é

sua fonte de mudança, uma vez que com ele mantém relações diretas, de tal modo que a

alteração de um deles interfere diretamente no outro.36

35 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. Lineamientos para una teoria general. Traducción de Sylvia Pappe y Brunhilde Erker. Barcelona: Anthropos; México: Universidad Iberoamericana; Santafé de Bogotá: CEJA, Pontificia Universidad Javerina, 1998a, p.33. 36 Para um quadro mínimo acerca dessa perspectiva e seus desdobramentos, conferir as obras de: Talcott Parsons – com quem Luhmann propôs-se dialogar e ir mais além; a principal obra de MERTON, Robert K. Sociologia. Teoria e estrutura. Tradução de Miguel Maillet. São Paulo: Mestre Jou, 1970; e também o clássico, dentre outros, DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social in: Os pensadores. Tradução de Carlos Alberto

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Para a teoria dos sistemas autopoiéticos, ambiente – ou meio – é um horizonte de

possíveis que está sempre disponível às seleções, quaisquer seleções, sem que com isso perca

a especificidade de horizonte; as seleções não esgotam o ambiente. Os sistemas, por seu turno,

são sempre passíveis de se desconstituírem, seus elementos distintivos correm sempre o risco

de re-entrarem no horizonte ambiental, fazendo com que o sistema deixe de existir,

desdiferenciando-se.

A esse respeito, e tomando a linguagem como referência, Luhmann afirmou: “(...) o

meio é mais estável do que a construção da forma: o som articulado de uma palavra pode

desaparecer, um objeto pode mudar de lugar, mas graças ao meio, nos podemos ver e ouvir

outras coisas. (...) Mediante a forma, a estabilidade se torna precária, temporal (...)”.37 A

forma, e a organização que ela supõe são, paradoxalmente, produtoras de mudança. O sistema

tem sempre que proceder a seleções, promover mudanças em si mesmo sob pena de se

desconstituir.

Toda forma e, portanto todo sistema, é, pois, contingente. Existindo em um

momento, é provável que não mais exista no momento seguinte; poderia não ter se

configurado ou tê-lo feito de outro modo. A forma não expressa qualquer realização de uma

essência existente no meio. Contudo, os meios não são, face aos sistemas, simples

arbitrariedades, vez que seus elementos limitam as formas a um horizonte de possíveis. Ao

mesmo tempo, o estabelecimento de formas gera sempre surpresas e garante variedade, vez

que sempre existe mais de uma possibilidade de constituição de uma forma.

Recorrendo mais uma vez ao meio linguagem, pode-se indicar que nele só é possível

constituição de formas, orais ou escritas, de palavras, frases, períodos, textos, indicando não

apenas a impossibilidade dessas formas eximirem-se desse meio, como também a

variabilidade entre elas. Levando-se em consideração apenas uma das formas, um texto, este

Ribeiro de Moura et al. São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp.1-70. Estabelecendo uma relação direta entre formas de consciência coletiva e de divisão do trabalho social, para daí inferir a forma de solidariedade prevalente em contextos sociais evolutivamente diferentes, Durkheim indica como sendo mecânica aquela solidariedade fundada na similitude entre os indivíduos. A similitude decorre do fato de as individualidades estarem absorvidas pela personalidade coletiva em um contexto no qual inexiste pluralidade de atividades funcionalmente distintas, i.e, em contexto no qual a divisão do trabalho social é pouco desenvolvida ou, em situações limites de arcaísmo, fundada na divisão sexual. Por seu turno, a solidariedade orgânica pressupõe uma consciência coletiva capaz de reconhecer as diferenças e sua complementaridade. E uma tal solidariedade ocorre em contextos sociais mais complexos, em que se verifica uma diversificação da divisão do trabalho social caracterizada pelo surgimento de atividades sociais e produtivas funcionalmente distintas, criando distintos âmbitos sociais. Essa diferenciação funcional leva a autonomia das individualidades ao mesmo tempo em que as fazem perceberem-se como dependentes umas das outras, vez que se inserem de formas diferenciadas nos diversos âmbitos sociais. 37 LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009a, p.234.

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pode ser, dentre tantas outras possibilidades, uma poesia, uma peça jurídica, uma notícia, uma

carta de amor, uma lista de compras, formas de formas erigidas desde os elementos

constitutivos de um ambiente, indicando o caráter contingente e surpreendente de qualquer

forma.

Em uma breve síntese tem-se, então, que observar sociologicamente a sociedade

desde a matriz sistêmica proposta por Luhmann é indicá-la como um tipo particular de

sistema – de forma – cujas características são: ser autopoiético e auto-referente, por se

constituir desde seus próprios elementos e tomar como referência suas próprias operações

constitutivas e suas auto-descrições; ser também hetero-referente, por aprender com o

ambiente à medida que dele se distingue ao proceder sua autopoiese e operar assim sua auto-

reprodução; ser sistema social complexo e inclusivo de todos os sistemas sociais – do direito,

economia, religião, arte e outros –, os quais se constituem desde constantes processos de

diferenciações internas à sociedade; operar seleções de um tipo muito peculiar, comunicações.

De modo bastante simplificado pode-se descrever a sociedade e seus sistemas sociais

como sistema de sistemas autopoiéticos, auto e hetero-referentes de comunicação. Desde essa

perspectiva, direito e arte, sistemas sociais postos em foco nessa pesquisa, operam

comunicações. Uma norma e uma obra de arte são, portanto, comunicações. “Sem

comunicação não existem relações humanas nem vida humana propriamente dita”.38 Mas o

que se pode descrever com o conceito comunicação? De forma bastante concisa Luhmann

responde: “Uma comunicação ocorre quando alguém vê, ouve, lê – e entende que daí se

depreende uma outra comunicação, que pode seguir-se a essa”.39 Somente comunicação

produz comunicação; a autopoiese comunicativa só é possível em relação recursiva a outra

comunicação do mesmo tipo. Assim, direito produz direito; arte produz arte.

Descrito desde essas premissas, o conceito comunicação inserto na matriz sistêmica

se confronta àquelas descrições mais amplamente mobilizadas por todos quantos se propõem

refletir acerca dos processos comunicativos e suas implicações na sociabilidade humana. As

diversas matrizes teóricas que a transformam em tema oscilam, grosso modo, entre dois

modelos já estandardizados. Em um deles se enfatiza os dispositivos da comunicação – os

mass media; em outro se enfatiza as mediações, os agenciamentos subjetivos da comunicação.

38 LUHMANN, Niklas. A improbabilidade da comunicação. Tradução de Anabela Carvalho. 4ed, Lisboa: Vega, 2006a, p.39. 39 Idem. A realidade dos meios de comunicação. Tradução de Ciro Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005a, p.19.

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Marshall McLuhan40 assinalava que para se compreender os processos

comunicativos é necessário o entendimento de que dispositivos técnicos – incluindo-se aí

linguagem oral e escrita –, não são apenas “ferramentas” com as quais os homens podem

contar; dispositivos técnicos operam como verdadeiras extensões das habilidades humanas,

formatando-as inclusive, sendo mesmo decisivos nos processo de configuração das formas

societárias. Célebre a afirmativa de McLuhan:

(...) a “mensagem” de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, cadência ou padrão que esse meio ou tecnologia introduz nas coisas humanas. (...) ‘o meio é a mensagem’, porque é o meio que configura e controla a proporção e a forma das ações e associações humanas.41

Com outro renomado teórico da comunicação42, Jesus Martín-Barbero43, tem-se as

mediações como chave para o entendimento dos processos comunicativos. As mediações se

dão nas recíprocas relações emissores-receptores, as quais possibilitam a apropriação e re-

significação de sentidos que lhes chegam desde a pluralidade de discursos constituídos na

contemporaneidade. Na obra de Martín-Barbero não se encontra a sistemática denúncia à

intencionalidade, absoluta e alienante, dos mass media,44 tão presente em grande parte da

Teoria Crítica45 e, amiúde, mobilizada em pesquisas que têm por tema a comunicação.

40 As obras de Marshall McLuhan são consideradas grandes difusoras do tema comunicação. Dedicando-se a análise dos difusores eletrônicos, principalmente a televisão, McLuhan e a suas obras foram constituídos como fenômenos midiáticos. Seus estudos acerca dos media generalizou, portanto, a comunicação como tema da comunicação de massa. Acerca dessa reflexividade Cf. FARO, J.S. Marshall McLuhan 40 anos depois: a mídia como lógica de dois tempos. Fronteiras. Estudos midiáticos. Unisinos, v. 6, n.2, pp.5-66, jul/dez 2004. Disponível em <http://revcom2.portcom.intercom.org.br/index.php/fronteiras/article/view/3092/2902>. Acesso em: abr 2008. 41 MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Tradução de Décio Pignatari. 18 ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p.22-23. 42 Para ampliar as discussões aqui indicadas vale conferir, dentre outras, três obras já clássicas: THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Tradução de Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998; BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água. 1991; SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho. Uma teoria da comunicação linear e em rede. 2ed, Petrópolis: Vozes, 2006. 43 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. 44 Esse possível caráter altamente virulento dos mass media está descrito, por exemplo, em DEBOR, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. Debord enfatiza que os media, principalmente imagéticos, tornam objetiva a visão de mundo espetaculosa decorrente das condições de produção capitalista na moderna sociedade de consumo. A espetacularização da sociedade indica que “(...) a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente” (p.15). 45 À guisa de ilustração destaque-se dois ferrenhos opositores frankfurteanos aos mass media: HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. O iluminismo como mistificação de massa in: LIMA, Luiz Costa (org). Teoria da cultura de massa. 4 ed, São Paulo: Paz e Terra, 1990, pp. 157-204. Nesse texto inserto em projeto mais amplo – A dialética do iluminismo. Fragmentos filosóficos – Horkheimer e Adorno afirmam a degenerescência do projeto iluminista liberal do indivíduo autônomo em decorrência do advento da indústria

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Entendidos como sujeitos sociais atuantes no processo comunicativo os receptores são, em

Martín-Barbero, resgatados da condição de simples depositários passivos de sentidos, como

queria fazer crer certas análises. A recepção é concebida como uma negociação de

significações desde um intercâmbio de mensagens ou informações veiculadas pelos meios de

comunicação, ainda que se verifique a hegemonia de certos conteúdos.

No âmbito da Teoria dos Sistemas Sociais comunicar não é uma ação de

transferência ou transmissão, entre subjetividades, de algo. Ainda que pressuponha a

apreciação, a experimentação, de grande número de sistemas psíquicos com os quais se

conecta continuamente, a comunicação não pode ser atribuída a uma consciência individual,

nem a uma operação de consciências entre consciências. Também não é possível, a partir da

comunicação, construir-se um tipo de consciência coletiva, uma racionalidade ou consenso

comunicativo voltado à ação, à ação comunicativa intersubjetiva – como defenderia Jürgen

Habermas46 – que funcionasse, enquanto um instrumento discursivo com pretensão de

validade, à emancipação dos homens. Nesses termos habermasianos, comunicação seria ação

orientada ao entendimento. Afirma Habermas:

Se pretender participar num processo através do qual se procura chegar a um entendimento, não poderá evitar apresentar as seguintes (e no fundo, precisamente as seguintes) pretensões de validade: pretenderá estar: a) a enunciar de uma forma inteligível; b) a dar (ao ouvinte) algo que este compreenderá; c) a fazer-se a si próprio, desta forma, entender; d) a atingir o seu objectivo de compreensão junto de outrem. 47

De modo diverso e bem radical, Luhmann é categórico quanto à relação

subjetividade-comunicação:

(...) consciência e comunicação não podem existir uma sem a outra, e que, para existir, devem estar coordenadas mediante um acoplamento estrutural. (...) sem consciência a comunicação é impossível. Entretanto, a consciência não é um sujeito da comunicação, e tampouco, em qualquer outro sentido, o substrato da comunicação. 48

cultural possibilitada pelas novas tecnologias de comunicação. Referindo-se especificamente ao rádio e ao cinema, afirmam que tais tecnologias – gestadas desde o projeto iluminista e seu desejo de poder pela via do progresso técnico – a tudo pasteurizam, criando uma semelhança que solapa qualquer possibilidade de crítica, de tomada de consciência, fomentando a homogeneização no consumo e satisfazendo, assim, aos interesses do capitalismo monopolista. 46 HABERMAS, Jürgen. Racionalidade e comunicação. Tradução de Pedro Rodrigues. Lisboa: Edições 70, 1996. 47 Ibdem, p.12. 48 LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009a, p.133.

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As consciências enquanto sistemas encerrados, autopoiéticos, precisam da

comunicação para se “tocarem”, para terem hetero-referência. A comunicação é, desde o

ponto de vista da consciência, uma “janela” para o outro, para o mundo e para si mesmo.

Porém, não no sentido de revelar o “verdadeiro” ser desse “outro” ou a essência das coisas do

mundo, mas no sentido de possibilitar a reflexividade operativa da própria consciência ao

produzir uma diferença entre ela e seu ambiente – esse constituído de outras consciências,

sistemas sociais e o mundo – de modo a proporcionar um vislumbre do “outro” e de tudo mais

desde sua exterioridade e, a partir, daí deduzir o que não pode ser vislumbrado, construindo-o.

Também a auto-observação pessoal tem como requisito a mediação da comunicação, vez que

a subjetividade é, em muitos de seus âmbitos, uma desconhecida para si mesma, uma

constante construção que se dá na interseção entre sistema psíquico e comunicação, entre o eu

e o outro. O outro é a condição de possibilidade do eu, e é construído desde a comunicação

entre o eu e o outro.

O que define o processo comunicativo, portanto, não é a intersubjetividade, nem

tampouco um pretenso consenso comunicativo. Observe-se uma sala de aula na faculdade de

direito da UFRJ – poderia ser qualquer outra, obviamente – como uma situação social, logo

comunicativa, que opera desde duas categorias de pessoas49 – alunos e professores – em uma

complexa rede de produção de informações que possibilitam a reprodução do sistema jurídico.

A participação de alunos e professores, enquanto sistemas de consciência, não se dá desde as

idiossincrasias de cada um deles. Lá, se constrói informações jurídicas a partir de informações

jurídicas, desde a mobilização de doutrinas, teorias e produções oriundas das práticas

jurídicas, elementos que sendo ou não aceitos pelas consciências, sendo ou não

compreendidas por elas, constituem a memória do sistema que é recursivamente acionada

para a produção jurídica. Lá, as comunicações jurídicas produzidas independem do estado

emocional de cada um, dos desejos e frustrações de cada um, de sua compreensão acerca do

jurídico ou sua convicção doutrinária, de sua auto-estima, de estar amando ou odiando

alguém, de querer visitar Machu Picchu nas férias, de ir à Lapa na sexta, de suas preferências

sexuais.

Percepção, imaginação, cognição, afetos e desejos, eventos que tem lugar no sistema

psíquico, nele permanecerão encerrados, inobserváveis, a menos que sejam constituídas

pontes entre eles de modo que sejam formatados, construídos comunicativamente como tema

49 Por pessoa define-se aquela posição comunicativa ocupada por um homem, um sistema psíquico. Importante essa indicação porque as posições comunicativas não são restritas às consciências. Também sistemas sociais, funcionalmente diferenciados – direito, economia, educação, religião e outros – são posições comunicativas.

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terapêutico na psicanálise, ou tema amoroso nas relações pessoais...50, como temas de

comunicação enfim. Porém, mesmo com a mediação da comunicação, não se tem acesso

direto à subjetividade de outrem. Pelo filtro da comunicação, pela mediação da linguagem que

acopla duas ou mais consciências, pelos modelos comunicativos socialmente disponibilizados

e mobilizados – a psicanálise, ou o romance, para citar dois desses possíveis modelos – o que

se tem são sempre re-configurações comunicativas de “imagens” sensórias, afetivas e

cognitivas tanto da consciência que se “dá a conhecer” por essas imagens quanto daquela que

percebe isso. E essa é a única forma de “se saber” o que vai na “alma” de alguém. Porém o

que se sabe não é propriamente a subjetividade, mas a percepção de uma construção social

dela, de sua construção como tema da comunicação, que serve de referência à individualidade

em seu processo de auto-interpretação e de interpretação do outro em relação, e de operar

cognitivamente essa percepção.

O ambiente comunicacional permite a cada consciência nele inserta construir uma

dupla expectativa face ao outro em decorrência de uma dupla confrontação entre o que é

observável e o que está oculto naquilo que ela observa: quem é o outro e o que se pode

esperar dele? O que o outro pode esperar de quem o observa? À dupla expectativa não há

uma única resposta possível, sinalizando, assim, para a situação de dupla contingência de toda

comunicação. Expectativa sobre expectativa, e imprevisibilidade quanto a como, quando e se

essas expectativas serão satisfeitas: eis o substrato de toda e qualquer construção

comunicativa.

Como já visto, toda comunicação tem por exigência recorrer a outras comunicações.

Essa recursividade indica a eventualidade, a efemeridade de toda forma comunicativa: por um

lado, uma comunicação pode esgotar-se em si mesma, sem possibilitar outras comunicações –

a comunicação é sempre improvável; por outro, mesmo no caso de encerrar-se me si mesma,

ela foi possível porque uma comunicação anterior foi tomada como referência, sem que tenha

sido, ipso facto, criada uma necessária continuidade entre elas, uma congruência

comunicativa – de novo a improbabilidade.

50 As complexidades envolvidas nos acoplamentos entre consciência e comunicação desde relações pessoais podem ser aprofundadas e melhor esclarecidas nas reflexões de Luhmann acerca da construção do amor como tema da comunicação. Verificar LUHMANN, Niklas. El amor como pasión. Traducción de Joaquín Adsuar Ortega. Barcelona: Península, 2008.

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Nesse passo, comunicação deve ser entendida como três seleções distintas, porém

inseparáveis envolvendo duas posições comunicativas, Alter e Ego,51 e que possibilitará ou

não outra comunicação. Na posição Alter encontra-se a comunicação que poderá configurar-

se em referência à possível comunicação constituída na posição Ego. Alter ao produzir

comunicação também o faz desde as referidas seleções. Contudo, a comunicação de Alter

nada é para Ego, a menos que Ego a transforme em um sinal comunicativo, i.e, que se permita

conhecer a existência comunicativa da outra posição. Deixar-se sensibilizar pela comunicação

de Alter, tornando-o desse modo um sinal comunicativo é, portanto, a primeira seleção de

Ego, e indica que Ego identificou em Alter a responsabilidade do referido sinal. A segunda

seleção de Ego é transformar aquele sinal, o que foi enunciado por Alter, em informação.

Essas duas seleções de Ego poderiam não ter ocorrido se, por exemplo, Ego não se deixasse

sensibilizar pelo referido enunciado de Alter ou nem tivesse percebido a presença de Alter

enquanto um potencial enunciador. A terceira seleção, procedida por Ego, é aquela em que

emissão e informação são percebidas como seleções distintas e que delas é possível proceder-

se comunicação, agora comunicação de Ego, distinta daquela de Alter, porém procedida a

partir dela, uma re-elaboração desde os termos de Ego.

Em resumo, comunicação é sempre uma operação improvável e imprevisível quanto

ao seu prosseguimento, vez que há um constante risco de qualquer um daqueles requisitos

acima enunciados, ou todos eles, não serem percebidos ou serem rechaçados. Mas é também

aquilo que permite a cada sistema social observar-se e aos demais e a reduzir, em si e a partir

de suas operações de autopoiese e auto-referência, as complexidades do ambiente. Estando na

base operativa de todo e qualquer sistema social, é a operação que torna possível a

delimitação entre sistema e ambiente podendo, desse modo, ser entendido como mecanismo

de auto-regulação dos sistemas sociais.

51 As posições comunicativas Alter e Ego, que se definem necessariamente uma face à outra, podem formar um sistema de relações sociais, uma organização social ou ainda um sistema funcionalmente diferenciado, todas eles, formas ou sistemas sociais da sociedade contemporânea.

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Capítulo 2

A PRODUÇÃO DE SENTIDO E A COMUNICAÇÃO

Tomar a produção de sentidos de direito como escopo dessa pesquisa exige a

explicitação do que se está designando por sentido. Viu-se, até aqui, que a configuração de

sistemas, sejam eles sociais, psíquicos ou de qualquer outro tipo, é decorrente de distinções,

de seleções. No caso dos sistemas sociais e psíquicos, verifica-se uma forma particular de

distinção, uma observação. Observar é, pois, uma realidade sistêmica própria desses que são

sistemas de sentido, e cujos ambientes são meios de sentidos.

Observar significa operar seleções, estabelecendo critérios, na forma de diferenças,

que permitam ao sistema proceder mais seleções e promover a redução da complexidade ao

produzir informação desde essa complexidade. Observar é estabelecer sentidos, e estes, em

situações de diferenciação funcional52, podem assumir a forma de códigos do tipo direito/não-

direito, verificável no sistema jurídico; ou verdadeiro/falso, próprio da ciência; podem

também assumir a forma de diferenciação eu/outro, quando se tratar de sistemas psíquicos, ou

ainda todo/parte, figura/fundo, dentre tantos outros pares de sentidos os quais funcionam

como critérios distintivos mobilizados pelos sistemas ao se diferenciarem do ambiente e se

reproduzirem ao produzir sempre mais seleções. Observar é, pois, operação comunicativa.

Gilles Deleuze já afirmara que o sentido quase nada tem a ver com a pura

significação das palavras e coisas, sendo a resultante do encontro entre o que é apreensível

pela razão interpretativa e aquilo que não pode ser é apreensível desse modo. Portanto, o

sentido não tem existência própria, é uma construção; “(...) não é algo a ser descoberto,

restaurado ou re-empregado, mas algo a produzir por meio de novas maquinações. Não

52 Sistemas funcionalmente diferenciados são aqueles que, desde um processo de evolução social, se especializam em enfrentar complexidades sociais específicas como, por exemplo, responder às expectativas normativas. A diferenciação funcional é, a um só tempo, redução e aumento de complexidade. Redução pelo fato de constituir-se como um âmbito especializado em um dado espectro dessa complexidade que, no caso do exemplo, são as expectativas normativas, criando-se assim um meio de comunicação simbolicamente generalizado – o direito moderno, que se espraia por todos os âmbitos sociais. Ao mesmo tempo, sistemas funcionais constituem mais uma diferenciação do sistema global da sociedade, ampliando a complexidade das coordenações entre esses sistemas, forçando sempre mais especializações e co-evoluções entre eles. Acerca da diferenciação funcional Cf. LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Taducción de Javier Torres Nafarrate. México: Heder; México: Universidad Iberoamericana, 2007a, p.780 ss; idem, Sistemas sociales. Lineamientos para una teoria general. Traducción de Sylvia Pappe y Brunhilde Erker. Barcelona: Anthropos; México: Universidad Iberoamericana; Santafé de Bogotá: CEJA, Pontificia Universidad Javerina, 1998a.

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pertence a nenhuma altura, não está em nenhuma profundidade, mas é efeito de superfície,

inseparável da superfície como de sua dimensão própria”. 53

Destacando tanto o caráter eventual do sentido e quanto sua imprescindibilidade às

formas sociais – que deles se distinguem, ao mesmo tempo em que os constituem ao se

distinguir – esse capítulo subdividi-se em dois itens, Sentido: produção e requisito de

sistemas sociais e Sentido como meio e forma.

2.1. Sentido: produção e requisito de sistemas sociais

Guardando certa simetria ao pensamento de Deleuze, naquilo que este indica ser o

sentido uma sempre construção sem qualquer possibilidade de essência ou significação última

(ou primeira), a matriz sistêmica luhmanniana descreve o sentido como aquele evento que, no

presente, viabiliza seleções – comunicações –, e cuja existência possibilita que seleções sejam

esperadas no futuro. Construído por operações sistêmicas, o sentido confere ao sistema sua

especificidade distinguindo-o do ambiente a medida em que opera desde esses sentidos.

Sentido é, pois, a diferença entre aquilo que o sistema seleciona e que sempre remete a ele

mesmo, e aquilo que ele não seleciona e que permanece no horizonte dos possíveis e,

portanto, passíveis de serem posteriormente selecionadas, assegurando assim ao sistema a

possibilidade de permanecer operando. “El sentido, en definitvo, es la conexión entre lo

actual y lo posible; no es lo uno o lo otro.” 54

As fronteiras de um sistema de sentido são, desse modo, definidas a cada operação

do sistema, a cada distinção, a cada evento produtor de sentido, e é isso que torna exigível

auto e hetero-referências, descrições legitimantes, operações dos sistemas nos sistemas que

possibilitam criar um sentido de nexo ali onde só há eventos, efemeridades. A identidade do

sistema, i.e, aquilo que o configura enquanto tal é, pois, o estabelecimento de uma diferença

de sentido. Toda operação que constitui o sistema permite atualização de sua identidade

sistêmica, sua especificidade em face ao ambiente; contudo, ela não é orientadora de toda

operação sistêmica. Por exemplo, nem todo ato processual, nem toda prece, nem toda

construção poética precisa reafirmar-se como sendo uma operação jurídica, ou religiosa, ou

artística, respectivamente.

53 DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. 5ed, São Paulo: Persepctiva, 2009, p.75. 54 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Taducción de Javier Torres Nafarrate. México: Heder; México: Universidad Iberoamericana, 2007a, p. 27 ss

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Assim, nem toda operação sistêmica exige tematizações nem auto-descrições que

afirmem a diferença constitutiva do sistema, sua identidade. As observações que um sistema

social procede de suas operações, suas auto-referências, permitem a ele mobilizar informações

já estabilizadas em seu interior e, com tais informações, proceder não só comunicações como

também conexões entre comunicações sem requerer, para isso, qualquer explicação. À guisa

de ilustração: desde o sistema da religião é possível observar que certas fórmulas, ocasiões e

locais percebidos como apropriados são mobilizados para se atualizar uma comunicação

religiosa, sem que para isso haja o recurso a qualquer tipo de auto-descrição.55 Entrar em uma

igreja e rezar, por exemplo, não exige do fiel qualquer explicitação teológica e teleológica ao

evocar essa ou aquela oração, ou esclarecer a eficácia ou ainda o significado de tal oração em

tal caso; espera-se – o fiel de si mesmo e a congregação religiosa do fiel – tão somente que o

fiel ore. A oração é, pois, uma fórmula de sentido que possibilita tanto atualizar a fé como

uma dimensão da consciência quanto a reproduzir a religião como sistema social, como forma

da comunicação.

Estendendo-se a ilustração ao âmbito do direito, mais especificamente às práticas

judiciais, observa-se que também é bastante comum o uso de fórmulas de sentido como, por

exemplo, as petições, sem quaisquer preocupações em descrever-se o que se está utilizando e

porque tal fórmula se constitui dessa e não de outra maneira. Simplesmente repete-se o

modelo que está disponível como um repertório de sentidos mobilizados àquela prática. Em

situações de referência a si mesmo não há, portanto, a exigibilidade de auto-tematização, de

auto-descrição para reafirmação de uma identidade. O uso recursivo da fórmula garante a

afirmação da forma.

Contudo, o sistema jurídico poderá tornar-se tema de suas próprias comunicações

quando, por exemplo, a distinção entre o sistema dos meios de comunicação e o sistema

jurídico for entendida por este como correndo o risco de se desconstruir. Significa que para o

direito os mass media constitutivos de seu ambiente estão a usurpar suas específicas funções,

incitando-o a se auto-descrever em um movimento de atualização semântica de sua identidade

sistêmica.56

55 Acerca das auto-descrições Cf. LUHMANN, Niklas. La religión de la sociedad. Traducción de Luciano Elizaincín. Madrid: Trotta, 2007b, pp.278-279; Idem, La sociedad de la sociedad. Taducción de Javier Torres Nafarrate. México: Heder; México: Universidad Iberoamericana, 2007a, pp. 697-910. 56 Para ilustrar auto-tematização nos termos postos no exemplo cita-se aqui: MORETZSOHN, Sylvia. O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã”. Discursos Sediciosos. Crime, direito e sociedade. Ano 7, n. 12, pp. 291- 316. Rio de Janeiro: Renavan 2002; também MACCALÓZ, Salete Maria Polita. O poder judiciário, os meios de comunicação e opinião pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

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Desde o ambiente do sistema jurídico também é observável auto-tematizações

indicando a excessiva juridicização dos diferentes âmbitos sociais. Assim, no âmbito dos

operadores educacionais brasileiros, por exemplo, pode-se observar a existência de um

entendimento, bastante generalizado, de que há excessiva juridicização daquelas operações

pedagógicas57 próprias ao ensino fundamental e médio, na medida em que as mesmas

estariam submetidas ao Estatuto da criança e do adolescente58 e aos Conselhos Tutelares que

ele prevê, levando-as à descaracterização por colocá-las, e a seus operadores, em posição de

subordinação ao jurídico, mitigando a identidade propriamente pedagógica do sistema

educativo, retirando a autoridade e autonomia que o educador indica como próprias do

sistema educacional tanto no que diz respeito às fórmulas didáticas de apresentação de

conteúdos e de avaliações quanto à disciplina de seus alunos.

Em suma, as auto-tematizações ocorrem quando a sociedade prevê uma distinção e

separação entre as comunicações próprias de um dado sistema e aquelas que não são

reconhecidas como tal – distinção entre comunicações religiosas e aquelas percebidas como

não religiosas; entre as jurídicas e as não jurídicas, a educacionais e não educacionais, e outras

– distinção e separação essas que são atualizadoras das diferenciações sistema/entorno.

Pode-se dizer que ao nível das auto-observações de um sistema de sentido – a arte

produzindo arte, o direito produzindo direito, a religião produzindo religião, o pensamento

produzindo pensamento –, o sistema não necessita tematizar a si mesmo vez que opera desde

o nível autopoiético e auto-referente, opera cegamente desde seus próprios sentidos. Sabe-se,

contudo, que tais operações não são absolutamente encerradas em si, visto que todo sistema

de sentido é tanto auto quanto hetero-referente. Sendo a hetero-referência um evento, a um só

tempo pressuposto e decorrente do evento sistêmico da diferenciação sitema/ambiente o

sistema há que proceder também a diferenciação entre o que é auto-referência (informação) e

o que é hetero-referência – ruído pelo qual o sistema se deixa irritar –, que “(...) debe

subsumirse a si misma al sistema teniendo esta distinción a manera de guia”. 59

Sistemas de sentido – aqueles que operam comunicações (sistemas sociais) e

pensamentos (sistemas psíquicos) – devem, portanto, ser entendidos enquanto construções

que se erigem a partir de uma distinção ou diferenciação entre sistema e ambiente, promovida

57 Para os professores de ensino fundamental e médio operações pedagógicas são suas atividades em sala de aula, que vão desde as aulas propriamente ditas, exercícios e avaliações, até a imposição da disciplina necessária a implementação e bom aproveitamento das referidas práticas pedagógicas. 58 Trata-se da Lei 8069 de 13 de julho de 1990. 59 LUHMANN, Niklas. La religión de la sociedad. Traducción de Luciano Elizaincín. Madrid: Trotta, 2007b, p. 278.

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pelo sistema desde o seu interior, em suas operações de autopoiese e auto-referência. O

sistema constrói a diferenciação que o constrói.60

Observando o entorno, o seu ambiente, como uma unidade complexa e confusa de

relações indistinguíveis, o sistema de sentido opera seletivamente sobre essa unidade,

reduzindo a complexidade ambiental tornando-se, ele próprio, mais complexo na medida em

que tem que lidar, agora, com a complexidade do entorno que nele ingressa sob a forma

reduzida de informação sistêmica. Sendo auto-referente e autopoiético, nenhum sistema

compartilha sua complexidade com o ambiente ou, em outros termos, os sistemas não atuam

diretamente sobre seu ambiente. Contudo, o fechamento operativo do sistema não significa

absoluto alheamento daquilo que está fora de seus limites de sentido.

Como os sistemas de sentido só podem ser acessados por sentidos, o ambiente só

será capaz de promover irritações no sistema à medida que o sistema deixar-se por ele irritar,

i.e, à medida que os sentidos do sistema identificar o ruído como potencialidade informativa,

transformando-o então em informação, sentido atualizado. A irritação proporcionada pelo

ambiente é, na verdade, auto-irritação do sistema resultante do embate entre os eventos e as

expectativas do sistema, entre sentidos indistinguíveis do ambiente e os condensados de

sentidos do sistema, sua estrutura. Uma vez irritado, o sistema irá lidar com essa irritação em

seus próprios termos, i.e, a partir de suas estruturas de expectativas, de seus condensados de

sentidos cuja função é organizar as operações do sistema.

O lidar com irritações implica sempre em nova seleção, e elaboração de informação

face ao ambiente, desde sentidos; é sempre um focalizar da atenção em uma possibilidade

dentre muitas. É, portanto, o que resulta da seleção entre o atual e o possível e o que

possibilita outras seleções semelhantes. Sendo elemento ordenador das operações sistêmicas,

a estrutura de sentidos é responsável pelo estabelecimento do quantum de complexidade o

sistema pode suportar, e, em última instância, o quantum de redução e manutenção é possível

antes que o sistema aumente sua complexidade.

Às mudanças de estrutura correlacionam-se mudanças semânticas, em uma

circularidade de relações na qual a semântica sempre se configura em descompasso com a

estrutura, mostrando-se, em certa medida, inadequada às novidades estruturais vigentes e

possíveis. Significa que a semântica, enquanto generalização de descrições sociais e, portanto,

de certos condensados de sentidos, tende a construir um sentido de estabilidade dos sistemas,

60 Idem. Sistemas sociales. Lineamientos para una teoria general. Traducción de Sylvia Pappe y Brunhilde Erker. Barcelona: Anthropos; México: Universidad Iberoamericana; Santafé de Bogotá: CEJA, Pontificia Universidad Javerina, 1998a, pp. 80-81.

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de conservação e reprodução daquilo que é efetivo em face aquilo que poderia ser, ao outro. A

semântica tende a ocultar a seleção que, a despeito dela, continua a produzir sempre mais

diferenças, complexidades, outros.

2.2 Sentido como meio e forma

Observou-se, até aqui, que sentido deve ser entendido como um evento relativo a

dois tipos específicos de sistema: o psíquico, sistema capaz de experienciar sentidos, e o

sistema social, aquele capaz de reproduzir sentidos. Desde esse prisma, passa a estar referido

tanto à consciência quanto às comunicações, realidades sistêmicas que não se confundem nem

se determinam.

Tradicionalmente o conceito sentido esteve vinculado à idéia de sujeito, dele sendo

considerado uma qualidade intrínseca e responsável por toda produção de conhecimento, por

emissão e recepção de conteúdos comunicativos. Para essa tradição teórica consciências são

agências de sentido. Porém, segundo a matriz sistêmica luhmanniana o conceito de sentido

exige uma aproximação teórica diferente, de base formal, i.e., que não tome como referência

um dado sistema nem indique qualquer caráter ontológico para a sua existência, mas que leve

em consideração tão somente o que constitui o sentido, a distinção entre meio e forma.61 Mas,

o que indica os conceitos meio e forma? Como operam distinções?

Um meio pode ser entendido como âmbito no qual os elementos constitutivos

encontram-se acoplados de modo frouxo ou amplo. Diversamente, a forma é âmbito no qual

os elementos do meio se acoplam de modo rígido ou restritivo. Meio/forma é, pois, distinção

entre arranjos de certos elementos de tal maneira que um meio enseja o engendramento de

inúmeras formas, possibilitando sempre mais distinções do mesmo tipo e em escala crescente

de complexidade, incluindo-se aí o cruzar de um lado para o outro das formas. Significa dizer:

o que se indica como forma em dada distinção pode funcionar como meio, em outra. O

exemplo desse cross, como isso opera na linguagem – que é meio e forma da comunicação – é

bem ilustrativo: face ao meio acústico as palavras são formas, mas face às proposições que

elas podem formular palavras são meios para essas proposições; face ao meio linguagem,

oralidade e escrita são formas.62

61 LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p.232. 62 LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p.233-234.

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Do exposto pode-se inferir que todos os sistemas sociais – o direito, a arte, a

economia, a religião, a educação, para citar alguns – operam uma complexa trama de seleções

informativas que viabiliza sua sempre delimitação do ambiente63, a sua sempre distinção

enquanto um sistema diferenciado, ao mesmo tempo em que possibilita o fluxo comunicativo,

a sociabilidade. Direito e arte são, portanto, tanto formas quanto meios da comunicação.

Construído por operações sistêmicas de diferenciação sistema/ambiente, sentido é o

elemento que viabiliza seleções no presente, e permite que seleções sejam esperadas no

futuro. Sentido confere especificidade ao sistema ao permitir que ele distinga-se do ambiente

a medida em que opera desde esses sentidos. É a diferença entre aquilo que o sistema

seleciona e que sempre remete a ele mesmo, e aquilo que ele não seleciona e que permanece

no horizonte dos possíveis e, desse modo, passíveis de serem posteriormente selecionadas,

assegurando assim ao sistema a possibilidade de permanecer operando64.

As fronteiras de um sistema de sentido – aquilo que o permite identificar-se como

algo distinto do ambiente – são definidas a cada operação do sistema, a cada distinção, e é

isso que permite as remissões auto e hetero-referenciais, todas elas operações do sistema no

sistema. A identidade do sistema é, pois, resultante da diferença entre sistema e ambiente. Ou

dito em outros termos, a identidade sistêmica é a unidade da distinção sistema/ambiente. A

identidade constitui-se na diferença, dela não prescindindo.

Sabe-se que sentidos são meios da comunicação. Tal como a luz (meio) que só é

percebida desde os objetos que ilumina (forma), os sentidos só são observáveis nas

comunicações (formas), ainda que sejam pressupostos das comunicações que os torna

observáveis.65 É somente quando o sentido se torna forma que o lado positivo da distinção –

aquele tomado como observador e indicador de uma diferença – faz luzir aquilo que, enquanto

meio, é tão somente um horizonte de possíveis. Porém, o lado negativo dessa mesma forma é

também um observador, e, enquanto tal, é lado positivo da forma. Tem-se, então, que toda

forma pressupõe sempre dois lados, é unidade da diferença entre os dois lados, ou tornando

ainda mais complexa a fórmula, toda forma é constituída de formas. O meio da forma são

outras formas que, contudo, podem ser indistinguíveis enquanto tais pela forma observante.

63 LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução de Ciro Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005a. 64 Ibdem, p. 27 e seguintes. 65 MASCAREÑO, Aldo. Sociología del método: la forma de la investigación sistêmica in: Cinta de Moebio, n. 26, 2006, p. 6, Santiago: Universidade de Chile. Disponível em <http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/src/ inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=10102601>. Acesso em: ago 2009.

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Essa fórmula indica, portanto, pistas para uma observação. Deve-se buscar observar

sentido de direito em formas capazes de fazê-lo “reluzir”. No âmbito canonizado do direito,

por exemplo, lei, perecer, decisão judicial são algumas dessas formas. Contudo, também é

possível perceber que sentidos ignorados, ainda não tornados tema da comunicação

generalizada do direito canonizado, luzem para outro observador, para o lado não canonizado,

constituindo-se em formas também. Nesse passo, pode-se cogitar a existência de sentidos de

direito “fora” do direito. E tais sentidos são, para o observador que se coloca do lado positivo

da forma estabilizada de direito, um horizonte de possíveis ainda indiscerníveis. Mas se do

interior do direito generalizado não é possível observá-los enquanto constitutivos do meio da

forma direito, que nova distinção se faz exigível para fazer esses sentidos luzirem e, assim,

talvez irritarem o direito?

A auto-observação desde uma observação de segunda ordem possibilita à forma

observante redimensionar a percepção de si mesma, sempre restringida pelo ponto cego de

sua constante auto-constituição. A observação de segunda ordem pressupõe tanto hetero-

referência, i.e, uma reentrada do meio na forma, quanto capacidade de toda forma de sentido

se deixar sensibilizar pelo diferente de si e aprender com ele. No caso especifico do sistema

do direito, cuja função é operar normatividade – operação auto-constitutiva e cega do sistema

–, a atividade cognitiva traz pressuposta, como afirma Luhmann,

(...) um esquema de aprendizagem que pré-determina com suficiente clareza o que entraria em jogo como expectativa substitutiva, ao não se cumprir uma expectativa. Na medida em que semelhantes esquemas de aprendizagem possam ser desenvolvidos, também o direito poderá aprender e adaptar-se ao seu ambiente.66

Nesse passo, uma observação de segunda ordem proporcionada pela arte – ou pela

sociologia, ou por ambas, como é o pretendido aqui – talvez seja um modo possível de o

direito obter novos ganhos cognitivos. A arte, enquanto forma, pode fazer luzir outros

condensados de sentidos, expectativas substitutas, vez que fazer aparecer o mundo no mundo

por intermédio da imaginação é a função da arte. Ao acoplar-se ao direito, talvez possibilite a

este não só aprender – atualizar-se – com o mundo, mas, quiçá, transformar-se para o mundo.

Uma outra questão se impõe quando sentidos são tomados como tema. Sendo eles

eventos, formas efêmeras que só tem realidade observável no instante de uma distinção, como

66 LUHMANN, Niklas. O enfoque sociológico da teoria e prática do direito. Tradução de Cristiano Paixão, Daniela Nicola e Samantha Dobrowolski. Revista Seqüência, 28, ano 15, junho de 1994a, p. 20 Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/sequencia/>. Acesso em: out 2010.

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é possível falar-se em uso recursivo de sentidos, de condensados de sentidos? Como é

possível afirmar que eventos se generalizam e se estabilizam para então serem mobilizados

vezes sucessivas? É possível se afirmar que uma forma artística, um filme, por exemplo,

possa generalizar sentidos?

A generalização de sentidos só é possível se sentidos forem insertos em um quadro

de expectativas da sociedade, um quadro de auto-referencialidades, elas próprias constituídas

desde sentidos já generalizados. Esse quadro assume a forma de semânticas, auto-descrições

sociais que, embora tendendo à produção de um sentido de estabilidade, acompanham a

complexidade da sociedade – ainda que em compasso diferente –, seja reproduzindo a si

mesmas em sempre novas variantes, seja acompanhando a evolução dos meios difusores67,

generalizadores dessas semânticas, seja antecipando-se a efetivas mudanças da sociedade.

As variações semânticas são também operações de seletividade, de diferenciação e,

portanto, de inserção (institucionalização) desse meio (sentidos) em um sistema de auto-

referência de modo a torná-lo capaz de proceder diferenciação sistêmica e constituir-se código

operativo desse sistema assim diferenciado, generalizando-se, portanto. O amor, o dinheiro, o

direito são alguns desses meios generalizados desde as distinções ou variações semânticas.

São meios simbolicamente generalizados das operações sociais, da comunicação, portanto.

Semântica é, pois, constituída de um condensado de sentidos, conceitos produzidos e

refeitos desde um horizonte em movimento, descentrado, que sempre – diria Gilles Deleuze –

os repete, mas os diferencia indicando, portanto, “(...) ‘o parte alguma’ originário e o ‘aqui-

agora’ deslocado (...)”.68 Em outros termos, a distinção procedida pela semântica em um

horizonte de possíveis, é sempre um deslocamento que vai da possibilidade à atualização, do

possível como potência à realidade como atualidade, tornado visível em um lampejo, e

descrito desde um sentido de permanência e integração espaço-temporal que oculta seu

paradoxo constitutivo: a eventualidade do permanente/a permanência do eventual, a ontologia

do contigente/a contingência do ontológico.

A auto-descrição da sociedade tende a ocultar a dimensão eventual do sentido

descrevendo-o como uma estrutura de longa duração. Quando essa função de ocultamento não

logra êxito desde as descrições procedidas, tornando-se evidente as discrepâncias entre o

descrito e o percebido como atualidade, têm lugar outras descrições de modo a permitir a 67 A oralidade, a escrita e, mais hodiernamente, os meios técnicos de produção e reprodução de som e imagens, bem como todas as tecnologias de produção de animações – simulacros, com diria Baudrillard – são alguns desses difusores. 68 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. 2 ed, Rio de Janeiro: Graal, 2006, p.17.

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generalização e estabilização da forma de produzir/reproduzir e descrever as comunicações. É

desse modo que a sociedade contemporânea, por exemplo, descreve como medieval aquela

sociedade por ela designada como centrada e estabilizada desde um sentido de cristandade. E

ao mesmo tempo, essa mesma contemporaneidade descreve a si mesma como inserta em crise

de sentido indicando tal crise como força, quase insuperável, de ruptura social e total

desumanização do homem, pelo fato de promover crescente apelo e submissão ao tecnicismo,

e conseqüente abandono de valores entendidos como humanistas.

Descrições de crise eminente, de falta de referência, ausência de sentido vêm como

sucedâneos àquelas que apontam a suposta segurança de tempos pretéritos ou futuros, sempre

frustrada no presente: o futuro precisa constituir-se, no presente, desde a re-significação de

certos sentidos do passado para assim superar a crise do presente no futuro. Essa rebuscada

substituição descritiva faz com que, paradoxalmente, a longa duração se restabeleça ainda que

oculta em uma forma de descrever a sociedade que se percebe cambiante: trata-se agora da

instituição da crise e do risco como marcas de longa duração, como constitutivos da sociedade

contemporânea. Perceber a sociedade como altamente cambiante e, portanto, de alto risco tem

possibilitado, no mais das vezes semânticas nostálgicas.

Observou-se, no percurso desse trabalho, que o sentido é pré-requisito de certos

sistemas autopoiéticos – psíquicos e sociais – vez que os elementos constitutivos básicos de

tais sistemas são eventos, i.e, desaparecem tão logo aparecem. Os sistemas não suportariam

acumular infinitamente sua sempre crescente complexidade. Esta instabilidade é,

paradoxalmente, a causa da reprodução do sistema, e, portanto, de sua continuidade. O

sentido constitui-se na instabilidade do sistema, e a estrutura de sentido produz-se e reproduz-

se na diferença entre a atualidade e a potencialidade. É, desse modo, um ponto intersticial no

duplo atual-virtual, aquilo que assegura a unidade da diferença que o duplo instaura –

atual/virtual – e a complexidade que a diferença incrementa.

Daí ser possível concluir-se que, sistemas de sentido têm na constante desintegração

pela perda de seus elementos – eventos comunicativos – a garantia de sua continuidade, a sua

longa duração. O sentido, afirma Luhmann, “(...) es uma representación de la complejidad. El

sentido no es uma image o un modelo usado por los sistemas psíquicos o sociales, sino,

simplemente uma nueva y poderosa forma de afrontar la complejidad bajo la condición

inevitable de uma selectividad forzosa”.69 Sem a produção de sentidos é impossível aos

69 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad: de la unidad a la diferencia. Edicción y traducción de Josetxo Beriain y José María Garciá Blanco. Madrid: Trotta, 1998b, p.29.

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sistemas psíquicos e sociais operarem na complexidade do mundo. Sem sentidos não é

possível pensamento nem comunicação. Sentido é, pois, o que resulta de seleções, e estas só

são possíveis desde sentidos.

Os sistemas procedem então suas operações desde de sentidos os quais funcionam

como referências recursivamente mobilizáveis, de tal modo que torna possível vincular

eventos comunicativos, criando a percepção de não eventualidade, a ilusão de fluxo contínuo

da comunicação, ocultando a improbabilidade comunicativa por ser sempre esta uma seleção

que cria o evento sentido. Paradoxo. “El sentido no es otra cosa que una forma de

experimentar y de realizar la inevitable selectividad.”70 Os sentidos que se generalizam e se

estabilizam assumem a forma de uma estrutura que viabiliza a criação de uma tipologia que é

recursivamente mobilizada. A função dessa estrutura é, portanto, “(...) la organización de la

atención de manera alternante entre la actualidad (cierta pero inestable) y la potencialidad

(incierta pero estable)”.71

Uma última questão se impõe. Sendo eventos, os sentidos são fenômenos que

existem no momento mesmo em que existem. Então, como observá-los? Se aquilo que o

conceito sentido designa tem um aparecer efêmero no mundo, um fenômeno sem referência a

qualquer sujeito transcendental ou qualquer ontologia, então observá-lo terá como requisito a

fenomenologia como método. No caso de uma obra de arte é observá-la no momento mesmo

em que é apreciada, no momento em que sentidos já generalizados dessa e de outras obras

identificadas como arte reverberam na observação.

A apreciação de uma obra de arte é a operação que permite perceber a distinção entre

realidade – o real atualizado – e ficção – o real indiscernível em um horizonte de

possibilidades – criando-se, assim, no interstício de um e outro o sentido da obra na

observação.

70 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad: de la unidad a la diferencia. Edicción y traducción de Josetxo Beriain y José María Garciá Blanco. Madrid: Trotta, 1998b, p.27. 71 Ibdem, p.27.

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Capítulo 3

DIREITO E ARTE COMO SISTEMAS SOCIAIS

Apontou-se no capítulo anterior que o entendimento da dinâmica constitutiva da

sociedade e de seus os sistemas sociais constitutivos, passa necessariamente pelo

entendimento das operações tipicamente sociais, i.e, comunicações, produções de sentido.

Esse capítulo, organizado em dois itens – Estabilizando expectativas: comunicação

jurídica e Observando o mundo no mundo: comunicação artística – tem por escopo

explicitar às especificidades do direito e da arte enquanto sistemas sociais, buscando

descrever as respectivas funções que esses sistemas funcionalmente diferenciados

desempenham na sociedade hodierna ao constituírem-se como formas da comunicação.

3.1 Estabilizando expectativas normativas: comunicação jurídica

Enquanto meio simbolicamente generalizado da comunicação o direito também é

sistema funcionalmente diferenciado. Como meio, os elementos constitutivos do direito são

capazes de trazer um componente motivacional às mais diversificadas comunicações,

mormente naquelas situações onde os partícipes são estranhos, estão distantes, ou se

encontram em discordância, todas essas situações que potencializam a improbabilidade da já

tão improvável comunicação. O fato de cada vez mais sentidos jurídicos estarem presentes

nos diversos âmbitos da sociedade, condicionando a aceitação ou a rejeição das

comunicações, e funcionando, até certo ponto, como um equivalente da moral72 naquilo que

72 Observa-se que para a moral, enquanto uma força de integração social, todas as pessoas estão igualmente incluídas numa comunicação social homogênea o que autorizaria a valoração de todos com base no padrão bom/mal estabelecido conforme congruência ou discrepância face às expectativas homogeneizantes da moral. Trata-se, portanto, de um padrão simbolicamente generalizado e a todos igualmente aplicáveis. A moral não é, portanto, capaz de observar a existência de diferentes âmbitos comunicativos nos quais as pessoas podem ou não estar incluídas, o que fará toda a diferença acerca do que elas devem tomar como bom ou mal e assim pautar suas condutas desde esse código. Nesse passo, falar de certa equivalência funcional do direito à moral significa tão somente que o direito também é capaz de promover consistência maior às comunicações, possibilitando acoplamento entre os vários âmbitos sociais, funcionando então com um elemento facilitador de comunicações em situações, muitas das vezes precárias. Normas são eventos comunicativos que possibilitam um fluir comunicativo.

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pode promover o fluir comunicativo, são os maiores indicativos de sua generalização

simbólica.

Operativamente, o direito enquanto sentido simbolicamente generalizado pode ser

mobilizado ali onde se entender existir um ambiente de pluralidades comunicativas e, por

conseguinte, de improbabilidades comunicativas eminentes. Nesse passo, o direito torna

possíveis acoplamentos mais firmes em situações comunicativas que, devido à alta

potencialidade seletiva, se constituiriam de modo mais fluido, mais frouxamente.

A existência do direito como sistema funcionalmente diferenciado e ao mesmo

tempo como meio simbolicamente generalizado da comunicação permite atualizar e, portanto,

reproduzir uma sociabilidade que, na contemporaneidade se observa e descreve como plural,

complexa e contingente, sem estruturas ocupando posições hierarquicamente superiores umas

as outras. Some-se a isso a total impossibilidade de previsão de como os demais sistemas

sociais reagirão face às comunicações uns dos outros, restando previamente configurada tão

somente a dupla contingência que envolve cada fluir comunicativo. Em tal contexto, o direito

observa e transforma toda essa complexidade em sua própria linguagem, em seu próprio

código, disponibilizando-o aos demais sistemas sociais na forma de um sentido estabilizado,

um meio que os permitem enfrentar a dupla contingência e, portanto, a possibilidade de

frustração que envolve toda comunicação.

Em seu fluxo comunicativo, o sistema jurídico processa, i.e, produz, expectativas

normativas desde expectativas já estabilizadas. Mas, o que são expectativas normativas, o que

as distinguem de outras formas? Normativas são aquelas expectativas que, ao se tornarem

tema de comunicação indicam sua permanência a despeito de qualquer frustração. Em outros

termos, uma expectativa normativa não aprende com suas desilusões, sobrevive e se reproduz

por elas. Enquanto meio da comunicação, o direito também possibilita a sociabilidade em

contextos onde conflitos – desilusões, frustrações – tornam ainda mais improvável o fluxo

comunicativo. Enquanto forma, o direito tem por função atuar ali onde expectativas se

recusam a aprender com as frustrações, ou em outros termos, ali onde a abertura cognitiva ao

ambiente de um ou vários sistemas sociais ou psíquicos em acoplamento se mostra refratária

aos ruídos do ambiente, radicalizando a improbabilidade da comunicação – conflito. Assim,

se a relação marital se mostra frustrante, recorre-se ao divórcio para sanar a relação,

extinguindo-a.

Meio e forma da comunicação, comunicações jurídicas promovem, portanto, uma

redução da complexidade social ao generalizar expectativas normativas. Realiza essa

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operação mobilizando recursivamente outras comunicações jurídicas, produzindo e ao mesmo

tempo firmando na norma sentido jurídico. Normas jurídicas são, portanto, estabilização e

generalização de expectativas normativas.

Pode-se daí depreender que o sistema jurídico, enquanto complexo de operações

comunicativas realizadas desde o código direito/não-direito, e sempre procedidas no presente,

cria um vínculo com o futuro, tornando prováveis as comunicações em situações de

exacerbação da improbabilidade comunicativa. Desde essa observação é pertinente descrever

as comunicações jurídicas como facilitadoras do complexo e contingente fluxo comunicativo.

Em outros termos, se a função do direito é produzir direito desde o direito, toda essa produção

ao ser disponibilizada no ambiente social funcionam como o meio de sentido desde o qual

outras comunicações, jurídicas ou não, podem acontecer.

Todo sistema social há que proceder a confrontações, ou seleções, entre várias

possibilidades de solução a problemas que lhe assomam; há de operar de modo a tornar

provável aquilo que é improvável, as comunicações. As confrontações podem ser reduzidas

operacionalmente e, no caso do direito, essa redução é indicada como confrontação

direito/não-direito. Esse par de alternativas confrontantes funciona como um código de

seleção e é, ele próprio, uma seleção auto-constitutiva do sistema jurídico. Tem-se, desse

modo, na seleção ou confrontação entre possibilidades o que se pode indicar como função de

um sistema.

A função do direito é, portanto, selecionar e disponibilizar orientações – normas –

que possam ser mobilizadas diante de parceiros diversos no presente e no futuro, de modo que

tais orientações configurarem-se expectativas de que em situações similares serão possíveis

conseqüências semelhantes criando assim, em ambientes de grande incerteza e risco, o sentido

de confiança. Contudo, não é função do direito estabilizar em formas rígidas e eternas certas

expectativas, mas tão somente estabilizá-las em estruturas que permitirão generalização.

Como uma expectativa normativa é tão somente a intenção de uma subjetividade, uma

pretensão, o direito enquanto evento social, de comunicação só se produz...

(...) pela seleção e generalização de semelhantes pretensões normativas. Estas são válidas ao serem aceitas por outros, ao perdurarem, ou seja, quando podem ser repetidas em outros casos e formalizadas de maneira relativamente livre do contexto.73

73 LUHMANN, Niklas. O enfoque sociológico da teoria e prática do direito. Tradução de Cristiano Paixão, Daniela Nicola e Samantha Dobrowolski. Seqüência. Estudos jurídicos e políticos, 28, ano 15, junho de 1994a. Disponível em: <http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15871/14360>. Acesso em: out 2010, p.20.

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A estabilização de expectativas indica que em um futuro sabidamente incerto elas

poderão ser frustradas e terão, como alternativa contra-fática, uma norma jurídica. Desde essa

observação é possível redimensionar-se a função da comunicação jurídica: normas jurídicas

não são instrumentos de controle social, ainda que possam ser mobilizados com esse fim; elas

constituem um horizonte de possibilidades comunicativas – inclusive o cerceamento de certos

comportamentos –, um horizonte de sentidos atualizáveis e mobilizáveis em situações de

frustração. Considerando-se, portanto, a função jurídica face à temporalidade74, tem-se que

normas devem ser entendidas como expectativas de expectativas.

O conceito de estabilização pode funcionar como equivalente àquele de tradição, vez

que ambos referem-se à recursividade e a auto-referência de todo sistema jurídico. François

Ost – que seguindo Gadamer75 – aponta que o direito positivado sob a forma de lei, a despeito

de ser concebido como instrumento de mudança jurídica, está imerso em uma trama de

significações que lhe garante efeito na aplicação, não se distinguindo muito daquilo que

ocorre quando se está frente a um direito de base consuetudinária, sempre descrito como

fundado na tradição. Assim,

(...) tão revolucionária e inovadora que seja, qualquer lei pressupõe um conjunto de contextos interpretativos que lhe preexistem, envolvem-na e lhe sobrevivem sem que estas leis estejam aptas a afetá-las de modo radical. (...) Sem negar a possibilidade de modificar marginalmente o sistema, é preciso, entretanto, tomar a exata medida das correções geradas por um espaço literalmente saturado de noções, de princípios e de processos prévios, à luz dos quais qualquer elemento novo será lido e entendido, ao passo que, diferentemente das outras tradições, a tradição jurídica é institucionalizada e explicitamente normativa. (...). Das considerações precedentes não seria preciso concluir que o discurso jurídico, no qual está imersa a nova lei, seja necessariamente um discurso conservador no sentido de se contentar em repetir, incansavelmente, a mesma antífona. O que sustentamos é que, nutrida de tradição, a interpretação jurídica lança uma ponte entre a atualidade do litígio e a anterioridade da tradição.76

74 Acerca da dimensão temporal, material (ou objetiva) e social da função jurídica, e de toda função social, consultar: LUHMANN. Sociologia do Direito II. Tradução de Gustavo Bayer Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985a; Idem, Sistemas sociales. Lineamientos para una teoria general. Traducción de Sylvia Pappe y Brunhilde Erker. Barcelona: Anthropos; México: Universidad Iberoamericana; Santafé de Bogotá: CEJA, Pontificia Universidad Javerina, 1998a; idem, La sociedad de la sociedad. Taducción de Javier Torres Nafarrate. México: Heder; México: Universidad Iberoamericana, 2007a. 75 Para uma breve incursão à temática da tradição Cf. GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Organizado por Pierre Fruchon. 3ed, Rio de Janeiro: FGV, 2006. Para estudos mais ampliados, Cf. GADAMER, Hans-Georg, Verdade e Método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flavio Paulo Meurer. 10 ed, Petrópolis: Vozes, 2008. 76 OST, François. O tempo do direito. Tradução de Élcio Fernandes. Bauru, SP: EDUSC, 2005, pp.94-96.

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Com Ost tem-se, portanto, que a descrição do conceito de tradição ao responder a

pergunta como é possível o direito e como ele se reproduz, traz explícita uma pretensão

ontológica da tradição, e a coloca na centralidade da constituição do direito. Desde esse viés,

é a interpretação possibilitada por pré-compreensões dadas pela tradição que constitui o

direito.

Afastando-se a idéia de tradição, mas mantendo-se o viés interpretativista, Pierre

Bourdieu77 traz o entendimento que a decisão judicial, forma de interpretação, permite

reescrever e mesmo re-significar as normas à luz de novas situações; é possível reinventá-las

ou afastá-las para fazer frente às novas demandas. A interpretação garante, portanto, a

historicização da norma.

A teoria social aqui mobilizada vai mais além de uma visão ontologizante ou

historicizante do direito, vez que ao desontologizar a tradição não se deixa seduzir por outro

cânone, a saber, o de reduzir as explicações acerca das operações jurídicas às interpretações,

às operações da subjetividade. O sentido de permanência que o conceito tradição indica é

relativizado e deslocado para o conceito estabilidade. Ao invés de reafirmar a natureza

conservadora do direito por sua inextricável ligação à tradição, ou de afirmar a sua

historicidade por força dos agenciamentos interpretativos, formula-se a pergunta: como é

possível a constituição, e a permanência, do sistema jurídico em contexto de crescente

complexidade, contingência? Ou mais simplesmente, como é possível a estabilidade jurídica

no contexto sempre em transformação da contemporaneidade? A chave está no próprio

conceito de estabilidade, que pode ser entendido como...

(...) a mistura muito particular entre, de um lado, durabilidade do possível e, de outro, reprodução temporal das formas que possibilitam a reprodução das possibilidades. Estabilidade é sempre essa rara ligação de um acoplamento amplo, que pode se conectar a uma forma estável, e tem uma temporalidade dependente do modo de operação do sistema.78

Vislumbra-se, portanto, que o conceito de tradição e sua descrição funcionam como

um elemento memorial do sistema, um elemento de auto-descrição sistêmica, que legitima o

operar do sistema, contudo, esconde o modo desse operar. Esconde o paradoxo que todo

sistema social enfrenta ao produzir comunicações: o paradoxo de sua seleção constitutiva,

77 BOURDIEU, Pierre. A força do direito. Elementos para uma sociologia do campo jurídico in: O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand, 1989, pp. 209-254. 78 LUHMANN, Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009a, p.235.

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aquilo que o distingue e o diferencia, enquanto sistema social, de seu ambiente. Também o

vigor e a qualidade da norma jurídica independe da duração de certo conteúdo normativo, ou

de sua capacidade de vincular o hoje ao passado por ser entendido como um referencial que,

vindo do passado, permanece desde uma tradição.

Não tendo uma realidade ontológica, o direito não é dado desde sempre pela tradição,

estando sua vigência sempre referida a algo variável, a certa escolha – uma decisão, um ato

legislativo – dentre outras possíveis. Sua vigência decorre do ato mesmo de estatuir-se. É,

portanto histórico, modificável, porque é sempre seleção, distinção entre o que é e o que não é

direito e que se realiza desde o direito, seleção que se esconde por detrás de descrições tais

como aquela que o apresenta como fundado na tradição. Assim, entender a permanência do

sistema não como mobilização de uma tradição e sim de expectativas estabilizadas, traz um

“plus” de complexidade, de reflexividade e reflexão, por indicar alternativa à distinção que o

conceito de tradição descreve, por permitir confrontar o que é observável e o que é possível.

Além da dimensão temporal, a função do direito ostenta também uma dimensão

material ou objetiva. Novas normas sempre podem ser regulamentadas pelo sistema jurídico,

tornando-se jurídicas. Equivale dizer que o direito é sempre experimentado e atualizado, é

sempre modificado. O conteúdo normativo é, pois, contingente – hoje pode ser um e amanhã

um outro diametralmente oposto –, sempre forçado a reajustes, detalhamentos, diversificações

tais que o torne capaz de se responder a seu ambiente em constante fluidez. Observa-se,

portanto, que em seu âmbito material o direito oferta sempre novos conteúdos de orientação,

uma vez que inserto em um ambiente complexo, de inúmeras possibilidades irrita-se e força-

se a sempre novas seleções, procedendo a mudanças em seus conteúdos normativos, quer por

substituição de uma norma por outra, quer por modificação no alcance interpretativo da

norma vigente, ou ainda por remodelação dessa mesma norma. Já no âmbito temporal, o

direito sempre oferta orientações que possibilitam no presente a sociabilidade, o fluxo

comunicativo, pela generalização da expectativa de que, no futuro sempre arriscado, haverá

soluções para situações semelhantes.

Essas possibilidades, material e temporal, de atualização do direito ligam-se à outra,

de cunho social: generalizar e estabilizar expectativas normativas significa transformar em

comunicação jurídica pretensões subjetivas que, uma vez juridicamente tematizadas,

possibilitam que outras comunicações do mesmo tipo possam ter lugar em diferentes âmbitos

sociais. Assim, as constantes mudanças e diversificações verificáveis nos conteúdos

normativos devem alcançar um número expressivo de pessoas, e isso só ocorrerá se tais

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conteúdos forem independentes do conhecimento e sentimento individuais. Nesse passo, a

dimensão social do direito o indica como elemento motivacional capaz de gerar uma

indiferença quanto a opiniões e comportamentos divergentes. As divergências permanecerão

em um horizonte de indiscerníveis, até que o direito seja capaz de, por elas, se deixar irritar.

Ao direito, como já dito, cabe a função de estabilizar expectativas normativas,

possibilitando assim uma drástica simplificação da realidade, organizando-a em termos

jurídicos. Ao operar seletivamente no mundo o direito só é capaz de observar e distinguir-se

daquilo que não é direito. Ao direito não interessam as relações interpessoais de amor ou

amizade, nem as operações da Bolsa de Valores, nem os desfiles de escolas de samba do Rio

de Janeiro, salvo se todas essas operações comunicativas forem frustradas em suas

expectativas normativas, que serão, em todo caso, jurídicas, ou seja, serão sempre – enquanto

expectativas normativas dirigidas à diferenciação entre o que é e o que não é direito –

operação do sistema jurídico e, portanto, normas.

Para um observador de primeira ordem só existe no mundo aquilo que ele observa

desde suas próprias seleções. O direito observa e, nessa operação, não percebe aquilo que ele

não vê, inclusive a si mesmo observando. A observação de primeira ordem oculta, assim, o

mundo enquanto horizonte de possibilidades e naturaliza o que do mundo já foi atualizado e

estabilizado. Para superar, ainda que eventualmente, essa cegueira própria a todo sistema

autopoiético, o direito logrará observar-se como observador quando se deixar sensibilizar por

outra forma de observar, acoplando-se a ela, produzindo uma observação de segunda ordem.

Talvez esse ganho seletivo possa ser ainda mais rico se o direito perceber-se nas observações

da arte, já que esta incita não só a percepção – isso, toda forma de comunicação é capaz de

realizar –, mas, sobretudo, a imaginação.

3.2 Observando o mundo no mundo: comunicação artística

Desde a lógica operativa do sistema da arte qualquer coisa do mundo – a sociedade e

seus sistemas sociais, as consciências, o ambiente ecológico, realidades reais ou imaginadas –

tudo que possa ser transformado em tema de comunicação artística, uma obra de arte.

A função precípua de toda arte, aquilo que a distingue de qualquer outra coisa de seu

ambiente, incuíndo-se aí outros sistemas sociais, é “(...) es hacer que el mundo aparezca

dentro del mundo – y esto con la vista colocada en la ambivalência de que todo hacer

observable sustrae algo la observación; es decir: todo distinguir y señalar dentro del mundo

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oculta el mundo (...)”79. Esse observar é sui generis, visto que tanto o artista quanto o

apreciador da obra de arte procedem aquilo que Luhmann designa de observação de segunda

ordem; trata-se de observadores que observam observações. Significa que tanto a arte quanto

seu apreciador ao produzirem suas observações de primeira ordem – produzir arte e apreciar a

obra de arte – produzem observações de segunda ordem acerca do mundo.

A arte, portanto, é observadora e descritora privilegiada das diversificadas operações

comunicativas procedidas nos diferentes âmbitos da sociedade. E ao fazer aparecer o mundo

desde suas observações de observações, torna visível a dimensão policontextural desse

mundo, indicando que diversas são as formas constitutivas do mundo, e que diversos são os

sentidos e descrições do mundo produzidas por essas formas. “Por ello, la obra de arte guia

al observador hacia la observación de la forma.”80 E ao fazê-lo, possibilita que se vislumbre

ambos os lados da forma: que o horizonte de indiscerníveis do qual as formas se constituem é

povoado de formas distinguíveis – formas de formas; que o caos do ambiente pode guardar a

possibilidade de ordem; que o sem sentido é tão somente sentido negado enquanto tal pelo

observador que marca e indica qual é o sentido; que o mundo, enquanto ponto cego de todo

observador, se torne visível para novamente ocultar-se nessa visibilidade; em suma, a arte

incita a ver que há possibilidades de outras formas nas formas. Mas como isso é possível?

Como se constitui a especificidade comunicativa da arte?

Sabe-se que toda e qualquer comunicação exige a participação de consciências como

seu ambiente. Mas essa participação é mais contundente no que tange a operação da

percepção do que a da cognição. A cognição atende mais a reflexividade da consciência e da

comunicação, serve mais a repercussão da comunicação do que ao evento da comunicação, de

produção de informação. É a percepção que acopla a consciência ao mundo; é por meio da

percepção que as consciências participam da comunicação; a percepção mediatiza a relação

consciência-comunicação. A esse respeito Luhmann é categórico.

Toda comunicación depende ivariablemente de la percepción (...) la conciencia está ocupada día a día, hasta minuto a minuto, con las

79 LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009a, p. 251. 80 LUHMANN, Niklas. El arte de la sociedad. Taducción de Javier Torres Nafarrate con la colaboración de Brunhilde Erker, Silvia Pappe y Luis Felipe Segura. México: Heder; México: Universidad Iberoamericana, 2005b, p. 246.

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percepciones; por ellas está fascinada con el mundo exterior. Sin la percepción la conciencia pondría fin a su autopoiesis.81

Embora a percepção se encontre sempre alerta face ao mundo sofre limitações por se

referir tão somente àquilo que possa ser, por ela, encontrável no mundo. E o perceptível no

mundo é o mundo conhecido. À percepção não cabem “cálculos” decisórios elaborados e

reflexivos, vez que seu operar é simplesmente perceber, rapidamente identificar ou não a

comunicação, selecionar imediatamente aquilo que lhe chama a atenção. Assim, “(...) la

percepción está formada para buscar información dentro de um mundo conocido, sin que

tenga que decidir-se expressa y excepcoinalmente sobre ello. La percepción hace posible que

la conciencia se adapte de paso a situaciones de paso.”82

Mas toda comunicação há que ser transformada em seqüência de informações

devendo ultrapassar o âmbito do meramente preceptivo para, então, prosseguir. É preciso,

portanto, que a consciência opere em um meio que lhe permita distinguir entre o que foi e o

que não foi comunicado em uma comunicação, dando condições à comunicação retornar

sobre si mesma indagando acerca do que foi comunicado; um meio que permita a aceitação ou

o rechaço à comunicação. Em outros termos, é preciso que haja a possibilidade de

reflexividade e de um alto grau de clareza de sentidos comunicados; é preciso, portanto, alta

seletividade i.e, tornar sempre mais complexa a seletividade. O meio de sentido que permite

isso é a linguagem.

No caso específico da comunicação artística, além de estimular a percepção, ela

dirige-se a outra competência da consciência, a imaginação, operação mais lenta e reflexiva

que a percepção. É estimulando esta competência que a arte cria figurações, representações de

formas, por meio de uma “simulação auto-provocada de percepção”. Desse modo, a função da

arte de trazer o mundo ao mundo atualiza-se desde a criação de uma realidade imaginária

distinta da realidade habitual. A arte deve ser capaz de permitir que seus apreciadores

percebam essa distinção entre o habitual e o imaginado e se surpreendam com ela,

possibilitando que desde o seu interior sejam experimentáveis diferentes formas de sentido,

como por exemplo, crítica a determinado aspecto da realidade, ou imitação da realidade desde

um padrão de perfeição corrente na sociedade, ou a ilusão de que se fala diretamente ao

81 LUHMANN, Niklas. El arte de la sociedad. Taducción de Javier Torres Nafarrate con la colaboración de Brunhilde Erker, Silvia Pappe y Luis Felipe Segura. México: Heder; México: Universidad Iberoamericana, 2005b, pp.18-19. 82 Ibdem, p. 31.

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indivíduo, ou que se expressa a sua interioridade, ou ainda mais abstratamente, que se lida tão

somente com cores, texturas, e superfícies.

Ainda que a obra de arte use os meios lingüísticos – uma poesia – também aí há a

prevalência da imaginação face à percepção, vez que o sentido da poesia é difundido não

através de denotações, significados e sentidos propositados das palavras utilizadas, mas por

conotações, sentidos ornamentos que as palavras trazem ao texto. O que o constituem como

obra de arte é muito mais sua possibilidade de estimular a sensibilidade imaginativa do que a

intelecção. O texto, enquanto obra de arte, organiza-se desde auto-referências que,

recursivamente mobilizadas, produzem a unidade da auto e hetero-referência que o constitui,

produzem o sentido próprio das palavras no seu interior distinguindo-o do sentido usual das

mesmas palavras que se encontram em seu ambiente. É a possibilidade de percepção dessa

diferença de sentido que estimula a imaginação, tornando o texto obra de arte. 83

A arte produz um mundo no mundo, um mundo imaginário no mundo vivido,

traçando a distinção entre o habitual/imaginário e sensibilizando percepção e imaginação

efetuar seleções a partir disso. Com isso em mira Luhmann afirma ser pertinente entender-se a

arte como um equivalente funcional da linguagem84, um meio de sentidos que possibilita

comunicação, acoplando, como faz a linguagem, consciência e sistema de comunicação.

Prescindindo da linguagem para existir, ela própria opera como uma linguagem, introduzindo

reflexividade e alta seletividade na consciência. E como comunicação só é possível desde

outra comunicação, a arte é comunicação à medida que “(...) ya no se puede comunicar sobre

las obras de arte, sino también se puede comunicar a través del arte”85.

Não se pode confundir a função da arte com sua capacidade de representar ou

idealizar o mundo; tampouco se deve entendê-la como instrumento de alienação – como

queria, por exemplo, Guy Debor86 – ou de emancipação das massas – como profetizava

Walter Benjamin87. Por certo que a comunicação artística, ao ser repercutida em

comunicações secundárias e legitimada por semânticas, pode ser tomada como hetero-

referência de formas de inclusão/exclusão social, desde as mais sutis às mais odiosas; pode

também propiciar a estetização de diferentes âmbitos sociais, levando-os a se corromperem, a

83 LUHMANN, El arte de la sociedad. Taducción de Javier Torres Nafarrate con la colaboración de Brunhilde Erker, Silvia Pappe y Luis Felipe Segura. México: Heder; México: Universidad Iberoamericana, 2005b, p. 51. 84 Ibdem, p.41. 85 Op.cit, p.38. 86 Cf nota 44, capítulo 1, p.33. 87 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica in: Sobre arte, técnica, linguagem e política. Tradução de Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’Água, 1992,71-113.

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abrirem mão de sua própria auto-referência, de seus códigos operativos e adotarem código

alheio. Nessa direção, se tem como paradigma de estetização da política, por exemplo, aquela

procedida pelo regime nazista, principalmente por meio de obras como o brilhante filme O

triunfo da vontade da polêmica cineasta Leni Riefenstahl.88

Mas o certo é que todas essas mobilizações da arte, possibilitadas por diferentes

formas de acoplamento, não explicitam o modus operandi nem a função da arte. Melhor

dizendo, função e operação artísticas não são redutíveis a essas possibilidades de acoplamento

entre arte e demais âmbitos sociais.

Enquanto observador de primeira ordem, cuja função é realizar observações de

segunda ordem, a arte seleciona entre o que é o que não é arte, distinguindo entre sentidos de

arte que irá atualizar. Como qualquer sistema de comunicação, a arte é também improvável.

Para mitigar essa incerteza quanto a sua atualização, o sistema disponibiliza no ambiente

sentidos condensados e generalizados da arte, semânticas descritoras e legitimadoras da arte,

que funcionam como referências que orientam o apreciador a descrever aquilo que o

surpreende como arte, a surpreender-se com determinadas formas presentes em seu ambiente

e percebê-las como uma obra artística.

Os sentidos condensados da arte que estão disponibilizados nos museus, teatros,

galerias, periódicos, críticas podem, assim, ser recursivamente mobilizados para novas

produções de arte e novas descrições da arte, criando assim condições de possibilidade tanto à

contínua auto-constituição do sistema da arte quanto à observação da obra de arte como arte.

São, portanto, descrições de observações de segunda ordem, comunicações que tornam

observável a observação de primeira ordem que é inacessível diretamente.

A mundanização da arte permite-lhe reentrar em si mesma, dando-se a possibilidade

de aprender com sua re-significação pelo mundo. É a abertura cognitiva ao mundo que

permite à arte – a partir de seus próprios termos – ter acesso às expectativas estéticas do

mundo, podendo assim observar-se. É também a abertura cognitiva do mundo à arte que

permite ao mundo reentrar no mundo e, com isso, os sistemas sociais que formam o ambiente

da arte podem se perceber como observadores do mundo no mundo, e assim, se auto-

observarem.

Desse modo, se pode afirmar que direito é uma das coisas do mundo desde a qual a

arte produz suas comunicações, atualiza seus sentidos, desde onde ela constrói esteticamente

88 O triunfo da vontade, documentário apresentado pela primeira vez em março de 1935, teve por escopo a promoção e ampla difusão do ideário nazista desde o registro do 6º Congresso do Partido Nacional Socialista Alemão, realizado em 1934 na cidade de Nuremberg.

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o mundo. Como o “mundo” do direito é tanto representado quanto construído no “mundo” da

arte, é possível tanto observar o acoplamento direito-arte quanto vislumbrar, desde esse

entrelaçamento, como sentidos de direito são construídos “dentro” e “fora” do direito. Ou em

outros termos, como a indicação de certos sentidos jurídicos esconde a existência de outros.

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PARTE II

CONSTRUÇÃO DE SENTIDO DO DIREITO NO CINEMA

El enfoque fenomenologico describe la realidad tal como aparece. Aparezca como aparezca puede ser interpretada como la exclusión de otras possibilidades. Podría no ser lo que parece que es, pero su selectividad no puede ser negada.

Niklas Luhmann

(Complejidad y modernidad, p.28)

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Capítulo 4

DIREITO-CINEMA. O QUE PODE RENDER ESSE ACOPLAMENTO?

Viu-se, até o momento, que qualquer sistema social ou psíquico constitui-se desde

sua diferenciação de um meio, e que esse meio é constituído de sentidos. Significa que

comunicações e consciências operam em um meio de sentidos, produzem sentidos, e só

podem atualizar-se a partir de sentidos.

Sendo o sistema jurídico tanto forma quanto meio da comunicação, sua função social

não pode ser reduzida a um simples ordenamento de condutas. O sistema jurídico oferta

sentidos que, uma vez seletivamente mobilizados, poderão permitir a aceitação de outras

comunicações e essas, ao serem transformadas em informações, poderão possibilitar mais

comunicações no futuro. E por ser autopoiético e auto-referente como qualquer sistema social

o direito tende a uma clausura operacional que, uma vez radicalizada, pode levá-lo a uma des-

diferenciação já que uma forma autárquica extinguiria a operação constitutiva da própria

forma que é a operação mesma de diferenciação forma/meio (sistema/ambiente).

Frente a isso, o acoplamento estrutural apresenta-se como mecanismo imprescindível

de autopreservação do sistema, fornecendo-lhe a oportunidade de vislumbrar seu ambiente,

tornando-se também hetero-referente ainda que a partir de seus próprios termos. A abertura ao

ambiente possibilita o fluxo comunicacional, i.e, possibilita que comunicação produza mais

comunicação em âmbitos cada vez mais amplificados, sempre para além de cada sistema

comunicante.

Sabe-se que os sistemas sociais e, portanto o direito, produz, reproduz e disponibiliza

sentidos, mas não os experiencia. A experiência do sentido só ocorre na consciência, desde os

atributos da percepção e da imaginação. As consciências são as destinatárias das produções

artísticas vez que sua capacidade imaginativa é a condição de possibilidade da

experimentação e criação dos sentidos da arte. Daí pergunta-se: como algo imaginado pode

ser transformado em informação e comunicação jurídica? Como é possível a aproximação

entre direito e arte sem incorrer em risco de proceder-se uma descrição nos moldes canônicos,

i.e, de se buscar nas individualidades e seus agenciamentos resposta a essa questão?

Hetero-referência, estrutura de sentidos, acoplamento estrutural, descrições ou

semânticas são conceitos chaves que serão aqui mobilizados para se descrever a forma como

o direito, ao buscar referências de sentido fora de si mesmo, pode produzir sentidos a partir

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daí. Este capítulo propõe, portanto, indicar como é possível a hetero-referência do direito,

constituída desde o acoplamento direito-cinema, entendendo-se cinema como meio e forma de

arte e, portanto, meio e forma de sentido.

4.1 Direito-cinema. O direito se reflete nas imagens-movimento

O direito ao diferenciar-se disponibiliza suas estruturas ao ambiente, concorrendo

assim para a constituição do meio de sentidos, do horizonte de possibilidades desde o qual ele

e os demais sistemas podem continuar a diferenciar-se. Entenda-se por estrutura aquele

condensado de sentidos – expectativas – que ao ser mobilizado produz limites às relações no

âmbito de um sistema, possibilitando-lhe assim operar suas seleções em um horizonte de

possíveis relações. Ela tornar relativamente estável a comunicação, criando as condições para

que os demais sistemas insertos no ambiente de um dado sistema se deixem irritar pelos

excedentes de sentido, acoplando-se uns aos outros, viabilizando assim não só o fluxo

comunicativo como a co-evolução desses diferentes sistemas em acoplamento. A função da

estrutura é, portanto, organizar a atenção de modo que essa possa operar entre o atual e o

potencial.

Sistemas sociais acoplados processam, cada um com base em suas próprias

estruturas, aqueles sentidos disponibilizados pelo outro, incorporando em suas construções

comunicativas aquilo que “aprendeu” do ambiente e que agora passou a integrar o seu próprio

“acervo”, sua estrutura, atualizando assim sua distinção face ao ambiente.89 Os acoplamentos

estruturais atuam, portanto, como mecanismos de adaptação do sistema ao seu ambiente, não

no sentido de torná-lo dependente ou determinado por esse ambiente, mas de capacitá-lo a

“aprender” com esse ambiente e, com isso, dele se distinguir. Permite a re-significação de

elementos externos ao sistema, transformando-os em referências internas – auto-referências –

e evitando, assim, o isolamento autárquico que a autopoiese pode produzir. O acoplamento

estrutural é, nessa perspectiva, uma das condições de possibilidade da própria reprodução

sistêmica; é mecanismo crucial à não desintegração sistêmica.

89 Acerca da função das estruturas Cf. LUHMANN, Sistemas sociales. Lineamientos para una teoria general. Traducción de Sylvia Pappe y Brunhilde Erker. Barcelona: Anthropos; México: Universidad Iberoamericana; Santafé de Bogotá: CEJA, Pontificia Universidad Javerina, 1998ª; idem, La sociedad de la sociedad. Taducción de Javier Torres Nafarrate. México: Heder; México: Universidad Iberoamericana, 2007a; idem, Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009a; CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena y BARALDI, Cláudio. Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann. Traducción de Miguel Romero Pérez y Carlos Villalobos. México: Universidad Iberoamericana; Guadalajara: ITESO; Barcelona: Anthropos, 1996.

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Mas, o que há de especial no acoplamento direito-cinema? O que é possível

observar-se quando se observa tal acoplamento? Como provável resposta, cogita-se a

produção de sentidos de direito desde aqueles sentidos de direito que, disponibilizados por

meio e forma da arte, podem ser re-significados pelo sistema jurídico tornando-se,

efetivamente, direito.

A observação de segunda ordem proporcionada pela arte seria o modo pelo qual o

direito pode reentrar no mundo e perceber-se no mundo, desde que se deixando sensibilizar

por ela. Como se defende aqui que a sociabilidade contemporânea é eminentemente

imagética, o direito está muito mais suscetível a irritações por imagens do que por outros

meios difusores de comunicação. Nesse passo, por intermédio da arte das imagens-movimento

o direito talvez obtenha, com mais celeridade, ganhos de rendimento ao “ver-se” refletido por

essa forma no mundo.

Já foi dito que, o que qualquer arte toca e mobiliza são consciências, a elas

acoplando-se estruturalmente e possibilitando uma observação do mundo no mundo não

necessariamente pela intelecção, mas por fazer com que a consciência distinga o real do

fictício e se deixe cativar pela fantasia. Procedendo como qualquer outra forma de

comunicação ao chamar a atenção da percepção, a arte estabelecerá sua distinção das demais

formas comunicativas ao ter como especificidade a capacidade de instigar a imaginação. É

pela imaginação que se torna viável a atualização funcional da comunicação artística.

Também já mencionado que a arte prescinde da linguagem, pois, funcionando como

um equivalente dessa, conecta-se diretamente a consciência. A arte das imagens–movimento é

forma linguagem que traz como potência sua capacidade de irritar, sensibilizar as

consciências vez que constrói, segundo Deleuze, complexas relações entre imagens sensório-

motoras – aquelas que conectam percepção a ação –, e imagens puramente óticas – aquelas

que suscitam lembranças, sem se prolongar em movimento ou ação. Produzidas desse modo,

tais imagens mitigam a dimensão temporal na qual se dá a distinção entre o que é real e

fictício, acelerando a própria operação da imaginação; também potencializam a reentrada

daquela distinção na consciência – operação que possibilita o encantamento face à fantasia –

vez que aparece no écran, no mundo, portanto, como um duplo da própria operação da

consciência.

Nesse passo, a arte das imagens-movimento é, como qualquer arte, realidade

construída socialmente e experienciada de forma imaginativa; sua especificidade residirá no

fato de permitir que a imaginação seja, a um só tempo: exterior, nas imagens que se movem

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de forma “maquínica”, para usar um termo de Deleuze; e interior, na operação de reentrada,

pela percepção, dessas imagens na imaginação. Diz Deleuze acerca da complexidade que

envolve o acoplamento entre consciência e cinema: “o que entraria em relação seria algo real

e imaginário, físico e mental, objetivo e subjetivo, descrição e narração, atual e virtual (...)”,

de tal modo que cada termo da relação corre atrás do outro e se confundem “(...) num mesmo

ponto de indiscernibilidade”.90

Sentidos produzidos pelo cinema são, como em qualquer arte, eventos estéticos,

constituídos e atualizados desde a imaginação do artista e do apreciador da obra de arte. De

que modo pode o direito, enquanto sistema social, se deixar irritar pela arte, a ela acoplar-se

sem, contudo, estetizar-se, sujeitar-se às experiências sensório-motoras e óticas de cada artista

ou apreciador da arte? Como o direito, acoplado à arte, pode defender-se dos “perigos”

eminentes da estetização? E como é possível produzir comunicação jurídica desde esse

acoplamento?

O risco de estetização do direito é tema recorrente nas discussões acerca dos

rendimentos auferidos com o acoplamento direito-arte. Tratando de decisão do Supremo

Tribunal Federal do Brasil acerca dos crimes de tortura perpetrados durante a ditadura militar

brasileira inaugurado em 1964, Juliana Neuenschwander Magalhães91 indicou uma forma

possível de estetização da operação jurídica decisória verificada naquela corte superior.

Tratando de projeto de revisão da lei de anistia aos referidos crimes de tortura92 face aos

preceitos constitucionais federais firmados desde 1988, o ministro relator inseriu em seu voto

um texto literário com o fito de legitimar, desde sua particular leitura e compreensão do

referido texto, sua polêmica decisão.

Segundo Neuenschwander Magalhães, a arte funcionou ali como elemento

imunizador de uma decisão jurídica contrária a certa memória social já sedimentada. De certo

modo a decisão foi contrária aos sentidos jurídicos hoje estabilizados, respaldando-se em

outros resgatados daquele passado ditatorial e legitimados por uma descrição estética que, em

tese, daria suporte semântico argumentativo a uma decisão de teor puramente jurídico,

afastando-a assim de qualquer julgamento moral ou político. Paradoxo, sobre o qual concluiu

a autora:

90 DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Cinema 2. Tradução Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005, p.62. 91 NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. O STF e a anistia. Carta Forense, São Paulo, agosto de 2010, p. A4. 92 Trata-se de revisão da Lei 6683/79 tendo como Relator da Ação o Ministro Eros Grau.

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O STF, desta forma, parece abraçar a clássica separação positivista entre direito e moral, dissociando os dois campos. Mas, a contrário do que possa parecer, a “absolvição jurídica” necessita da “condenação moral” para se legitimar não apenas moralmente, mas, sobretudo juridicamente. Isso porque a reprovação literária e moral presta-se à justificação de uma decisão jurídica que, nos moldes da teoria jurídica contemporânea, não mais encontra justificação. Determinadas coisas não são e não podem ser tratadas como passíveis de transação. Há coisas que o Direito, e nem nós, podemos esquecer.93

O evento que motivou tão veemente crítica de Neuenschwander Magalhães bem

pode prestar-se como ilustração ao fato de que somente as consciências podem observar a

sociedade de fora da sociedade, pois dela são o ambiente; e que essa forma de observar não

será capaz de, per se, surtir algum efeito na sociedade e seus sistemas se permanecer

encerrada na consciência como percepção, imaginação ou cognição. É somente por

intermédio de operações comunicativas, mais especificamente por produção de semânticas

socialmente referenciadas, que as operações de observação da consciência – também elas

moduladas por sentidos socialmente constituídos – poderá constituir-se em informações para

os sistemas sociais, e para a sociedade, os quais poderão operar desde essas informações e

produzir seus sentidos operativos.

Nesses termos, tanto a decisão do ministro do STF quanto a crítica formulada por

Neuenschwander Magalhães revelam-se possibilidades desse processo de criação

comunicativa. No primeiro caso, a própria manifestação artística foi deslocada, na forma de

texto argumentativo, para o interior da operação jurídica e ali funcionar, em certa medida,

como uma fórmula de contingência imunizadora da decisão, uma fórmula estética de

imunização. Por seu turno a crítica, uma descrição que se apresenta não como uma opinião,

mas sob a forma de argumentação teórica – no sentido luhmanniano do termo teoria94 –

aponta, desde uma observação de segunda ordem promovida pela teoria sistêmica, o modo

pelo qual se deu a operação comunicativa no tribunal.

O que tornou viável o deslocamento de uma obra de arte para o interior de uma

decisão jurídica? Por que foi possível, tal como a crítica aponta, a estetização? A resposta

talvez possa ser encontrada no fato de o direito operar desde sentidos condensados em meios

textuais – orais, escritos, visuais – os quais, trazendo racionalidade, permitem ao direito

93 NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, O STF e a anistia. Carta Forense, São Paulo, agosto de 2010, p. A4. 94 Teoria, para Luhmann é aquela descrição possibilitada por observações de segunda ordem procedidas pela ciência. Sobre a distinção entre a teoria jurídica e a teoria científica Cf. LUHMANN, Niklas. Punto de partida en la teoria del derecho in: El derecho de la sociedade. Traducción de Javier Torres Nafarrate con la colaboración de Brunhilde Erker, Silvia Pappe y Luis Felipe Segura. 2 ed, México: Heder; México: Universidad Iberoamericana, 2005c, pp.61-92.

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proceder por meio da cognição, suas operações de distinção direito/não-direito, incluindo-se

aí o procedimento de sua argumentação legitimante.95 Funcionando desse modo, o direito

pode recorrer a si mesmo, aos seus procedimentos, se auto-aplicando para, assim, se auto-

imunizar. No caso aqui observado, uma comunicação estética textual foi produzida e

incorporada desde uma forma re-significada – a forma de uma argumentação jurídica – para

assim legitimar jurídica e textualmente uma tese não mais sustentável desde a semântica

jurídica hoje canonizada.

Mas o acoplamento direito-arte pode ter outros rendimentos. Melhor dizendo, o

recurso à estética pode funcionar não como imunização, mas como um elemento desde o qual

o direto pode se sensibilizar, apreender e se transformar estruturalmente. Luis Alberto Warat96

já alertara para a importância de se promover o acoplamento direito-arte no processo de

formação do jurista, um processo, que segundo ele, “pingüiniza” os juristas. Valendo-se de

uma semântica surrealista, Warat defende a fuga dessa “pingüinização” que o ensino e a

prática jurídicos impõem, fuga desse lugar comum jurídico restritivo e aprisionado a um

pensamento único e cheio de estereótipos, que extingue a possibilidade de se conhecer o outro

em sua diferença não rotulada. Exorta, então, que se assuma a arte como uma necessária

provocação. “Abrir espaço para a sensibilidade, para a arte e para a poesia é dizer bye-bye ao

normativismo, é começar a pensar em outras concepções do direito, indo além do

normativismo”, afirma Warat.97

Vale ressaltar que, com Warat, a abertura à sensibilização pela arte ganhou sua forma

primeira na experiência da cinesofia, projeto que implementou na Faculdade de Direito da

Universidade Federal de Santa Catarina visando “(...) aprovechar la fuerza de la imágenes

como disparador de um proceso de creatividad pautado por el cuestionamiento de la relación

95 “Pode-se definir a legitimidade como uma disposição generalizada para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido, dentro de certos limites de tolerância” . Cf. LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Corte-Real. Brasília: UNB, 1980, p. 50. 96 Conferir especialmente: WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos in: Territórios desconhecidos. A procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Boiteux, 2004, pp. 61-186; idem, El cine y el horor del ovido, op. cit, pp. 541-548; idem, La cinesofia y su lado oscuro, op. cit, pp. 549-562; idem, Conferência de encerramento do 2º Seminário Internacional Direito e Cinema: Visões sobre o Direito e a Ditadura in: NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana; PIRES, Nádia; MENDES, Gabriel; CHAVES, Felipe; LIMA, Eric (orgs). Construindo memória: Seminários direito e cinema 2006 e 2007. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, 2009, pp.113-121. 97 WARAT, Luis Alberto. Conferência de encerramento do 2º Seminário Internacional Direito e Cinema: Visões sobre o Direito e a Ditadura, in: NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana; PIRES, Nádia; MENDES, Gabriel; CHAVES, Felipe; LIMA, Eric (Orgs). Construindo memória: Seminários direito e cinema 2006 e 2007. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, 2009, p. 120.

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tradicional, entre sujeto y conocimiento, que la vida universitária impuso como modelo

intocable”.98

Na esteira de produção de um conhecimento mais sensitivo, Julio Cabrera ressalta

que o cinema, enquanto arte da imagem-movimento, instaura um saber desde uma

racionalidade que ele denomina de logopática, tanto racional quanto afetiva. Esse saber, mais

do que uma operação de cognição, é uma experiência que se instaura e funciona a partir de

conceitos-imagem, os quais...

(...) procuram produzir em alguém (um alguém sempre muito indefinido) um impacto emocional que, ao mesmo tempo, diga algo a respeito do mundo, do ser humano, da natureza etc, e que tenha um valor cognitivo, persuasivo e argumentativo através de seu componente emocional.99

Todas essas descrições acerca do papel da arte nos processos de conhecimento e

autoconhecimento apontam, portanto, para os ganhos adaptativos que se poderá auferir ao se

proceder ao acoplamento direito-arte. Vê-se, mais uma vez, o cinema como meio desde o qual

a consciência, por operações de percepção, imaginação e cognição, pode experimentar a

sociedade e o ambiente da sociedade. Mas para que a experiência deixe de ser experiência

estética e, portanto, encerrada na consciência, é preciso que ela possa ser transformada em

comunicação, seja ela uma comunicação estética, na forma de outra obra de arte, ou

transformar-se em uma “textualidade” não artística.

Ressalte-se, contudo, que não se está afirmando que a arte da imagen-movimento, ou

artes imagéticas de uma maneira geral, necessitem de um contexto verbal para ser esclarecida,

como faz crer certos semiologistas; ou o contrário, como defendem alguns semioticistas, que a

imagem é de tal modo autônoma que possui certas estruturas constitutivas, tal como os

fonemas na linguagem, sendo ela própria uma linguagem.100 O que se aponta aqui é que o

cinema, como qualquer arte, opera diretamente na consciência ou, em outros termos, a

experiência estética é uma experiência da consciência e, portanto, permanecerá ali encerrada

se não se transformar em comunicação por via da linguagem, seja esta a linguagem cotidiana

a qual produzirá descrições textualizadas – orais, textuais propriamente ditas ou mesmo

98 Idem, La cinesofia y su lado oscuro, in: Territórios desconhecidos. A procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Boiteux, 2004, p. 550. 99 CABRERA, Julio. O cinema pensa. Uma introdução à filosofia através dos filmes. Tradução Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Rocco, 2006, p.22. 100 Para o aprofundamento dessa instigante polêmica, Cf. SANTAELLA, Lucia; NÖTH, Winfried. Imagem. Cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 2008.

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audiovisuais – ou então pela própria arte como linguagem, e nesse caso se produzirá outra

obra de arte, e mais experiências estéticas.

Tentando fugir à mera estetização do direito, ao uso da arte como argumento jurídico

em decisões nas quais o argumento carece de legitimação jurídica, parece ser possível

construir outros termos para essa relação, como aqueles indicados pelos Seminários Direito e

Cinema da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Realizados anualmente desde 2005, tais seminários vem constituindo-se como um espaço de

permanente reflexão acerca das possibilidades de se conhecer e produzir direito desde uma

aproximação com o cinema. Desde então, o que os seminários tem produzido são,

“textualidades”, memórias “textuais”, mesmo quando essas textualidades assumem a forma de

imagens, registros audiovisuais de comunicações que são, em sua maioria, orais. E essas

memórias possibilitadas pelos seminários, também elas comunicações, permitem atualizações

do sentido de direito. São, sem dúvida, auto-descrições do direito.

4.2 O acoplamento direito-cinema e a produção do direito

Firmou-se, em momentos desse trabalho, que toda comunicação, portanto também o

direito, não prescinde da percepção; sem percepção não há comunicação, vez que essa

operação deixa a consciência em alerta para distinguir o emissor daquilo que é emitido,

construindo assim informação para proceder, ou não, mais comunicação. Firmou-se também

que a arte se especifica ao estabelecer suas conexões com a imaginação e no fato de prescindir

da linguagem para acoplar-se à consciência; ela própria pode ser entendida como uma

linguagem. A arte constitui-se, portanto, em um sistema sui generis de comunicação.

Contudo, é somente pelo concurso da linguagem que aquilo que a percepção percebe

e a imaginação imagina pode deixar de ser um em si mesmo da consciência para tornar-se

evento social, comunicação; pelo meio linguagem é possível produzir descrições, auto-

descrições e reflexividade, i.e, comunicações amplificando e repercutindo comunicações.

A conexão comunicação-consciência-comunicação se dá desde a linguagem. Nos

casos da comunicação artística, é a própria obra de arte que, funcionando como linguagem,

produz a conexão. Mas uma dúvida espraia-se quando se pensa na forma pela qual a

imaginação é capaz de possibilitar um fluxo da comunicação não artística, permanecendo,

acerca dessa operação, um ponto obscuro que requer um aclaramento. A arte ao sensibilizar a

imaginação só voltará a ser comunicação se: outra obra de arte for produzida a partir dela – de

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um poema produz-se uma peça teatral; ou for transformada em descrições sobre ela – produz-

se uma crítica especializada acerca de uma produção cinematográfica; ou descreve-se aquilo

que ela suscita à percepção e imaginação, i.e, aquilo que ela possibilita construir como tema

da comunicação – descreve-se aquilo que um certo filme possibilita problematizar acerca, por

exemplo, da violência.

Assim, tem-se que no âmbito da observação de primeira ordem o sistema prescinde

de qualquer descrição ou tematização. A simples percepção de sentidos operativos ou códigos

de operação sistêmica – tipo arte/não-arte, direito/não-direito e outros – é suficiente para que

o sistema opere e se auto-reproduza sem reflexividade mais densa, sem auto-tematização.

Contudo, no âmbito da observação de segunda ordem, a descrição é a forma que possibilita o

sistema tornar-se suscetível às irritações de seu ambiente. A reflexividade ganha, aí, contornos

mais densos. A observação de segunda ordem é possível desde a capacidade do sistema de

abrir-se cognitivamente aos sentidos ambientais. A hetero-referência e o alto rendimento

reflexivo possibilitado pelas descrições sociais que transformam a comunicação em tema da

comunicação são decorrências do enfrentamento da complexidade e da contingência

constituídas nos processos comunicativos.

Sabe-se que a arte das imagens-movimento, como qualquer arte, produz suas auto-

descrições que, disponibilizadas no ambiente, permitem que ela seja pensada e atualizada. É

somente quando suas complexidades são capazes de irritar outros sistemas sociais que ela

poderá se acoplar a esses sistemas. E isso só será possível se cinema puder ser encontrado –

como bem assinalou Luhmann acerca da arte em geral – em textos, em críticas, e outras

condensações de sentidos fora da consciência, tais como a própria teoria do cinema em suas

variações.

Além de estar no écran, onde se configura como um duplo da própria percepção e

imaginação observante que, como em um sortilégio, se observa, o cinema tem que estar em

outros âmbitos do mundo para assim ser socialmente constituída como arte e poder ser

transformado em informação desde a possibilidade de tomá-lo recursivamente como sentido

generalizado e, como elemento que ao reentrar no sistema da arte é processado como

informação para novas comunicações artísticas.

Do mesmo modo que a arte precisa de descrições de si, feitas fora de si, para se reproduzir e

se atualizar, também o direito produz auto-descrições a partir da elaboração de informações desde um

deixar-se irritar por ruídos ambientais – que bem podem ser teorias que permitam ao direito ser

encontrado e pensado no mundo – que reentram no direito para se tornar elemento atualizado pelo

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direito. Parece, então, que a resposta plausível à questão recorrente de como imaginação pode se

transformar em informação jurídica é a de produção de descrições sociais, semânticas constituídas

desde as observações de obras de arte e da reflexividade que tais semânticas, elas próprias reflexivas,

podem suscitar. Consciências sensibilizadas pelo cinema mobilizam a linguagem e com ela certos

sentidos condensados para produzir comunicação jurídica a partir da comunicação, direta ou indireta,

da arte acerca do direito. Experiências como as dos Seminários Direito e Cinema da Faculdade

Nacional de Direito constroem essas auto-descrições, que bem poderão ser transformadas pelo direito

em informação para o direito.

E, aí, talvez seja possível pensar-se mais uma vez em Warat quando afirma: “o

paradigma do direito é hermenêutico e não epistemológico (...)”.101 E também em Gadamer

que, estabelecendo uma equivalência funcional entre hermenêutica e arte, entende ambas

como um jogo,

[um] movimento que não possui nenhum alvo em que termine, mas renova-se em constante repetição. O movimento de vaivém é obviamente tão central para a determinação da essência do jogo que chega a ser indiferente quem ou o que executa esse movimento. (...) O jogo é a realização do movimento como tal. 102

Paradoxalmente, o jogo só pode ser jogado porque existem sentidos que são

mobilizados permitindo que o jogador jogue o jogo, atualizando-o ao repeti-lo. Esses sentidos

Gadamer os define como as regras do jogo, das quais todo jogador pode escapar, mas que em

estando inserto no jogo a elas estão obrigados.103 Sempre há regras a seguir ou a burlar, posto

que sem elas o jogo não se configura como jogo; as regras do jogo são elementos

constitutivos do jogo. Em se tratando da hermenêutica e da arte tomadas como jogos, os

sentidos recursivamente mobilizados serão aquilo que Gadamer define como pré-

compreensões, que não podem ser confundidos com idiossincrasias, mas entendidas como

construções sociais – dadas na tradição, diria ele. As pré-compreensões são as “regras do

jogo” hermenêutico e artístico.

101 WARAT, Luis Alberto. Conferência de encerramento do 2º Seminário Internacional Direito e Cinema: Visões sobre o Direito e a Ditadura in: NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana; PIRES, Nádia; MENDES, Gabriel; CHAVES, Felipe; LIMA, Eric (Orgs). Construindo memória: seminários direito e cinema 2006 e 2007. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, 2009, pp.117-118. 102 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flavio Paulo Meurer. 10 ed, Petrópolis: Vozes, 2008, pp.156-157. 103 Idem, O jogo da arte in: Hermenêutica da obra de arte. Tradução de Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2010, pp. 49-63.

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Desde uma perspectiva sistêmica é possível entender que a posição de jogador,

introduzida aqui por Gadamer – e o mesmo pode-se dizer do hermeneuta surrealista de Warat

– é uma posição comunicativa. Uma posição comunicativa é sempre variável material (quanto

aos sentidos produzidos), social (face às outras posições igualmente estabelecidas) e

temporalmente (sempre no presente, constrói o passado como lembrança e o futuro como

expectativa) não indicando, desse modo, uma única possibilidade comunicativa já que sempre

constituída em relação a outras posições comunicativas, em um contexto de dupla

contingência, expectativa de expectativa. Uma posição comunicativa, portanto, mobiliza,

seleciona, sentidos condensados – que em Gadamer serão descritos como tradição. Sob o

crivo dos sentidos selecionados os ruídos do ambiente serão, também, seletivamente

transformados em informações, e o jogo pode atualizar-se na repetição operativa do jogo.

Desde esse viés, a hermenêutica pode então ser entendida como uma operação social de

construção de significações, de uma descrição social ou semântica, operação na qual sistemas

sociais e consciências participam como posições comunicativas desde as quais as

comunicações são produzidas (por sistemas sociais) e fluem (pelas consciências).

Pode-se, com relativa segurança, afirmar que a hermenêutica tal como pensada em

Gadamer descola-se daquela visão mais canônica, mais generalizada que aponta essa

operação como totalmente vinculada às idiossincrasias do intérprete. O círculo hermenêutico

proposto por Gadamer não é nem de base surrealista, nem tampouco se remete a uma

subjetividade transcendental interpretante, apontando para o caráter eminentemente social da

operação hermenêutica. Nesse passo, mesmo sem afirmar de modo direto e com todas as

letras, é possível vislumbrar em Gadamer a indicação de um caráter comunicativo da

operação hermenêutica, suscitando a possibilidade de alguns pontos de toque entre as matrizes

gadameriana e luhmanniana. Luhmann reconhece em Gadamer o afastamento daquela

perspectiva transcendental da consciência que interpreta e desvenda o verdadeiro sentido do

texto, para afirmar a circularidade auto-constitutiva de texto e consciência interpretante, uma

unidade entre texto e interpretação que, contudo, não implica em previsibilidade do resultado

interpretativo, ou confusão entre texto e consciência, ou ainda a mútua determinação deles.104

Verificou-se que, na hermenêutica de Gadamer, o texto em sua autonomia de sentido

é comparado a uma obra de arte, e esta a um jogo, vez que conduz seu apreciador – ou

intérprete do texto, ou jogador – a repeti-la ao atualizá-la de forma hermenêutica. Contudo,

104 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Taducción de Javier Torres Nafarrate. México: Heder; México: Universidad Iberoamericana, 2007a, p.432.

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ainda persiste em Gadamer a defesa de um fundamento ontológico para a arte, uma verdade. E

essa verdade ou essência constitutiva reside em o homem compreender-se ao compreender o

mundo pela arte e como a arte. Nesse passo, o distanciamento entre Gadamer e Luhmann se

restabelece, vez que para esse último, o autoconhecimento humano que a arte pode

proporcionar não é a chave para o entendimento da constituição e reprodução do mundo e da

sociedade. A chave que a arte pode proporcionar, desde a matriz luhmanniana é comunicativa,

de produção de sentidos sociais que podem ser mobilizados na comunicação para produzir

mais comunicações.

Tanto Warat quanto Gadamer, críticos da racionalidade científica, indicaram a arte

como forma de conhecer capaz de mitigar o distanciamento que essa racionalidade impõe ao

outro. Transformam, então, a arte em instrumento capaz de enfrentar as exclusões, as

intolerâncias que tal distanciamento propicia. Seja pela via do círculo hermenêutico, seja pela

via do surrealismo, Gadamer e Warat buscaram, respectivamente, restabelecer um certo

humanismo anterior aquele canonizado hodiernamente, anterior, portanto, a racionalidade

científica como paradigma; um humanismo que passa, como diria Gadamer – seguindo

Heidegger – por um ser-aí no mundo, um compreender o mundo desde um autocompreender-

se no mundo e em relação com o outro, “(...) um modo de ser originário da vida humana

mesma”.105 Gadamer e Warat ainda não se tornaram “clássicos” naqueles âmbitos de

produção de conhecimento em que transitaram. Talvez, em certa medida, porque as descrições

por eles oferecidas possam introduzir diferenças radicais nas estruturas de sentidos sociais da

Filosofia e do Direito sendo, portanto, rechaçadas por aqueles sentidos canonizados,

generalizados.

Guardadas, obviamente, as devidas proporções e especificidades, processo similar é

verificável quando se observa o estranhamento que a proposta de conhecimento do direito por

meio da arte – tal com a dos Seminários Direito e Cinema – ainda causam na Faculdade

Nacional de Direito. Contudo, a relação direito-arte parece ser tão antiga quanto o direito e a

arte. Muito antes de instituírem-se como sistemas funcionais autônomos, o que só ocorreu de

modo definitivo na modernidade da sociedade moderna, após o século XVIII106, arte e direito

chegaram mesmo a serem considerados uma e mesma coisa.

105 GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Organizado por Pierre Fruchon. 3ed, Rio de Janeiro: FGV, 2006, p.40. 106 Desde o advento da modernidade, por força principalmente das revoluções burguesas do século XVIII, a categoria direito – e também justiça – passou estar associada ao universo positivado das práticas jurídicas estatais, sendo seu sentido generalizados não só como uma decorrência daquelas práticas, mas também como um poder-dever estatal. Livre de condicionamentos, tais como natureza, razão, estamentos e outros elementos que

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Neuenschwander Magalhães, seguindo Ernest Kantorowicz, afirma que já durante a

chamada Idade Antiga o direito era concebido como uma arte, “a arte do bom e do justo”, e

que tal descrição perdurou ainda na dita Idade Média, período que viu surgir conceitos tais

como arte, imitação, invenção, ficção, verdade, todos mobilizados para descrever o direito.

Ficção, como diz Kantorowicz, foi um conceito originalmente jurídico. A idéia de que a arte imita a natureza consistiu numa máxima aristotélica, depois reproduzida no Digesto de Justiniano e que, no período medieval, passa a ser invocada: a arte imita a natureza. (...) [Nesse período] juristas vão entender que o instituto da adoção (...) imita a natureza. E que exatamente por isso, alguém mais jovem não pode adotar uma pessoa mais velha, porque não é compatível como a natureza (...). Então, a noção de ficção é invocada nesse momento para discutir a adoção e vai dizer que não é possível uma adoção nesse caso porque o direito, assim como a arte, deve imitar a natureza.107

Essa possibilidade de identificar no dito período medievo da sociedade ocidental uma

aproximação – de fato equiparação – entre arte e direito não pode ser tomada como sinal

indicativo de que hoje se possa recuperar, desde um acoplamento direito-arte, um pretenso

statu quo ante do direito e da arte. Defender uma tal tese é ontologizar a arte e o direito,

atribuindo-lhes um estado essencial ou primordial que se mantém, ainda que latente, ao longo

do tempo. Portanto, um regresso à formulação medieval de direito como arte não é

propriamente uma expectativa de rendimento evolutivo que o acoplamento direito–cinema

possa viabilizar. Não há forma primordial para a qual retornar. Tal regresso importaria, tão

somente, um desfazimento da diferenciação do direito e da arte, o que não se cogita quando se

operam comunicações em contextos de alta complexidade, como os observados na atualidade

da sociedade moderna, contextos que têm como condição de possibilidade a produção de

sempre mais diferenciações.

marcaram o direito pré-moderno, a positividade do direito moderno irá dispensar qualquer determinação externa, passando a se auto-referir e se reproduzir desde seu fechamento operacional, diferenciando-se constantemente de outros sistemas funcionais à medida que se auto-reproduz. Desse modo, a produção do direito, distinção do direito de seu ambiente, implica necessariamente na produção simultânea do não-direito, i.e, aquilo que fica distinguido pela distinção do direito, mas que não é indicado por ele como direito, permanecendo ambiente. A esse respeito, e com muito mais profundidade Cf. NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. A formação do conceito de direitos humanos. Tese de Doutorado em Direito pela Università degli Studi di Lecce, 2004. Cópia eletrônica gentilmente cedida pela autora. No prelo. 107 Cf. NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. Sobrevoando verdes campos: perspectivas de investigação direito-cinema. Formas consagradas e novas possibilidades. 4ª mesa de debates no 2º Seminário Internacional Direito e Cinema: visões sobre o direito e a ditadura in: NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana; PIRES, Nádia; MENDES, Gabriel; CHAVES, Felipe; LIMA, Eric (Orgs). Construindo memória: seminários direito e cinema 2006 e 2007. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, 2009, pp. 109-111. Também: NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. Direito e arte cinematográfica in: BERNARDINO, Alexandre et al. Desafios rumo à educação jurídica de excelência. Brasília: OAB, 2011, pp.115-126.

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Mas, se à racionalidade descrita como tecnicista podem ser atribuídos certos

desacertos dessa sociedade contemporânea, certo embrutecimento das sensibilidades que

assim constituídas – ou desconstituídas – promovem formulações perversas de exclusão das

diferenças, isso não significa que a racionalidade é o limite evolutivo a ser transposto. A

possibilidade de construir modelos explicativos desde a capacidade de racionalização é

aquisição da consciência, aquisição decorrente inclusive do uso da linguagem como meio da

comunicação. O questionável, portanto, não é propriamente a racionalidade em geral, nem a

tecnicista particularmente, mas certos modos como elas são formuladas desde a descrição que

delas se faz. Mais especificamente, é a modo como na sociedade moderna se atribui à

cognição um poder soberano face às demais capacidades da consciência, transformando-a em

tirana Razão e apartando-a, assim, das demais capacidades operativas do sistema psíquico,

desqualificando como conhecimento todas as formas que mobilizam essas outras capacidades.

Acerca dessa formulação que o pensamento cientifico mais tecnicista faz ao

distinguir o que é e o que não é racional, e atribuindo a si mesmo aquilo que entende ser

racionalidade, disse Claude Lévi-Strauss108:

(...) há duas formas distintas de pensamento científico, ambas função, não certamente de estádios desiguais do desenvolvimento do espírito humano, mas de dois níveis estratégicos, onde a natureza se deixa atacar pelo conhecimento científico: um aproximadamente ajustado ao da percepção e da imaginação [“pensamento selvagem”], e outro sem apoio [“pensamento domesticado”]; como se as relações necessárias, objetivo de toda ciência – seja ela neolítica ou moderna – pudessem ser atingidos por dois caminhos diferentes; um muito perto da intuição sensível e o outro mais afastado.

Nesse passo, aquilo que aqui se trata de arte bem poderia ser entendida, desde o

pensamento de Lévi-Strauss, como uma forma de ciência, uma ciência “selvagem”. A arte

seria uma forma de ciência, e a ciência também poderia ser uma forma de arte. É esse sentido

de racionalidade tecnicista, de “pensamento domesticado”, de que fala Lévi-Strauss, que se

deve por sob o foco da reflexão, racionalidade que vem acompanhando o direito há tempo e

que a arte – uma “ciência selvagem” (?) – pode, quiçá, tornar possível a transformação.

108 LÉVI-STRAUSS, Claude. A ciência do concreto in: O pensamento selvagem. Tradução de Maria Celeste da Costa Souza e Almir de Oliveira Aguiar. 2ed, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 36.

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Capítulo 5

SENTIDO DO DIREITO NO CINEMA “POPULAR”

Esse estudo, nos termos em que foi empreendido até agora, tornou possível verificar

que a arte, ao instigar a imaginação, cria condições de possibilidade de produção de

reflexividade, de reflexão e crítica. Conectando-se diretamente à consciência como uma

linguagem, a arte cria o campo fértil para a produção de descrições sociais, pois como bem

assinalou Luhmann, a imaginação, âmbito da consciência no qual se realiza o sentido da arte,

é mais lenta e reflexiva que a percepção, facilitando a construção de cognições, explicações

acerca do mundo.

Verificou-se, também, que a arte ao levar seus apreciadores a observarem formas ––

tornando “visível” o horizonte de possibilidades do qual as formas se distinguem – permite

vislumbrar a policontexturalidade da sociedade que fica sempre oculta a cada estabelecimento

de uma distinção. A sociedade e todos os seus sistemas sociais constitutivos são capazes de

observar a si mesmos de variadas maneiras. E, às diversas observações importam também

diversas descrições as quais, retendo e difundindo sentidos, orientam e atualizam observações.

Dessa complexa tessitura não está, por óbvio, excluído o direito. A multiplicidade de

observações e descrições, contudo, não leva os sistemas a promoverem a articulação de todas

elas. Ao contrário, cada sistema deixa-se ou não irritar por elementos de sua tessitura,

transformando em informação aquilo que seleciona para tal propósito, deixando de fora,

oculto, aquilo que não o sensibiliza.

Referindo-se ao âmbito jurídico na sociedade contemporânea, globalizada, Aldo

Mascareño descreve a policontexturalidade como resultante de uma fragmentação jurídica,

sem que isso implique em hierarquização de normas ou de instâncias decisórias. Ao contrário,

afirma, verifica-se uma “compatibilidade normativa débil” capaz de coordenar os diferentes

fragmentos jurídicos em seus acoplamentos em espaços operativos diversificados e

globalizados.109 Descrevendo esses espaços jurídicos, Mascareño aponta para a crescente

emergência de instâncias decisórias descoladas do âmbito estatal-nacional clássico, dentre

elas a Corte Européia de Justiça, o Órgão de Apelação da OMC, inúmeros tribunais arbitrais,

além daquilo que ele denomina “regimes neo-espontâneos” decorrentes da ampliação da

109 MASCAREÑO, Aldo. Problemas de legitimación en la sociedad mundial. Revista da Faculdade de Direito da UFG, n. 2, v. 33, set/dez de 2009, p. 10. Disponível em <http://www.revistas.ufg.br/index.php/revfd/ article/view/9855/6731>. Acesso em: nov 2010.

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diferenciação funcional procedida desde o acoplamento do sistema jurídico com outros

sistemas sociais criando-se, a partir daí, regulamentações propriamente jurídicas, um direito

material “(...) sin estado y com relativa autonomia frente a las formas de legitimación

democrática de las comunidades nacionales”.110 Assim é que, do acoplamento direito-

economia, tem-se a lex mercatoria; direito-sistema financeiro, lex financiaria; direito-sistema

de transportes, lex marítima, direito-meios digitais da comunicação, lex digitalis; direito-

sistema desportivo, lex sportiva, dentro outros.111

Ainda sob a temática da policontexturalidade, também Leonel Severo Rocha,

seguindo Gunther Teubner, afirma que na contemporaneidade verifica-se a existência de um

pluralismo jurídico. Hoje, afirma Severo Rocha,

(...) existem cada vez mais espaços locais de poder onde existem comportamentos obrigatórios, onde existem regras para serem cumpridas, critérios de controle temporal das expectativas normativas da sociedade, que não derivam do Estado. E são extremamente variados: movimentos sociais, sindicatos, ONG’s, e comunidades que tem regras próprias para tomada de decisões para grupos de pessoas que as seguem. Assim, são outras regras de Direito que estão surgindo. De certa maneira, sempre existiram, mas estão surgindo sob nossa observação.112

Severo Rocha defende a existência de múltiplos âmbitos de produção de direito, o

que pode aparentar uma divergência daquele entendimento possibilitado pela teoria sistêmica

nos termos colocados por Luhmann. Para Luhmann, as comunicações ou operações do direito

se dão no espaço comunicativo deste, e não no do Estado. Desde essa perspectiva, tem-se que

Luhmann concorda com a idéia de uma policontexturalidade na produção do direito. O que

Luhmann rejeitaria é o rótulo “pluralismo jurídico”, por sugerir a redução do direito à idéia de

ordenamentos, estatais ou não, e, portanto, uma pluralidade de ordenamentos.

Pluralidade e complexidade constitutivas da sociedade possibilitam pluralidade de

sentidos e descrições de sentidos, desde os quais o sistema jurídico – também os demais

sistemas sociais funcionalmente diferenciados – constrói seu próprio sentido, seu código

operativo, se produzindo, reproduzindo, e atualizando-se ao se distinguir, a cada momento,

110 MASCAREÑO, Aldo. Problemas de legitimación en la sociedad mundial. Revista da Faculdade de Direito da UFG, n. 2, v. 33, set/dez de 2009, pp. 9-10. Disponível em <http://www.revistas.ufg.br/index.php/revfd/ article/view/9855/6731>. Acesso em: nov 2010. 111 Ibdem. passim 112 ROCHA, Leonel Severo. Policontexturalidade e Estado. Revista Direitos Culturais, Mestrado da URI, vol.4, n.6, 2009a, p. 5, Santo Ângelo-RS. Disponível em <http://srvapp2s.urisan.Tche.br/seer/Index.php/direitos culturais/article/viewFile/17/12>. Acesso em: out de 2010.

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dessa pluralidade de sentidos e descrições que estão em seu ambiente. O sentido de direito

estará, a cada tempo e contexto, referido como uma diferença a outros sentidos e

significações.

Sabendo-se que a policontexturalidade implica em pluralidade de observações e

polissemia descritiva, e que esses são elementos constantes no ambiente do direito e da arte,

as questões que nortearão esse último momento de reflexão são: o que se oculta ao se

descrever como “popular” ou de “comunidade” na sociedade? Enquanto uma observação de

segunda ordem, o que traz o cinema acerca dessa distinção? Qual o rendimento de sentido

que, para o direito, vem do cinema “popular”, do cinema produzido por artistas de

“comunidades”? O cinema “popular” traz sentido novo ao introduzir novas significações, ou

reproduz o canonizado?

5.1 Descrevendo a policontexturalidade: “comunidade” e cinema “popular”

5.1.1 “Comunidade”

A construção da categoria comunidade como fórmula descritiva de uma forma de

diferenciação social e, portanto, de uma realidade social tornada objeto das ciências sociais,

gera uma sempre aberta discussão acerca do que tal categoria de fato designa, ilustrando bem

a polissemia, teórica no caso, que envolve observações sociológica e antropológica. A referida

discussão é vasta e remonta aos primórdios dessas ciências, mormente à Antropologia do final

do século XIX e início do XX, cuja produção assumiu-se como desempenhando função crítica

ao modelo civilizador europeu, de base tecnicista e individualista, de ordem e progresso.113

A Antropologia de então se firmou sob a semântica da alteridade. Distinguindo entre

formas civilizadas e não civilizadas de sociabilidade, designou como comunitárias aquelas

que, com base em tradições, pautariam suas organizações em uma forma não urbana de

ocupação dos espaços físicos, nas relações de parentesco e vizinhança, no ciclo sazonal de

festas e trocas propiciando a reciprocidade, e tudo isso trazendo um sentido de sagrado que

113 A história do conceito de comunidade em ciências sociais confunde-se com a própria historia de constituição da Antropologia enquanto uma dessas ciências. Para se ter um pequeno vislumbre dessa relação conferir ao menos: MERCIER, Paul. História da Antropologia. Tradução de Cláudia Menezes. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974. LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. Tradução de Marie-Agnès Chauvel. São Paulo: Brasiliense, 1988.

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funcionaria como fio a tecer fortes vínculos de solidariedade.114 As sociedades designadas

como tribais ou primitivas – principalmente aquelas espraiadas pelos recônditos das

Américas, Oceania, África, ambientes descritos como exóticos – tornarem-se temas

constantes das comunicações antropológicas e ali indicadas como exemplares da forma

comunitária de sociabilidade.

Desde então, o conceito comunidade passou a trazer pressuposta a idéia de uma

identidade constituída a partir de certos elementos configuradores: compartilhamento de

certos valores como família e/ou nação, além de modos de ser e viver que se atualizam em

redes relacionais como o parentesco, a amizade, a vizinhança todas orientadas por uma certa

forma de “cultura” capaz de configurar modos mais espontâneos de viver, capaz de fazer

frente às frustrações e riscos do modus vivendi da vida moderna.

Uma tal perspectiva viveu lá seus percalços, mormente quando, em passado recente,

o conceito comunidade ganhou uma coloração funesta ao ser incorporado a certos ideários

totalitários que variaram desde o nazismo e o fascismo àqueles regimes de extrema direita e

esquerda que se instauraram no pós-2ª Grande Guerra – mormente no então chamado terceiro

mundo – como modo de engajamento em cada um dos dois lados em enfrentamento na então

denominada Guerra Fria.

Na atualidade, verifica-se uma ampliação da polissemia referida ao conceito

comunidade. Pode significar, como bem assinalou Zygmunt Bauman, o “(...) outro nome do

paraíso perdido – mas a que esperamos ansiosamente retornar, e assim buscamos febrilmente 114 Vale consultar ao menos dois clássicos da Antropologia que trazem como tema a sociabilidade tida como comunitária: MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. Um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné, Melanésia. Tradução de Anton P. Carr e Lígia Aparecida Cardieri. Os Pensadores, v. 43. São Paulo: Abril Cultural, 1976. Também MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. Tradução de Mauro W. B. de Almeida in: Sociologia e Antropologia, v. 2. São Paulo: EPU, 1974. A origem sagrada da vida social e, portanto do direito, é tese defendida, em sociologia, por Émile Durkheim. Acerca, especificamente, do caráter sagrado do direito de propriedade e contratual: DURKHEIM, Émile. Lições de Sociologia. Tradução de Mônica Stahel. 11ª a 18ª Lições, São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp.169-304. Nessa obra Durkheim busca demonstrar que nas sociedades “arcaicas” onde viceja uma solidariedade mecânica, o vínculo entre pessoas e coisas é idêntico àquele entre pessoas e divindades, i.e, é um vínculo sagrado. Desse modo, a propriedade é sagrada e pertencente à coletividade. É por intermédio de sacrifícios oferecidos às divindades que a comunidade aufere o direito de usufruir dessa propriedade. Esta é considerada a forma mais arcaica de organização social e de direito de propriedade; é a partir dela que todas as demais formas se desenvolvem. Assim, à medida que o trabalho e as atividades econômicas e sociais se especializam, a solidariedade transmuta-se de mecânica em orgânica, e os sujeitos tornam-se pessoas individualizadas, autônomas, e possuidoras de um direito privado de propriedade, desprovido este de qualquer traço de sacralização. Analisando o instituto dos contratos, Durkheim destaca que onde a solidariedade é mecânica os acordos são estabelecidos por rituais mágicos ou religiosos. Já que coisas e pessoas estão envoltas em uma ordem sagrada, as próprias divindades são consideradas, em última instância, destinatárias ou fiadoras das promessas envolvidas nos acordos. A medida em que a solidariedade orgânica substitui a mecânica, e que as subjetividades vão se configurando enquanto entidades autônomas, os acordos tornam-se acordos de vontades individuais, instrumentos que devem ser regulados pela lei. A lei passa a ocupar o papel de vínculo moral e jurídico até então ocupado ela religião ou magia.

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os caminhos que podem levar-nos até lá”.115 Um tal entendimento bem pouco se distingue

daquela fórmula idílica que o “Velho Mundo” construiu do “Novo Mundo” quando com ele

colocou-se vis-à-vis. Contudo, prosseguindo-se na esteira de Bauman, na atualidade, a

sociabilidade globalizada e cosmopolita, de alto risco, e formadora de identidades individuais,

risco, confronta-se com aquela outra mais estruturada em torno do pertencimento a um

território, de identidades mais coletivistas, e capaz de propiciar maior segurança.116

Na contemporaneidade da sociedade moderna, o conceito de comunidade traz, ao

menos, um duplo sentido: face à sociabilidade mais territorializada, comunidade designa uma

realidade de pobreza, de falta de oportunidades de consumo, de pessoas que abrem mão de

sua autonomia para encontrarem soluções mais coletivas aos problemas de sobrevivência;

face à sociabilidade dita cosmopolita e altamente individualizada, comunidade indica a

possibilidade de um âmbito relacional no qual se possa compartilhar cosmovisões e

comportamentos, estabelecer semelhanças, mesmo que em um modus vivendi desenraizado.

Nesse caso,

“(...) a comunidade de semelhantes (...) quando projetada na tela da conduta amplamente replicada/copiada, parece dotar a identidade individualmente escolhida de fundamentos sólidos (...). Quando monotonamente reiteradas pelas pessoas em volta, as escolhas perdem muito de suas idiossincrasias e deixam de parecer aleatórias, duvidosas ou arriscadas: a tranqüilizadora solidez de que sentiriam falta se fossem os únicos a escolher é fornecida pelo peso impositivo da massa”.117

Assim, do confronto semântico entre territorialidade e cosmopolitismo, ao se

distinguir e descrever a sociabilidade desdobra-se o sentido bifurcado de comunidade. Por

um lado, a categoria presta-se às descrições de certas parcelas populacionais urbanas para lhes

conferir um sentido de homogeneidade constitutiva e de identidade sociocultural.118 Tais

115 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 9. 116 Ibdem, pp. 56-62. 117 Op. cit, p. 61. 118 Em se tratando de comunidade e identidade cultural na globalização, tema sociológico e antropológico na contemporaneidade, vale ao menos o registro da já clássica obra de: HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Thomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11ed, Rio de Janeiro: DP&A, 2006. Nessa obra Hall defende que na dita pós-modernidade o sujeito tal como constituído pelo Iluminismo, i.e, portador de uma identidade fixa e estável fundada em uma cultura nacional – portanto, racional, soberano, centrado em si e referenciado em uma base sócio-cultural sólida, a nação – sofre uma série de “descentramentos”: a determinação histórica do proceder humano (enunciada por Marx e Althuser); a elevação do inconsciente a partícipe na constituição do sujeito (preconizada por Freud e Lacan); a “descoberta” da linguagem como sistema modulador da própria linguagem, da consciência e do inconsciente, vez que a linguagem estrutura-se por significações de significações (ratificada por Saussurre e Derrida); a institucionalização de um “poder disciplinar” que regula e vigia o sujeito e seu corpo, administrando-o em quartéis, escolas, hospitais, prisões e outras instituições disciplinadoras especializadas (identificado por

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descrições podem levar à percepção de que a identidade, e a “cultura” que lhe é pressuposta,

são atributos da coletividade que os conceitos de identidade e cultura circunscrevem, levando

a formulação de que tais atributos engendram um sentido de unidade que torna a coletividade

uma comunidade, uma entidade homogênea, e que como tal pode ser percebida e entendida

em sua inteireza – a favela, a periferia, a comunidade.

Por outro lado, o conceito comunidade pode reentrar na descrição e, sendo re-

significado, permitir outras construções semânticas acerca da sociabilidade dita cosmopolita,

permitindo a percepção de vínculos desde a redundância possibilitada pela opinião pública,

aqui entendida como “(...) el médium de la descripción del mundo y de la autodescripción de

la sociedad moderna (...,) la disponibilidad comunicativa de los resultados de la

comunicación”.119

De certo modo, sob essa bifurcação e seus rendimentos recai o interesse específico

dessa pesquisa. E por quê? Porque as semânticas da comunidade e sua identidade cultural

podem levar também aquelas parcelas populacionais descritas como comunidade a se

perceberem e se descreverem enquanto tais, mormente em contextos de reivindicação de

inclusão, ou seja, contextos nos quais é possível auferir-se rendimentos políticos. A categoria

identidade viabilizada pela idéia de comunidade é, portanto, uma fórmula descritiva e

atualizadora de uma distinção social que guarda uma potencialidade política, vez que, como

afirmou Aldo Mascareño, na eminência de...

(...) articular y probabilizar sus condiciones de inclusión frente a los distintos sistemas funcionales, los indivíduos se autodescriben culturalmente con el fin de dar a sus demandas un sentido particular, transcendent y una proyección histórica que aumente su potencial de reconocimiento. 120

Pertinente entender, então, que todas essas descrições de comunidade são formas que

fazem cintilar certos sentidos que deixam vislumbrar comunicações políticas e também

jurídicas, e ambas com dupla face. Politicamente, as descrições deixam reluzir que, por um

lado, se reafirma uma exclusão que se dá pela a inclusão do excluído em um âmbito distinto

Foucault); o feminismo como movimento social transformou família, sexualidade, trabalho e divisão do trabalho doméstico em arenas à contestação política. Todos esses “descentramentos” resultaram, no dizer de Hall, “(...) nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas do sujeito pós-moderno” (op. cit, p.46). 119 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Taducción de Javier Torres Nafarrate. México: Heder; México: Universidad Iberoamericana, 2007a, p. 877. 120 MASCAREÑO, Aldo. Sociología del método: la forma de la investigación sistêmica in: Cinta de Moebio, n.26, p.72. Santiago: Universidade de Chile, 2006. Disponível em <http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/src/ inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=10102601>. Acesso em ago 2009.

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daquele que promove a exclusão; por outro lado, se reafirma a inclusão em um âmbito de

exclusão, possibilitando que se reivindique inclusão naquele âmbito que promove a exclusão.

Juridicamente, as descrições possibilitam o vislumbre de que em cada movimento de

inclusão/exclusão importa atualização de direito, ao mesmo tempo em que produz e reproduz

indiscernibilidade de direito, indiscernibilidade esta que pode ser descrita tanto como não-

direito quanto como direito não reconhecido. Complexo? Paradoxal? Sim!

O que se afirma aqui é a existência de uma inextricável interpenetração simbólica

entre os dois lados da distinção que toda semântica da comunidade descreve. A sociedade ao

se descrever o faz criando uma diferença entre ela e aquilo que ela semanticamente constitui

como sendo diferente dela ou mesmo como sua negação, a comunidade. Traça, para isso,

certos limites identitários capazes de configurar, e ao mesmo tempo legitimar, a indicação da

diferença, vez que apresenta essa identidade como sendo elemento constitutivo daquilo que se

distingue como comunidade. Por sua parte, o que é descrito como comunidade pode muito

bem passar a se descrever como comunidade, e a defender o direito de manter a identidade,

posicionando-se, assim, em face ao ambiente que, constituindo-o como diferente o exclui.

Tem-se, então, uma complexa operação comunicativa na qual o distinguido como comunidade

pode tomar como realmente suas a descrição e a identidade produzidas pelo outro lado da

forma que o designa e descreve desde tais sentidos.

Entendo-se, portanto, a produção semântica também como uma forma de dois lados,

observa-se que os dois lados que a semântica descreve são, de fato, estruturalmente

mesclados, indiscerníveis enquanto diferenças, configurando-se uma unidade do diverso – o

ambiente interno da sociedade. Nesse passo, resta como uma possibilidade de produção de

uma relação de assimetria entre ambos, de produção de uma distinção, a construção de uma

semântica da comunidade como uma diferença, uma diferença que se quer absoluta entre o

que é homogêneo, pouco individual, desprovido de possibilidades de consumo e de

cosmopolitismo – a sociabilidade comunitária da comunidade – e o que é heterogêneo, fruto

da autonomia individual, plenamente capaz de consumo e desterritorialização – a

sociabilidade cosmopolita da sociedade. Contudo, a despeito do que a semântica descreve,

não há nada de social fora da sociedade. A distinção da comunidade é, pois, distinção da

sociedade na sociedade, forma na forma. Comunidade não é algo diferente da sociedade, mas

uma forma da sociedade descrever a si mesma e produzir, nessa descrição, uma diferença.

Na contemporaneidade, mormente brasileira, o conceito comunidade indica certos

grupamentos humanos associado a certos espaços urbanos descritos como periféricos,

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carentes, favelados. A mobilização de tais conceitos, acoplados a outros tais como violência e

criminalidade, aponta para uma distinção na qual estão pressupostas formas contrárias àquilo

que os tais conceitos indicam: populações centrais, incluídas, abastadas, moradoras em

bairros, não violentas e não criminosa. Nesse passo, o tema comunidade, seus direitos e a

extensão desses direitos face aos direitos dos demais são exemplos dos desdobramentos dessa

semântica que se generaliza e passa a integrar, dentre outras, as comunicações artísticas,

jurídicas, econômicas, políticas, administrativas da cidade.

A referida generalização é facilmente perceptível quando se observa a recente

política pública de “pacificação de comunidades” implementada pelo governo do estado do

Rio de Janeiro no morro Dona Marta (Botafogo), na Cidade de Deus (Jacarepaguá), no morro

do Borel (Tijuca), no morro dos Macacos (Vila Isabel), e a recentíssima e espetacular

ocupação do complexo de favelas da Penha (Alemão, Vila Cruzeiro, Grota, dentre outras)

para citar somente algumas das áreas urbanas alcançadas por tal política, todas elas

identificadas como áreas – de fato ou potencialmente – de violência e criminalidade. As

Unidades de Polícia Pacificadoras – UPPs – com suas ações de repressão à criminalidade e

ocupação social das referidas comunidades carentes são temas recorrentes das comunicações

da cidade, e almejam espraiar-se por todas as “comunidades” do estado.

A semântica da comunidade, em suas múltiplas colorações, reafirma uma distinção

entre aqueles que se auto-incluem no lado que faz a distinção e aqueles que não são incluídos

no outro lado da distinção. Todos os que podem ser observados como não-indicados no lado

positivo da distinção não se identificam ou não se submetem àquilo que é constituído e

valorado como justo, verdadeiro, bom, sincero, racional, econômico, ou sejam lá quais os

princípios tidos como necessários à organização da vida social que a semântica traz.

Funcionando como uma memória social, ininterruptamente construída pela sociedade no

presente, a semântica da comunidade dá legitimidade a certas formas sociais, certas

inclusões/exclusões;121 funciona também, ao ser atualizada, como hetero-referência à

constituição das próprias formas sociais, à construção cotidiana da sociedade, às efetivas

inclusões/exclusões sociais.

Sabe-se que toda e qualquer forma, tem em cada um de seus lados constitutivos o

pressuposto para a existência do outro e com possibilidades de atualização, melhor dizendo,

cada um dos lados da forma pode ser, a qualquer momento o lado a partir do qual se atualizará

121 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Taducción de Javier Torres Nafarrate. México: Heder; México: Universidad Iberoamericana, 2007a, p. 490 e seguintes.

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a forma enquanto tal. O indiscernível pode, a qualquer tempo tornar-se o lado indicado na

forma, o lado desde o qual assume-se uma observação. Desde essa lógica operativa da

distinção, quais as alternativas comunicativas? É possível que o lado excluído se auto-observe

como lado positivo de uma outra forma que só pode ser assinalada desde a forma “originária”;

é possível também que o lado excluído da forma queira cruzar para o lado positivo, para o

lado da inclusão na forma “original”, mobilizando aqueles sentidos que permitam a

atualização da forma nos termos “originários”, tornando-se temas mais amplificados da

comunicação; é possível que o lado excluído nem se perceba como parte dessa forma que o

exclui. São possíveis tantas outras coisas.

Tem-se, então, que a semântica que distingue sociedade de comunidade encontra-se

bastante generalizada e, portanto, pode ser também mobilizada para se estabelecer outras

distinções, reafirmando-se e legitimando-se ainda mais. Assim é que, no âmbito da arte,

verifica-se também a indicação de uma arte da “comunidade” ou “popular”, procede-se uma

distinção entre o que é e o que não é comunitário na arte.

5.1.2 Cinema “popular”

O conceito popular acoplado ao de cinema, tem uma trajetória semântica que,

minimamente apontada, permitirá entender o sentido diverso aqui mobilizado. A discussão do

“popular” no cinema remonta aos primórdios da produção de cinema no Brasil, e encontra-se

acoplado a idéia de um projeto político de construção do “povo” e do “popular” como

suportes humanos para outro projeto político, o de construção do verdadeiramente nacional,

verdadeiramente brasileiro.

Tal projeto ganhou contornos mais densos durante o Estado Novo, período no qual o

“popular” passou a referir-se àquilo que agrada ao “povo”, esse agora constituído como o

integrante do estado-nação, o “povo brasileiro”. Nesse contexto, o cinema será entendido

como um meio desde o qual o “povo” poderá ser representado e reafirmado em produções de

grande aceitação, “popular”, portanto. Atlântida Cinematográfica122 surge nesse cenário, em

122 Contemporânea da carioca Atlântida, a paulista Vera Cruz criada em 1949, trazia como tema de suas películas aquilo que as elites de época entendiam como social e politicamente correto e, portanto, diametralmente oposto aos temas das chanchadas. O burlesco que as paródias propiciavam haveria de passar ao largo quando o objetivo fosse produzir filmes “sérios” e “profissionais”. Para uma breve historiografia sobre a produtora cinematográfica Vera Cruz conferir: FERRARESI, Carla Miucci. Vera Cruz: herança de um sonho. Disponível em <http://www.mnemocine.com.br/cinema/historiatextos/carla3Vcruz.htm>.

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1941 e cumpriu essa função até 1962, principalmente com suas famosas chanchadas,123 um

misto de paródia aos filmes americanos – que já dominavam o lucrativo mercado do cinema

como entretenimento – e afirmação de certos valores que – presentes principalmente no rádio

e no teatro de revista – foram alçados à categoria de nacionais posto que, pretensamente,

representativos do “povo”: malandragem, vadiagem, ingenuidade, astúcia, e a sempre

presente carnavalização.

Acoplando-se ao projeto político de época, a cinematografia produzida pela Atlântida

participou da construção daquelas descrições sociais que, ainda hoje, tanto permanecem

insertas na memória social, e que se mobiliza quando se quer dizer do “povo” brasileiro.

Nesse passo, a arte produzida na Atlântida cumpriu uma dupla função: ao tratar com grande

humor, simplicidade dialógica e cênica, além de muita, muita musicalidade na forma de

carnavalização, a arte de Atlântida efetivamente ativou as percepções e os imaginários da

grande massa de espectadores que acorriam às salas de projeção. Ao mesmo tempo, tornou

disponíveis elementos de sentido que, apropriados pelo projeto político mais canônico à

época, transformou-os signos do “povo”, do “popular”, do “nacional”.

Confrontando-se com essa idéia de “povo” e “popular” a cinematografia realizada

entre as décadas de 50 e 60 do século XX, assinala Jean-Claude Bernadet124 , irá proceder não

só uma re-significação desses conceitos, como irá descrever-se enquanto uma nova forma de

pensamento social, referenciando-se à dita Teoria Crítica já absorvida pelos sistemas

acadêmicos de então. Descrevendo-se como crítico, o Cinema Novo surge na década de 50.

Nele, os problemas da sociedade são percebidos como acoplados à linguagem do cinema, daí

ser possível transformar tal linguagem – considerada até então alienante125 – em um

instrumento de transformação da sociedade.

Para esse novo cinema tratava-se, então, de retratar o povo do modo como o povo

efetivamente era, e não como a burguesia o percebia e lhe devolvia na forma de um rótulo de

burdo, burlesco, grotesco, rótulo que o “povo” assumia como expressão de seu modo real de

ser e que justificava a produção de chanchadas e sua “popularidade”. Para o cinema que

descrevia a si mesmo como de vanguarda, o “popular” não mais poderia ser reduzido àquilo

que agrada ao “povo”, mas deveria ser transformado em retrato desse “povo”, na arte. O

123 Cf. ATLANTIDA CINEMATOGRAFICA, projeto desenvolvido pela distribuidora de filmes Luiz Severiano Ribeiro. Disponível em <http://www.atlantidacinematografica.com.br/sistema2006/index.htm>. Acesso em: fev de 2011. 124 BERNADET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 125 A chanchada, gênero cinematográfico produzido e amplamente difundido entre os não intelectualizados, foi politicamente execrada pelo Cinema Novo.

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“povo”, em suas reais manifestações, com sua “verdadeira cara”, deveria ser o grande tema no

novo cinema. E os cineastas, agora intelectuais, deveriam ser os porta-vozes desse “povo”. O

Cinema Novo passou a ser entendido como instrumento da conscientização do “povo” à luta,

à revolução social, face às alienações e conseqüente opressões.

A semântica do Cinema Novo com sua direta referência à sociologia de base crítica

foi, contudo, confrontada pelo regime militar instaurado em 1964. Desde então diversas

tendências estéticas vieram conformar as produções cinematográficas brasileiras, nem sempre

se acoplando aos projetos políticos tão explícitos como fizera o Cinema Novo.

Hoje, o conceito comunidade vem, em certa medida, substituindo o conceito de

povo, mormente quando se pretende descrever certos segmentos populacionais identificados

como carentes, favelados, de periferia, face daquele “povo” que tanto cativou o cinema de

vanguarda. Esse “povo”, agora descrito como constituindo as “comunidades” não é apenas

tema da arte, mas transforma-se em artista que irá retratar, muito amiúde, o universo dessas

“comunidades” e será identificado e identificará a si mesmo como artista da “comunidade”.126

A viragem semântica – de “povo” para “comunidade” e suas repercussões – teve início

no período que vai do final dos anos 1990 ao início dos anos 2000, quando a cinematografia

brasileira verificou grande incremento de produção bem como a ampliação dos espaços de

exibição não só em circuitos de festivais e mostras, mas, principalmente, em salas comerciais. E é

fundamentalmente no âmbito dessa expansão que moradores de subúrbios, morros e periferias

deixaram de ser apenas personagens em histórias contadas por terceiros, e passaram a contar suas

próprias histórias.127 Proliferaram, a partir de então, a produção de filmes e vídeos realizados em

oficinas de cinema e audiovisual sob os auspícios de organizações não governamentais como a

Central Única das Favelas – CUFA, Nós do Morro, Observatório de Favelas, dentre outras.

O cinema não mais se percebe como um instrumento de observação e registro

críticos da verdadeira face do “povo”; entende-se agora como instrumento que possibilita ao

“povo” retratar a si mesmo, e com ele tornar visíveis seus sentidos sociais, trazer suas

inúmeras expectativas, inclusive de reconhecimento de direitos – por mais educação, mais

saúde, mais oportunidade profissional, e outras formas de inclusão. Ao indicar uma tal meta

para si mesmo, o cinema cumpre outra das funções atribuíveis às artes na contemporaneidade:

possibilitar a inclusão social dos menos favorecidos, dos mais vulneráveis. Novamente se

126 Importante esclarecer que “popular” e “comunidade” não são categorias analíticas desse trabalho de pesquisa, mas categorias constitutivas de uma semântica produzida no âmbito social observado por esse trabalho. 127 SOUZA, Gustavo. Revendo as noções de periferia a partir do seu cinema. Caderno de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas, Florianópolis, v.11, n.98, p. 178-197, jan/jun. 2010. Disponível em <http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/view/13355/12840>. Acesso em: set 2010.

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observa a re-significação do sentido da arte, que produzirá, dentre uma gama de

possibilidades descritivas, aquela que se colocará explicitamente acoplada a novos projetos

políticos de inclusão para a cidadania, projetos políticos que se atualizam desde o

acoplamento à luta por direitos.

Ao tomar-se aqui, como objeto de observação, obra cinematográfica produzida por

artistas oriundos daqueles segmentos populacionais descritos pela semântica cotidiana com

sendo de periferia, favelados, pobres, carentes, de comunidades, tem-se o entendimento de

que tal produção é lugar possível para observação de construção de sentidos, quiçá, sentidos

de direito, sentidos que tanto podem ser reprodução daquele generalizado e estabilizado,

quanto pode trazer inovações ainda não percebidas pelo sentido mais estabilizado e

generalizado pela opinião pública mais massiva, sendo então não-sentido ou sem-sentido, lado

negativo da forma.

5.2 Direito no cinema “popular”. Novo ou velho sentido de direito?

Ao observar-se o direito na contemporaneidade, mormente no âmbito dos sistemas

relacionais, é possível verificar não só sua generalização enquanto meio da comunicação,

como também a estabilização e sobrevaloração de uma certa descrição de direito como sendo

direito “estatal”, excluindo dessa generalização outras significações que, mesmo presentes na

memória social ainda não lograram uma ampla generalização e estabilização. Nesse passo,

ainda que constitutivo da memória – e aí se tem o paradoxo da forma na forma que a

policontexturalidade permite – tais significações são, para aquele sentido mais generalizado,

tão somente um horizonte indiscernível de sentidos atualizáveis, possibilidades ainda não

reconhecidas.

Há, portanto, uma tendência bastante acentuada em reconhecer sentido jurídico tão

somente naquela normatividade que se positiva desde operações procedidas no âmbito dos

poderes estatais, reduzindo direito quase sempre às leis existentes como atualidade ou como

devir; para quase toda expectativa cogita-se a criação de uma lei que lhe assegure uma

contrapartida face à frustração. Paradoxalmente, contudo, fala-se na judicialização da vida,

para indicar demasiada referência às instâncias judiciais do direito, às barras dos tribunais –

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âmbito estatal de atualização do direito – como resposta às questões que, muitas das vezes,

bem poderiam ser resolvidas desde um viés não-jurídico.128

A detecção desse paradoxo deixa transparecer que descrições sociais constroem

arranjos explicativos redutores. Tais reduções semânticas, contudo, não estabelecem uma

relação ponto a ponto com a realidade que descrevem, vez que esta permanece sempre muito

mais complexa. Toda descrição é, portanto, também uma distinção, uma forma de dois lados,

na qual o lado observador reduz o lado descrito para torná-lo um elemento operacional. Fora

da descrição, ou seja, da observação, o lado descrito continua complexo, multifacetado. Esse

outro lado, por sua vez, também observa e descreve, e procurará lidar, a seu modo, com toda

complexidade proporcionada pela redução descritiva feita pelo outro lado, reelaborando-a.

Esta é a distinção duplamente contingente que Heinz Von Foerster tão bem traduziu no

emblemático título de seu livro Observing systems.

Pesquisas sociológicas e antropológicas em certos âmbitos sociais de exclusão, como

aqueles das favelas do Rio de Janeiro, já há muito apontam a tendência à re-significação das

estruturas jurídicas estatais, ou delas decorrentes129, que passariam a funcionar como

referência à forma de organização judicial nesses âmbitos. Essa reprodução de sentidos

canonizados, que possibilita a própria canonização de sentidos, pode ser bem observada na

transformação de associações de moradores em verdadeiros “cartórios” onde são expedidos

“títulos” de “promessa de compra e venda” e de “propriedade” de imóveis, procedimentos

tipicamente cartoriais. Era assim na “Pasárgada” de Boaventura de Sousa Santos; é assim nas

favelas, hoje.130 É, portanto, possível observar-se em tais âmbitos sociais a conexão de dois

tipos de sentido de juridicidade: um muito mais assentado em certo costume “local”; outro

“alienígena” a esse locus, mais generalizado e estabilizado, mostrando-se, por isso mesmo,

capaz de promover sensibilizações nos sistemas sociais, uma vez que se constitui parte da

opinião pública mais canônica, produzida e repercutida por grandes redes de mass media.131

E o referido sentido presente nessa opinião pública é o que indica o direito como sendo

128 Ressalte-se que, na contemporaneidade, a redução de sentido jurídico a uma faceta de sua dimensão material – leis e demais produções normativas estatais – se generaliza por meios de difusores da comunicação cada vez mais céleres, destacando-se dentre eles os meios imagéticos. Daí ser é possível identificar, ao se observar a profusão de imagens da contemporaneidade, a forma como essa redução é atualizada em cada um dos diversos âmbitos sociais. 129 Cite-se a pesquisa realizada, no Brasil, por Boaventura de Sousa Santos, nos idos dos anos setenta do século passado, e que ensejou a já clássico texto Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. 130 Tais impressões foram construídas durante o Colóquio “Aspectos humanos da favela carioca: ontem e hoje”, realizado de 19 a 21 de maio de 2010 pelo Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro) do IFCS-UFRJ. 131 Denomina-se, aqui, de redes de mass media aquelas grandes organizações de televisões, jornais, revistas e rádios, as quais Luhmann define como sistemas dos meios da comunicação de massa. Cf. LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução de Ciro Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005a.

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legislado e aplicado pela organização estatal, aquele que se produz e reproduz com o concurso

de uma semântica que reafirma o não-sentido daqueles sentidos que por ele não são

produzidos ou re-significados.

Ressalte-se, porém, que essa distinção de sentido de direito – que aqui se descreve

como local/alienígena, e que também poderia ser direito da favela/direito estatal – não indica

existência de dois direitos ou deixa antever múltiplos direitos, como se poderia crer. Ao

contrário, como já visto, trata-se de um único direito, que se produz e reproduz desde seu

próprio código direito/não-direito, o qual não se confunde com qualquer outro código de

comunicação – bom/mal da comunicação moral, poder/não-poder da política, verdadeiro/falso

da ciência e outros – e que lhe dá uma identidade sistêmica, uma especificidade. Não se deve

esquecer que, mesmo sendo um único direito, sempre traz pressuposto um meio de

incalculáveis possibilidades de sentidos do qual, ao constituir-se, distingue-se selecionando

aqueles sentidos que transformará em direito/não-direito, sentido jurídico.

Como toda distinção pressupõe um pano de fundo policontextural, a operação

constitutiva de sentido se realiza a partir de estruturas pré-existentes. Essas estruturas operam

a seletividade entre o que é excluído e incluído no sistema e são, elas mesmas, flexíveis e

policontexturais. Nesse passo as comunicações, quer no plano das descrições, quer no plano

das operações, também o são. O resultado disso é que a policontexturalidade, pano de fundo

da comunicação, reentra nas estruturas sistêmicas mediante as operações dos sistemas.

5.2.1 5 x favela agora por nos mesmos

5.2.1.1 Por que agora por nós mesmos? Breve ensaio de memória

5 x favela, filme de 1962, considerado marco do Cinema Novo, se constituiu ponto

de partida para a produção do filme 5 x favela agora por nós mesmos, de 2010, suporte

material dessa pesquisa. Apresentando cinco episódios – cada um conduzido por um diretor –,

e tendo como tela a favela e seus dramas, o filme de 1962 foi produzido pelo Centro Popular

de Cultura da União Nacional dos Estudantes132, deixando vislumbrar o acoplamento cinema-

política desde um sentido de emancipação, mobilizado à Teoria Crítica, ao qual se

132 Para um breve panorama acerca do Centro Popular de Cultura da UNE–CPC e suas atividades conferir: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.Cfm?fuseaction=cias_biografia&cd_verbete=459>; também, <http://culturareligare.wordpress.com/2007/09/06/o-centro-popular-de-cultura-cpc/>. Acesso em: mar 2010.

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referenciava. Bastante ilustrativas as sinopses que seguem abaixo, e sobre as quais é tem

propósito uma breve reflexão.

O episódio Um favelado, dirigido por Marcos Farias, mostrava o drama de um

morador de favela que se vê obrigado a participar de um pequeno roubo para assim obter

recurso suficiente ao pagamento do seu aluguel. Parece que o filme procurou marcar a

distinção entre conduta de acordo com o direito – o trabalho – e conduta contrária ao direito –

o roubo – para indicar que o crime pode estar pressuposto quando o trabalho é aviltado pela

exigüidade de sua remuneração. Pobreza pode levar à criminalidade; talvez seja o sentido que

ali apareça.

Zé da Cachorra, o segundo episódio, sob a direção de Miguel Farias, tratava da

indignação de um líder popular face aos seus companheiros favelados que, prestes a serem

despejados, permanecem passivos. Vislumbra-se aqui a distinção entre alienação –

passividade dos moradores – e consciência em contextos de pobreza e espoliação, indicando

que a superação e transformação desse contexto passa pelo necessário cruzar de um lado para

outro da distinção. Eles precisam abandonar a passividade – condição de alienação a que são

levados por estarem submetidos à exploração dos dominantes – se tornando politizados,

conscientes, engajados em “lutas” políticas reivindicatórias e de enfrentamento das

espoliações. A “luta” política é instrumento da desejada emancipação.

O terceiro episódio, Escola de samba, alegria de viver, de Cacá Diegues, apresentava

o dilema de um sambista dividido entre gastar seu dinheiro com o carnaval ou acompanhar

sua esposa, uma operária militante. Mais uma vez, o tema alienação/politização, agora frente a

um evento cultural, então considerado de cepa inferior, o carnaval. O personagem é colocado

em uma posição limítrofe para indicar a necessidade de um cross, indo da alienação –

decorrente da posição central que o prazer, causado pelo samba, ocupa na vida do personagem

– à politização provocada pela participação racional e consciente nas “lutas” operárias.

Vislumbra-se, aí, um entendimento de que certas práticas culturais podem funcionar como

“ópio do povo”, como fator de alienação.

Dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, o quarto episódio, Couro de gato, narrava a

aventura de meninos que descem o morro para recolher gatos e vendê-los para que suas peles

sejam usadas na confecção de tamborins. Perseguidos, os meninos acabam por perder os

gatos, exceto um que fica sob a guarda e afeto de um deles. Contudo, vivendo em situação

precária, o menino se vê obrigado a vender o bichano ao fabricante de instrumentos. Até

mesmo as afetividades são determinadas pelas condições materiais de existência.

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Por fim, Pedreira de São Diogo, dirigido por Leon Hirszman, mostrava como

moradores de uma pedreira, que tem seus barracos ameaçados pelas constantes explosões, são

incitados pelos operários que lá trabalham a se mobilizarem e lutarem para evitar o desastre

iminente.133 A distinção alienação/politização retorna, nesse episódio, para novamente indicar

que a superação da espoliação se dá pela via da luta política contra o espoliador.

O filme, em seus diversos episódios, construiu o poder como sentido generalizado da

comunicação, ao indicar a luta por poder como forma mais viável de enfrentamento das

questões sociais de momento e, portanto, de realização de poder contrário ao poder estatuído

pelas classes dominantes que controlavam o Estado.

A arte, nesse contexto, além de ser um meio de difusão do sentido de poder, foi

percebida, descrita e atualizada como instrumento de luta, luta de emancipação das massas

face às classes dominantes, instrumento de constituição de poder face ao poder. Tratava-se,

portanto, de desconstruir a estetização da vida proporcionada pelo uso politicamente alienante

da arte – estetização verificada nas chanchadas, por exemplo –, e construir uma vida

sintonizada com as lutas desde uma arte politizada, como preconizava Benjamim ao

confrontar o ideal comunista de emancipação pela arte ao ideário estetizante e alienante do

nazismo.

A humanidade que, outrora, com Homero, era um objecto de contemplação para os deuses no Olimpo, é agora objecto de autocontemplação. A sua auto-alienação atingiu um grau tal que lhe permite assistir à sua própria destruição, como a um prazer estético de primeiro plano. É isso o que se passa com a estética da política, praticada pelo fascismo. O comunismo responde-lhe com a politização da arte.134

A relação poder-política que tal semântica artística trouxe pressuposta reduziu,

portanto, as complexidades que envolvem tanto o poder135, meio generalizado da

133 Para maiores esclarecimentos acerca dos conteúdos de cada episódio Cf. GARCIA, Estevão. 5 x favela. Contracampo, Revista de cinema. Disponível em <http://www.contracampo.com.br/64/cincovezesfavela.htm>. Acesso em: fev 2011. 134 Cf. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica in: Sobre arte, técnica, linguagem e política. Tradução de Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’Água, 1992, pp.113. 135 Poder, meio generalizado da comunicação, é mais que uma relação de dominação-submissão desde uma ação de coerção dos poderosos sobre os subalternos, retirando-lhes as alternativas à seleção e centralizando em si toda a possibilidade de seletividade. O poder é mais que isso: é capacidade de influenciar a seleção de ações ou omissões face ao horizonte de alternativas seletivas. Não pode ser reduzido à política, ainda que essa se sirva do meio poder para produzir suas comunicações, se distinguir de seu ambiente, e estabilizar o poder como meio da comunicação simbolicamente generalizado. O sistema da política generaliza simbolicamente o poder, mas esse não é encontrável como meio da comunicação somente na política. Para aprofundar o tema poder nos termos

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comunicação, quanto a política136 e também o direito, ambos sistemas sociais funcionalmente

diferenciados que generalizam o poder e o direito enquanto meios da comunicação.

Considerando-se especificamente o direito, vislumbra-se que este não se constituiu

tema explícito da comunicação artística acima mencionada: não se falou em defender direitos

já garantidos, ou lutar por reconhecimento de novos direitos. Contudo, ao se incitar moradores

de favela à luta contra os espoliadores, ou quando se associou exigüidade de salário à

criminalidade como alternativa, se falou de direito sem, contudo, dele se falar; referiu-se às

expectativas normativas que, sendo frustradas, deveriam buscar não o direito, mas o

enfretamento político para responder e ultrapassar tais frustrações. Tratava-se, portanto, de

uma percepção que a inclusão na luta política seria a única forma de superação da exclusão.

A não tematização do jurídico ou, melhor dizendo, sua tematização indireta deveu-

se, muito provavelmente, ao próprio entendimento generalizado de época de que direito seria

ordenamento estatal – e tal percepção estaria generalizada entre os movimentos políticos tanto

de esquerda137 quanto de direita – e que justamente por isso direito seria, por definição,

superestrutura ideológica a serviço da dominação e do aparelho coercitivo do Estado. Essa

semântica indicava, portanto, o direito como um instrumento de dominação, instrumento de

poder dos poderosos. Nesse passo, a ação política revolucionária dos dominados era percebida

como única forma de desconstituição do poder dos dominantes. Tratava-se, acima de tudo, de

criar de forma revolucionária as condições de tomada do poder.

Desde essa lógica semântica, a transformação da sociedade só poderia se dar pela

luta política, pelo uso da força como elemento de poder na ação política configurada como

ação revolucionária e não pela transformação no e pelo direito. O direito não é percebido

como sendo capaz de promover transformações. A descrição social construída pela obra

cinematográfica em questão reafirma esse entendimento, o reproduz.

Em síntese, movimentos políticos e arte acoplaram-se para fazer generalizar sentidos

sociais – incluindo-se os sentidos jurídicos –, e assim criar condição de possibilidade à

aqui expostos Cf. LUHMANN, Niklas. Poder. Tradução de Martine Creusot de Rezende Martins. 2 ed, Brasília: UNB, 1985b. 136 Política é sistema especializado que, na contemporaneidade, funciona desde a distinção governo/oposição. Opera no meio poder e atualiza aquela distinção desde o estabelecimento de “políticas” e do rendimento de poder que tais “políticas” possibilitam a cada lado da distinção. Indica-se, num constante cross entre os lados da forma governo/oposição, qual deles é o poderoso desde o sucesso ou insucesso de “políticas” implementadas. Significa, como bem diz Luhmann, que um “(...)fracasso del gobierno se apunta en el activo de la oposición y a la inversa. Un ataque a la ‘incompetencia’ del gobierno demuestra ya casi la competencia de la oposición”. Cf. LUHMANN, Niklas. Teoria política en el Estado de Bienestar. Versión de Fernando Vallespín. 4 reimpresión. Madrid: Alianza editorial, 2007c, p. 57. 137 Nunca demais lembrar que 5 x favela foi produzido pela UNE e seus diretores eram universitários de classe média.

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pretendida conscientização das massas ditas subalternas à luta. A forma da arte foi tomada

como meio desde o qual sentidos políticos de emancipação poderiam ser construídos. Mas

esse acoplamento possibilitou também a visibilidade daqueles outros sentidos que

permaneciam “ocultos” ou “invisíveis” aos processos de reflexividade da sociedade. Como

isso foi possível? A visibilidade proporcionada pela arte funcionou de modo a permitir que

sentidos indiscerníveis fossem atualizados, condensados e constituídos como elementos

recursivamente mobilizáveis e re-significáveis na construção de uma memória dessa

visibilidade, de uma semântica dessa visibilidade. Com a arte foram criadas condições de

atualização de certos sentidos e significações que, em situações seletivas outras, em outros

fluxos comunicativos, possivelmente seriam diferentes.

Revela-se, então, o paradoxo de toda comunicação, a inexorável contingência que a

envolve, sua improbabilidade. Sempre existe a possibilidade de a comunicação não ser

entendida, ser parcialmente entendida, ser rechaçada, ou mesmo nem ser percebida como

comunicação. Todas essas reações à comunicação modulam a forma e o sentido do fluxo

comunicativo, criando novas possibilidades. 5 x favela, enquanto comunicação artística,

trouxe ao mundo uma visão política do mundo, constituindo esse mundo em seus termos. Esse

mundo reentrou em si mesmo sob a forma de informação sobre o mundo, permitindo-lhe re-

significar-se e, portanto, criar condições de possibilidade às novas comunicações.

Mas, como anteriormente dito, o objeto empírico dessa pesquisa é o filme 5 x favela

agora por nós mesmos. Então, por que falar do primeiro 5 x favela, quando se tem em mira o

segundo? Há algo do primeiro encontrável no segundo? Cria-se uma redundância ao se fazer

reentrar um filme em outro, uma forma em outra?

O projeto político da emancipação das massas não aconteceu em termos postos por

aquele filme de 1962, i.e, como esclarecimento à luta. Contudo, o mesmo filme – e outros que

com ele difundiam, àquele tempo, o mesmo sentido e a mesma estética – deu margem a uma

reflexividade que possibilitou a re-configuração do meio social e a criação de condições para

a construção de novos fluxos comunicativos, novas semânticas.

O contexto artístico no qual 5 x favela foi gestado era parte constitutiva de certo

nicho da opinião pública canônica de época – o nicho douto das academias universitárias, das

elites intelectuais –, daquele condensado de comunicações que funcionava como baliza para

outras comunicações. E as comunicações desde essa opinião douta reverberaram nela e naquela

mais inclusiva possibilitando transformações, criando condições para a reformulação da visão

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acerca de favelas e favelados, questionando imagens e imaginários já cristalizados sobre esses

lugares, tanto físicos quanto simbólicos, e seus ocupantes.

Embora se quisesse um télos para 5 x favela, esse télos frustrou-se, vez que a função

precípua de toda comunicação artística é fazer parte do horizonte de outras comunicações –

inclusive artísticas – as quais, por si mesmas, podem constituir-se desde as irritações que a arte

propiciar. Cinqüenta anos após, sua reentrada no segundo filme deixa sinais muito evidentes: o

segundo tem o mesmo formato de cinco episódios que o primeiro filme ostentou; cada

episódio também é dirigido por artistas diferentes; toma-se a vida na favela como o fio que

constitui e costura as descrições sociais; e – talvez o elemento mais significativo –, aqueles

que no primeiro filme foram constituídos tão somente como personagens, tornam-se agora

artistas, e isso fica bastante evidenciado no subtítulo – agora por nós mesmos. O primeiro

filme passa a funcionar como elemento da memória que o segundo constrói, um referencial para

sua atualização. Bem, tudo isso os identificam. Mas, o que os diferenciam?

Em 5 x favela agora por nós mesmos se tem um vislumbre da possibilidade de

empoderamento dos excluídos, não mais pela revolução, mas pela garantia de inclusão por

intermédio da visibilidade possibilitada pela arte, visibilidade de um horizonte de sentidos e

significações que de outro modo permaneceria “oculto”, indiscernível. A própria produção da

obra pelos excluídos possibilita a ampliação do âmbito de inclusão e poder desses excluídos.

Verifica-se, então, que o sentido de empoderamento foi redimensionado: deixou de ser

literalmente descrito como luta – i.e, confronto de forças que se querem impor umas às outras,

coercitivamente – para significar ação para inclusão, por reconhecimento de direitos,

tornando-os visíveis e, desse modo, passíveis de serem tema nos diferentes âmbitos

comunicativos da sociedade.

O novo 5 x favela permite conjecturar acerca de uma nova significação para o

sentido do direito. Agora por nós mesmos, seu subtítulo, pode indicar o estabelecimento de

uma interface entre a “comunidade” e a “grande” opinião pública naquilo a que esta se refere

e faz repercutir diariamente, acerca da “comunidade” nos grandes meios de difusão. Violência

policial; descaso público quanto à oferta de serviços essenciais; desorganização dos espaços

urbanos, permitindo a constituição de enclaves à criminalidade. Essas são algumas das

temáticas que circulam nos mass media e que o filme reverbera e procura, de certo modo,

desconstruir construindo uma nova semântica acerca da “comunidade”, categoria ainda

presente nas auto-descrições produzidas no e desde o filme.

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Mas o que a arte permite ver é diferente daquilo que, no cotidiano das comunicações

jurídicas, é visível, generalizado? Os episódios do filme trazem algo inusitado, algo do

horizonte indiscernível do direito? Ou repetem, como fórmula, aquelas significações já

estabilizadas, aqueles modelos de mundo já fixados que orientam as operações dos sistemas?

Na bifurcação que toda comunicação possibilita, i.e, aceitá-la ou não, 5 x favela agora por nós

mesmo aceita – e em que termos – ou rechaça a opinião pública canônica no que se refere à

favela? Quais as opções comunicativas o filme deixa vislumbrar?

5.2.1.2 Fonte de renda

[Argumento]: Maycon acaba de passar no vestibular e comemora com a mãe, Mariete, e com seu irmão caçula, Marlon. Ele será o primeiro de sua família a entrar para a universidade, e para ajudar em casa, Maycon trabalha numa padaria, perto de sua casa. Ao descobrirem que Maycon mora numa favela, já nos primeiros dias de aula alguns colegas da faculdade de direito – na sua maioria garotos da zona sul – pedem ajuda a Maycon para conseguir drogas. Ele se recusa, se ofende. Não usa drogas e não quer se meter com traficantes. Mas apesar do emprego ajudar a manter a casa, pagar o transporte para a faculdade na zona sul todos os dias e pagar por seus livros e apostilas está se tornando inviável. E Maycon precisa de uma alternativa. Depois de alguma insistência, Maycon cede aos apelos dos amigos e, mesmo a contragosto, começa a vender cocaína para alguns colegas de curso, até que um de seus amigos lhe consegue uma entrevista de emprego no tradicional escritório de advocacia de seu pai. Mas ainda há um último favor a ser feito, uma última carga. – Essa vai ser a última. E vai ser de presente, pra vocês pararem de me encher o saco. Porém, seus planos dão errado. Maycon precisa esconder a cocaína em casa, pois a polícia está cercando a favela. Seu irmão pequeno descobre o esconderijo e, por curiosidade, ingere parte da droga. O pequeno Marlon é hospitalizado. Todos estão aflitos. No hospital, Maycon assume a responsabilidade pelo acontecido. Se envergonha. Contudo, Maycon se forma em direito e é escolhido como orador da turma.138

Nesse primeiro episódio se constrói, desde personagens e trama, fórmulas que

estimulam e reforçam a percepção de que a favela é essencialmente um lugar ambíguo: é

lugar privilegiado da criminalidade e, portanto, do mal que se caracteriza essencialmente pelo

uso e comércio de drogas, e pela violência que acompanham aquela prática delitiva; ao

mesmo tempo é lugar onde vivem pessoas “de bem”, homens e mulheres trabalhadores,

respeitadores das leis, de moral ilibada, solidárias. 138 OLIVEIRA, Vilson Almeida de. Fonte de renda in: 5 x favela agora por nós mesmos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2010, p. 36.

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E, para enfrentar essa ambigüidade e com os problemas daí advindos, tem-se o

direito como o meio capaz de ofertar soluções. Essa construção bem pode ser vislumbrada na

cena em que o protagonista, Maycon, apresenta-se aos colegas de turma no primeiro dia de

aula:

Prof. – (...) por que resolveu fazer Direito? Maycon – (...) Onde eu moro o certo e o errado se misturam. É difícil saber o

lado da lei. Eu tenho vontade de ajudar minha comunidade, de ajudar as pessoas que eu conheço desde pequeno.

Prof. – Você mora em comunidade? Maycon – Moro

A ambigüidade, contudo, não é característica exclusiva de um certo ambiente social

constituído por “gente de bem” e “bandidos”. A referida cena já deixa antever que a

ambigüidade caracteriza o comportamento de muitos, indistintamente, fazendo-os cruzar, ora

em uma direção ora em outra, a fronteira daquilo que é esperado como bem e mal, certo e

errado, lícito e ilícito, revelando a fragilidade dessa fronteira que se quer ontológica porque

moral, mas que de fato é contingente. Assim, o comportamento ilícito é, com certa

freqüência, percebido como a alternativa que resta ao favelado para suprir suas carências

resultantes de uma exclusão econômica, por exemplo. A inclusão em certos sistemas sociais

pode funcionar, em dadas circunstâncias, como um starter à criminalidade, i.e, um

impulsionador nessa direção.

Na situação do filme, o ingresso de um rapaz pobre na universidade funciona como

esse starter.

Edu – Maycon, Maycon. Onde tu mora é uma comunidade. Maycon – É favela. Edu – Favela... É perigosão, né? Maycon – É...Tô acostumado já. Edu – Caralho. Sinistro, né? Tô ligado, como é que os caras falam?! Vida

loka né, meu. Maycon – Que isso, cara? Que que tu quer, Edu? Edu – Tem condição de tu trazer uma parada lá pra mim? Maycon – Não. Não, você tá viajando. Edu – Cara, tu tira um dinheiro em cima disso. Maycon – Edu, não rola. Edu – Não? Maycon – Na boa. Edu – Então já é.

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Ainda que a sociedade seja inclusiva de todos e que nada e ninguém exista

socialmente fora dela, a inclusão nunca é um dado absoluto, i.e., não procede de forma

integral e em todos os sistemas funcionalmente diferenciados que constituem a sociedade. E

esse caráter não absoluto da inclusão decorre de diferenciações funcionais intra e entre

sistemas que seguem proliferando. Hiper-complexa e contingente, a sociedade hodierna

continua a produzir sua complexidade ao buscar, sempre, reduzir essa complexidade com

respostas funcionais ainda mais específicas – o direito é uma função específica que cada vez

mais se especializa, por exemplo. Quanto mais respostas específicas são produzidas, abrem-se

novas possibilidades a mais perguntas. Cada resposta inclui e, ao mesmo tempo, é condição

de possibilidade para exclusões.

Desde esse viés de observação que a cena do filme proporciona, ingressar em uma

faculdade, ainda que gratuita, sem ter o suporte de uma fonte regular de renda pode ser um

convite para se cruzar a fronteira entre o que é e o que não é esperado como uma boa conduta,

ou uma conduta lícita. Ao mesmo tempo, estar amplamente incluído nos diversos sistemas

sociais não é garantia de que a fronteira não será cruzada. Verifica-se, desse modo, quão

difícil é ao indivíduo romper com as inúmeras formas de exclusão – que funcionam como

verdadeiras “redes” – que toda inclusão possibilita.

No caso do personagem Maycon, o fato dele entrar em uma faculdade não foi

suficiente para imunizá-lo face às “redes” de exclusão. Ele entra em uma faculdade de Direito

com a pretensão de poder ajudar à sua “comunidade”, tentar resgatá-la, de algum modo, da

situação de exclusão; ao mesmo tempo, esse ingresso na faculdade é por ele percebido como

meio de sua própria inclusão. Ironicamente, porém, Maycon não é percebido pelos incluídos

como mais um dentre eles; ainda arrasta consigo o estigma da sua exclusão – ser favelado –

na medida em que é reconhecido e avaliado não só por sua competência enquanto aluno –

“gente de bem” –, mas, acima de tudo, por poder facilitar a expectativa de conduta ilícita dos

colegas, promovendo o tráfico de drogas – “bandido”.

Nesse passo, a experiência de Maycon deixa vislumbrar que a inclusão nos fluxos

comunicativos dos sistemas sociais sempre produz, em alguma medida, exclusão. Quanto

mais exclusão, maior é condição de possibilidade à constituição de redes subterrâneas de

inclusão como, por exemplo, o narcotráfico. Seguindo-se De Giorgi, entende-se aqui por rede

de inclusão aquela...

(...) sociabilidade submergida, paralela, que coexiste, tolera, penetra a sociabilidade da sociedade moderna e está constrangida a periferizar-se

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continuamente a si mesma. Aqui as redes de inclusão estruturam desvio, elas mesmas adquirem estruturas, estabilidade e transformam-se em impedimentos estruturais para a diferenciação funcional. Transformam-se em obstáculos para a modernidade na modernidade. Estas transformam-se em substitutos funcionais da modernidade na modernidade.139

Quando a “grande” opinião publica mobiliza o conceito de comunidade, o faz na

tentativa de lidar com a ambigüidade que o termo favela torna mais evidente. Ao se mobilizar

o referido conceito para descrever certas formas de interação social, põe-se em destaque uma

suposta identidade social que se encontra em situação de risco por força das ações de

“bandidos” que, com violência, usurpam os espaços estratégicos da “comunidade” acabando

assim por seqüestrar a “gente de bem”. Desde essa perspectiva, o conceito de comunidade ao

substituir aquele de favela promove uma descrição que esconde a unidade da diferença “gente

de bem”/“bandidos”, indicando apenas um dos lados como definidor da realidade que o termo

designa, uma realidade altamente tensionada pela presença, quase que alienígena, da

criminalidade.

Sob esse bordão, políticas de “pacificação das comunidades” se legitimam, e de certo

modo autorizam violentas ações de segurança pública, as quais definem a si mesmas como

ação de proteção dos direitos dos moradores das comunidades de irem e virem – proteção da

“gente de bem”. A política de pacificação descreve-se, então, como neutralização dos

“bandidos” e a conseqüente retomada dos territórios comunitários até então sitiados pela

criminalidade. A violência é tida como efeito colateral provocado pela resistência dos

“bandidos” e que, inevitavelmente, atinge a “gente de bem”. Porém, a mudança semântica de

favela para comunidade não garante nem o fim da exclusão nem novas formas democráticas

de inclusão.

De sua parte, quando a favela assume-se como comunidade, i.e, assume a descrição

que a opinião pública canônica dela produz, pode fazê-lo sob outra carga significativa. Na

possibilidade aventada pelo episódio em observação, falar de comunidade é referir-se a um

pertencimento, a um estar junto em uma realidade que é, ao mesmo tempo, plural e total,

heterogênea e de difícil discernimento. As diferenças não são ocultadas nem excluídas, posto

que são assumidas como constitutivas daquela realidade; as diferenças são apresentadas como

momentos que podem alternar-se, ou serem simultâneos na vida de cada morador dali.

139 Cf. DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco. Vínculos com o futuro. Porto Alegre: SAFE, 1998, p.145.

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O conjunto de cenas abaixo parece construir essa forma de observar acima descrita,

bem como reforça a percepção da frágil distinção entre o lícito e o ilícito, indicando como um

é condição de possibilidade do outro.

Cena “a”: apresentando-se à turma, na faculdade.

Maycon – (...) Onde eu moro o certo e o errado se misturam. É difícil saber o

lado da lei. Eu tenho vontade de ajudar minha comunidade, de ajudar as pessoas que eu conheço desde pequeno.

Cena “b”: falando com o rapaz responsável pelo ponto de venda de drogas, que o cumprimenta com peculiar toque de mãos, demonstrando amizade e certa expectativa positiva quanto ao futuro do amigo.

Rapaz – Ih! Caralho! Futuro da comunidade. Como é que tá Maycon? Maycon – Certinho.

Cena “c”: Maycon continua caminhando. De repente pára e retorna em direção ao

rapaz do ponto de droga que conversa e gesticula, com uma arma. Maycon faz sua primeira

compra.

Rapaz – Qual é parceiro, beleza.

Cena “d”: Maycon intensifica a venda de droga na faculdade; deixa o trabalho na

pequena padaria da comunidade; revela-se um excelente aluno de Direito.

Cena “e”: seu comportamento parece frustrar as expectativas de seu amigo traficante:

de “futuro da comunidade” a apenas mais um na “atividade”? Expressando uma certa

preocupação, rapaz traficante comenta:

Rapaz – Atividade hein, Maycon. Vê legal hein, parceiro.

Esse primeiro episódio aponta para uma significação de direito em certa consonância

com o modo já canônico de a opinião pública descrevê-lo e amplamente difundi-lo pelos mass

media: direito confunde-se com lei. Maycon é enfático ao dizer que na comunidade não se

sabe discernir o que é do que não é “lei”. No entanto, permite também vislumbrar certo

entendimento de que a clara distinção e imbricação de condutas frustrantes e condutas

consonantes às expectativas constitui efetivamente o direito, é ela própria o direito, a

normalização de expectativas, evento que se realiza a cada momento de distinção entre

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consonância e frustração. E mais: se por um lado reforça certo entendimento generalizado que

a favela é lugar das drogas e da violência, por outro tenta desconstruir esse entendimento

mostrando o quão frágil e redutora é a rígida distinção entre bem e mal que muito amiúde

encontra-se nas descrições acerca da realidade das “comunidades”. Lá na “comunidade”, diz

Maycon o bem e o mal se misturam.

O desenrolar do episódio permitiu, justamente, o vislumbre da impossibilidade de se

indicar com clareza a distinção entre bem e mal, lícito e ilícito, certo e errado. Tudo é muito

mais complexo do que a simples distinção pode designar. Não se trata de pares de opostos que

se excluem mutuamente, mas elementos imbricados em uma unidade complexa. Nesse passo,

Maycon é tanto “gente de bem” quanto “bandido”. Mas se Fonte de renda indica a

complexidade da realidade social na qual Maycon está inserto, também funciona como um

redutor dessa complexidade: no fim, o rapaz pobre, favelado, mesmo tendo cometido um

ilícito, retorna ao caminho do lícito após um incidente de overdose do irmãozinho, se gradua e

é feito orador da turma. Afinal, como diz seu irmãozinho, ele é “sinistro”.

Como uma fórmula redutora da complexidade, o episódio repete, a já bastante

generalizada descrição que indica a inclusão social como um empreendimento personalíssimo.

Contudo, a própria experiência de Maycon mostrou como é difícil a fuga das “redes” de

exclusão que toda inclusão constitui e atualiza.

5.2.1.3 Arroz com feijão

[Argumento]: Na véspera do aniversário de seu pai, o menino Wesley o escuta dizer a sua mãe que está cansado da comida de todos os dias: arroz com feijão. Na manhã seguinte, Wesley convoca seu melhor amigo, Orelha, para fazer uma surpresa para o pai. Os dois decidem conseguir dinheiro para comprar um frango para o jantar dessa noite, por isso passarão o dia fazendo biscates de toda natureza. Lavam, carros, limpam calçadas, e o que mais aparecer. Mas antes que cheguem ao aviário, perdem todo dinheiro. Agora, Wesley não sabe como irá cumprir a missão de produzir o jantar de aniversário de seu pai. Wesley e Orelha tentam convencer o dono dos frangos a lhes vender fiado. Mas nada feito. São enxotados do local aos gritos. Os meninos, então, resolvem levar o frango na marra. Distraem o “português pinguço” e somem com o frango que estava prestes a ser degolado sobre o balcão. A noite é de festa. Mas como o menino tinha arrumado o dinheiro?, pergunta o pai. Trabalhando, ora. A alegria é total na casa de Wesley, até o menino descobrir que seu pai não come frango. Isso desde o dia em que viu seu pai ser humilhado por um vizinho por ter roubado um frango para a refeição da família. Wesley e Orelha agora têm

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uma nova missão: arrumar o dinheiro para devolver o frango que não deviam ter roubado.140

Assumindo um estilo jocoso, e com trama bastante simples, também nesse episódio

os personagens estão às voltas com a tensão entre os dois lados constitutivos da forma

lícito/ilícito. Mas, a despeito de sua simplicidade narrativa, Arroz com feijão é bastante

provocador, vez que suscita algumas questões interessantes. Contudo, as respostas a essas

questões exigiriam a elaboração de outra dissertação. Por óbvio, ficarão em aberto no âmbito

desse trabalho.

Determinado a dar de presente de aniversário a seu pai uma refeição diferente do

costumeiro feijão com arroz, menino e seu amigo partem em busca de “trabalho”, vez que o

comerciante de frangos recusou-se a vender fiado. Contudo, ao longo de sua empreitada por

obter, ainda que de forma precária, recursos lícitos, os personagens sofrem frustrações. A

primeira delas se constrói nos seguintes termos: os meninos, Wesley e Orelha, pedem a um

“flanelinha” 141 que os deixe cuidar de um dos carros sob sua guarda. Aproximando-se de um

desses carros recém estacionados...

Wesley – Pode adiantar o dinheiro agora, doutor? Proprietário – Depois do almoço. Vou almoçar primeiro, tá. Wesley – Pode jogar uma água no possante?

Enquanto lavam o carro com todo capricho, os meninos planejam a compra do

frango lá no aviário do Seu Manéu. O proprietário do carro retorna.

Wesley – E aê, patrão, o carro tá brilhando ai! Proprietário – Pô, vocês capricharam mesmo, hein! Deixa eu ver se tenho um

trocado aqui pra vocês. (...) Proprietário – Troca cinqüenta? Wesley – Broa, tem troco pra cinqüenta? Broa – Tá de sacanagem, né? Wesley – Pô, mas eu troco ali na banca. Proprietário – Não. Pera aí, pera aí. Fazer o seguinte, cinqüenta centavos e eu volto

amanhã... Fechando os vidros do carro, parte, deixando Wesley com olhar de decepção.

140 SILVA, José Antônio da. Arroz com feijão in: 5 x favela agora por nós mesmos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2010, p. 63. 141 Por “flanelinha” entenda-se aquela pessoa que, por seu arbítrio, apresenta-se como guardador de carros em uma rua.

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Wesley – Pô, só cinco reais! Tem gente pra caramba nessa cidade! Ninguém pode dar uma força?

Orelha – Que merda, irmão!

A segunda frustração vem após terem conseguindo ganhar, cada um, cinco reais por

ajudarem um cavalariço a limpar a calçada que o cavalo havia sujado. Ao receberem o

dinheiro saem comemorando, dançando e cantando pela rua. De repente, são abordados por

um grupo de estudantes de uma escola particular, que aos gritos, empurrões e dedos em riste

nos rostos dos dois amigos, lhes roubam o dinheiro.

Estudantes – Ih, tá cheio de dinheiro o menor...Qual é! – Mete a mão nessa porra aí!

Wesley – Tá maluco! Tá maluco! Estudantes – Pega logo! Pega logo! – Mete o pé. Vai, vai, vai embora! – Dá essa parada aí e volta pro seu lugar! – Seu moleque otário, mete o pé daqui. – Vai pra favela, seu otário. – Ganhamos um dinheiro ainda, ó!

Wesley entristece com o acontecido; Orelha, transtornado, exige que seu amigo não

comente com ninguém o ocorrido.

Orelha – Ó, se tu falar pra alguém que a gente foi roubado por um bandozinho

de playboy eu juro que te mato! Falo que é mentira e depois te mato, pô.

É possível destacar da cena, e com bastante clareza, ao menos dois entendimentos. O

primeiro: comportamentos juridicamente reprováveis não estão única e diretamente

vinculados àqueles segmentos populacionais mais pobres142; o segundo: favelados serem

roubados por “um bandozinho de playboy” é fato inconcebível, inenarrável, um vexame! Mas

por quê?

Talvez o estigma143 de perigosos, potencialmente criminosos, em certos contextos de

tensão seja descrição mobilizada por moradores de favelas de modo a construir uma distinção

142 Isso já havia sido verificado no primeiro episódio, quando os colegas de Maycon, o protagonista, assediam-no para que traga, da comunidade, uma “carga” para eles. Conferir pp. 96-97, deste trabalho. 143 Para uma discussão mais densa acerca de manipulação de identidades e estigmas conferir: MASCAREÑO, Aldo. Sociologia de la cultura. La decconstrución de lo Mapuche. Estudios Públicos. Revista de Humanidades y Ciencias Sociales, n.105, 2007, pp. 61-112, Santiago: Centro de Estudios Públicos. Disponível em <http://www.cepchile.cl/dms/ lang_1/doc_ 3892.html>. Acesso em: ago 2009; também a obra clássica de

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capaz de funcionar como uma moeda de troca simbólica. Nesse passo, o estigma é uma

descrição que permita certo empoderamento, ainda que virtual, pelo fato de sugerir o medo de

realização de uma violência que está pressuposta144. O sentido disponibilizado na forma de

um estigma é processado pelo estigmatizado de modo que ele – o sentido – se torne

informação no processo de observação que se faz daquela realidade social que estigmatiza,

que exclui, criando uma forma de inclusão por e na exclusão. E este se torna o modo de estar

incluído no lado que exclui, reforçando semântica e também operativamente com certos

comportamentos pressupostos por aqueles que exclui com sendo típicos daqueles que são

excluídos.

Ora, paradoxalmente, e de modo totalmente inesperado, a situação vivida pelos

meninos da favela foi diametralmente oposta àquela que certas descrições sociais tendem a

generalizar como um dado incontestável. Significa dizer que os meninos abastados assumiram

o comportamento semanticamente indicado como sendo aquele esperado de seus sempre

supostos agressores, os “favelados”. Até o linguajar utilizado pelos “playboy” assemelhou-se

àquele tido como sendo próprio de “favelados”. Talvez a reação de Orelha frente ao roubo,

complemente aquela de Wesley se queixando de que embora sejam tantas as pessoas na

cidade não conseguiam encontrar alguém para “dar uma força”. Talvez, a indignação de

Orelha não tenha decorrido do fato de ter sido roubado, mas por ser vítima de quem, em seu

entendimento, não precisaria roubar.

Assim, ao término do inusitado evento, aquele que em tese poderia dar, acabou

tomando, frustrando-se assim as expectativas comunicativas. Será, então, que ao roubar-lhes o

dinheiro o “bandozinho de playboy” ameaçou a possibilidade de empoderamento que a

manipulação de identidades estigmatizadas pode trazer? Certo é que o rótulo que distingue e

segrega potencializa a desigualdade se o distinguido transformar esse rótulo em informação

positiva de suas próprias comunicações. Em outros termos, o empoderamento que o rótulo de

favelado traz àquele que o suporta e o manipula para “obter” ganhos comunicativos só reforça

sua exclusão daqueles âmbitos comunicativos que o excluem desde a construção e atribuição

do referido rótulo. É o paradoxo de toda inclusão na exclusão.

Mas segue a trama. Face às frustrações, e determinado a presentear seu pai, pareceu a

Wesley que a conduta ilícita de furtar um frango era a única alternativa possível. Iludindo o

GOFFMAN, Erwing. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. 144 Esse tema será retomado quando da descrição de dois outros episódios, Deixa voar e Acende a luz.

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Seu Manéu, eles conseguem subtrair um frango que estava sobre o balcão, pronto para ser

abatido.

Após o jantar, e já em sua cama, Wesley, escuta o pai contar à sua mãe por que não

gosta de comer frango. Sua razão era uma triste história de como o avô de Wesley fora

espancado diante da família por ter furtado uma galinha do vizinho para alimentar filhos e

esposa. Sensibilizado por essa narrativa, o menino, no dia seguinte, procura seu amigo, e saem

em busca do pagamento prometido pelo proprietário do carro que eles haviam lavado,

logrando êxito dessa vez. De modo bastante jocoso, e fazendo as provocações costumeiras

para distrair o “português pinguço”, restituem um frango ao aviário, deixando-o sobre o

balcão e com um “cartaz” pendurado ao pescoço da ave dizendo: “voltei”. Seu Manéu nunca

soube de fato o que aconteceu, atribuindo todo inexplicável incidente do

desaparecimento/aparecimento do frango ao seu gosto por uma Ypióca.

Tal como no primeiro episódio, quando um evento com conseqüências morais –

naquele caso, a overdose de Marlon, irmãozinho de Maycon – fez com que o protagonista

cruzasse, de volta, a tênue fronteira entre ilicitude e licitude, também o delito cometido por

Wesley – furto de galinha – foi sanado por força de um evento moral construído e atualizado

pela memória de seu pai. E, embora haja, aparentemente, certa confusão entre direito e moral

– o filme pode parecer dar uma lição de moral – Arroz com feijão traz a possibilidade de

distintas formas de acoplamento direito-moral. Face à situação de precariedade crônica, que

no filme se expressa no fato de a família se alimentar todos os dias somente com arroz e

feijão, não seria possível considerar moralmente aceitável a conduta delitiva do menino? Será

que o protagonista se sentiria moralmente pressionado a reparar o dano se seu pai não tivesse

contado a triste história relativa ao frango? Não havendo a pressão e ele não reparando o

dano, sua conduta além de ilícita poderia ser moralmente reprovável? Toda ilicitude é sempre

moralmente reprovável? E, toda licitude traz sempre uma moralidade implícita? É mesmo

possível distanciar o jurídico do moral? Mas o que é moral, moralmente aceito, moralmente

reprovável?

Respostas a todas essas questões suscitam debates que, no âmbito dessa dissertação

não é possível fomentar, tanto por exigüidade de tempo quanto de fôlego. Contudo, cabe aqui

deixar indicado que uma das características do direito moderno – da modernidade da

sociedade moderna – é sua distinção da moral. Tal distinção não deve ser entendida como um

isolamento radical entre direito e moral, vez que ambos são ambiente um do outro. Desse

modo, observando-se os temas da comunicação moral desde o direito é possível torná-los

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tema de uma comunicação jurídica – por exemplo, o ainda polêmico casamento entre

homossexuais – transformando o tema moral em informação jurídica desde critérios

juridicamente definidos. Isso implica, portanto, que desde a observação do direito o sentido

moral de apreço/desapreço de comportamentos é re-significado no âmbito jurídico,

transformando-se em tema da comunicação jurídica pautada pelo código de sentido

direito/não-direito.

Mas a tematização jurídica de eventos que geram celeumas morais não significa que

o direito é moralizador, tampouco que a moral é jurídica. Indica tão somente que a referida

celeuma moral, presente no ambiente do direito, gerou expectativas normativas, sentidos pelas

quais o direito se deixou irritar, tornando-se assim tais irritações a condição de possibilidade

para a produção de uma comunicação jurídica desde aqueles sentidos agora transformados

pelo direito em sentidos jurídicos.

Por óbvio que acoplamentos estruturais, como o observado na relação direito-moral

pode, muitas das vezes, propiciar não apenas um excedente de sentido desde o qual os

sistemas envolvidos desenvolvem autonomamente suas operações; tais acoplamentos podem

gerar corrupção, uma direta interferência do código funcional de um sistema no outro –

gerando, por exemplo, a estetização, a politização, ou mesmo a moralização do direito –

mitigando a capacidade reprodutiva do código operativo do sistema corrompido e, portanto,

das operações típicas desse sistema, o que pode levar, em situações limites, a sua

desdiferenciação.

O enfretamento de tal risco também exigiria reflexão mais acurada que aqui não será

possível. Contudo, vale ressaltar que recentemente, Raffaele de Giorgi assinalou, em curso

proferido no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ145, que a idéia de moral em um

contexto social de elevadíssimo grau de complexidade – contexto que comporta incontáveis

diversidades em um plano de iguais possibilidades de inclusão – deve ser pensada, a idéia de

moral, não como fórmula universal de descrição do bem e do mal, mas como modo de fazer

no mundo, uma vez que sempre se está incluído naquilo que se constrói, e isso é, per se, um

comprometimento com o mundo. Parece, então, que o que se faz será tanto mais “moral”

quanto mais democrático for, ou seja, quanto mais for capaz de produzir condições de

realização da inclusão do outro, inclusão que está posta como possibilidade universal na

contemporaneidade da sociedade moderna. E isso nada tem a ver com a distinção bem/mal

145 Trata-se do mini-curso A Nova Teoria dos Sistemas, realizado em 19 e 20 de maio de 2011. Anotações de aula.

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produzida pela clássica idéia de moral. Nesse passo, a ampliação da democracia deve ser o

balizamento para o fazer social.

Produzidas desde observações de observações oportunizadas pelo filme, todas essas

questões indicam, indubitavelmente, o caráter especialmente complexo e contingente da

sociabilidade na contemporaneidade da sociedade moderna, de toda a comunicação

constitutiva desse contexto e, portanto, de todo sentido jurídico que ela produz. Por certo que

a comunicação jurídica não se confunde com a comunicação moral, mas ambas podem

sensibilizar-se mutuamente. E, como já aludido, uma comunicação jurídica pode ter como

hetero-referência um sentido moral tornado informação – como aquela produzida pelo STF

acerca da anistia que, segundo Neuenschwander Magalhães, foi uma “absolvição jurídica”

respaldada em uma “condenação moral” possibilitada por uma argumentação estetizante.146

Uma comunicação moral pode igualmente ter o jurídico como uma referência externa desde a

qual ela se atualiza – agir conforme o direito pode ser comportamento esperado e moralmente

aprovado.

5.2.1.4 Concerto para violino

[Argumento]: Marcia, Jota e Ademir cresceram juntos na mesma favela, mas a vida os levou para caminhos distintos. Marcia estudou música clássica, Jota é chefe do tráfico, Ademir tornou-se policial. Seguiram suas vidas. Por um golpe do destino, irão se reencontrar. Jota e seus companheiros fazem um assalto às armas de um quartel e, por isso, Ademir é acusado de negligência por seu chefe. O cabo precisa recuperar o respeito da corporação, e para isso encontrar as armas roubadas. Com a ajuda do traficante Tizil, decide invadir a favela em que as armas estão escondidas. Marcia está se preparando para um concerto, quando Jota chega a sua casa ensangüentado pedindo ajuda. Ela reluta, mas não resiste ao apelo do pai de sua filha, ainda que se mantenha distante e em evidente desacordo com a situação. A favela é invadida. Polícia e bandidos sobem o morro juntos, cada um com seu objetivo. Ademir quer as armas de volta, Tizil quer o controle da favela. Violência, morte, revanche. Ademir percebe que Tizil não quer apenas o controle do morro. Quer matar Jota. Ademir tenta em vão fazer com que Tizil deixe Jota partir. Mas já é tarde. E quando o policial percebe que o traficante quer mesmo é torturar seus amigos de infância até a morte, dispara os tiros de misericórdia que acabam com a vida e o sofrimento dos dois.147

146 Para maiores esclarecimentos acerca desse julgamento Cf. NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. O STF e a anistia. Carta Forense, São Paulo, agosto de 2010, p. A4; também pp. 65-66 dessa dissertação. 147 SILVA, Rodrigo Cardozo da. Concerto para violino in: 5 x favela agora por nós mesmos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2010, p. 90.

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De longe o mais denso entre os cinco episódios, Concerto para violino traz à

observação, de modo bastante dramático, a dinâmica daquilo que Raffaele de Giorgi

denomina rede de inclusão, já mencionada anteriormente148. Retrata a incapacidade de os

sistemas sociais realizarem inclusões de forma mais ampliada, e de como a exclusão daí

conseqüente, quando radical, transforma a violência em linguagem usual, meio mais corrente

da comunicação.

O tema e a trama de Concerto para violino reproduzem, em grande medida, uma

descrição bastante consolidada acerca da vida na favela: aquele é o espaço social da

insegurança e da violência. Ação de uma facção criminosa, invadindo um batalhão de polícia

e roubando armamentos; conluio de policial com facção rival visando não só obter ajuda para

fazer incursão na favela e retomar as armas, como também auxiliar a referida facção na

tomada de poder na “comunidade”, colaboração que rende ao policial um bom dinheiro –

“arrego”; criminosos paramentados com coletes e armamentos cedidos pelo policial; todas

essas são cenas que visam representar a promiscuidade policial-bandido, devido ao endêmico

processo de corrupção das instâncias policiais, bem como das instâncias jurídicas, legislativas

e executivas do Estado.

Os elementos que a ficção fílmica deixa entrever estão, de fato, socialmente

coordenados formando uma rede de inclusão – no caso, organização para o tráfico – uma

forma de comunicação desenvolvida nos interstícios dos sistemas sociais e, portanto,

igualmente social, capaz de criar de forma “parasitária”, como diz De Giorgi, uma outra

normalidade na normalidade, uma rede que “(...) estrutura expectativas, provê trabalho,

canaliza conflitos, ativa fluxos de dinheiro, confere status, tem extensões que superam os

limites regionais, participa da economia legal e daquela ilegal, até tornar pálido os respectivos

confins e as diferenças”.149

O filme reproduz descrições já estabilizadas acerca do modus operandi dos sistemas

funcionais e seus processos de corrupção, mas faz isso apontando os sistemas sociais

relacionais. Construída por personagens e tramas assemelhados a pessoas e relações que tem

lugar no cotidiano da “comunidade”, Concerto para violino permite o vislumbre de possíveis

diferenças encontráveis, ali, onde se tem a ilusão de estar vendo, tão somente, mais do

mesmo. Permite, portanto, que se estabeleça distinções capazes de desconstruir aquela visão

148 Conferir pp. 97-98 desse trabalho. 149 Cf. DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco. Vínculos com o futuro. Porto Alegre: SAFE, 1998, p. 147.

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já cristalizada acerca das favelas e dos favelados, e de como são construídos sentidos e

descrições sociais a partir deles.

O cerne da trama está na “invasão” da favela, comandada pelo policial Ademir e pelo

líder criminoso Tizil. Ademir precisa recuperar as armas roubadas de seu batalhão; Tizil quer

tomar o morro para si. Tizil negocia com Ademir:

Tizil – Irmão, trezentão... Tu pega tuas armas, eu prendo o morro e todo

mundo ri... Só os bundão que chora. Trezentão, cumpadi...Trezentão Ademir.

Ademir aceita a propina, e a recebe no dia da incursão em busca de Jota.

Determinado a destruir o rival que comandou o “bonde” de assalto ao batalhão, Tizil vai

praticando atos com requintes de crueldade – atirando a queima-roupa na cabeça de um;

ateando fogo em outro; espancado brutalmente um terceiro – buscando assim obter

informações acerca do rival. Consegue saber de que o desafeto se encontra na casa de

Marcinha, violinista na orquestra de cordas da “comunidade”, namorada e mãe da filha de

Jota. À medida que adentram na favela, Tizil, que havia ficado com o celular de um dos

comparsas de Jota, recebe uma ligação desse:

Jota – Coé, Pintoso. Tizil – Pintoso é o caralho, meu irmão. Quem ta falando aqui é o Tizil,

cumpadi. Teu parceirinho não vai precisar mais usar essa porra não. Aê, tô chegando porque a gente tem que desenrolar um bagulho. Tá certo comigo não, irmão.

Marcinha, sua mãe e sua filha fogem da casa. Jota permanece. Marcinha retorna

tentando levá-lo embora também. Mas ele insiste que ela vá, pois se Tizil a encontrar ali irá

matá-la também. Jota sabe o que acontecerá se cair em mãos do rival. A ameaça da violência

é sempre argumento muito persuasivo. Tizil invade a casa, levando Jota e Marcinha à rua,

onde esperam Ademir e outros policiais, além do resto do bando de Tizil.

Ademir – Ninguém atira. Tizil – Essa parada ninguém atira não, hein... O bagulho é o seguinte,

cumpadi eu quero os dois vivinhos na minha mão. Vou escangalhar o pela saco todo... Cortar perna, cortar braço...Vou arrancar o fígado dele com a mão... E a vagabunda aí, ó, é para esculhambar mermo, hein...Tacar fogo nela viva. Vai tocar violino no inferno, meu irmão. Vão bora porra!

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A amizade e o compromisso moral com os seus amigos de infância – “Jota,

Marcinha, Ademir: amigos para sempre, amigos para sempre, amigos para sempre”, foi o

juramento que um dia fizeram –, leva Ademir a uma trágica escolha: deixar que seus amigos

sejam torturados até a morte ou poupá-los desse sofrimento? Por suas expressões, olhando

fixos para ele, parece que eles suplicam pela última alternativa. Ademir opta, então, por

praticar mais um crime: homicídio.

Dizendo muito mais do que todos os diálogos do filme – pois esses reproduzem com

extremo realismo os jargões, já banalizados, da criminalidade violenta –, as imagens da cena

em que Ademir executa, com “tiros de misericórdia”, seus dois amigos na medida que ele os

vê, aos amigos e a si mesmo, ainda crianças, passando por ali naquele momento, correndo e

rindo pelas ruas da favela é bastante comovente, e eloqüente. E o que dizem as imagens?

Dizem principalmente da impossibilidade de superação da exclusão brutal pela via única do

esforço pessoal, e de como naquele contexto é indiscernível o lícito do ilícito. A estabilização

de expectativas normativas por meio da comunicação jurídica é amplamente frustrada, nesse

contexto, pelo rechaço que a comunicação por meio da violência produz.

Ademir não mora, desde criança, na favela; saiu de lá, pelas mãos de uma tia, após

temporal que fez desabar sua casa, matando sua mãe. Naquela noite de tragédia, Jota e

Marcinha o resgataram dos escombros. Ademir agora é policial. Está, portanto, supostamente

incluído em sistemas sociais mais amplos: tem certa escolaridade; um emprego estável. No

entanto, seus vínculos permanecem ali. Ele conhece Tizil, pois o procurou em busca de

informações sobre o “bonde” que invadiu o quartel onde é lotado; ficou sabendo que havia

sido uma ação de Jota. Toda essa proximidade as redes sociais subterrâneas e parasitárias,

como bem define Raffaele De Giorgi, fará Ademir sucumbir.

Jota, por sua vez, está enredado nas alternativas ofertadas pelo narcotráfico, essa rede

que inclui excluindo. Se a exclusão pode indicar a criminalidade como alternativa mais viável

de inclusão, restringindo assim drasticamente a possibilidade de observação, a inclusão

excludente propiciada pelo narcotráfico pode gerar cegueira que impossibilite quaisquer

outras formas comunicativas inclusivas para além daquelas que dela derivem. Jota – também

Tizil – está completamente cego.

Marcinha, a violinista, tem na forma da arte a possibilidade de imunizar-se de toda

rudeza que a exclusão radical lhe impõe. Ela é o olhar que ousa ir para além da cegueira

imposta por aquela forma de exclusão, pela criminalidade. E sua experiência com a arte

possibilita o vislumbre de que todo movimento no sentido da superação dos limites impostos

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por essa exclusão deve ser socialmente coordenado, comunicativamente amplificado; não

basta tão somente querer, pois não se trata de uma mera questão de vontade.

Regente – As vozes juntas. Isso. As três são inseparáveis.

Na cena acima, Marcia está ensaiando com os outros musicistas, e o regente parece

chamar a atenção para a importância de se agir coordenadamente desde sentidos tornados

comuns, seja para se construir a polifonia de uma peça musical, seja para fortalecer os laços

que unem amigos, ou ainda para possibilitar a superação dos limites da exclusão,

oportunidade que a própria arte pode proporcionar. Contudo, ainda que o episódio indique que

a condição de possibilidade da inclusão encontra-se em ações que se coordenam desde

sentidos generalizados com esse propósito, tais relações não garantem a realização da

pretendida inclusão. Prova disso é que Marcinha também sucumbiu a essa sociabilidade

excludente, a esse fluxo comunicativo que leva, amiúde, à tortura dos corpos, ao

aniquilamento de vidas.

Observando-se Maycon e Wesley, protagonistas dos episódios anteriores, verificou-

se que a moral funcionou como starter para se operar um cross desde o lado negativo ao lado

positivo da forma direito/não-direito. Já com Ademir se tem justamente o oposto, um cruzar

do lado positivo para o negativo da forma quando se leva em consideração sua conduta no

desfecho da trama. Ao exigir que ninguém atire em Jota e Marcinha, foi possível supor que

Ademir se veria obrigado a enfrentar Tizil para salvaguardar a vida dos amigos; afinal ele é

um policial, um garante da segurança alheia. Contudo, em um assomo de moralidade, re-

memorando um código de honra de sua infância, cruza mais uma vez a fronteira entre licitude

e ilicitude.

Obviamente, a motivação moral de Ademir não se sobrepõe nem retira o caráter

delitivo de sua conduta, tanto mais que se deu em um contexto comunicativo de tantas outras

ilicitudes. E mais: sua conduta – ainda que plena de moralidade, compaixão, carinho – prende

Ademir mais fortemente às teias relacionais da exclusão. Para evitar a brutalização prometida

por Tizil, Ademir se deixa embrutecer, deixando ali no chão, inertes, os corpos dos seus

queridos Jota e Marcinha: trágico paradoxo em que a distinção bem/mal jogou o mais funesto

e decisivo lance.

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5.2.1.5 Deixa voar

[Argumento]: É fim de ano e vários adolescentes assinam seus nomes uns nas camisetas escolares dos outros. Flavio, Carol e seus amigos se despedem do grupo e caminham juntos para a casa até chegarem a uma encruzilhada. A partir deste ponto, eles irão se separar. Os meninos ficam e Carol irá atravessar a ponte que divide as duas favelas rivais. – Quando vocês vão me levar em casa? Os meninos, com medo, não cogitam atravessar para o “lado dos alemão” e seguem para sua comunidade. Sobre uma laje, Flavio e seus amigos disputam a melhor pipa e, apesar das queixas dos outros, é Flavio o escolhido para soltá-la. Mas ele leva a pior. A pipa do menino é cortada e voa por sobre as casas até o território inimigo. Agora ele precisa ir buscá-la. Depois de tentar, sem sucesso, convencer um de seus amigos a acompanhá-lo, Flavio encara a missão de resgatar a pipa em território desconhecido e, supostamente, perigoso. Ele caminha assustado pela favela rival, mas aos poucos se surpreende com a semelhança entre as comunidades – os mesmos rostos, os mesmos hábitos, as mesmas construções, tudo igual. Flavio encontra um grupo de adolescentes soltando pipas num campinho, e a que procurava está entre elas. Pipa “avoada” não tem dono. Ele negocia com dificuldade, mas com firmeza, o resgate de sua super pipa, prometendo trazer outras em troca. No caminho de volta, aproveita para visitar Carol, como quem foi à favela rival a passeio. Agora é Carol que o acompanha de volta à fronteira entre as duas favelas.150

O quarto episódio de 5 x favela agora por nós mesmos traz de volta o tema da construção de

identidades estigmatizadas e as complexidades relacionais que essa construção impõem. Sabe-se que o

estigma ou rótulo é sempre a descrição negativa de uma distinção que se oculta sob uma

imputação de atributo inerente a um dos lados da distinção, ao lado que é descrito. Aquele que

descreve se distingue positivamente daquele que é descrito, contudo dele não podendo se

desvincular sob pena de se desconstituir como aquele que é diferente do rotulado. A

mobilização de estigma – operação de atribuição ou de “incorporação” de rótulo negativo –

cria condições de possibilidade tanto de rechaço quanto de legitimação e reprodução de

exclusões. E, em contextos marcados por construções de identidades estigmatizadas, a

violência pode ser o meio e a forma privilegiada da comunicação.

Deixa voar trata, portanto, da ameaça de violência eminente. Trata também da

reversão dessa ameaça pela indicação da possibilidade de constituição de novas formas

comunicativas capazes de desconstruir rótulos enquanto sentidos negativos cristalizados. O

episódio traz à observação um “território” cindido em dois, em que cada lado dessa cisão

percebe o outro como um campo inimigo, o “lado dos alemão”, percepção que produz e se

reproduz por expectativas de expectativas de violência como regra. Assim, os sistemas 150 BARCELOS, Cadu. Deixa voar in: 5 x favela agora por nós mesmos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2010, p. 116.

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relacionais se constituem desde posições comunicativas que operam por mútua acusação, e

esperam comportamentos condizentes com o rótulo que a acusação institui. Paira, portanto, a

certeza de que ingressar no “campo inimigo” resultará em necessária violência, e toda forma

comunicativa deve se dar a partir dessa certeza. Toda a complexidade que envolve a

sociabilidade fica reduzida a essa certeza, e a possibilidade de ampliação comunicativa fica

obstaculizada, mitigada.

A construção dessa distinção – lado amigo/lado inimigo –, portanto, coordena outras,

e traça uma pauta de relações de tal modo que os lados não se freqüentam espontaneamente, e

as comunicações vis-à-vis são esporádicas e em âmbitos restritos. Os personagens – quatro

adolescentes, amigos de escola – vivem esse drama. A menina do grupo, Carol, vive no outro

lado do rio. E isso é obstáculo a qualquer pretensão de relacionamento extra-escolar, inclusive

namoro. Somente Carol cruza a ponte – a fronteira entre as favelas é o rio sob essa ponte –

que une as duas favelas.

Carol – Tchau, tá gente. Flavio – Tchau. Carol – Quando é que vocês vão me levar na minha casa? Buiu – Quando você mudar pra cá. Carol – Ah, tá, muito obrigada.

Contudo, um evento de “pipa avoada” irá proporcionar mudanças nas percepções dos

personagens, possibilitando o estabelecimento de novas formas comunicativas entre os

“inimigos”, além da construção de novas descrições sociais acerca dessas novas formas

relacionais que se instauram.

Flavio, o menino que deixa voar a pipa, é intimado pelo dono do brinquedo a buscá-

la a qualquer custo. Acompanhando o vôo errático da pipa, Flavio verifica que ela caiu no

“lado dos alemão”. Ele tenta convencer seus amigos a cruzarem o rio com ele, mas em vão.

Relutante Flavio aventura-se em “campo inimigo”. À medida que caminha, percebe que não

há diferenças expressivas entre o seu lado e o “lados dos alemão”. Viu criança brincado na

rua; roda de amigos jogando cartas em mesa de bar; dona de casa lavando a calçada; homem

trabalhando em sua loja. Nada de assustador acontecia, a não ser os dois carros da polícia que,

desembestados, adentraram a favela fazendo com que ele procurasse, por breve instante,

abrigo em um pequeno estabelecimento comercial. Provavelmente, pôde pensar o expectador,

isso acontecia em sua “comunidade” também.

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Flavio continua a caminhada e, em dado momento, encontra uns rapazes soltando

pipa. Aquela que ele procurava também estava lá, nas mãos de um deles. Dirigindo-se ao

rapaz para reivindicar sua pipa é logo rechaçado pela evocação da já conhecida “lei”: “pipa

avoada não tem dono”. Todos partem para assediá-lo.

Flavio – Aí, essa pipa é minha. “os alemão” – Tua, tá maluco! Pipa avoada...

– Oooou...qual foi? – Ele tá dizendo que a pipa é dele. – Ih, tá escrito teu nome aqui, rapá? – A pipa é tua é o caralho, rapá

Flavio – Pô, a pipa não é minha não, e do meu parceiro “os alemão” – (...) – Ih, problema é teu rapá, se liga na parada. – Tu mora onde, tu, parceiro? Flavio – Eu moro ali atrás. “os alemão” – Ih, então tu é alemão, então, né – Tu é alemão? Se for tu vai rodar. Vai rodar mermo, neguinho.

Tendo sido reconhecido como “alemão”, estava montado o cenário propício à

concretização daquilo que se espera do inimigo: atos de violência. Eis que Alex, conhecido de

Flavio, chega em seu socorro. Ele é primo do dono da boca de fumo dessa favela, mas

segundo Carol, não tem nada a ver com a atividade ilícita de seu parente; aliás, ela repreende

os amigos por rotularem o Alex, que está interessado na irmã de Flavio.

Alex entra na discussão:

Alex – Calma aí, qual foi do caô aqui, meu irmão? “um alemão” – Ih, Alex, tamo achando que ele é alemão. Se for alemão vai rodar. Alex – Rodar o que, rapá. Tu é bandido pra chamar os outros de alemão? “um alemão” – Tu tá defendendo ele por causa de quê? Alex – To defendendo ninguém não, rapá.

A discussão fica acalorada, cheia de empurrões e xingamentos, prestes mesmo a se

transformar em uma briga generalizada.

Alex – Nem escutou o papo do menor tá falando que ele é alemão, rapá.

Baixa a tua bola aí neguinho. Escuta o papo do menor primeiro, rapá. Coé, fala aí pra eles, menor.

Flavio conta como foi que, empinando a pipa do amigo, deixou-a voar.

Demonstrando certa ascendência sobre os demais, Alex promove um apaziguamento dos

ânimos. Sugere então que a pipa de Flavio seja devolvida, e que este se comprometa a trazer

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algumas outras para ressarcir o rapaz que havia capturado a pipa voada. Após breve

relutância, todos cedem a sugestão de Alex, se cumprimentam, e Flavio é convidado a vir

soltar pipa com eles. Alex e Flavio se afastam. Alex se mostra surpreso com a aventura de

Flavio. Por que correu o risco de ir buscar a pipa ali? Ela é de ouro, pergunta.

O resgate de uma “pipa avoada”; a capacidade de um menino em enxergar o outro

para além dos preconceitos dominantes; o orgulho de ter superado o obstáculo até então

intransponível. Certamente, essas são informações que se pode, de modo imediato, constituir

desde a observação viabilizada por Deixa voar. Contudo, o episódio permitiu vislumbrar a

possibilidade de se estabelecer novas formas comunicativas no cotidiano relacional das

favelas, um cotidiano muitas vezes marcado pela violência habitual e presumida.

Diferentemente de Concerto para violino, em que Marcinha não consegue, pela arte,

ultrapassar os limites da exclusão a que está submetida, Flavio foi mais feliz em seu propósito

de transpor aquela barreira que também era física. Todavia, é possível perceber, mais uma vez

que para se subverter a exclusão exige-se muito mais que tão somente a determinação pessoal.

O simples resgate de uma pipa possibilitou a criação de novas distinções nas quais o direito –

não a violência – é tomado como meio generalizado da comunicação. A intervenção de Alex

funcionou como uma mediação, desde a qual se criou a possibilidade de relações coordenadas

por outros balizamentos que não o estigma do “alemão”, do inimigo.

Deixa voar indica, portanto, a possibilidade de mudança na forma comunicativa em

contextos sociais deflagrados pela violência latente ou manifesta. A mediação de Alex, e a

fixação dos limites de direito das partes em conflito representou a criação de condições de

possibilidade de ampliação dos âmbitos relacionais. Comunicações inusitadas possibilitaram a

ampliação dos âmbitos sociais em que estavam insertos aqueles meninos. Flavio avisa Alex

que sua irmã aceitou encontrá-lo na lan house – na verdade, a irmã de Flavio ainda não sabe

do encontro, mas ele já se adiantou à irmã. Carregando a pipa como um troféu pendurado ao

ombro Flavio vai à casa de Carol que – surpresa com a visita do amigo – leva-o para tomar

sorvete. Caminham abraçados em direção à ponte-fronteira, marcando um encontro para o

próximo baile que vai acontecer ali, onde mora Carol. Todos esses eventos apontam para o

fato que, ao menos no âmbito daqueles personagens direta e indiretamente envolvidas com o

episódio da “pipa avoada”, se construiu novas possibilidades relacionais, portanto, novas

formas comunicativas.

Em suma, pode-se afirmar que Deixa voar constrói uma descrição social que, a um

só tempo, mobiliza sentidos já estabilizados na forma de estruturas que permitem certas

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operações sociais e, portanto, certos contextos relacionais, como também aponta a

possibilidade de construção de outros sentidos que podem ser antevistos nas descrições que a

descrição fílmica constrói e que são passíveis de ser, sociologicamente, observados. O

episódio reforça também o entendimento de quão surpreendentes podem ser os eventos

comunicativos. De um que se supunha de alto risco e, portanto, frustrante, tem-se como

retorno justamente aquilo que era improvável: ampliação dos âmbitos da comunicação. Com

ele observa-se que nada é dado desde sempre e para sempre, a não ser a possibilidade de se

produzir o novo, o diferente a cada momento comunicativo. Deixa voar traz, portanto, a

possibilidade de vislumbre da existência de um horizonte de sentidos sempre disponíveis à

atualização, um vislumbre da complexidade e da contingência que envolve a sociabilidade.

5.2.1.6 Acende a luz

[Argumento] É véspera de Natal e há três dias falta luz no morro. Lica e Cimar preparam a casa e a ceia para a festa, enquanto aguardam, ansiosos, o prometido carro da companhia elétrica chegar para fazer o conserto. A vizinhança toda está apreensiva. O dia está quente e a comida preparada para o Natal pode estragar a qualquer momento se não forem religadas as geladeiras. E se faltar o gelo da cerveja? O corre-corre é grande entre homens e mulheres que limpam suas casas, carregam gelo ladeira acima, cozinham, arrumam os cabelos, roupas e árvores de Natal. No fim da tarde, Lopes, o encarregado de fazer o tão esperado conserto, chega à favela. O motorista, parceiro de Lopes, já na entrada da favela, se recusa a subir e o eletricista precisa carregar sozinho seus equipamentos pelas escadas até o topo do morro. Ao chegar ao poste do 314, Lopes descobre que não poderá fazer muito, pois falta uma peça. Seria preciso descer para buscá-la. Os moradores reclamam e cercam o poste. A confusão está armada. – Mas não vai descer mesmo. Daqui, você só sai com a luz consertada. Lopes tenta, pelo celular, convencer o amigo a buscar a tal peça e trazê-la até onde ele está. – Vamos embora, Lopes, depois alguém resolve isso, hoje é Natal. – Mas aqui também é Natal, e isso aqui é favela, cara. Eu não vou conseguir sair daqui. A noite chega e todos se juntam a Lopes aos pés da escada que está montada para o conserto do transformador. O técnico da companhia elétrica não tem alternativa. Afinal, é Natal. Ele faz um “gato” no poste e a luz se acende. Todos aplaudem, gritam, cantam, saúdam o herói da noite. Mas em seguida a luz cai de novo. No breu, as caras dos moradores do 314 não são muito amistosas. Lopes faz, então, um novo gatilho e apenas este poste acende, todo o restante da favela está no escuro. Sem problemas! Os vizinhos trazem suas ceias, cervejas, mesas e cadeiras e fazem, ali mesmo, ao redor da única luz, a sua festa de Natal. Lopes, claro, é o convidado de honra.151

151 BEZERRA, Luciana. Acende a luz in: 5 x favela agora por nós mesmos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2010, p. 138.

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Quinto e último episódio, Acende a luz também optou, tal como Arroz com feijão,

por um filão cômico em sua narrativa. A trama gira em torno de algumas horas que antecedem

a festa de Natal, seus preparativos e a falta de luz, que já dura mais de um dia. Sob o pano de

fundo de temas comunicativos já sedimentados – o descaso público face às necessidades da

favela e o caráter festeiro dessas populações mais carentes – é possível vislumbrar, mais uma

vez, a construção e mobilização de identidades sociais como operações que engendram certos

sentidos jurídicos.

A equipe da companhia de eletricidade que se encontra na favela resolvendo

problemas de falta de luz decide ir embora e sugere, ao seu supervisor, que mande o Lopes

para consertar o poste 314, lá no alto do morro. Depois desse típico jogo de empurrar as

responsabilidades de um para outro, a equipe entra no automóvel de serviço e começa a

descer o morro. Um morador da área servida pelo poste em pane, ao ver o carro partir, grita

para que impeçam a passagem do veículo. Muitos correm morro abaixo atrás do veículo,

enquanto outros o interceptam. Acuados, os funcionários da companhia de eletricidade

afirmam que só estão descendo para comprar a peça que falta para o conserto do tal poste;

conseguem partir.

Enquanto aguardam o retorno do carro, o pessoal lá do poste 314 vai fazendo os

preparativos para a festa de Natal. As donas das casas preparam as comidas; parentes vêm

chegando de outras localidades; jovens se cuidando no salão de beleza; Cimar vai

providenciar gelo em outra favela; e tudo isso em clima de muita alegria já que a hora da festa

se aproxima. Em meio a esse burburinho chega Lopes, o novo responsável pelo conserto do

poste, carregando a escada nas mãos, pois o automóvel de serviço não consegue chegar até

ali. Seu companheiro de trabalho ficou com o carro lá no início da subida. O pessoal se

aproxima de Lopes, festejando sua chegada.

Enquanto vai trabalhando Lopes percebe que está faltando uma peça para realizar o

trabalho; liga para o parceiro que o aguarda:

Lopes – Eu não tô entendendo o que aconteceu aqui. Ninguém te falou que

tava precisando de uma peça? – Não, mas ... hein? _Como eu vou sair daqui e deixar o pessoal sem...

parceiro – Pô, tu tá maluco, irmão? Hoje é Natal, velho. Lopes – Ô rapaz, é Natal aqui também, né! parceiro – Beleza, se tu quer ficar aí, tu fica, morô? Porque eu já larguei.

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Lopes continua trabalhando. Mais tarde entra, novamente, em contato com seu

parceiro pedindo que ele faça só mais uma viagem e traga a peça necessária. Uma moradora

escuta a conversa e, dá o alerta:

moradora – Ô Vera, tá dizendo aqui que não trouxe a peça não aí, ó. Começam os murmúrios. O que até então tinham sido cordialidades – deram até café

e rabanada para o Lopes, assim que ele chegou ao local – transforma-se em evidente

insatisfação que vai num crescendo, até que Lopes dá a já conhecida desculpa quando o

objetivo é safar-se das obrigações, embora esse não fosse o caso de Lopes.

Lopes – Meus senhores, é que tá faltando uma peça, e sem a peça não dá

mesmo prá fazer nada. Indignados, todos ficam cada vez mais próximos à escada gritando, sacudindo-a; até

uma moradora mais exaltada bate-lhe com uma colher de pau. Ele sobe mais um degrau

amedrontado.

moradora – Vem cá, me diz uma coisa e se fosse à casa da sua mãe, hein? a

peça não aí, ó. morador – Meu irmão, isso aqui é comunidade, hein Lopes – Eu até posso ficar aqui, só que não vai resolver nada. morador – Se a gente meter porrada nele, ele conserta rapidinho! Cimar – Calma gente!

– Liga pro cara e manda ele trazer a peça, irmão. – Cara, ele não vai descer daqui não! – Tu ta maluco? Tu se ligou que é Natal?! Tu não pode ir embora e deixar a gente no escuro não, rapaz

Anoitece, e Lopes sentado na calçada sob o posto ainda apagado, come a rabanada

que ganhara mais cedo. Alguns moradores, também sentados por ali, comentam:

moradores – Aí, o cara deu a palavra dele e tá honrando.

– Deu a palavra?! O cara deve tá cheio de medo achando até que tu é bandido, rapá, cheio de marra. – Cara, ele não vai descer daqui não! – Ai, eu não ri na hora, porque eu não queria tirar tua moral. Mas, aí, até eu fiquei com medo, parceiro. – Meu irmão, tá na cara o carro não vai voltar. – Ué, mas o cara tá esperando. – Claro. Porque vocês ameaçaram ele, pô.

É quase meia note, e o celular de Lopes toca:

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Lopes – É Lopes, fala. – Como “onde é que eu tô”? No mesmo lugar que você me deixou! Onde é que você tá? – Porra, Waldir! Isso aqui é favela... – Tu vai ter que trazer essa peça. Amigo, eu tô sozinho aqui, eu tô acuado... – Porra, eu sei que eu não sou Papai Noel, mas... – Porra, tu não entende.

Já andando ao lado de Lopes, enquanto este falava ao telefone, moradores que

estavam por ali, conversando, reabrem os comentários de insatisfação, reativando o clima de

tensão e pressão. Lopes toma, então, uma decisão radical:

Lopes – Olha, eu vou tentar uma coisa aqui que pode custar o meu

emprego. moradores – Que que tu vai fazer agora?

– Vai fazer um gato? Lopes – Quem não gostou que reclame lá na companhia! Alguém tem um

fio dois e meio aí?

Lopes improvisa uma ligação clandestina e a luz volta, fazendo todos gritarem de

alegria. Mas em seguida, tudo fica às escuras fazendo com que todos esbravejem e xinguem.

Novamente, no alto da escada Lopes faz novo gato, mas, agora a luz só volta no poste,

permanecendo as casas apagadas. O pessoal então resolve fazer a festa ali mesmo, sob a única

luz daquele local.

No episódio Acende a luz, a trama é estruturada de tal modo a permitir que, prima

facie, a percepção corrente acerca da “comunidade” – lugar de “gente de bem”, mas sitiado

pelo crime e, portanto, lugar perigoso e violento que inspira medo – seja desconstruída e

substituída pela percepção de que ali estão de moradores de um lugar qualquer, cordiais, bem

humorados, trabalhadores. Todas as falas, até o início do incidente com Lopes, apontam nessa

direção. Não se faz qualquer referência a “comunidade” ou “favela”; não se fala em violência;

não há policiais incursionando pelas ruas; não se menciona drogas; não se deixa vislumbrar

qualquer traço de tensão em relação ao local onde se mora. O único problema mencionado é a

falta de luz que ameaça acabar com a festa de Natal.

Em certo sentido, essa forma de auto-descrição vai ao encontro da opinião pública

mais massiva que descreve essas populações como constituindo “comunidades” i.e,

grupamentos humanos que compartilham certos valores atualizáveis em redes relacionais

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como o parentesco, a amizade, a vizinhança. Vivendo em enclaves de pobreza, optam por

soluções coletivas face aos problemas cotidianos.

Cogitou-se, em outro momento dessa dissertação, que as descrições sociais mais

generalizadas e generalizantes ao mobilizarem o conceito de comunidade o fazem na tentativa

de estabelecer uma rígida distinção entre “gente de bem” e “bandidos”, sendo os primeiros

tidos como reais formadores e definidores da comunidade enquanto tal, e os segundos

considerados como aquela gente que fere a vida naturalmente ordeira e honesta da

comunidade e que deve ser dali exilada por força de políticas públicas de pacificação dessas

localidades. Desde essa perspectiva, então, comunidade indicaria uma coletividade de “gente

de bem”, na qual “bandidos” seriam alienígenas; “gente de bem” e “bandidos” seriam duas

categorias de pessoas percebidas como excludentes entre si.

Ainda que sem mobilizar explicitamente tais categorias, o episódio Acende a luz vai

reproduzindo aquilo que as descrições mais generalizadas indica como sendo “comunidade”,

até que o incidente com Lopes muda o rumo dos acontecimentos, fazendo o termo

comunidade aparecer em discursos inflamados. E por quê? Porque naquela situação limite

entre, de um lado, correr o risco de deixar Lopes ir embora e ficar sem a luz e, de outro lado,

criar condições de possibilidade para que o direito de terem a luz consertada não fosse

frustrado, os moradores evocam e atualizam – selecionam, portanto – um certo sentido de

identidade que pretensamente os caracterizariam, indicando nessa operação justamente aquilo

que tal sentido traz de estigmatizante, aquilo que suscita toda semântica de inclusão na

exclusão que o estigma constrói e legitima. Lopes é lembrado que ali é uma “comunidade”;

alguém sugere que o uso da violência o forçaria a resolver o problema.

Nesse passo, os personagens usam a semântica da “comunidade” como estratégia

para tornar as relações com Lopes ambíguas, instáveis, imprevisíveis: eles são pessoas

afáveis, mas podem mudar. Lopes precisa ser destituído daquele poder que todos os que

prestam serviços ali tem, poder de ir embora e não solucionar os problemas, poder de nem

aparecer quando são necessários.

Na cena, noturna, em que Lopes está sentado sob o poste e que, mais afastados,

alguns rapazes aludem o incidente de tê-lo ameaçado, há o vislumbre de que tudo não passou

de um jogo de persuasão. Comentam que à tarde, quando um deles falou em usar a violência

para convencer Lopes, parecia um “bandido” falando, e que só não riram porque não queriam

tirar a moral do amigo. Contudo, quando Lopes recebe a ligação de seu parceiro a pressão

para que ele resolva o problema recomeça. E, enquanto fala com seu parceiro Lopes o lembra

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que ali é uma favela, e que ele está sendo acuado. Parece que ele percebe a manipulação que

os moradores fazem da idéia de comunidade – ou será que ele se sentiu realmente acuado,

pois, afinal, ele não foi embora – e manipula essa manipulação visando conseguir a ajuda do

parceiro, que, no entanto, o deixa à própria sorte.

O desfecho do filme aponta mais uma vez para a complexidade que envolve o

sentido de comunidade, e de como ele pode produzir outros sentidos e diferentes descrições

sociais, e, portanto, diferentes formas sociais. Aqueles personagens não se identificavam

como moradores de uma comunidade, o que trouxe à luz a possibilidade de rechaço a uma

semântica que cria o sentido daquela realidade ao constituí-la e designá-la como comunidade.

Contudo, quando frente à possibilidade de ver frustrado um direito mobilizaram aquele

sentido, porém re-significando-o de forma diversa àquela da opinião pública mais canônica.

Travestidos, semanticamente, de “bandidos” se assumiram como “comunidade”. E essa foi

uma forma de empoderamento que se mostrou eficaz. Acuado ou não, certo é que Lopes não

foi embora e, ao fim de tudo, a expectativa não foi totalmente frustrada.

5.2.2 O que 5 x favela agora por nós mesmo trouxe de diferente.

Considerando-se, como bem frisou recentemente Raffaele De Giorgi152, que toda

observação está aberta à outra observação, então é pertinente afirmar que a arte é, por

excelência, a observação de observações. Assim, como qualquer obra de arte, o filme 5 x

favela agora por nós mesmo trouxe a possibilidade de se observar o mundo social, desde uma

perspectiva diferente daquela que cada observador inserto no âmbito jurídico desse mundo – o

operador, o educador, o filosofo, o sociólogo do direito – observa o mundo e, portanto, o

direito desde a sua forma jurídica de observar, um modo de simplificação de complexidades

que muitas das vezes reduz, semanticamente, o jurídico e o mundo ao judicial, a essa que é

tão somente dimensão estatal do âmbito jurídico da sociedade moderna.

Os episódios de 5 x favela agora por nós mesmos falam de direitos sem atribuir ao

direito um caráter judicializante; é instrumento político de reivindicação desses direitos sem,

contudo, qualquer proselitismo. Em todos os episódios estão presentes sentidos de direito e de

moral vez que sempre são estabelecidas, direta ou indiretamente, diferentes distinções

152 Trata-se de aula proferida no mini-curso A Nova Teoria dos Sistemas, realizado em 19 e 20 de maio de 2011, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRJ. Anotações de aula.

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lícito/ilícito, bem/mal. A questão é saber se tais distinções estão generalizadas, e quais delas

lograram a condição de norma jurídica.

Quando se fala de Maycon, Ademir, Wesley, Flavio, Lopes e todos os demais

personagens, não se põe em mira os traços distintivos de suas individualidades e suas

idiossincrasias; tampouco se restringe a apontar valores que devam pautar comportamentos.

As descrições que os diferentes episódios trazem não são apenas um mero discurso

moralizante, menos ainda uma apologia jurídica. Com eles é possível vislumbrar o que está do

outro lado de cada distinção que as descrições procedidas por cada episódio constitui. Cada

trama e seus personagens são atualizações de sentidos morais e jurídicos, e também políticos,

em um horizonte de sentidos possíveis. E ao fazer tal atualização, produz mais sentidos que

farão parte desse mesmo horizonte. Essa operação realizada pela obra fílmica é, portanto,

também uma operação social, é comunicação, produção de distinção, seleção entre o que é

indicado como sentido que se quer atualizar e o que permanece indiscernível, ocultando a

própria seleção artística como seleção.

E uma das distinções desde o sentido lícito/ilícito construídas no filme se dá no

âmbito da representação da criminalidade violenta, forma de rede de inclusão que freqüenta as

descrições sociais quando o tema é a favela, a “comunidade”. Sabe-se que a normalidade

subterrânea de que falou De Gorgi, também cria uma dimensão subterrânea da normatividade,

a normatividade corrompida, o que não deixa de ser normatividade. A atualização dessa

normatividade no âmbito dos sistemas relacionais pode produzir violência como meio e forma

da comunicação, pelo fato mesmo de tais âmbitos sociais não serem capazes de se

imunizarem em face à violência. A normatividade corrompida se generaliza e mina,

paulatinamente a possibilidade de se vislumbrar a sua superfície potencialmente democrática,

potencialmente inclusiva e transformadora.

O episódio Concerto para violino põe em foco justamente a dinâmica operativa das

comunicações do submundo violento da normatividade corrompida e sua aparente

inexorabilidade. Inversamente, os episódios Fonte de renda e Deixa voar apontam para a

possibilidade se produzir outras comunicações para além das semânticas que reproduzem a

inclusão da exclusão promovida pelo submundo da normatividade; no primeiro, o personagem

cai da superfície aos subterrâneos da normatividade, mas retorna a superfície; no segundo, a

expectativa negativa de o submundo se atualizar é positivamente frustrada com a atualização

de uma comunicação jurídica que promove, ainda que em âmbitos restritos a ampliação dos

sistemas relacionais em que está inserto o personagem, o que deixa vislumbrar o potencial

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mais inclusivo de um direito mais democrático quando tomado como forma preferível da

comunicação.

O filme, em alguns episódios, também possibilitou ao direito vislumbrar a

constituição de sentido de direito desde o acoplamento direito-moral. Ainda que neles não se

veja construída uma semântica explicitamente moralista do direito – dando assim a entender

que, também ali, moral e direito não se confundem – fica evidenciado que no âmbito dos

sistemas sociais relacionais a moral apresenta-se como possibilidade de estímulo, um

motivador, para a construção de comunicações jurídicas. Sabe-se que o que caracteriza o

direito na contemporaneidade da sociedade moderna é sua distinção da moral. Mas, sabe-se

também que tal distinção não pode ser entendida como isolamento radical entre direito e

moral, vez que ambos são ambiente um do outro, portanto, observam-se e atualizam-se desde

referências que constroem desde essas observações.

Todo fluxo comunicativo precisa que cada comunicação seja selecionada, ou seja, ela

precisa ser ou não aceita para assim conectar-se a outra comunicação. Mas aceitá-la ou

rechaçá-la não significa tomá-la ou negá-la na totalidade de sua significação. Aceitar ou

rechaçar é sempre, necessariamente, uma recriação, ou antes, uma nova produção, um evento

novo. Nesse passo, a trama e os personagens em cada episódio abriram a possibilidade de se

visualizar que a semântica da comunidade pode ser apropriada e, portanto, re-significada de

diferentes maneiras. A semântica da comunidade não designa uma verdade ontológica –

embora essa condição não-ontológica permaneça oculta pela própria semântica –, mas sim

uma realidade que é, a cada momento, construída e reconstruída. Daí, ela é tanto aquilo que a

opinião pública mais generalizada sobre ela enuncia, quanto é o que aqueles que por essa

semântica são designados dizem ser. E essas semânticas de semânticas, podem assumir

formas variadas. Assim é que em Fonte de renda, o personagem assume plenamente ser de

uma comunidade; em Arroz com feijão, ainda que a categoria comunidade não esteja presente,

percebe-se que os personagens lidam, de certa forma, com essa identidade; os personagens em

Acende a luz, não se identificam como membros de uma “comunidade”, mas em dado

momento estratégico foram capazes de semanticamente mobilizar a categoria.

Ainda em Fonte de renda observa-se que o personagem constrói toda sua trajetória,

considerada vitoriosa, em função dessa identidade: o rapaz da comunidade, a despeito dos

limites que sua situação de excluído impõe, se torna advogado, dando a ilusão de que a

inclusão social é tão somente uma escolha de foro íntimo, a realização de um projeto

personalíssimo. Em Arroz com feijão já se vislumbra que o rótulo “ser de comunidade” pode,

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em dadas situações, proporcionar certos ganhos comunicativos, um certo empoderamento que,

contudo, só reforça a exclusão: os meninos favelados, por serem favelados, esperam que

alguém dê “uma força”; o “dar uma força” funciona como um atualizador e reprodutor de

exclusão ao mascará-la com ações caritativas – a “força” – travestida de remuneração a uma

atividade lícita, ainda que essa atividade seja trabalho infantil. Já em Acende a luz, a pretensa

identidade só será mobilizada em um momento de crise, e o empoderamento que a

manipulação de uma identidade confere também não é passível de promover verdadeira

inclusão – afinal, só restou aos personagens o “gato” na rede elétrica e um único poste

iluminado.

Os referidos episódios permitiram, portanto, vislumbrar certas possibilidades

comunicativas que, no cotidiano da atualização da opinião pública estandardizada, ainda

restam ocultas. Reforça-se o entendimento, já manifesto nesse trabalho, que a semântica da

comunidade construída naquela opinião pública amplamente generalizada pelos mass media,

bem como as diferentes atualizações que dela fazem aqueles que por ela são designados, não

promovem amplas inclusões sociais. Ao contrário, o rótulo da comunidade ao indicar um

espaço social constituído por “gente de bem” – portanto, gente cujos direitos devem ser

resguardados em face aos “bandidos” – acaba tão somente servindo de pano de fundo àquelas

intervenções que, via de regra, ferem os direitos de todos, e não ampliam a inclusão. Vale

lembrar as queixas de moradores de favelas “pacificadas” que já alcançaram, recentemente, os

mass media.

Levando-se em consideração que a comunicação artística reverbera outras

comunicações além do direito, é possível observar que o acoplamento arte–política também se

encontra presente na semântica produzida pelo filme. Trata-se do empoderamento para a

inclusão, produção de cidadania, de reconhecimento de direitos, e que se dá tanto no que a

obra cinematográfica permite visualizar desde os seus personagens, quanto no fato mesmo de

a produção da obra ser condição de possibilidade de inclusão profissional daqueles excluídos

que, no filme, são os artistas – atores, diretores, roteiristas. Contudo, o eventual sucesso de

uns poucos confirma a exclusão de muitos. Paradoxalmente, a representação otimista que a

maioria dos episódios traz, talvez ajude a reforçar a exclusão. Afinal, parece que a vida na

“comunidade” não é tão ruim assim, não demandando transformações, mas tão somente

mudanças.

Ao mostrar o mundo no mundo, o cinema não realiza nenhum télos da arte, não

desvela nenhuma verdade; simplesmente é uma forma comunicativa que permite observar e

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descrever o mundo, deslocando o observador para o mundo por ele – observador arte –

construído, e isso se dá de inúmeras formas e produzindo inúmeros sentidos e significações,

descrições sociais.

A arte cinematográfica, não quer tornar visíveis explorações do homem pelo homem

para assim conscientizá-lo disso e assim possibilitar a sua emancipação; também não é função

do cinema, com sua capacidade de entreter, alienar o apreciador de modo a impedir que tome

consciência de sua condição subalterna face às agências de dominação da sociedade

contemporânea. Essas não são funções da arte, embora ao atualizar sua função a arte

possibilite tudo isso. Não tendo qualquer fim, pode servir a inúmeros deles. É somente por

não ter um télos a perseguir que o cinema, como qualquer arte, pode servir para muita coisa,

desde que haja o acoplamento entre ele e outros sistemas – sociais e de consciência. Nesse

caso, o excedente de sentido disponibilizado pelo cinema a seu ambiente há se ser apropriado

e redefinido, sempre segundo os procedimentos do sistema que a ele se acoplar.

Cinema – e por extensão qualquer arte – pode criar direito? Ou melhor: o direito

pode criar direito a partir do cinema? Parece que a essa pergunta basilar a resposta cabível

aqui é sim. Sim, mesmo quando se promove a estetização do direito, ou quando se produz

uma teoria surrealista do direito, ou quando se busque encontrar no cinema as imagens

representativas do direito, ou ainda quando se busque conhecer o direito encontrando

equivalências funcionais entre direito e arte. Todos esses esforços – se bem sucedidos ou não

em termos de se estabilizar como efetiva aquisição jurídica – são, ao termo, formas de o

direito se descrever e refletir sobre si mesmo, formas de o direito construir suas teorias e

operar a partir delas.

O fato mesmo de se estar aqui, no âmbito das comunicações da sociologia do direito,

observando a produção de sentidos jurídicos desde a observação de uma obra de arte,

produzindo semântica sobre o direito e, portanto sentido jurídico, tudo isso pode ser entendido

como produção de direito, porque em tudo isso está pressuposta a atualização da distinção

direito/não-direito constitutiva do direito enquanto meio e sistema da comunicação. Essa

produção semântica possibilitada pelo acoplamento direito-cinema logrará se estabilizar a

ponto de se tornar elemento recursivamente mobilizado nas futuras operações jurídicas? E

como se dará essa mobilização? Novos sentidos e descrições poderão ser produzidos a partir

daí? Quais? Isso é desdobramento que a complexidade e contingência mesmas do direito não

permitem aqui prever; mas certamente essa semântica permanecerá como possibilidade que o

sistema, no futuro, poderá atualizar. Ou não.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho se constituiu esforço no sentido de observar e descrever a produção de

sentidos jurídicos na arte cinematográfica. Para alcançar tal intento foram identificados dois

propósitos fundamentais desde os quais o trabalho foi construído. Um desses propósitos, de

viés mais teórico, seria discutir sobre elementos da Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas

Luhmann, e daí indicar a possibilidade de se conhecer o direito desde formas teóricas ainda

não canonizadas. Esse é o conteúdo da primeira parte do trabalho. O outro propósito,

desdobrando-se do primeiro, seria tomar o acoplamento direito-arte como forma possível de

se observar o direito, e daí então apontar os possíveis ganhos teórico-práticos do acoplamento

direito-cinema. Para tanto se tomou como objeto de observação o filme 5 x favela agora por

nós mesmos. Esse propósito foi desenvolvido na segunda parte dessa dissertação.

Mas por que observar o direito pela arte? A opção pela arte deveu-se ao fato de

entender-se que esta forma de comunicação (arte) possibilita ao mundo ver-se no mundo,

deslocando o observador de seu observar sempre referenciado em si mesmo, àquele que a

arte, um observador de observações, produz. A arte, então, ofereceria ao direito a

possibilidade de deslocar-se para fora de si, para o mundo desde o qual ele se constitui, para

assim ver-se nesse mundo, e aprender com esse mundo que é, sempre policontextural,

tessitura de múltiplos sentidos e significações.

E porque, dentre tantas artes, escolheu-se o cinema? Tomou-se como dado

incontestável que, na atualidade, as imagens são prevalentes enquanto meio de difusão de

comunicação. Tal premissa indicaria que a sociabilidade na contemporaneidade da sociedade

moderna é imagética, o que implicaria dizer que a sociabilidade, esse fluxo sempre

improvável de eventos comunicativos, se realiza principalmente por meio de imagens. Nesse

contexto imagético são as imagens em movimento aquelas que, com mais propriedade,

produzem e reproduzem, de modo amplificado, uma característica peculiar a essa

sociabilidade contemporânea: a simultaneidade dos eventos. Daí porque, no âmbito desse

trabalho, escolheu-se para objeto de observação aquelas imagens em movimento de uma obra

cinematográfica.

Em uma tentativa de levar mais a fundo a possibilidade de observar sentidos de

direito no mundo, e daí averiguar em que medida o direito produz direito desde esses sentidos,

optou-se por uma obra fílmica que expressasse, de forma mais evidente, a

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policontexturalidade na qual o direito está inserto. Fugiu-se, então, de obras cinematográficas

consagradas, i.e, produzidas por artistas renomados que, via de regra, constitui aquela opinião

pública mais generalizada pelos mass media. Fugiu-se também daquelas obras que tratassem

diretamente de temas jurídicos, como por exemplo, dramas de tribunais.

O interesse, então, recaiu sobre filmes que fossem identificados como produzidos

entre aqueles que são excluídos, de inúmeras formas, dos vários âmbitos sociais. Buscou-se

uma cinematografia “popular”, no sentido de ser produzida por artistas “populares”, surgidos

nas periferias, nas favelas, nas “comunidades” do Rio de Janeiro.

“Popular” e “comunidade” são categorias que sempre suscitam polêmicas. Ciente

disso abriu-se o necessário espaço para trazer à luz os sentidos aqui mobilizados, fazendo-se

então um cotejo com bibliografia que trata do “popular” na arte e da “comunidade” na

sociologia para, então, traçar as devidas distinções.

5 x favela agora por nós mesmos foi a obra escolhida porque concebida, dirigida e

interpretada por artistas de diferentes favelas do Rio de Janeiro, ainda que com a ajuda

luxuosa de alguns diretores e atores já consagrados como Cacá Diegues, Hugo Carvana, Rui

Guerra. Em um primeiro momento, funcionou como um contraponto à obra 5 x favela,

produzida em 1962 por jovens intelectuais da UNE, abrindo então a interessante possibilidade

de se observar de forma superficial, por óbvio, os sentidos de direito, arte, “popular” e

“comunidade” desde um deslocamento temporal, construindo um contexto comparativo

desses sentidos.

A observação sociológica do acoplamento direito-arte, procedida desde o filme 5 x

favela agora por nós mesmos, permitiu também vislumbrar, no presente, formas não-estatais

de produção de sentido de direito. E mais: o próprio filme, em sua materialidade, despontou

como expressão de realização de direitos, à medida que representa certa inclusão daqueles

jovens artistas de diferentes “comunidades” cariocas. A aclamação da obra no famoso Festival

de Cannes em 2010 pode ser indício promissor dessa inclusão. Pode ser...

Para o direito, enquanto sistema, o ganho teórico-prático do acoplamento direito-

cinema aqui observado reside não apenas nas descrições que o filme produz do direito, mas,

também nas descrições que essa dissertação – ela própria uma observação procedida desde a

sociologia jurídica – faz daquelas disponibilizadas pela obra artística, fazendo-as ingressar no

âmbito jurídico.

Filme, dissertação, ambos formas de observação de segunda ordem, produzem

descrições do direito, semânticas, construções de sentidos de direito e, portanto, direito. Se o

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sistema jurídico mobilizará tais observações ou não para produzir mais direito, isso é uma

incógnita própria de uma sociedade altamente complexa e contingente. Não há como saber o

que de fato acontecerá. Pode-se pressupor, ou mesmo pretender que seja de uma dada

maneira e não de outra; mas toda pressuposição, toda pretensão corre sempre, e de forma

inexorável, grande risco de frustração. O que resta então, como certeza inafastável, é que

todas essas descrições estão lá, disponíveis em um horizonte de possíveis sentidos de direito,

policontexturalidade desde a qual o direito, como meio e forma da comunicação

constantemente se constitui, se reproduz.

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2º SEMINÁRIO INTERNACIONAL DIREITO E CINEMA: VISÕES DO DIREITO E DA DITADURA. Grupo de Pesquisa Direito e Cinema da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, 20 min; financiamento CNPq/BB-PR3/UFRJ, 2006. 3º SEMINÁRIO INTERNACIONAL DIREITO E CINEMA: VISÕES SOBRE DIREITOS HUMANOS E TERRORISMO. Grupo de Pesquisa Direito e Cinema da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, 20 min; financiamento CNPq/BB-PR3/UFRJ, 2007. Filmes O TRIUNFO DA VONTADE. Leni Riefenstahl, Alemanha, 1934.

5 X FAVELA. Marcos Farias, Miguel Farias, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman. Brasil, 1962. 5 X FAVELA AGORA POR NÓS MESMOS. Wagner Novais, Rodrigo Felha, Cacau Amaral, Luciano Vidigal, Cadu Barcellos, Luciana Bezerra, Manaíra Carneiro. Brasil, 103 min, 2010.