a previdência social na jurisprudência recente do stf ... · em caso de desequilíbrio atuarial,...
TRANSCRIPT
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
A Previdência Social na Jurisprudência recente do STF – análise crítica e comparativa com a Corte Europeia dos Direitos Humanos
Fábio Zambitte Ibrahim*
1. Introdução
O intuito deste texto é apresentar as principais e mais recentes decisões do STF em
matéria previdenciária, particularmente no que diz respeito a prestações previdenciárias,
demonstrando, concretamente, a deferência do Tribunal na maior parte dos casos.
Adicionalmente, pretende-se estabelecer uma avaliação crítica das decisões, além de apontar,
em conjunto, algumas sentenças da Corte Europeia de Direitos Humanos - CEDH, que seguem, de
modo muito similar, o acatamento às regras previdenciárias dos países signatários.
O comparativo com a CEDH é particularmente interessante, apesar das particularidades
da jurisdição internacional, devido a sua ação pioneira na apreciação de lides previdenciárias, o
que propiciou algumas decisões interessantes; além de dirimir, em derradeira instância, os
conflitos previdenciários irresolutos em países que deram origem ao Welfare State. Por fim, a
Corte Europeia comemora, em 2009, seus 50 anos de criação, justificando a apresentação.
De modo geral, restará manifesto, tanto no Brasil como alhures, a preocupação com o
equilíbrio financeiro e atuarial do sistema, muito embora, no Brasil, a atenção aos requisitos
atuariais ainda seja incipiente,1 frequentemente arguidos na negativa das prestações
previdenciárias, mas raramente comprovados, até pela inexistência do cálculo atuarial nos
regimes públicos de previdência no Brasil.
2. Realidade nacional – contexto propício à judicialização previdenciária
A legislação previdenciária brasileira nunca foi das mais simples, característica que se
pode atribuir aos sistemas bismarckianos de proteção social, mas deve-se adicionar a tal
predicado a constante vacilação do legislador ordinário pátrio no sentido da melhor conformação
do regime.
Ademais, boa parte das mutações legislativas não decorre de análises bem elaboradas e
* Professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), doutorando em Direito Público (UERJ) e mestre em Direito Previdenciário (PUC/SP).
1 Sucintamente, pode-se entender o equilíbrio financeiro como o saldo zero ou positivo do encontro entre receitas e despesas do sistema, dentro de determinado exercício financeiro. Já o equilíbrio atuarial diz respeito à estabilização de massa, isto é, ao controle e prevenção de variações graves no perfil da clientela, como, por exemplo, grandes variações no universo de segurados ou amplas reduções de remuneração, as quais trazem desequilíbrio ao sistema inicialmente projetado. Impõe este um plano de custeio compatível com o plano de benefícios desenhado originalmente. Em caso de desequilíbrio atuarial, o gestor do sistema, inexoravelmente, deverá agir com aumento de contribuições, diminuição do valor da prestação futura ou aumento de requisitos de exigibilidade do benefício, como maior idade, por exemplo. Sobre o tema, ver Wladimir Novaes Martinez. Princípios de Direito Previdenciário. 4ª edição. São Paulo: LTr, 2001, p. 91 e seg.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 1 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
debates sérios no sentido do melhor modelo previdenciário, ou mesmo visando o aprimoramento
do vigente. Na atualidade, como se vê nos jornais, diariamente, boa parte das propostas de
alteração legislativa visa atender interesses de determinados grupos, alguns justos outros nem
tanto, gerar constrangimentos ao governo, especialmente próximo de períodos eleitorais ou, ao
revés, garantir a permanência no poder.
Em tal contexto, o resultado é desastroso – a legislação é caótica, regras vêm e vão com
tamanha velocidade que nem mesmo os profissionais da área conseguem pleno domínio, e
mesmo os livros sobre o tema chegam às prateleiras, na maioria das vezes, já desatualizados. Os
beneficiários do regime previdenciário, clientela final do sistema, não conseguem entender as
regras vigentes, as quais, muito frequentemente, são indevidamente restritivas ou mesmo mal
redigidas, incompletas, carentes de regulamentação, gerando toda sorte de descontentamento.
O resultado é conhecido. As lides previdenciárias entulham o Judiciário, sendo uma das
matérias que mais ocupa a Justiça Federal. Com tamanha complexidade legislativa e volatilidade
normativa, as lacunas são muitas, e diversos profissionais do direito estudam detalhadamente as
alterações buscando iniquidades e incompletudes que possam justificar ações revisionais e
concessórias das mais diversas, para clientes atuais ou futuros.
Sem meias palavras, esta é, em resumo, a realidade do direito previdenciário pátrio.
Dentro do cipoal normativo vigente, há brechas de toda ordem, permitindo a ampliação de
prestações não expressamente previstas, o que impõe, ao Judiciário, a tarefa hercúlea – não
delineada pelo legislador incompetente – de fixar critérios seguros e definitivos para a obtenção
de determinadas prestações, dentro de critérios adequados e compatíveis com a Constituição de
1988. Daí, em boa parte, a origem da excessiva judicialização na matéria.
Interessante notar que esta não é a regra no direito estrangeiro, pois as demandas não
são tão continuadas, não só pela normatização mais adequada, mas também pela tradicional
desconfiança da capacidade das Cortes em dirimir a tais matérias.2
Na sequência, será feita uma breve análise dos principais precedentes da Corte
Europeia na matéria previdenciária para, então, confrontarmos com as recentes decisões do STF,
em uma visão crítica.
3. A Corte Europeia de Direitos Humanos – papel em questões previdenciárias
A Convenção para Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais foi
elaborada pelo Conselho Europeu, adotada em Roma em 04 de novembro de 1950 e entrou em
2 Neste sentido, em uma das raras obras a tratar do tema específico da apreciação judicial em matéria protetiva, ver Trevor Buck. Judicial Review and Social Welfare. Londres: Pinter Publishers, 1998, p. 97. O mesmo autor aponta que a judicial review, no Reino Unido, em matéria previdenciária, teve seus primeiros casos somente em 1950, com benefícios por incapacidade e, até hoje, há pouquíssimas demandas judiciais em matéria previdenciária (op. cit., p. 102)
Ano I – Número 1 – 2009 – página 2 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
vigor em 03 de setembro de 1953.3 A Corte Europeia de Direitos Humanos somente foi criada em
1959,4 completando 50 anos de existência.
Para garantir a aplicabilidade da Convenção, foram criadas a Comissão Europeia de
Direitos Humanos, em 1954, e a Corte Europeia de Direitos Humanos, em 1959, além do Comitê
de Ministros do Conselho Europeu. Todavia, com o Protocolo nº 11, em novembro de 1998, a
Comissão foi extinta, cabendo à Corte analisar os casos, diretamente.5
Anteriormente à inclusão do Protocolo nº 11 na Convenção, havia proibição expressa no
sentido de pessoas, individualmente consideradas, ingressarem com alguma ação na Corte
Europeia, salvo quando o tema não fosse solucionado na Comissão, além de ter esgotado toda a
jurisdição interna de seu país (de modo muito similar à Corte Interamericana de Direitos
Humanos). Todavia, com a inclusão do aludido Protocolo, em 1998, a Comissão foi abolida e a
Corte, que funcionava somente em determinadas épocas, passou a atuar durante todo o ano. No
entanto, a necessidade de esgotar as instâncias internas ainda perdura.
Na Convenção, há o tradicional catálogo de direitos civis e políticos, mas sem previsão
expressa de um direito à seguridade social, ou mesmo previdência social. Todavia, diversos casos
previdenciários são apresentados à Corte, com base, principalmente, no art. 1º do 1° Protocolo,
de 1952, ao tratar da proteção da propriedade,6 art. 6º, referente ao direito a um julgamento
justo7, e o art. 8°, que trata do direito ao respeito à vida privada e familiar.8 Não obstante, até a
3 http://www.echr.coe.int/NR/rdonlyres/D5CC24A7-DC13-4318-B457- 5C9014916D7A/0/EnglishAnglais.pdf4 http://www.echr.coe.int/echr/ 5 Sobre a evolução e funcionamento da Corte, ver
<http://www.echr.coe.int/NR/rdonlyres/ACD46A0F-615A-48B9-89D6-8480AFCC29FD/0/FactsAndFiguresEN.pdf>. 6 Article 1 . Protection of property. Every natural or legal person is entitled to the peaceful enjoyment of his
possessions. No one shall be deprived of his possessions except in the public interest and subject to the conditions provided for by law and by the general principles of international law. The preceding provisions shall not, however, in any way impair the right of a State to enforce such laws as it deems necessary to control the use of property in accordance with the general interest or to secure the payment of taxes or other contributions or penalties.
7 Article 6 . Right to a fair trial. 1 In the determination of his civil rights and obligations or of any criminal charge against him, everyone is entitled to a fair and public hearing within a reasonable time by an independent and impartial tribunal established by law. Judgment shall be pronounced publicly but the press and public may be excluded from all or part of the trial in the interests of morals, public order or national security in a democratic society, where the interests of juveniles or the protection of the private life of the parties so require, or to the extent strictly necessary in the opinion of the court in special circumstances where publicity would prejudice the interests of justice. 2 Everyone charged with a criminal offence shall be presumed innocent until proved guilty according to law. 3 Everyone charged with a criminal offence has the following minimum rights: a to be informed promptly, in a language which he understands and in detail, of the nature and cause of the accusation against him; b to have adequate time and facilities for the preparation of his defence; c to defend himself in person or through legal assistance of his own choosing or, if he has not sufficient means to pay for legal assistance, to be given it free when the interests of justice so require; d to examine or have examined witnesses against him and to obtain the attendance and examination of witnesses on his behalf under the same conditions as witnesses against him; e to have the free assistance of an interpreter if he cannot understand or speak the language used in court.
8 Article 8. Right to respect for private and family life. 1 Everyone has the right to respect for his private and family life, his home and his correspondence. 2 There shall be no interference by a public authority with the exercise of this right except such as is in accordance with the law and is necessary in a democratic society in the interests of national security, public safety or the economic well-being of the country, for the prevention of disorder or crime, for the protection of health or morals, or for the protection of the rights and freedoms of others.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 3 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
vedação à tortura já foi utilizada como fundamento para ações na Corte Europeia de Direitos
Humanos, embora, nesta hipótese, com decisão voltada ao fornecimento de medicamentos a
imigrantes.9
A admissão de direitos previdenciários como uma propriedade do segurado foi
inicialmente rechaçada pela Corte, em 1960, mas posteriormente admitida, em 1971, partindo-
se da premissa que, ao verter contribuições ao sistema protetivo, há um direito à parcela do
fundo previdenciário, que pode ser afetado de acordo como venha a ser gerido, embora, nesse
primeiro caso concreto, a pretensão tenha sido indeferida devido ao caráter solidário do sistema
de proteção social.10 Uma aceitação mais ampla deste preceito, em matéria previdenciária,
somente veio em 1994.11 Também não é incomum encontrar-se lides previdenciárias como
instrumento de garantia da liberdade real e, portanto, dotada das mesmas prerrogativas de
defesa que os direitos civis.12
Interessante observar que a Corte Constitucional alemã também adota os direitos
previdenciários como derivados do direito de propriedade do segurado, cabendo demanda
judicial com este embasamento jurídico. Embora a Corte alemã seja apontada como pioneira,
seus precedentes iniciais sobre o tema, em 1980, foram posteriores às primeiras decisões da
Corte Europeia.13
Muitas demandas da Corte têm grande semelhança com lides previdenciárias no Brasil,
como as tentativas de vinculação da renda mensal do benefício a regras inflexíveis,
frequentemente associadas ao patamar remuneratório dos trabalhadores ativos, as quais, tanto
aqui como na Corte Europeia, têm sido claramente rechaçadas, não havendo direito, assegurado
pela Convenção, ao recebimento de quantia certa pelo sistema.14
9 Decisão de 02 de maio de 1997. D. v. United Kingdom. Appl. 30240/96. Neste sentido, ver Klaus Kapuy, Danny Pieters e Bernhard Zaglmayer. Social Security Cases in Europe: The European Court of Human Rights. Antwerpen-Oxford: Intersentia, 2007, p. xvi.
10 Decisão de 20 de julho de 1971, X. v. The Netherlands, Appl. 4130/69. Ver, também, Klaus Kapuy, op. cit., p. xvii.
11 Decisão de 11 de janeiro de 1994, Gaygusuz v. Austria. Appl. 17371/90. 12 Neste sentido, ver julgamentos de Salesi v. Itália, em 26/02/1993, Schuler-Zgraggen v. Suíça, em 24/06/93 e
Georgiadis v. Grécia, em 29/05/97. Sobre o tema, ver Ana Gomes Heredero. Social Security as a Human Right – The Protection Afforded by the European Convention on human Rights, Council of Europe, 2007.
13 Como afirma a própria Corte Alemã, “Social security entitlements have long been regarded as a matter of social law that has little to do with the constitutional guarantee of private property. It was the German Federal Constitutional Court that first extended the protection of this constitutional right to pension entitlements in 1980. The Hungarian Constitutional Court followed this example as second in Europe in 1995. It is most probable, that especially the German example motivated the European Court of Human Rights to regard social security benefits as property, which in turn, resulted in similar developments in Austria and Lithuania. The present treatise seeks to explore the real meaning of such an extension of the constitutional protection of property, as well as its doctrinal background. In order to do so, the example of Germany and Hungary is used, not the least because to date both courts have developed an extensive jurisprudence in the relevant Field”. Disponível em <http://www.bundesverfassungsgericht.de/en/decisions/es20090630_2bve000208en.html>, Press release nº. 72/2009 of 30 June 2009. Ver também BvE 2/08, 2 BvE 5/08, 2 BvR 1010/08, 2 BvR 1022/08, 2 BvR 1259/08 und 2 BvR 182/09.
14 Decisão de 05 de maio de 1986. K. v. Alemanha. Appl. 11203/84, Decisão de 06 de setembro de 1995. FEDERSPEV v. Itália. Appl. 22867/93 e Decisão de 15 de março de 2001. Aunola v. Finlândia. Appl. 30517/96.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 4 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
A Corte Europeia já admitiu, expressamente, até a possibilidade de redução do
benefício já concedido, desde que visando, comprovadamente, estabelecer um sistema
previdenciário eficiente e equilibrado.15 De acordo com a Corte, deve-se aferir a
proporcionalidade entre os meios empregados e o objetivo a ser atingido.16 O balanço adequado
entre justiça social e a economia do Estado não seria alcançado se imposto ao segurado um ônus
excessivo.17
Da mesma forma, outro tema muito recorrente em matéria previdenciária, é aquele
referente a mudanças no regime jurídico. No âmbito da Corte Europeia, tais mutações têm sido
amplamente aceitas, mesmo que afetando pessoas já jubiladas, especialmente quando o valor
atual das prestações é preservado.18
Curiosamente, há até mesmo decisões que envolvem tentativas de dispensa contributiva
dos regimes previdenciários, alegando convicções religiosas, devidamente rechaçadas, sob o
argumento de que a proteção da Convenção à liberdade de credo nem sempre se estende ao
comportamento na esfera pública.19
Enfim, o que se percebe, sem muita dificuldade, é a deferência da Corte Europeia aos
preceitos atuariais da matéria previdenciária, permitindo adequações no regime jurídico e
mesmo ações excepcionais visando o equilíbrio do sistema. Acredito que a breve menção a tais
precedentes, oriundos de uma Corte especializada em direitos humanos, externe a importância
dos encargos financeiros dos regimes protetivos, os quais, se ignorados, podem levar a falência
de todo o regime, excluindo gerações futuras da proteção social.
Ademais, tais demandas demonstram que os países signatários, de modo geral, foram
deferentes em suas decisões, preservando o equilíbrio o plano de custeio de seus respectivos
sistemas protetivos, o que motivou a litigância na Corte Europeia. Na sequência, serão expostas
e avaliadas as principais decisões do STF em matéria previdenciária.
4. Precedentes atuais do Supremo Tribunal Federal em temas previdenciários –
deferência exagerada ou autolimitação necessária?
Como reflexo da excessiva judicialização em matéria previdenciária, muitos temas são
alçados ao STF, até pelo fato da Constituição brasileira ser, sem grande dificuldade, apontada
como a mais abrangente em matéria previdenciária no atual contexto mundial.
15 Decisão de 18 de novembro de 2004. Pravednaya v. Russia. Appl. 69529/01. Muito embora tenha sido prevista a possibilidade de redução, no caso concreto, a Corte entendeu indevida a restrição da renda mensal, já que não fundamentada nos termos citados.
16 Decisão de 22 de setembro de 2005. C. Goudswaard – Van Der Lans v. Holanda. Appl. 75255/01.17 Op. cit., loc. cit.18 Entre outros, ver Decisão de 01 de junho de 1999. Skorkiewicz v. Polônia. Appl. 39860/98. Ver, também,
Klaus Kapuy, op. cit., p. 06.19 Decisão de 14 de dezembro de 1965. X. v. Holanda. Appl. 2065/63 e Decisão de 05 de julho de 1984. V. v.
Holanda. Appl. 10678/83.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 5 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
De acordo com pesquisa realizada nas constituições de 35 (trinta e cinco) países de todo
o mundo, mostrou-se que o direito à previdência social possui inserção constitucional na
absoluta maioria deles, não sendo expressamente previsto em apenas dois desses países (Estados
Unidos e Israel). Dentre os 33 (trinta e três) países cujas constituições referem-se ao direito à
previdência social, 28 (vinte e oito) o consagram entre os direitos fundamentais ou direitos
sociais.20
No entanto, poucos se dedicam a efetuar o seu detalhamento. Em 06 (seis) países o
grau de detalhamento das normas constitucionais relacionadas à previdência social foi
considerado médio (Bolívia, Costa Rica, México, Uruguai, Venezuela e Portugal) e em apenas 02
(dois) identificou-se um alto grau de detalhamento das normas constitucionais previdenciárias
(Equador e Suíça). Mesmo nestes, o direito à previdência social não alcança o mesmo nível de
destaque e relevância encontrado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.21
É interessante notar que mesmo a Constituição Portuguesa, antes da reforma,
tradicionalmente apontada como dirigente, somente apresentava um único artigo sobre o tema,
que ainda perdura, mesmo após a reforma constitucional de 1976, como o exclusivo dispositivo
sobre a previdência social.22
Em razão do previsto, são poucas as demandas previdenciárias que não possuam algum
embasamento constitucional e, destarte, são frequentes as lides que alcançam a Corte
constitucional. Embora o mecanismo de repercussão geral possa trazer alguma limitação, isso
pode não se mostrar verdadeiro, pois as demandas previdenciárias, em regra, envolvem milhares
de pessoas, e dificilmente o STF escaparia do encargo de manifestar-se. Um exemplo, já sob a
égide da Lei nº 11.418/06, é o auxílio-reclusão, que será objeto de comentário.
Dentro de tantas demandas, o bom senso imporia a deferência aos critérios fixados pelo
legislador ordinário e, quando dotada a lei de cláusulas abertas, os requisitos fixados pelo
Executivo, sob pena de insolvência do sistema. No entanto, nem sempre deverá ser assim.
Muito embora a atuação contramajoritária dos tribunais, e em especial da Corte
Constitucional, seja justificável como instrumento de preservação do regime democrático e dos
20 Cf. Narlon Gutierre Nogueira. A Previdência Social nas Constituições ao Redor do Mundo. Disponível em <http://www.mpas.gov.br/arquivos/office/3_081014-104755-703.pdf>, consultado em 01/02/2009.
21 Cf. Narlon Gutierre Nogueira, op. cit., loc. cit.22 Artigo 63.º (Segurança social e solidariedade) Todos têm direito à segurança social. Incumbe ao Estado
organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras organizações representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários. O sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho. Todo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e invalidez, independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado. O Estado apoia e fiscaliza, nos termos da lei, a actividade e o funcionamento das instituições particulares de solidariedade social e de outras de reconhecido interesse público sem carácter lucrativo, com vista à prossecução de objectivos de solidariedade social consignados, nomeadamente, neste artigo, na alínea b) do n.º 2 do artigo 67.º, no artigo 69.º, na alínea e) do n.º 1 do artigo 70.º e nos artigos 71.º e 72.º.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 6 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
direitos fundamentais, especialmente das minorias, é fato que os limites da atuação
jurisdicional, especialmente em matéria de políticas públicas, ainda é um debate sem solução.
Afinal, é sabido que tais políticas, como a previdenciária, são indispensáveis para a garantia e
promoção dos direitos fundamentais, inclusive sociais.23
A concepção institucional do Judiciário como Poder comprometido, a priori, com os
casos individuais, a microjustiça, em matéria de direitos sociais, poderia ser complementada,
em determinadas situações, por ações coletivas, funcionamento como ferramenta para alcançar-
se a macrojustiça. Dentro de ações coletivas os custos envolvidos na manutenção de direitos
sociais, além das vantagens, podem ser mais claramente expostos, propiciando um juízo
ponderativo mais apurado, e por isso, não sem razão, tem sido cada vez mais importante a
aplicação dos ideais de proporcionalidade e razoabilidade pelos Tribunais.24
Em ações coletivas, é possível ao Judiciário subsidiar sua decisão com pareceres
técnicos, atuariais, os quais podem evidenciar, com maior clareza, a correição ou não de alguma
restrição legal. Haja vista o delicado equilíbrio entre o plano de custeio e o plano de benefício,
a intervenção judicial deverá, sempre, basear-se em critérios sólidos. Naturalmente, parte-se da
premissa que o sistema brasileiro irá, em algum momento, privilegiar, de modo efetivo, o
equilíbrio atuarial.
Caso se vislumbre uma flagrante violação à isonomia, por exemplo, em extensão de
benefício somente a determinadas categorias, mas sem embasamento atuarial para sua
ampliação às demais, a posição judicial deverá, em regra, ser no sentido da suspensão da
vantagem, e não da ampliação geral, devolvendo então a matéria ao legislador ordinário.
Ou seja, um standard fundamental de atuação judicial é o da preservação do equilíbrio
financeiro e atuarial do sistema. Como a própria Constituição prevê esta necessidade,
fundamenta-se tal premissa a partir da necessidade da sobrevivência do sistema. Obviamente,
mediante maior ônus argumentativo, poderia uma decisão judicial ampliar determinada
prestação, especialmente de pequena repercussão econômica e adequadamente
fundamentada.25 Ou seja, não se deve inferir que qualquer extensão judicial na esfera
previdenciária seja indevida, por violar o sacrossanto equilíbrio atuarial.
23 Sobre o tema, ver Ana Paula de Barcellos. Constitucionalização das Políticas Públicas..., p. 23. Como afirma a autora, as escolhas em matéria de gastos públicos não constituem um tema integralmente reservado à deliberação política; ao contrário, o ponto recebe importante incidência de normas jurídicas de estatura constitucional (Constitucionalização das Políticas Públicas em Matéria de Direitos Fundamentais: O Controle Político-Social e o Controle Jurídico no Espaço Democrático. Revista de Direito do Estado, ano 1, 3:23, jul/set 2006, p. 24.)
24 Cf.T. Jeremy Gunn. Deconstructing Proporportionality in Limitations Analysis. Emory International Law review, vol. 19, 2005, p. 467. Sobre a importância do princípio da proporcionalidade na aplicação dos direitos fundamentais, ver Jane Reis Gonçalves Pereira. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais – Uma Contribuição ao Estudo das Restrições aos Direitos Fundamentais na Perspectiva da Teoria dos Princípios. Rio: Renovar, 2006, pp. 310 a 365.
25 Sobre a ponderação, fixação de standards e sua possível superação, ver Ana Paula de Barcellos. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. Rio: Renovar, 2005.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 7 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
É certo que as premissas iniciais do sistema devem, em regra, serem observadas, mas
desigualdades flagrantes podem ser, excepcionalmente, objeto de revisão, mesmo que isso
venha a gerar aumento de despesas, demandando, indiretamente, a revisão do plano de custeio
pelo legislador ordinário. O Judiciário não deverá tornar-se mero validador das decisões
legislativas e administrativas na matéria.
Na sequência, serão analisados as principais lides previdenciárias da atualidade.
4.1.Auxílio-Reclusão
Um tema recentemente debatido no STF foi o auxílio-reclusão. Este benefício é previsto
no art. 80 da Lei nº. 8.213/91 e disciplinado a partir do art. 116 do Regulamento da Previdência
Social – RPS, aprovado pelo Decreto nº. 3.048/99. No INSS, a normatização dos benefícios é
prevista, preponderantemente, na Instrução Normativa INSS/PRES nº. 20, de 10 de outubro de
2007.
O benefício, naturalmente, não é pago ao segurado preso, mas sim aos seus
dependentes. A ideia é amparar tais pessoas, pois o provedor não mais poderia provê-los. É
benefício de grande relevância, pois dá maior efetividade ao dispositivo constitucional que
impõe a vedação de transferência da pena para além do condenado, o que ocorreria,
indiretamente, se houvesse flagrante redução do orçamento familiar (art. 5º, XLV).
Ademais, na realidade brasileira, nenhuma pessoa está livre de sofrer uma prisão
arbitrária, especialmente os trabalhadores mais humildes, que por uma investigação mal
conduzida, podem encontrar-se encarcerados por longo período, até que finalmente consigam
demonstrar sua inocência. Os jornais expõem diversos casos deste tipo.
Com a Emenda Constitucional nº. 20/98, esta prestação sofreu clara limitação, pois não
mais seria paga a todo e qualquer dependente, mas somente para aqueles que fossem vinculados
a segurados de baixa renda. A intenção, dentro de um critério de seletividade, seria limitar esta
prestação somente àqueles dependentes que, efetivamente, demandariam a prestação estatal.
Pessoalmente, sempre considerei tal limitação bastante questionável, pois se o
segurado, em atividade, era bem remunerado, isso certamente não significa que sua família não
iria depender de alguma prestação previdenciária por ocasião da prisão. Por isso, me posicionei
pela inconstitucionalidade da restrição, dentro da regulamentação existente. Sem embargo, não
foi esse o caminho trilhado pelo STF.
A EC nº. 20/98 delegou ao legislador ordinário a fixação do critério de baixa-renda, mas,
antecipando-se à inércia legislativa, estabeleceu, naquele momento, que a baixa-renda,
provisoriamente, seria qualificada quando a remuneração do segurado, no momento da prisão,
fosse inferior a R$ 360,00, o que, na época, refletia o valor equivalente a três salários mínimos.
Hoje, em razão das atualizações previstas em lei (sem correlação com números de
Ano I – Número 1 – 2009 – página 8 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
salários mínimos), o valor é fixado em R$ 752,12, pela Portaria Interministerial MPS/MF nº. 48 de
12 de fevereiro de 2009. Até a presente data, o tema não foi regulamentado, prevalecendo,
então, o critério provisório de aferição, o que só amplifica a sua irracionalidade, pois se, quando
da prisão, o segurado recebia, por exemplo, R$ 753,00, não haverá direito ao benefício para seus
dependentes, ainda que fosse a única renda da família.
Visando manter a validade do dispositivo constitucional, mas, ao mesmo tempo,
tentando atenuar seu rigor, a Turma Recursal da Seção Judiciária do Estado de Santa Catarina,
em seus decisórios, aplicava o Enunciado da Súmula 5 da Turma Regional de Uniformização dos
Juizados Especiais, segundo o qual para fins de concessão do auxílio-reclusão, o conceito de
renda bruta mensal se refere à renda auferida pelos dependentes e não à do segurado recluso.
Com isso, a aferição da renda seria frente aos dependentes, e não ao segurado. A
vantagem desta abordagem é evidente: verifica-se, concretamente, se os postulantes da
prestação efetivamente necessitam da mesma, a partir de suas rendas, quando da prisão do
segurado. Algumas críticas eram levantadas quanto ao fato dos dependentes preferenciais
possuírem dependência econômica presumida, o que impediria a presente inteligência do texto.
O argumento era, no entanto, fraco, pois a presunção de dependência econômica é uma criação
legal, ao contrário da nova conformação do benefício, que foi feita em âmbito constitucional.
Todavia, é certo que tal interpretação escapava ao sentido literal do preceito constitucional,
pois o art. 201, IV da Constituição prevê a concessão de salário-família e auxílio-reclusão para
os dependentes dos segurados de baixa renda.
Em um exemplo de clara deferência da Corte Constitucional em matéria previdenciária,
por maioria, decidiu-se manter a literalidade do dispositivo legal e a regulamentação do RPS,
cabendo a aferição da renda pelo segurado (e não seus dependentes), no momento da prisão.26
De acordo com o STF, um dos objetivos da EC nº 20/98, conforme a exposição de motivos
encaminhada ao Congresso Nacional, seria o de restringir o acesso ao auxílio-reclusão, com base
no princípio da seletividade, ex vi do art. 194, III, CF/88, identificando aqueles que
efetivamente necessitariam do aludido benefício.
Desta premissa, até então defensável, concluiu o Tribunal que tal pretensão só poderia
ser alcançada se a seletividade tivesse como parâmetro a renda do próprio preso segurado, pois
outra interpretação que levasse em conta a renda dos dependentes, a qual teria de
obrigatoriamente incluir no rol destes os menores de 14 anos — impedidos de trabalhar, por
força do art. 227,§ 3º, I, da CF —, provocaria distorções indesejáveis, visto que abrangeria
qualquer segurado preso, independentemente de sua condição financeira, que possuísse filhos
26 Os primeiros recursos sobre o tema foram os RE 587.365, Min. Ricardo Lewandowski e RE 486.413, Min. Ricardo Lewandowski. A decisão final encontra-se no sítio do STF, no endereço http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaRepercussaoGeralMeritoJulgado/anexo/03_RG_JulgamentoMerito.pdf.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 9 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
menores de 14 anos.27
Ora, pelo decidido, dá-se a impressão que não haveria outros dependentes, como
cônjuge, pais e irmãos e, mesmo que fosse o caso de somente dependentes menores, a
inferência desejada pelo texto é teratológica, pois ainda que não se possa presumir o trabalho
de menores de 14 anos, estes certamente demandam cuidados e, por conseguinte, receita
suficiente. Se isso pudesse provocar a ampliação do benefício a todos os segurados presos com
filhos menores (o que me parece muito improvável), seria ainda plenamente defensável a
extensão, haja vista o direito a proteção especial dada aos menores pela Constituição de 1988
(art. 227, § 3º, II), que não poderia ser excluída mesmo por emenda constitucional.
Acredito que esta decisão mereça apreciação negativa, pois a restrição formulada pela
EC nº 20/98 já se mostrava questionável. Se a ideia era restringir a prestação àqueles que
efetivamente careceriam da mesma, o critério idealizado, visando à renda do segurado
instituidor, é claramente ineficiente para expor a real necessidade de seus dependentes. A
restrição a benefícios é possível, desde que justificada atuarialmente, e buscando, de modo
efetivo, a ideia de seletividade, mediante critérios razoáveis. Não é o que se vê na atualidade.
4.2.Mudança de Regime Jurídico Previdenciário
Dentre os pontos que produzem maior debate na esfera previdenciária, um tópico de
relevo é a alteração do regime jurídico vigente, especialmente quando, indiretamente, possa
produzir perdas frente às expectativas futuras dos segurados.
De modo bastante tranquilo, o STF tem reconhecido a inexistência de direito adquirido
ao regime vigente, mas somente à percepção da prestação devida nos termos da legislação em
que atingiu os requisitos previstos. Por isso não foram admitidas as ações contra as últimas
reformas da previdência, além de não ter sido admitido, pelo STF, a tentativa teratológica de
criação de regime híbrido de aposentadoria, quando determinado segurado tentava, sem
sucesso, conciliar partes de regimes jurídicos diversos, formando prestação mais vantajosa.28 O
tema também foi abordado por ocasião da reforma da previdência dos servidores, fixada pela EC
nº 41/03 e melhor tratada infra.
A posição do Tribunal, aqui também claramente deferente às mutações legislativas, é
facilmente defensável, pois as regras previdenciárias, especialmente em momentos de flagrante
insuficiência, podem e devem ser alteradas visando o equilíbrio financeiro e atuarial, que
também é um mandamento constitucional (art. 201, caput, CF/88).
Até mesmo a Corte Europeia de Direitos Humanos, como visto, posiciona-se da mesma
27 Extraído de <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo540.htm>, em 22/08/2009.28 RE 575.089, Min. Ricardo Lewandowski. O tema foi objeto de repercussão geral
(http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaRepercussaoGeralMeritoJulgado/anexo/06_RG_JulgamentoMerito.pdf).
Ano I – Número 1 – 2009 – página 10 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
forma, deferente às mutações legislativas, visando eficiência e equilíbrio dos sistemas e,
excepcionalmente, até admitindo redução das prestações devidas.
Particularmente no caso brasileiro, é interessante notar que, frequentemente, regras
transitórias são criadas, de modo a preservar, dentro de alguma razoabilidade, a expectativa de
direito. Procedimento saudável, em respeito ao princípio da boa-fé e da confiança legítima, que
devem reger as relações entre Administração e administrados. Naturalmente, o STF, quando
defrontado frente à flagrante violação destas regras, tem determinado, como não poderia deixar
de ser, sua devida aplicação, como no caso concreto dos professores aposentados do Estado de
São Paulo após a EC nº. 41/03, que ainda teriam direito à paridade remuneratória com os
servidores ativos, haja vista expressa regra de transição neste sentido fixada pela EC nº. 47/05.29
Em tais decisões, a deferência do STF aos preceitos normados é irretorquível. A
previdência social possui, como conceito elementar, a necessidade do equilíbrio financeiro e
atuarial, tornando ainda mais relevante o princípio da reserva do possível, que assume também
um viés atuarial, além do financeiro. A criação do benefício previdenciário é umbilicalmente
vinculada ao seu custeio.30
4.3.Pensão por morte – majoração da renda mensal
A pensão por morte previdenciária, concedida pelo RGPS, em períodos anteriores à Lei
nº.9.032/05, para segurados em atividade quando do óbito, alternou percentuais diversos,
variando mesmo de acordo com o número de dependentes. Com a mudança legislativa de 1995,
a regra legal passa a ser a concessão do benefício no valor de 100% do salário-de-benefício.
Dentro da tradicional deferência do STF na matéria previdenciária, a posição
jurisprudencial foi alterada, superando-se a visão do STJ, que admitia a revisão dos benefícios
anteriores à Lei nº.9.032/05, com o respectivo incremento para 100%, para adotar o tempus
regit actum, ou seja, a concessão do benefício seria sempre regida pela legislação vigente à
data da concessão ou do evento determinante.
A posição da Corte é facilmente defensável, pois se, em todas as inovações favoráveis
da lei, a extensão aos casos pretéritos fosse admitida, isso certamente seria claro desestímulo a
qualquer melhoria nas regras previdenciárias, em flagrante desrespeito ao equilíbrio financeiro e
atuarial.31
29 RE 590.260, Min. Ricardo Lewandowski. O tema foi objeto de repercussão geral. Ver http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaRepercussaoGeralMeritoJulgado/anexo/29_RG_JulgamentoMerito.pdf.
30 Sobre o tema, ver o meu O Direito Fundamental à Previdência Social. In: Sarmento, Daniel; Souza Neto, Cláudio Pereira de. (Org.). Direitos Sociais: Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. Sobre o direito adquirido na previdência social e a mudança de regime jurídico, ver Luís Roberto Barroso. Constitucionalidade e Legitimidade da Reforma da Previdência (Ascensão e Queda de um Regime de Erros e Privilégios), in A Reforma da Previdência Social (Coord. Marcelo Leonardo Tavares), Rio: Lumen Juris, 2004.
31 RE 597.389-QO, Min. Gilmar Mendes. O tema foi objeto de repercussão geral. Ver
Ano I – Número 1 – 2009 – página 11 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
Embora a isonomia seja um preceito elementar frente aos direitos sociais, não é
admissível a extensão pura e simples, sem o dimensionamento do custeio. As circunstâncias que
propiciam majoração de benefícios devem ser aferidas em determinado tempo e espaço,
podendo gerar diferenças entre gerações, até pelas imponderáveis flutuações econômicas e
variações de receita do sistema.
O que não se poderia admitir é a fixação de regras demasiadamente diferenciadas, a
ponto de vulnerar a dignidade dos participantes, ou mesmo prestações de renda variável para
segurados da mesma geração em situação fática idêntica. Impossível, neste tipo de análise,
escapar a algum juízo ponderativo, que deverá, prioritariamente, apreciar a adequação da
mudança, em aproximação com o equilíbrio do sistema, e eventual ausência de meio menos
gravoso.
4.4.Aposentadoria Especial para Servidores com Atividade Insalubre
A aposentadoria especial, no direito previdenciário, é tradicionalmente concedida aos
segurados que possuem atividades insalubres, as quais trazem uma redução mais acelerada da
higidez física e mental dos trabalhadores.
No RGPS, o benefício foi criado pela Lei nº. 3807/60, conhecida como Lei Orgânica da
Previdência Social. Atualmente, é disciplinada no art. 57 da Lei nº. 8.213/91. Na Constituição, a
possibilidade de tratamento diferenciado, no RGPS, é prevista no art. 201, § 1º, enquanto que,
para os servidores públicos, o tema é previsto no art. 40, § 4º da CF/88, até hoje não
regulamentado.
O Executivo federal, em exemplo de irreal descompromisso com a questão, editou a
Medida Provisória nº 2.187-13/2001, incluindo parágrafo único no art. 5º da Lei nº. 9.717/98,
prevendo a impossibilidade de concessão de aposentadorias especiais enquanto não editada lei
complementar sobre o tema, na forma do art. 40, § 4º da Constituição.32 Melhor seria elaborar,
de uma vez, projeto de lei complementar com a real disciplina do tema.
Daí a alternativa natural, para os servidores interessados, seria o mandado de injunção,
pois até a presente data, não há disciplina normativa da questão. Uma aplicação concreta desta
opção foi avalizada pelo STF, no Mandado de Injunção nº. 721/DF, Rel. Min. Marco Aurélio,
30/8/2007. Neste caso, o Tribunal julgou pedido formulado por servidora do Ministério da Saúde,
para, de forma mandamental, adotando o sistema do regime geral de previdência social,
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaRepercussaoGeralMeritoJulgado/anexo/01_RG_ReafirmacaoJurisprudencia.pdf.
32 Art. 5º Os regimes próprios de previdência social dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos militares dos Estados e do Distrito Federal não poderão conceder benefícios distintos dos previstos no Regime Geral de Previdência Social, de que trata a Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, salvo disposição em contrário da Constituição Federal. Parágrafo único. Fica vedada a concessão de aposentadoria especial, nos termos do § 4o do art. 40 da Constituição Federal, até que lei complementar federal discipline a matéria. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.187-13, de 2001).
Ano I – Número 1 – 2009 – página 12 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
assentar o direito da impetrante à aposentadoria especial de que trata o § 4º do art. 40 da
CF/88.
Como apontou o Tribunal, Na espécie, a impetrante, auxiliar de enfermagem, pleiteava
fosse suprida a falta da norma regulamentadora a que se refere o art. 40, § 4º, a fim de
possibilitar o exercício do seu direito à aposentadoria especial, haja vista ter trabalhado por
mais de 25 anos em atividade considerada insalubre.33
Aqui a decisão foi longe de ser qualificada como deferente. A Corte, corretamente,
superou a inércia de mais de 20 anos, que, propositadamente, retarda a legítima pretensão de
servidores públicos de todas as esferas de governo em obter prestações previdenciárias de
acordo com o grau de insalubridade de suas atividades.
Embora a decisão possa abrir margem para diversas outras, em todas as esferas de
governo, a omissão legislativa não mais poderia ser suportada, ignorando direitos legítimos de
servidores expostos a agentes nocivos, além de, uma vez implementada a concessão de
benefícios especiais, gerar evidente estímulo à melhoria das condições de trabalho de muitas
unidades públicas.
Como dito, em situações de iniquidade flagrante, a extensão pode ser feita, até pela
impossibilidade de restrição para os segurados do RGPS, que já possuem a questão normada.
Eventuais incrementos no gasto previdenciário podem sofrer ajustes no plano de custeio, sem
grandes complicações para o sistema. Equilíbrio financeiro e atuarial não significa fechamento
do sistema previdenciário a mudanças, ainda que algumas, extraordinariamente, sejam inseridas
pelo Judiciário.
4.5.Autonomia de Estados, DF e municípios na criação de regimes próprios de
Previdência Social
A previdência social brasileira, em seus regimes básicos, é subdividida no Regime Geral
de Previdência Social - RGPS, e nos Regimes Próprios de Previdência Social de Servidores Públicos
– RPPS. Este último, para o ingresso, demanda que a pessoa esteja investida em cargo público de
provimento efetivo.34
Não obstante, na visão da União, com base no art. 24, XII da Constituição, a
33 Ver informativos 442 e 450, STF. In verbis: Salientando o caráter mandamental e não simplesmente declaratório do mandado de injunção, asseverou-se caber ao Judiciário, por força do disposto no art. 5º, LXXI e seu § 1o, da CF/88, não apenas emitir certidão de omissão do Poder incumbido de regulamentar o direito a liberdades constitucionais, a prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, mas viabilizar, no caso concreto, o exercício desse direito, afastando as consequências da inércia do legislador.
34 Há quem entenda que os regimes especiais dos militares formariam um terceiro regime básico da previdência social, o que, no mínimo, criticável, haja vista a Constituição não prever a necessidade de equilíbrio financeiro e atuarial destes pretensos regimes, além de, em regra, a contribuição dos participantes limitar-se ao financiamento de pensões por morte. Para maiores detalhes, ver o meu Curso de Direito Previdenciário, 14 edição. Niterói: Impetus, 2009.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 13 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
competência legislativa dos demais entes federativos seria limitada, pois, além do art. 40 da
Constituição já ser bastante detalhado, fixando as regras dos benefícios mais relevantes –
aposentadorias e pensão – atribui à União a competência para fixação das normas gerais,
restando, na prática, pouca margem de ação para os legisladores estaduais, municipais e
distrital.
Adicionalmente, o art. 5º da Lei nº 9.717/98 estabelece, expressamente, que os RPPS
dos demais entes não poderão conceder benefícios distintos dos previstos no RGPS, praticamente
impedindo qualquer inovação.
É certo que a displicência de Estados e Municípios com seus respectivos RPPS é notória,
a ponto de muitos estarem em flagrante situação de desequilíbrio. Ademais, não é segredo
algum que a maioria, quando de sua criação, visava, tão-somente, a dispensa da contribuição ao
RGPS, permitindo maior redução de gasto no curto prazo, mas com reflexo claramente perverso
para o futuro.
Devido a esta clara supremacia da União sobre a regulamentação legal da previdência
dos servidores, a legislação vigente atribui a fiscalização dos RPPS, no que diz respeito ao
cumprimento das normas gerais fixadas em lei, ao Ministério da Previdência social, que realiza
esta incumbência de acordo com as regras do Processo Administrativo Previdenciário – PAP,
destinado à análise e julgamento das irregularidades em Regime Próprio de Previdência Social –
RPPS – de Estado, do Distrito Federal ou de Município, apuradas em auditoria-fiscal direta,
observando as normas contidas na Portaria MPS/GM nº 64, de fevereiro de 2006.
Apesar das acentuadas críticas referente a centralização de poder na União,
frequentemente apontada como algo incompatível ou, no mínimo, indesejado em uma
federação, a centralização em matéria previdenciária é correta, pois mesmo a escassa
autonomia dos demais entes tem se mostrado desastrosa, como se vê na situação periclitante da
grande maioria dos RPPS atuais. Ademais, não há motivo para tratamento previdenciário
diferenciado de Estados e Municípios, haja vista a igualdade de riscos cobertos (idade avançada,
doença, invalidez, morte, maternidade etc.), que não sofrem mudanças significativas.
É importante lembrar que outras federações, como os EUA têm maior autonomia para
estados, mas, nem por isso, preveem, necessariamente, regras diferenciadas para servidores em
cada estado.35 Da mesma forma, o Canadá, com autonomia ainda maior entre suas províncias,
detendo mesmo prerrogativa para criação de regimes previdenciários autônomos para seus
habitantes, optou, após longo debate sobre o tema, adotar sistema único de previdência, em
35 No sistema norte-americano, os estados, embora tenham autonomia para criar regimes próprios de previdência para seus servidores, acabam, na maioria, por firmar um convênio com o sistema federal, no conhecido Section 218 Agreement. Sobre o tema, ver Social Security Handbook – Overview of Social Security Programs. Maryland: Bernan Press, 2009, pp. 257-270. Para consultar os estados optantes, que são a maioria, ver <http://www.socialsecurity.gov/slge/student_chart.pdf> , consultado em 24/08/2009, às 22 hs.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 14 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
ampla reforma finalizada em 1998.36 Não há razão para o Brasil trilhar caminho distinto.
Daí preocupante a previsão do STF, ao expor que a atribuição da União, em estabelecer
normas gerais em matéria de RPPS, não significa total submissão aos ditames federais sobre a
matéria.37 De modo geral, pode-se dizer que a previsão é, realmente, adequada, mas o problema
será o grau de pretensa autonomia dada a Estados, DF e Municípios.
Como os RPPS devem observar o equilíbrio financeiro e atuarial, em razão de expressa
previsão constitucional (art. 40, caput), deve-se reconhecer, em tese, a possibilidade de
prestações diferenciadas em RPPS estaduais e municipais, mas somente com forte embasamento
atuarial, sob pena de perpetuar a desordem gerencial destes sistemas, o que, como de hábito,
se refletirá em insuficiência de recursos para outras áreas e perda de governança.
Neste ponto, andaria melhor o STF se, ainda que admitindo alguma autonomia dos
demais entes federados, deixasse clara a necessidade de pesado ônus de viabilidade financeira e
atuarial, o que, na atualidade, provavelmente impediria qualquer inovação, haja vista a situação
precária dos regimes estaduais e municipais.
4.6.Contribuição previdenciária de aposentados do RGPS que retornam à atividade
Em mais um exemplo de deferência da Corte ao texto legal, há a decisão relativa à
contribuição previdenciária do aposentado pelo RGPS que retorna à atividade, prevista no art.
12, § 4º, da Lei nº 8.212/91 e no art. 18, § 2º, da Lei nº 8.213/91. De acordo com os dispositivos
citados, o aposentado que permanece ou retorna à atividade remunerada, mantém o encargo
contributivo, mesmo não podendo jubilar-se novamente, e sem direito aos demais benefícios do
sistema, com exceção do salário-família, salário-maternidade e reabilitação profissional.
Devido à aparente ausência de contraprestação, os aposentados argumentavam que tal
imposição seria indevida, pois não produziria qualquer vantagem significativa em seus proventos.
Todavia, a Corte deliberou que tal exação está amparada no princípio da universalidade do
custeio da Previdência Social (CF, art. 195), corolário do princípio da solidariedade, bem como
no art. 201, § 11, da CF, que remete à lei os casos em que a contribuição repercute nos
benefícios.38
A solidariedade é a justificativa elementar para a compulsoriedade do sistema
previdenciário, pois os trabalhadores são coagidos a contribuir em razão de a cotização
individual ser necessária para a manutenção de toda a rede protetiva, e não para a tutela do
indivíduo, isoladamente considerado.
Ademais, a solidariedade é também pressuposto para a ação cooperativa da sociedade,
36 Sobre o tema, recomenda-se o excelente livro de Bruce Little. Fixing the Future – How Canada´s Usually Fractious Governments Worked Together to Rescue the Canada Pension Plan. Toronto: Rotman, 2008.
37 Sobre o tema, ver ACO 830 TA/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, 29/10/2007.38 RE 437640/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 5/9/2006.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 15 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
sendo condição fundamental para a materialização do bem-estar social, com a necessária
redução das desigualdades sociais. Ou seja, o princípio da solidariedade, dentro da seguridade
social, possui escopo de atuação mais amplo, além dos ideais tradicionais do seguro social.
No presente caso, nem seria necessário falar-se em solidariedade no seu sentido
mais amplo, como usualmente referida, frente a todo o corpo social, mas sim na tradicional
solidariedade de grupo, devida a todos que exercem atividade remunerada e, portanto,
ingressam no regime compulsório de previdência social. De qualquer forma, a nova contribuição
feita por tais segurados, após a aposentadoria, começa a ser admitida, judicialmente, para fins
de novo benefício, que sofreria um recálculo com o novo tempo contributivo, dentro do
procedimento que tornou-se conhecido como desaposentação.
4.7.Princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios
O art. 194, parágrafo único da Constituição prevê os princípios fundantes do sistema de
seguridade social brasileiro. Muito embora fale em objetivos, sabe-se que, o princípio, não
obstante a ideia de início, no direito, traduz a proposta de fim, isto é, do estado ideal de coisas
a ser atingido, da situação ideal a ser buscada.
Dentre tais princípios, há o da irredutibilidade do valor dos benefícios. A abordagem
doutrinária tradicional expõe, usualmente, que tal princípio impõe tanto um encargo negativo
como um positivo ao poder público; negativo no sentido de impor o dever de abster-se de
reduzir o valor da prestação; positivo colimando a preservação do valor real do benefício, ou
seja, mantendo-se o poder de compra, eventualmente corroído pela inflação.
No entanto, o STF, ao manifestar-se sobre o tema, apontou para uma acepção restrita
do princípio, impondo somente um dever estatal de abstenção, ao contrário da acepção ampla.
De acordo com o STF, a irredutibilidade é modalidade qualificada de direito adquirido,39 pois
apesar de não existir direito adquirido ao regime jurídico remuneratório, o montante pago é
irredutível.40
No último precedente citado, fixou o STF a irredutibilidade dos proventos dos
impetrantes, mas não assegurou a manutenção das parcelas individuais, por inexistir direito
adquirido a regime jurídico remuneratório, de modo que o valor por eles recebido será, ao longo
do tempo, indiretamente reduzido pela inflação até adequar-se ao subsídio fixado pela carreira,
pois a irredutibilidade garante somente o valor nominal. O STF, obviamente, reconhece a
necessidade da correção monetária dos benefícios, mas tal encargo se daria com base em outro
dispositivo constitucional (art. 201, § 1º).
Melhor seria conciliar uma concepção ampla do Princípio da Irredutibilidade aliada ao
39 RE 298.694, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 23/04/2004.40 MS 24.875-1, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 06/10/2006.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 16 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
reconhecimento de uma possível ponderação da garantia ao direito adquirido com outras
diretrizes constitucionais, de modo a permitir a redução ao teto fixado.
Adicionalmente, por ocasião do julgamento referente à contribuição dos servidores
inativos e pensionistas, acabou o STF por estabelecer que este mesmo princípio também não
impede tributação, mesmo a que recaia exclusivamente sobre inativos, como foi o caso. Enfim,
como não há garantia de correção monetária e nem proteção frente à tributação exclusiva sobre
proventos, mesmo com evidente finalidade redutora, restará difícil encontrar alguma
aplicabilidade prática para este princípio, ressalvada violações flagrantes, que já seriam
repelidas por outros preceitos, como a salvaguarda ao direito adquirido.
4.8.Contribuição de Servidores Inativos e Pensionistas em RPPS
Outro tema tormentoso enfrentado pela Corte foi a tributação de servidores inativos,
criada pela Emenda Constitucional nº 41/03. Tal exação já havia estabelecida, em âmbito
federal, pela Lei nº 9.783/99, publicada logo após a EC nº. 20/98, que trouxe a primeira reforma
previdenciária. Alguns entes federativos já cobravam a contribuição de inativos desde anos
anteriores.
No entanto, o STF, ao apreciar a matéria, entendeu que os servidores inativos e
pensionistas não poderiam ter redução de seus proventos mediante tributação, devido à
imunidade criada pela EC nº. 20/98, que deu nova redação ao art. 195, II da Constituição. Apesar
da previsão constitucional somente excluir a tributação de aposentados e pensionistas do RGPS,
deveria a mesma ser estendida aos servidores, devido a previsão do art. 40, § 12 da
Constituição, que estabelece que, em caso de lacuna da disciplina normativa da previdência dos
servidores, aplicar-se-ia as normas do RGPS.
Visando superar o impedimento apontado pelo STF, o novo governo, até então contrário
à tributação de inativos, obteve sua aprovação e inclusão expressa no texto constitucional, com
a EC nº. 41/03, a qual deu nova redação ao art. 40 da CF/88, dotando o texto constitucional de
previsão expressa da nova imposição aos inativos, não mais cabendo a aplicação analógica do
art. 40, § 12.
Sem embargo, a tributação exclusiva sobre os inativos seria contrária ao princípio da
irredutibilidade, pois nada mais é do que uma redução indireta da prestação. Ainda que o
princípio seja expresso no art. 201 da CF/88, que trata do RGPS, seria claramente aplicável aos
servidores, em razão do mesmo art. 40, § 12, além da irredutibilidade, como reconheceu o
próprio STF, ser derivado do direito adquirido.
Entendeu o STF que tal tributação não violaria nem o direito adquirido nem o princípio
da irredutibilidade, pois a ninguém seria licito deter um direito a “não-tributação”,
especialmente em um Estado social, no qual a dispensa do tributo de alguns fatalmente produz
Ano I – Número 1 – 2009 – página 17 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
encargo para outros.
Em tese, a argumentação é precisa, pois não poderia, por exemplo, um aposentado
alegar pretensa imunidade ao imposto de renda devido a redução indireta de seus proventos.
Mas tal não foi o caso. A discussão tratava, em verdade, de tributação exclusiva sobre servidores
aposentados e pensionistas, em claro propósito de redução de gastos com servidores.
Ora, é algo que contraria o senso comum afirmar que o Estado, deliberadamente, não
poderia, por exemplo, reduzir a prestação previdenciária de 100 para 90, mas plenamente
autorizado a criar uma “tributação” exclusiva sobre estes mesmos aposentados de 10. É algo
contrário ao pensamento científico contemporâneo, que demanda alguma reaproximação com o
senso comum, especialmente na ciência do direito.41
Pessoalmente, acredito que seria mais honesto, em um ambiente de deliberação
democrática, discutir-se uma possível flexibilização do direito adquirido, que poderia ser
ponderado com outras normas constitucionais. Penso não ser contrário ao desejado pela
Constituição de 1988 a eventual redução de prestações de valores vultosos e concedidos sem
qualquer contraprestação, especialmente por meio de procedimentos ilegítimos, como as
frequentes nomeações de curtíssimo prazo, em semana anterior à aposentadoria, somente para
produzir incremento na prestação, pois, como se sabe, até fins de 1998, não havia tempo
mínimo de cargo ou mesmo de serviço público para fins de aposentadoria, a qual poderia ser de
montante igual à última remuneração. Creditar esta conta à sociedade é inaceitável, ainda que,
teoricamente, concedidas dentro da legalidade.
É tempo de buscarmos o debate sério em matéria previdenciária, sem o subterfúgio
criado com a contribuição do inativo. No contexto atual, perdura o insuperável direito adquirido,
que, ao que parece, torna-se mais inviolável que o direito à vida.
De qualquer forma, de modo a preservar a isonomia com aposentados e pensionistas do
RGPS, a tributação se manteve limitada aos valores percebidos acima do teto remuneratório do
RGPS. Por outro lado, a EC nº. 41/03 criou exação distinta para os servidores já aposentados à
época da publicação desta (31/12/03), com tributação superior, violando flagrantemente a regra
constitucional da isonomia. O STF acabou por declarar a constitucionalidade da contribuição do
servidor inativo, mas somente sobre os valores que ultrapassarem o teto do RGPS, independente
da época de obtenção do benefício, mas reconhecendo a inconstitucionalidade da regra
transitória do art. 4º da EC nº. 41/03.42
Durante o julgamento, outro ponto merece destaque – a frequente menção a
solidariedade do sistema protetivo, especialmente a prevista no caput do art. 40 da
Constituição, inserida com o evidente propósito de justificar a cotização que passa a ser exigida
41 Sobre o tema, ver Boaventura de Souza Santos. Introdução a Uma Ciência Pós-Moderna. Rio: Graal, 1989.42 ADI 3105/DF e ADI 3128/DF, Rela. Orig. Mina. Ellen Gracie, Rel. p/ Acórdão Min. Cézar Peluso, 18/8/2004.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 18 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
do servidor inativo e pensionista com o advento da EC nº 41/03. o tema é recorrente na
atualidade, pois todo regime previdenciário, como técnica de proteção social, pressupõe a
solidariedade entre seus participantes, principalmente ao adotar o regime de financiamento da
repartição simples.
Mas na atualidade, com o Estado responsável por manter prestações das mais variadas a
grupos ilimitados de pessoas, a solidariedade passa a ser de todo grupo social, e não mais de um
grupo definido. Tamanha ampliação da idéia de solidariedade impõe um repensar na dinâmica
tributária existente e mesmo uma revisão das concepções clássicas sobre capacidade
contributiva.43
No entanto, a simplicidade com que o tema tem sido abordado nos Tribunais é
preocupante. Aliás, as constantes referências à solidariedade, nos dias atuais, em muito lembra
as contínuas menções ao interesse público, o que, nos anos 80, servia, constantemente, de
subsídio para qualquer restrição de direito que fosse perpetrada pela Administração Pública e o
legislador.
É inegável que a solidariedade é um valor fundante do Estado social, o qual, ainda que
em processo de mudança para um modelo pós-social, demanda cotização da sociedade visando a
prestação de ações mínimas em favor dos hipossuficientes. No entanto, a necessidade de novas
exações deve ser claramente demonstrada, cabendo pesado ônus ao Estado, sob pena de
interferência indevida na esfera privada das pessoas. Caberia ao Judiciário, por exemplo, não se
contentar com manifestações genéricas de solidariedade como fundamento suficiente, mas,
também, clara exposição de plano de custeio desenvolvido por profissionais atuários, expondo
plano de reformulação do sistema e a necessária cotização adicional como instrumento
adequado e necessário para, quando for o caso, a preservação ou obtenção do equilíbrio
financeiro e atuarial da previdência social.
O que se vê, nos dias atuais, é o total descuido com as questões atuariais da
previdência, tanto em RGPS como em RPPS, e sempre que se faz necessário algum ajuste de
curto prazo, cria-se alguma nova imposição com base em alegações genéricas de preservação do
equilíbrio ou no manah jurídico que se transformou a solidariedade. Andará bem o Judiciário
quando demandar comprovações atuariais que justifiquem incrementos contributivos na
previdência social, obrigando Executivo e Legislativo a levar à sério a Constituição brasileira.
4.9.Direito da Concubina
Em precedente mais recente do STF, desta vez tratando de pensionistas do RGPS, a
Corte entendeu que, apesar de o Código Civil versar a união estável como núcleo familiar,
excepciona a proteção do Estado quando existente impedimento para o casamento
43 Sobre o tema, ver Ricardo Lodi Ribeiro. Temas de Direito Constitucional Tributário. Rio: Lumen Juris. 2008.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 19 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
relativamente aos integrantes da união, sendo que, se um deles é casado, esse estado civil
apenas deixa de ser óbice quando verificada a separação de fato.44
Data maxima venia, a jurisprudência que começa a se formar é gravemente equivocada,
e, muito provavelmente, acabará por estimular uma mudança no entendimento administrativo, o
qual, até então, admite a divisão entre esposa e concubina. O pensamento tipicamente civilista
não encontra respaldo pleno frente aos direitos sociais, especialmente aqueles que visam
assegurar a vida digna. Não admitir a divisão de pensão nestas hipóteses será, sem dúvida,
condenar dependentes previdenciariamente legítimos à miséria.
Não há motivo para os Tribunais insistirem na perspectiva civilista de avaliação de união
estável. Desde tempos remotos, como se pode verificar em qualquer manual de direito
previdenciário, o rol de beneficiários do sistema é dividido em segurados e dependentes, sendo
estes últimos, assim chamados devido a sua dependência econômica frente ao segurado
instituidor.
Ou seja, a ideia do seguro social é cobrir determinadas necessidades sociais que venham
a incidir não somente sobre o segurado, mas sobre as pessoas que dependam economicamente
dele. Daí, a legislação, ao prever, como dependentes, o cônjuge ou companheiro(a), não buscam
uma concepção do direito privado, mas sim aqueles que vivam com o segurado com animus
conjugal, seja lá qual for a condição civil ou orientação sexual.
Na previdência social, é totalmente irrelevante se o segurado possuía intenção de
formar sociedade conjugal visando o casamento, se a união era pública e notória, e outras
características tão caras aos civilistas. Por exemplo, não faria sentido algum excluir do direito de
pensão uma companheira que, por excesso de pudor ou convicções religiosas, não assumisse
publicamente sua união com segurado, pelo fato deste ser divorciado ou separado de fato. O que
importa é a existência da vida em comum, que, na legislação vigente, é suficiente para produzir
a presunção de dependência econômica.
Ainda que a descoberta, após a morte, da vida paralela levada pelo segurado(a), possa
produzir grande constrangimento e dor à(ao) cônjuge sobrevivente, isso não é argumento para
excluir-se a garantia de prestação pecuniária assegurada pelo sistema previdenciário.
Se a isonomia é o valor fundante do Estado social; se a partir dela foram criados os
direitos sociais e a busca da liberdade real; se é qualificada como a virtude soberana, deve ser
observada em matéria protetiva, cabendo ao Judiciário superar a visão não somente anacrônica,
mas mal situada, impondo a abordagem tipicamente civilista na seara previdenciária. As
particularidades do direito previdenciário, sempre reconhecidas na esfera teórica, mas
raramente aplicadas na prática, impõem uma interpretação peculiar, visando aspectos
finalístico-pragmáticos.
44 RE 590779/ES, rel. Min. Marco Aurélio, 10/2/2009.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 20 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
Além da finalidade protetiva – de segurados e dependentes, a hermenêutica
previdenciária é centrada em maior pragmatismo, pois o que efetivamente importa é a
dependência econômica, presumida quando da convivência em comum. Por esta mesma razão o
direito previdenciário trata, de modo igual, o cônjuge divorciado, separado judicialmente ou
mesmo separado de fato. A ideia é simples: se não mais vivem juntos, a presunção de
dependência econômica é perdida, somente cabendo benefício se comprovada. O mesmo deve
valer para a vida em comum, pouco importando o estado civil do segurado ou mesmo sua opção
sexual.
Em momento no qual até a Administração admite, sem maiores problemas, a união
homoafetiva, ignorar as relações de concubinato, para fins previdenciários, seria um retrocesso
irreparável aos dependentes previdenciários.
4.10.Critérios para a concessão do Benefício de Prestação Continuada – BPC. Conceito de
miserabilidade e extensão a estrangeiros
Visando regulamentar o art. 203, V da Constituição, que assegura benefício assistencial
de salário mínimo para todos os necessitados, a Lei nº. 8.742/93, conhecida como Lei Orgânica
da Assistência Social – LOAS, no art. 20, disciplina esta prestação, conhecida como beneficio de
prestação continuada – BPC.
Os requisitos legais são bastante rigorosos, tanto pela renda familiar, que deve, em
regra, ser inferior a ¼ (um quarto) de salário mínimo, mas também pelo requisito adicional: ser
idoso (para este fim, maior de 65 anos) ou inválido.
Os requisitos, não obstante o evidente rigor, foram validados pelo STF, na célebre ADIn
nº. 1232/DF, em novo exemplo de deferência, sob a tradicional (e verdadeira) alegação da
carência de recursos, haja vista a necessária Reserva do Possível.
Sem embargo, em razão da contínua polêmica sobre a matéria, a própria Corte
Constitucional acena com alguma mudança em sua compreensão, admitindo a validade dos
requisitos legais de miserabilidade, mas sem limitar este conceito somente àquelas condições.
Assim decidiu o Min. Gilmar Mendes, ao negar liminar em Reclamação, devido à concessão do
BPC à pessoa que não atendia aos requisitos da LOAS. Como expôs em seu decisório, não se
declara a inconstitucionalidade do art. 20, § 3º, da Lei nº 8.742/93, mas apenas se reconhece a
possibilidade de que esse parâmetro objetivo seja conjugado, no caso concreto, com outros
fatores indicativos do estado de penúria do cidadão. Em alguns casos, procede-se à
interpretação sistemática da legislação superveniente que estabelece critérios mais elásticos
para a concessão de outros benefícios assistenciais.45
Adicionalmente, cumpre lembrar que o Brasil, mais recentemente, aprovou, por meio
45 Reclamação nº. 4374-6/PE.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 21 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
do Decreto Legislativo nº. 186/08, o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007.
Pela citada convenção, os Estados-partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência a um
padrão adequado de vida para si e para suas famílias, inclusive alimentação, vestuário e moradia
adequados, bem como à melhoria constante de suas condições de vida, e deverão tomar as
providências necessárias para salvaguardar e promover a realização deste direito sem
discriminação baseada na deficiência (art. 28).
De acordo com o Preâmbulo da Convenção, deficiência é um conceito em evolução,
resultando da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras atitudinais e ambientais
que impedem sua plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de oportunidades com
as demais pessoas. Caberá ao INSS, por ocasião da concessão do BPC, adaptar-se a este novo
conceito. Naturalmente, não se pode esquecer o requisito adicional, que é a renda familiar
inferior a ¼ (um quarto) de salário mínimo.
O STF, como guardião da Constituição e, por conseguinte, encarregado da preservação
dos direitos fundamentais e do regime democrático, certamente teria a prerrogativa de,
excepcionalmente, assegurar patamar mínimo de existência, ainda que sem expressa previsão
legal, com base na força normativa do texto constitucional.
Naturalmente, o ônus argumentativo é elevado, cabendo à parte a clara demonstração
de sua condição de miserabilidade, pois a ação judicial, para este fim, é sempre excepcional,
notadamente em razão da competência do legislador ordinário para estabelecer a alocação de
recursos escassos.
No mesmo debate, sobre a extensão do BPC, há atualíssima discussão sobre a
possibilidade de concessão a estrangeiros, desde que legalmente residentes no pais. Embora,
sobre a saúde, a Constituição seja clara no que diz respeito à universalidade, o mesmo não se
pode falar da assistência social. Ademais, se os recursos são escassos, há natural predisposição a
atender os nacionais, colocando estrangeiros em segundo plano.
No entanto, se o Brasil acolheu tais estrangeiros, por qualquer motivo, permitindo sua
permanência legal no pais, é certamente duvidoso que se possa excluí-los da seguridade social
brasileira. Especialmente pelo singelo fato destas pessoas, inexoravelmente, participarem do
custeio do sistema, haja vista a inclusão das contribuições sociais nos produtos que consomem e
nos rendimentos que, porventura, venham a receber. O tema teve a repercussão geral
reconhecida pelo STF, aguardando julgamento.46
Exemplo interessante na discussão relativa à extensão de benefício assistencial a
estrangeiros residentes foi travada na África do Sul. Embora a Corte sul-africana, dentro da
praxe internacional, tenha reconhecido sua limitada capacidade de análise para ampliação de
46 RE 587.970-SP, Rel. Min. Marco Aurélio.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 22 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
direitos sociais, poderia, no caso, apreciar o tema devido ao mínimo existencial.47
A Corte sul-africana desenvolveu um teste de razoabilidade da política pública: o
programa deve ser abrangente, priorizando os mais carentes, coerente e coordenado; deve
possuir adequado financiamento e pessoal treinado; adequado e flexível para questões de curto,
médio e longo prazo; adequadamente concebido e implementado; transparente e apresentado
adequadamente ao público.48
No tema específico da extensão do benefício assistencial a estrangeiros, desde que
residentes, a Corte, com base nas premissas supracitadas, adotou a extensão, apesar da critica
estatal de possível falência do sistema. No caso, não houve provas por parte do Estado do gasto
alegado e, ao contrário, dados concretos expuseram o contrário. Ademais, a isonomia na
concessão deste tipo de prestação é especialmente importante para grupos mais carentes, mais
vulneráveis ao preconceito, além de injustificada, pois tais pessoas contribuem para o sistema,
ao arcar com tributos diretos e indiretos, assim como os nacionais.49
Por tais argumentos, salvo comprovação cabal por parte da União de flagrante falência
do sistema (e não simples alegações), não haveria qualquer motivação sustentável para a não-
extensão da prestação a estrangeiros, desde que legalmente residentes no país. Não há motivo
para tamanha discriminação, ainda mais ao se tratar de prestação necessária ao mínimo
existencial.
4.11.Aposentadoria do professor – extensão a atividades acessórias
A aposentadoria diferenciada dos professores de ensino fundamental e médio não é
exatamente nova, fundada, desde as origens, na pretensa penosidade da atividade.50 Em razão
deste fundamento é que tal benefício é, até hoje, rotulado, em diversos meios, como espécie de
aposentadoria especial. Atualmente, tal enquadramento se mostra equivocado, pois a
aposentação especial, na atual dicção do art. 57 da Lei nº 8.213/91, é nome restrito da
aposentadoria concedida aos segurados expostos a agentes nocivos, físicos, químicos ou
biológicos.
O que existe, com o advento da Constituição de 1988, é uma aposentadoria
constitucionalmente diferenciada do professor, criada em virtude do alegado desgaste maior 47 Cf. Sandra Liebenberg. The Judicial Enforcement of Social Security Rights in South Africa, in Social Security
as a Human Right – Drafting a General Comment on Article 9 ICESCR – Some Challenges. Eibe Riedel (org.). Mannheim: Springer, 2007, p. 77.
48 Cf. Sandra Liebenberg, op. cit., p. 79.49 Cf. Sandra Liebenberg, op. cit., p. 83e 84. Como afirmou a Corte, “the lack of congruence between benefits
and burdens created by a Law that denies benefits to permanent residents almost inevitably creates the impression that permanent residents are in some way inferior to citizens and less worthy of social assistance”. Khosa v. Minister of Social Development; Mahlaule v. Minister of Social Development 2004 (6) BCLR 569 (CC).
50 Daí equivocadas as premissas, mesmo do Judiciário, que apontam este benefício como fundado na relevância da docência para o desenvolvimento da personalidade humana. Sobre o tema, ver a obra de Cleci Maria Dartora. Aposentadoria do Professor – Aspectos Controvertidos. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2009.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 23 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
provocado pela função.51 O benefício do professor já fora expressamente enquadrado como
aposentadoria especial no passado, tendo tal situação sido corrigida pela EC nº 18, de
30/06/1981. Todavia, a terminologia errônea é encontrada mesmo em Tribunais Superiores,
como se vê na Súmula 726 do STF, que acaba por produzir uma definição lato sensu de
aposentadoria especial.
O professor deve comprovar, para obter a redução de 05 (cinco) anos, tempo de efetivo
exercício em função de magistério na Educação Infantil, no Ensino Fundamental ou no Ensino
Médio, durante todo o período. Caso não o faça, o tempo será considerado somente para a
aposentação normal, aos 35 ou 30 anos, conforme seja homem ou mulher, respectivamente. Até
bem pouco tempo, considerava-se função de magistério a atividade docente do professor
exercida exclusivamente em sala de aula, sendo excluídas outras ações, como atividades
administrativas, embora existissem precedentes do STF em contrário, como no caso do
especialista em educação e do orientador educacional, pois tais atividades incluem-se nas
funções de magistério.52
A despeito de a interpretação administrativa ter sempre demandado tempo de efetivo
exercício em sala de aula, a doutrina, desde longo tempo, já previa que atividades de magistério
não significariam, tão-somente, a docência, mas, também, outras atividades-meio que eram
tipicamente exercidas por professores, especialmente pela necessária experiência no ensino.53
Esta polêmica, com relação ao tempo considerado para fins de aposentadoria do
professor, foi parcialmente encerrada com a edição da Lei nº 11.301, de 10 de maio de 2006, a
qual prevê que são consideradas como funções de magistério, além das exercidas por professores
e especialistas em educação, no desempenho de atividades educativas, as executadas na direção
de unidade escolar e as de coordenação e assessoramento pedagógico.
Em razão da ampliação normativa, a citada lei foi objeto da ADI 3772- DF, Rel. Min.
Ricardo Lewandowski, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, haja vista incluir
profissionais que não exercem, em tese, atividades em sala de aula. A lei foi declarada
constitucional pelo STF, em mais um exemplo de deferência legislativa.54
Aqui, a polêmica é, de fato, acirrada, havendo quem demande uma interpretação
restritiva do preceito constitucional da aposentadoria do professor, até por ser excepcional e, na
atualidade, certamente questionável, e outros que demandam atividades de professor em geral,
51 O mesmo fundamento foi apontado quando da elaboração da Constituição vigente. Sobre o assunto, ver Ata da 178ª Sessão da Assembléia Nacional Constituinte, em 04 de Janeiro de 1988, p. 33, disponível em <http://www.senado.gov.br/sf/publicacoes/anais/constituinte/N011.pdf>.
52 RE 196.707-DF, Rel. Min. Marco Aurélio, 9/5/2000.53 Neste sentido, ver Wladimir Novaes Martinez. Comentários à Lei Básica da Previdência Social – Tomo II. 4ª
edição. São Paulo: LTr. 1997, p. 329.54 Interessante notar que, como regra, a jurisprudência do STF entendia que a aposentadoria do professor
careceria de tempo exclusivo de atividade de magistério. Precedentes: ADIn 122-SC (RTJ 142/3); ADIn 152-MG (RTJ 141/355); RE 131736-SP (RTJ 152/228); RE 171.694-SC, Rel. Min. Carlos Velloso, 12/03/96 e súmula 726 do Tribunal.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 24 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
além da docência. Pessoalmente, sempre me posicionei pela interpretação restritiva, pois não
vejo, hoje, razão para a aposentadoria diferenciada do professor.
Apesar da EC nº 20/98 já ter excluído o professor universitário da benesse, o ideal seria
a exclusão plena. É fato que, na realidade brasileira, o ensino fundamental e médio pode ser,
ainda, extremamente penoso, mas, certamente, não é a única atividade desgastante no mercado
de trabalho, e não haveria motivo para ainda manter-se este privilégio aos professores. Não se
discute que mereçam melhores condições de trabalho, mas aposentadorias precoces, típica
manobra anacrônica para compensar situações inadequadas de trabalho, já não se mostra
sustentável em um momento de busca pelo equilíbrio financeiro e atuarial.
De qualquer forma, devido à alteração legal e com o aval do STF, o tempo de efetivo
exercício em função de magistério na educação infantil, no ensino fundamental ou no ensino
médio, inclui a atividade exercida em estabelecimento de educação básica em seus diversos
níveis e modalidades, abrangidas, além do exercício da docência, as funções de direção de
unidade escolar e as de coordenação e assessoramento pedagógico.
Como noticiado pelo próprio STF, a Corte observou que a decisão abriu uma ressalva à
Súmula 726, segundo a qual para efeito de aposentadoria especial de professores não se
computa o tempo de serviço prestado fora da sala de aula, salvo o de diretor. Na verdade, não só
salvo o diretor, mas também o coordenador e o assessor pedagógico, desde que também
qualificados como professores.
4.12.Extinção do Conselho Nacional de Seguridade Social
Outro exemplo emblemático de deferência foi a aceitação, por parte da Corte, da
extinção do principal órgão colegiado da seguridade social, que é o Conselho Nacional de
Seguridade Social. Não bastasse a gravidade do fato, que deixou acéfala a seguridade social
brasileira, o veiculo normativo não poderia ter sido mais inapropriado: a Medida Provisória nº
2.216-37, de 31/08/2001 foi a responsável pela inovação.
Em atitude arbitrária, o Poder Executivo extingue o principal órgão colegiado da
seguridade brasileira, excluindo, com uma canetada, a sociedade da fixação de diretrizes e
estratégias do sistema, em flagrante violação à prerrogativa constitucional da deliberação
democrática. O tema foi objeto da ADIn nº 2065-DF, tendo afirmado o Relator que a extinção do
CNSS seria mera opção de organização administrativa do legislador (sic), que não contraria
diretiva constitucional à qual estivesse vinculado.
Na indigitada decisão, não foi ignorado somente o preceito da gestão democrática e
descentralizada da seguridade social (art. 194, p. único, VII da Constituição), mas,
especialmente, o art. 10 da CF/88, que estabelece, claramente, o direito à participação dos
trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses
Ano I – Número 1 – 2009 – página 25 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação. O fato é que, sem o
CNSS, a esperança de uma articulação efetiva entre os diversos setores da seguridade social
resta impossibilitada.55
Embora, na prática, o CNSS sequer estivesse em funcionamento efetivo, isso, ao
contrário do que possa parecer, não é motivo para fundamentar sua extinção, mas sim para seu
imediato desenvolvimento. A extinção do CNSS é mais um reflexo do descompromisso
governamental com as premissas atuariais sérias para a previdência social brasileira.
Conclusão
Embora a isonomia seja um argumento frequente para os Tribunais Superiores
estenderem benefícios não expressamente previstos, é fato que o equilíbrio financeiro e atuarial
do sistema também é premissa constitucional a ser observada (art. 201, caput).
Daí, o que se vê na realidade brasileira são decisões, nas instâncias ordinárias, com
interpretações das mais extensivas e mesmo benevolentes, aproveitando-se da péssima
qualidade do texto normado, enquanto o STF, com a elevada responsabilidade de exarar a última
palavra é, em regra, mais deferente ao legislador ordinário e as interpretações exaradas pelo
Executivo.
A posição de nossa Corte Constitucional é facilmente compreensível, pois se providas
todas as teses razoavelmente criadas e fundamentadas (e não são poucas), o gasto
previdenciário seria aumentado enormemente, podendo gerar o colapso do sistema.
Sem embargo, é sabido que o sistema previdenciário brasileiro não possui um plano de
custeio adequadamente dimensionado ao plano de benefício, dentro do que se espera em
qualquer regime previdenciário. O cálculo atuarial tornou-se obra de ficção, sendo o último
trabalho sério, neste sentido, desenvolvido quando da elaboração da antiga Lei Orgânica da
Previdência Social – LOPS (Lei nº 3.807/60). Desde então, a necessidade do equilíbrio atuarial
funciona somente como uma espécie de palavra de ordem, bradada pelo Executivo federal
quando se opõe a determinada tese contrária à sua visão.
Como solução para as contendas atuais, a Corte poderia, como subsídio para a decisão,
demandar demonstrativo preciso do eventual aumento de gasto alegado pelo Executivo; exigir
projeção atuarial adequada e, na ausência de impedimento matemático preciso que invalide a
universalização da pretensão, desde que fundada no melhor direito, prover o requerido, dando
validade real aos dispositivos constitucionais em matéria previdenciária.
A extensão judicial de benefícios não necessariamente é algo inviável para um sistema
previdenciário, podendo, ao revés, estimular solução adequada, a ser fixada pelo legislador
ordinário, como aumento de contribuição, elevação de requisitos para concessão de outros
55 Neste sentido, ver Wagner Balera. Sistema de Seguridade Social. 3ª Ed. São Paulo: LTr. 2003, p. 44.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 26 de 27
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
benefícios ou mesmo redução da renda mensal futura.
Enfim, a vantagem do cálculo atuarial é não ser impedimento intransponível a
mudanças, mas ser a ferramenta de ajuste, não só a novas premissas biométricas, como
aumento de expectativa de vida, mas também a interpretações dada pelos Tribunais. O que se
deve evitar, repita-se, é a extensão desenfreada das pretensões previdenciárias, em total
descompromisso com a realidade financeira.
No contexto atual, a excessiva deferência da Corte acaba por acomodar os demais
Poderes, que não se sentem compelidos a ingressar no árido e impopular debate das reformas
previdenciárias. O estímulo judicial, no caso brasileiro, terá ainda um papel relevante para o
debate honesto e a deliberação adequada sobre o futuro da previdência no Brasil. Para tanto,
compete a nosso Tribunal Constitucional não mais acatar alegações genéricas de desequilíbrios
do sistema e, ao revés, exigir comprovações adequadas, avalizadas por profissionais habilitados,
no contexto multidisciplinar típico na previdência social.
Ano I – Número 1 – 2009 – página 27 de 27