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Revista Eletrônica do Ministério Público Federal A Previdência Social na Jurisprudência recente do STF – análise crítica e comparativa com a Corte Europeia dos Direitos Humanos Fábio Zambitte Ibrahim * 1. Introdução O intuito deste texto é apresentar as principais e mais recentes decisões do STF em matéria previdenciária, particularmente no que diz respeito a prestações previdenciárias, demonstrando, concretamente, a deferência do Tribunal na maior parte dos casos. Adicionalmente, pretende-se estabelecer uma avaliação crítica das decisões, além de apontar, em conjunto, algumas sentenças da Corte Europeia de Direitos Humanos - CEDH, que seguem, de modo muito similar, o acatamento às regras previdenciárias dos países signatários. O comparativo com a CEDH é particularmente interessante, apesar das particularidades da jurisdição internacional, devido a sua ação pioneira na apreciação de lides previdenciárias, o que propiciou algumas decisões interessantes; além de dirimir, em derradeira instância, os conflitos previdenciários irresolutos em países que deram origem ao Welfare State. Por fim, a Corte Europeia comemora, em 2009, seus 50 anos de criação, justificando a apresentação. De modo geral, restará manifesto, tanto no Brasil como alhures, a preocupação com o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema, muito embora, no Brasil, a atenção aos requisitos atuariais ainda seja incipiente, 1 frequentemente arguidos na negativa das prestações previdenciárias, mas raramente comprovados, até pela inexistência do cálculo atuarial nos regimes públicos de previdência no Brasil. 2. Realidade nacional – contexto propício à judicialização previdenciária A legislação previdenciária brasileira nunca foi das mais simples, característica que se pode atribuir aos sistemas bismarckianos de proteção social, mas deve-se adicionar a tal predicado a constante vacilação do legislador ordinário pátrio no sentido da melhor conformação do regime. Ademais, boa parte das mutações legislativas não decorre de análises bem elaboradas e * Professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), doutorando em Direito Público (UERJ) e mestre em Direito Previdenciário (PUC/SP). 1 Sucintamente, pode-se entender o equilíbrio financeiro como o saldo zero ou positivo do encontro entre receitas e despesas do sistema, dentro de determinado exercício financeiro. Já o equilíbrio atuarial diz respeito à estabilização de massa, isto é, ao controle e prevenção de variações graves no perfil da clientela, como, por exemplo, grandes variações no universo de segurados ou amplas reduções de remuneração, as quais trazem desequilíbrio ao sistema inicialmente projetado. Impõe este um plano de custeio compatível com o plano de benefícios desenhado originalmente. Em caso de desequilíbrio atuarial, o gestor do sistema, inexoravelmente, deverá agir com aumento de contribuições, diminuição do valor da prestação futura ou aumento de requisitos de exigibilidade do benefício, como maior idade, por exemplo. Sobre o tema, ver Wladimir Novaes Martinez. Princípios de Direito Previdenciário. 4ª edição. São Paulo: LTr, 2001, p. 91 e seg. Ano I – Número 1 – 2009 – página 1 de 27

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Revista Eletrônica do Ministério Público Federal

A Previdência Social na Jurisprudência recente do STF – análise crítica e comparativa com a Corte Europeia dos Direitos Humanos

Fábio Zambitte Ibrahim*

1. Introdução

O intuito deste texto é apresentar as principais e mais recentes decisões do STF em

matéria previdenciária, particularmente no que diz respeito a prestações previdenciárias,

demonstrando, concretamente, a deferência do Tribunal na maior parte dos casos.

Adicionalmente, pretende-se estabelecer uma avaliação crítica das decisões, além de apontar,

em conjunto, algumas sentenças da Corte Europeia de Direitos Humanos - CEDH, que seguem, de

modo muito similar, o acatamento às regras previdenciárias dos países signatários.

O comparativo com a CEDH é particularmente interessante, apesar das particularidades

da jurisdição internacional, devido a sua ação pioneira na apreciação de lides previdenciárias, o

que propiciou algumas decisões interessantes; além de dirimir, em derradeira instância, os

conflitos previdenciários irresolutos em países que deram origem ao Welfare State. Por fim, a

Corte Europeia comemora, em 2009, seus 50 anos de criação, justificando a apresentação.

De modo geral, restará manifesto, tanto no Brasil como alhures, a preocupação com o

equilíbrio financeiro e atuarial do sistema, muito embora, no Brasil, a atenção aos requisitos

atuariais ainda seja incipiente,1 frequentemente arguidos na negativa das prestações

previdenciárias, mas raramente comprovados, até pela inexistência do cálculo atuarial nos

regimes públicos de previdência no Brasil.

2. Realidade nacional – contexto propício à judicialização previdenciária

A legislação previdenciária brasileira nunca foi das mais simples, característica que se

pode atribuir aos sistemas bismarckianos de proteção social, mas deve-se adicionar a tal

predicado a constante vacilação do legislador ordinário pátrio no sentido da melhor conformação

do regime.

Ademais, boa parte das mutações legislativas não decorre de análises bem elaboradas e

* Professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), doutorando em Direito Público (UERJ) e mestre em Direito Previdenciário (PUC/SP).

1 Sucintamente, pode-se entender o equilíbrio financeiro como o saldo zero ou positivo do encontro entre receitas e despesas do sistema, dentro de determinado exercício financeiro. Já o equilíbrio atuarial diz respeito à estabilização de massa, isto é, ao controle e prevenção de variações graves no perfil da clientela, como, por exemplo, grandes variações no universo de segurados ou amplas reduções de remuneração, as quais trazem desequilíbrio ao sistema inicialmente projetado. Impõe este um plano de custeio compatível com o plano de benefícios desenhado originalmente. Em caso de desequilíbrio atuarial, o gestor do sistema, inexoravelmente, deverá agir com aumento de contribuições, diminuição do valor da prestação futura ou aumento de requisitos de exigibilidade do benefício, como maior idade, por exemplo. Sobre o tema, ver Wladimir Novaes Martinez. Princípios de Direito Previdenciário. 4ª edição. São Paulo: LTr, 2001, p. 91 e seg.

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debates sérios no sentido do melhor modelo previdenciário, ou mesmo visando o aprimoramento

do vigente. Na atualidade, como se vê nos jornais, diariamente, boa parte das propostas de

alteração legislativa visa atender interesses de determinados grupos, alguns justos outros nem

tanto, gerar constrangimentos ao governo, especialmente próximo de períodos eleitorais ou, ao

revés, garantir a permanência no poder.

Em tal contexto, o resultado é desastroso – a legislação é caótica, regras vêm e vão com

tamanha velocidade que nem mesmo os profissionais da área conseguem pleno domínio, e

mesmo os livros sobre o tema chegam às prateleiras, na maioria das vezes, já desatualizados. Os

beneficiários do regime previdenciário, clientela final do sistema, não conseguem entender as

regras vigentes, as quais, muito frequentemente, são indevidamente restritivas ou mesmo mal

redigidas, incompletas, carentes de regulamentação, gerando toda sorte de descontentamento.

O resultado é conhecido. As lides previdenciárias entulham o Judiciário, sendo uma das

matérias que mais ocupa a Justiça Federal. Com tamanha complexidade legislativa e volatilidade

normativa, as lacunas são muitas, e diversos profissionais do direito estudam detalhadamente as

alterações buscando iniquidades e incompletudes que possam justificar ações revisionais e

concessórias das mais diversas, para clientes atuais ou futuros.

Sem meias palavras, esta é, em resumo, a realidade do direito previdenciário pátrio.

Dentro do cipoal normativo vigente, há brechas de toda ordem, permitindo a ampliação de

prestações não expressamente previstas, o que impõe, ao Judiciário, a tarefa hercúlea – não

delineada pelo legislador incompetente – de fixar critérios seguros e definitivos para a obtenção

de determinadas prestações, dentro de critérios adequados e compatíveis com a Constituição de

1988. Daí, em boa parte, a origem da excessiva judicialização na matéria.

Interessante notar que esta não é a regra no direito estrangeiro, pois as demandas não

são tão continuadas, não só pela normatização mais adequada, mas também pela tradicional

desconfiança da capacidade das Cortes em dirimir a tais matérias.2

Na sequência, será feita uma breve análise dos principais precedentes da Corte

Europeia na matéria previdenciária para, então, confrontarmos com as recentes decisões do STF,

em uma visão crítica.

3. A Corte Europeia de Direitos Humanos – papel em questões previdenciárias

A Convenção para Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais foi

elaborada pelo Conselho Europeu, adotada em Roma em 04 de novembro de 1950 e entrou em

2 Neste sentido, em uma das raras obras a tratar do tema específico da apreciação judicial em matéria protetiva, ver Trevor Buck. Judicial Review and Social Welfare. Londres: Pinter Publishers, 1998, p. 97. O mesmo autor aponta que a judicial review, no Reino Unido, em matéria previdenciária, teve seus primeiros casos somente em 1950, com benefícios por incapacidade e, até hoje, há pouquíssimas demandas judiciais em matéria previdenciária (op. cit., p. 102)

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vigor em 03 de setembro de 1953.3 A Corte Europeia de Direitos Humanos somente foi criada em

1959,4 completando 50 anos de existência.

Para garantir a aplicabilidade da Convenção, foram criadas a Comissão Europeia de

Direitos Humanos, em 1954, e a Corte Europeia de Direitos Humanos, em 1959, além do Comitê

de Ministros do Conselho Europeu. Todavia, com o Protocolo nº 11, em novembro de 1998, a

Comissão foi extinta, cabendo à Corte analisar os casos, diretamente.5

Anteriormente à inclusão do Protocolo nº 11 na Convenção, havia proibição expressa no

sentido de pessoas, individualmente consideradas, ingressarem com alguma ação na Corte

Europeia, salvo quando o tema não fosse solucionado na Comissão, além de ter esgotado toda a

jurisdição interna de seu país (de modo muito similar à Corte Interamericana de Direitos

Humanos). Todavia, com a inclusão do aludido Protocolo, em 1998, a Comissão foi abolida e a

Corte, que funcionava somente em determinadas épocas, passou a atuar durante todo o ano. No

entanto, a necessidade de esgotar as instâncias internas ainda perdura.

Na Convenção, há o tradicional catálogo de direitos civis e políticos, mas sem previsão

expressa de um direito à seguridade social, ou mesmo previdência social. Todavia, diversos casos

previdenciários são apresentados à Corte, com base, principalmente, no art. 1º do 1° Protocolo,

de 1952, ao tratar da proteção da propriedade,6 art. 6º, referente ao direito a um julgamento

justo7, e o art. 8°, que trata do direito ao respeito à vida privada e familiar.8 Não obstante, até a

3 http://www.echr.coe.int/NR/rdonlyres/D5CC24A7-DC13-4318-B457- 5C9014916D7A/0/EnglishAnglais.pdf4 http://www.echr.coe.int/echr/ 5 Sobre a evolução e funcionamento da Corte, ver

<http://www.echr.coe.int/NR/rdonlyres/ACD46A0F-615A-48B9-89D6-8480AFCC29FD/0/FactsAndFiguresEN.pdf>. 6 Article 1 . Protection of property. Every natural or legal person is entitled to the peaceful enjoyment of his

possessions. No one shall be deprived of his possessions except in the public interest and subject to the conditions provided for by law and by the general principles of international law. The preceding provisions shall not, however, in any way impair the right of a State to enforce such laws as it deems necessary to control the use of property in accordance with the general interest or to secure the payment of taxes or other contributions or penalties.

7 Article 6 . Right to a fair trial. 1 In the determination of his civil rights and obligations or of any criminal charge against him, everyone is entitled to a fair and public hearing within a reasonable time by an independent and impartial tribunal established by law. Judgment shall be pronounced publicly but the press and public may be excluded from all or part of the trial in the interests of morals, public order or national security in a democratic society, where the interests of juveniles or the protection of the private life of the parties so require, or to the extent strictly necessary in the opinion of the court in special circumstances where publicity would prejudice the interests of justice. 2 Everyone charged with a criminal offence shall be presumed innocent until proved guilty according to law. 3 Everyone charged with a criminal offence has the following minimum rights: a to be informed promptly, in a language which he understands and in detail, of the nature and cause of the accusation against him; b to have adequate time and facilities for the preparation of his defence; c to defend himself in person or through legal assistance of his own choosing or, if he has not sufficient means to pay for legal assistance, to be given it free when the interests of justice so require; d to examine or have examined witnesses against him and to obtain the attendance and examination of witnesses on his behalf under the same conditions as witnesses against him; e to have the free assistance of an interpreter if he cannot understand or speak the language used in court.

8 Article 8. Right to respect for private and family life. 1 Everyone has the right to respect for his private and family life, his home and his correspondence. 2 There shall be no interference by a public authority with the exercise of this right except such as is in accordance with the law and is necessary in a democratic society in the interests of national security, public safety or the economic well-being of the country, for the prevention of disorder or crime, for the protection of health or morals, or for the protection of the rights and freedoms of others.

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vedação à tortura já foi utilizada como fundamento para ações na Corte Europeia de Direitos

Humanos, embora, nesta hipótese, com decisão voltada ao fornecimento de medicamentos a

imigrantes.9

A admissão de direitos previdenciários como uma propriedade do segurado foi

inicialmente rechaçada pela Corte, em 1960, mas posteriormente admitida, em 1971, partindo-

se da premissa que, ao verter contribuições ao sistema protetivo, há um direito à parcela do

fundo previdenciário, que pode ser afetado de acordo como venha a ser gerido, embora, nesse

primeiro caso concreto, a pretensão tenha sido indeferida devido ao caráter solidário do sistema

de proteção social.10 Uma aceitação mais ampla deste preceito, em matéria previdenciária,

somente veio em 1994.11 Também não é incomum encontrar-se lides previdenciárias como

instrumento de garantia da liberdade real e, portanto, dotada das mesmas prerrogativas de

defesa que os direitos civis.12

Interessante observar que a Corte Constitucional alemã também adota os direitos

previdenciários como derivados do direito de propriedade do segurado, cabendo demanda

judicial com este embasamento jurídico. Embora a Corte alemã seja apontada como pioneira,

seus precedentes iniciais sobre o tema, em 1980, foram posteriores às primeiras decisões da

Corte Europeia.13

Muitas demandas da Corte têm grande semelhança com lides previdenciárias no Brasil,

como as tentativas de vinculação da renda mensal do benefício a regras inflexíveis,

frequentemente associadas ao patamar remuneratório dos trabalhadores ativos, as quais, tanto

aqui como na Corte Europeia, têm sido claramente rechaçadas, não havendo direito, assegurado

pela Convenção, ao recebimento de quantia certa pelo sistema.14

9 Decisão de 02 de maio de 1997. D. v. United Kingdom. Appl. 30240/96. Neste sentido, ver Klaus Kapuy, Danny Pieters e Bernhard Zaglmayer. Social Security Cases in Europe: The European Court of Human Rights. Antwerpen-Oxford: Intersentia, 2007, p. xvi.

10 Decisão de 20 de julho de 1971, X. v. The Netherlands, Appl. 4130/69. Ver, também, Klaus Kapuy, op. cit., p. xvii.

11 Decisão de 11 de janeiro de 1994, Gaygusuz v. Austria. Appl. 17371/90. 12 Neste sentido, ver julgamentos de Salesi v. Itália, em 26/02/1993, Schuler-Zgraggen v. Suíça, em 24/06/93 e

Georgiadis v. Grécia, em 29/05/97. Sobre o tema, ver Ana Gomes Heredero. Social Security as a Human Right – The Protection Afforded by the European Convention on human Rights, Council of Europe, 2007.

13 Como afirma a própria Corte Alemã, “Social security entitlements have long been regarded as a matter of social law that has little to do with the constitutional guarantee of private property. It was the German Federal Constitutional Court that first extended the protection of this constitutional right to pension entitlements in 1980. The Hungarian Constitutional Court followed this example as second in Europe in 1995. It is most probable, that especially the German example motivated the European Court of Human Rights to regard social security benefits as property, which in turn, resulted in similar developments in Austria and Lithuania. The present treatise seeks to explore the real meaning of such an extension of the constitutional protection of property, as well as its doctrinal background. In order to do so, the example of Germany and Hungary is used, not the least because to date both courts have developed an extensive jurisprudence in the relevant Field”. Disponível em <http://www.bundesverfassungsgericht.de/en/decisions/es20090630_2bve000208en.html>, Press release nº. 72/2009 of 30 June 2009. Ver também BvE 2/08, 2 BvE 5/08, 2 BvR 1010/08, 2 BvR 1022/08, 2 BvR 1259/08 und 2 BvR 182/09.

14 Decisão de 05 de maio de 1986. K. v. Alemanha. Appl. 11203/84, Decisão de 06 de setembro de 1995. FEDERSPEV v. Itália. Appl. 22867/93 e Decisão de 15 de março de 2001. Aunola v. Finlândia. Appl. 30517/96.

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A Corte Europeia já admitiu, expressamente, até a possibilidade de redução do

benefício já concedido, desde que visando, comprovadamente, estabelecer um sistema

previdenciário eficiente e equilibrado.15 De acordo com a Corte, deve-se aferir a

proporcionalidade entre os meios empregados e o objetivo a ser atingido.16 O balanço adequado

entre justiça social e a economia do Estado não seria alcançado se imposto ao segurado um ônus

excessivo.17

Da mesma forma, outro tema muito recorrente em matéria previdenciária, é aquele

referente a mudanças no regime jurídico. No âmbito da Corte Europeia, tais mutações têm sido

amplamente aceitas, mesmo que afetando pessoas já jubiladas, especialmente quando o valor

atual das prestações é preservado.18

Curiosamente, há até mesmo decisões que envolvem tentativas de dispensa contributiva

dos regimes previdenciários, alegando convicções religiosas, devidamente rechaçadas, sob o

argumento de que a proteção da Convenção à liberdade de credo nem sempre se estende ao

comportamento na esfera pública.19

Enfim, o que se percebe, sem muita dificuldade, é a deferência da Corte Europeia aos

preceitos atuariais da matéria previdenciária, permitindo adequações no regime jurídico e

mesmo ações excepcionais visando o equilíbrio do sistema. Acredito que a breve menção a tais

precedentes, oriundos de uma Corte especializada em direitos humanos, externe a importância

dos encargos financeiros dos regimes protetivos, os quais, se ignorados, podem levar a falência

de todo o regime, excluindo gerações futuras da proteção social.

Ademais, tais demandas demonstram que os países signatários, de modo geral, foram

deferentes em suas decisões, preservando o equilíbrio o plano de custeio de seus respectivos

sistemas protetivos, o que motivou a litigância na Corte Europeia. Na sequência, serão expostas

e avaliadas as principais decisões do STF em matéria previdenciária.

4. Precedentes atuais do Supremo Tribunal Federal em temas previdenciários –

deferência exagerada ou autolimitação necessária?

Como reflexo da excessiva judicialização em matéria previdenciária, muitos temas são

alçados ao STF, até pelo fato da Constituição brasileira ser, sem grande dificuldade, apontada

como a mais abrangente em matéria previdenciária no atual contexto mundial.

15 Decisão de 18 de novembro de 2004. Pravednaya v. Russia. Appl. 69529/01. Muito embora tenha sido prevista a possibilidade de redução, no caso concreto, a Corte entendeu indevida a restrição da renda mensal, já que não fundamentada nos termos citados.

16 Decisão de 22 de setembro de 2005. C. Goudswaard – Van Der Lans v. Holanda. Appl. 75255/01.17 Op. cit., loc. cit.18 Entre outros, ver Decisão de 01 de junho de 1999. Skorkiewicz v. Polônia. Appl. 39860/98. Ver, também,

Klaus Kapuy, op. cit., p. 06.19 Decisão de 14 de dezembro de 1965. X. v. Holanda. Appl. 2065/63 e Decisão de 05 de julho de 1984. V. v.

Holanda. Appl. 10678/83.

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De acordo com pesquisa realizada nas constituições de 35 (trinta e cinco) países de todo

o mundo, mostrou-se que o direito à previdência social possui inserção constitucional na

absoluta maioria deles, não sendo expressamente previsto em apenas dois desses países (Estados

Unidos e Israel). Dentre os 33 (trinta e três) países cujas constituições referem-se ao direito à

previdência social, 28 (vinte e oito) o consagram entre os direitos fundamentais ou direitos

sociais.20

No entanto, poucos se dedicam a efetuar o seu detalhamento. Em 06 (seis) países o

grau de detalhamento das normas constitucionais relacionadas à previdência social foi

considerado médio (Bolívia, Costa Rica, México, Uruguai, Venezuela e Portugal) e em apenas 02

(dois) identificou-se um alto grau de detalhamento das normas constitucionais previdenciárias

(Equador e Suíça). Mesmo nestes, o direito à previdência social não alcança o mesmo nível de

destaque e relevância encontrado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.21

É interessante notar que mesmo a Constituição Portuguesa, antes da reforma,

tradicionalmente apontada como dirigente, somente apresentava um único artigo sobre o tema,

que ainda perdura, mesmo após a reforma constitucional de 1976, como o exclusivo dispositivo

sobre a previdência social.22

Em razão do previsto, são poucas as demandas previdenciárias que não possuam algum

embasamento constitucional e, destarte, são frequentes as lides que alcançam a Corte

constitucional. Embora o mecanismo de repercussão geral possa trazer alguma limitação, isso

pode não se mostrar verdadeiro, pois as demandas previdenciárias, em regra, envolvem milhares

de pessoas, e dificilmente o STF escaparia do encargo de manifestar-se. Um exemplo, já sob a

égide da Lei nº 11.418/06, é o auxílio-reclusão, que será objeto de comentário.

Dentro de tantas demandas, o bom senso imporia a deferência aos critérios fixados pelo

legislador ordinário e, quando dotada a lei de cláusulas abertas, os requisitos fixados pelo

Executivo, sob pena de insolvência do sistema. No entanto, nem sempre deverá ser assim.

Muito embora a atuação contramajoritária dos tribunais, e em especial da Corte

Constitucional, seja justificável como instrumento de preservação do regime democrático e dos

20 Cf. Narlon Gutierre Nogueira. A Previdência Social nas Constituições ao Redor do Mundo. Disponível em <http://www.mpas.gov.br/arquivos/office/3_081014-104755-703.pdf>, consultado em 01/02/2009.

21 Cf. Narlon Gutierre Nogueira, op. cit., loc. cit.22 Artigo 63.º (Segurança social e solidariedade) Todos têm direito à segurança social. Incumbe ao Estado

organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras organizações representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários. O sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho. Todo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e invalidez, independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado. O Estado apoia e fiscaliza, nos termos da lei, a actividade e o funcionamento das instituições particulares de solidariedade social e de outras de reconhecido interesse público sem carácter lucrativo, com vista à prossecução de objectivos de solidariedade social consignados, nomeadamente, neste artigo, na alínea b) do n.º 2 do artigo 67.º, no artigo 69.º, na alínea e) do n.º 1 do artigo 70.º e nos artigos 71.º e 72.º.

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direitos fundamentais, especialmente das minorias, é fato que os limites da atuação

jurisdicional, especialmente em matéria de políticas públicas, ainda é um debate sem solução.

Afinal, é sabido que tais políticas, como a previdenciária, são indispensáveis para a garantia e

promoção dos direitos fundamentais, inclusive sociais.23

A concepção institucional do Judiciário como Poder comprometido, a priori, com os

casos individuais, a microjustiça, em matéria de direitos sociais, poderia ser complementada,

em determinadas situações, por ações coletivas, funcionamento como ferramenta para alcançar-

se a macrojustiça. Dentro de ações coletivas os custos envolvidos na manutenção de direitos

sociais, além das vantagens, podem ser mais claramente expostos, propiciando um juízo

ponderativo mais apurado, e por isso, não sem razão, tem sido cada vez mais importante a

aplicação dos ideais de proporcionalidade e razoabilidade pelos Tribunais.24

Em ações coletivas, é possível ao Judiciário subsidiar sua decisão com pareceres

técnicos, atuariais, os quais podem evidenciar, com maior clareza, a correição ou não de alguma

restrição legal. Haja vista o delicado equilíbrio entre o plano de custeio e o plano de benefício,

a intervenção judicial deverá, sempre, basear-se em critérios sólidos. Naturalmente, parte-se da

premissa que o sistema brasileiro irá, em algum momento, privilegiar, de modo efetivo, o

equilíbrio atuarial.

Caso se vislumbre uma flagrante violação à isonomia, por exemplo, em extensão de

benefício somente a determinadas categorias, mas sem embasamento atuarial para sua

ampliação às demais, a posição judicial deverá, em regra, ser no sentido da suspensão da

vantagem, e não da ampliação geral, devolvendo então a matéria ao legislador ordinário.

Ou seja, um standard fundamental de atuação judicial é o da preservação do equilíbrio

financeiro e atuarial do sistema. Como a própria Constituição prevê esta necessidade,

fundamenta-se tal premissa a partir da necessidade da sobrevivência do sistema. Obviamente,

mediante maior ônus argumentativo, poderia uma decisão judicial ampliar determinada

prestação, especialmente de pequena repercussão econômica e adequadamente

fundamentada.25 Ou seja, não se deve inferir que qualquer extensão judicial na esfera

previdenciária seja indevida, por violar o sacrossanto equilíbrio atuarial.

23 Sobre o tema, ver Ana Paula de Barcellos. Constitucionalização das Políticas Públicas..., p. 23. Como afirma a autora, as escolhas em matéria de gastos públicos não constituem um tema integralmente reservado à deliberação política; ao contrário, o ponto recebe importante incidência de normas jurídicas de estatura constitucional (Constitucionalização das Políticas Públicas em Matéria de Direitos Fundamentais: O Controle Político-Social e o Controle Jurídico no Espaço Democrático. Revista de Direito do Estado, ano 1, 3:23, jul/set 2006, p. 24.)

24 Cf.T. Jeremy Gunn. Deconstructing Proporportionality in Limitations Analysis. Emory International Law review, vol. 19, 2005, p. 467. Sobre a importância do princípio da proporcionalidade na aplicação dos direitos fundamentais, ver Jane Reis Gonçalves Pereira. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais – Uma Contribuição ao Estudo das Restrições aos Direitos Fundamentais na Perspectiva da Teoria dos Princípios. Rio: Renovar, 2006, pp. 310 a 365.

25 Sobre a ponderação, fixação de standards e sua possível superação, ver Ana Paula de Barcellos. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. Rio: Renovar, 2005.

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É certo que as premissas iniciais do sistema devem, em regra, serem observadas, mas

desigualdades flagrantes podem ser, excepcionalmente, objeto de revisão, mesmo que isso

venha a gerar aumento de despesas, demandando, indiretamente, a revisão do plano de custeio

pelo legislador ordinário. O Judiciário não deverá tornar-se mero validador das decisões

legislativas e administrativas na matéria.

Na sequência, serão analisados as principais lides previdenciárias da atualidade.

4.1.Auxílio-Reclusão

Um tema recentemente debatido no STF foi o auxílio-reclusão. Este benefício é previsto

no art. 80 da Lei nº. 8.213/91 e disciplinado a partir do art. 116 do Regulamento da Previdência

Social – RPS, aprovado pelo Decreto nº. 3.048/99. No INSS, a normatização dos benefícios é

prevista, preponderantemente, na Instrução Normativa INSS/PRES nº. 20, de 10 de outubro de

2007.

O benefício, naturalmente, não é pago ao segurado preso, mas sim aos seus

dependentes. A ideia é amparar tais pessoas, pois o provedor não mais poderia provê-los. É

benefício de grande relevância, pois dá maior efetividade ao dispositivo constitucional que

impõe a vedação de transferência da pena para além do condenado, o que ocorreria,

indiretamente, se houvesse flagrante redução do orçamento familiar (art. 5º, XLV).

Ademais, na realidade brasileira, nenhuma pessoa está livre de sofrer uma prisão

arbitrária, especialmente os trabalhadores mais humildes, que por uma investigação mal

conduzida, podem encontrar-se encarcerados por longo período, até que finalmente consigam

demonstrar sua inocência. Os jornais expõem diversos casos deste tipo.

Com a Emenda Constitucional nº. 20/98, esta prestação sofreu clara limitação, pois não

mais seria paga a todo e qualquer dependente, mas somente para aqueles que fossem vinculados

a segurados de baixa renda. A intenção, dentro de um critério de seletividade, seria limitar esta

prestação somente àqueles dependentes que, efetivamente, demandariam a prestação estatal.

Pessoalmente, sempre considerei tal limitação bastante questionável, pois se o

segurado, em atividade, era bem remunerado, isso certamente não significa que sua família não

iria depender de alguma prestação previdenciária por ocasião da prisão. Por isso, me posicionei

pela inconstitucionalidade da restrição, dentro da regulamentação existente. Sem embargo, não

foi esse o caminho trilhado pelo STF.

A EC nº. 20/98 delegou ao legislador ordinário a fixação do critério de baixa-renda, mas,

antecipando-se à inércia legislativa, estabeleceu, naquele momento, que a baixa-renda,

provisoriamente, seria qualificada quando a remuneração do segurado, no momento da prisão,

fosse inferior a R$ 360,00, o que, na época, refletia o valor equivalente a três salários mínimos.

Hoje, em razão das atualizações previstas em lei (sem correlação com números de

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salários mínimos), o valor é fixado em R$ 752,12, pela Portaria Interministerial MPS/MF nº. 48 de

12 de fevereiro de 2009. Até a presente data, o tema não foi regulamentado, prevalecendo,

então, o critério provisório de aferição, o que só amplifica a sua irracionalidade, pois se, quando

da prisão, o segurado recebia, por exemplo, R$ 753,00, não haverá direito ao benefício para seus

dependentes, ainda que fosse a única renda da família.

Visando manter a validade do dispositivo constitucional, mas, ao mesmo tempo,

tentando atenuar seu rigor, a Turma Recursal da Seção Judiciária do Estado de Santa Catarina,

em seus decisórios, aplicava o Enunciado da Súmula 5 da Turma Regional de Uniformização dos

Juizados Especiais, segundo o qual para fins de concessão do auxílio-reclusão, o conceito de

renda bruta mensal se refere à renda auferida pelos dependentes e não à do segurado recluso.

Com isso, a aferição da renda seria frente aos dependentes, e não ao segurado. A

vantagem desta abordagem é evidente: verifica-se, concretamente, se os postulantes da

prestação efetivamente necessitam da mesma, a partir de suas rendas, quando da prisão do

segurado. Algumas críticas eram levantadas quanto ao fato dos dependentes preferenciais

possuírem dependência econômica presumida, o que impediria a presente inteligência do texto.

O argumento era, no entanto, fraco, pois a presunção de dependência econômica é uma criação

legal, ao contrário da nova conformação do benefício, que foi feita em âmbito constitucional.

Todavia, é certo que tal interpretação escapava ao sentido literal do preceito constitucional,

pois o art. 201, IV da Constituição prevê a concessão de salário-família e auxílio-reclusão para

os dependentes dos segurados de baixa renda.

Em um exemplo de clara deferência da Corte Constitucional em matéria previdenciária,

por maioria, decidiu-se manter a literalidade do dispositivo legal e a regulamentação do RPS,

cabendo a aferição da renda pelo segurado (e não seus dependentes), no momento da prisão.26

De acordo com o STF, um dos objetivos da EC nº 20/98, conforme a exposição de motivos

encaminhada ao Congresso Nacional, seria o de restringir o acesso ao auxílio-reclusão, com base

no princípio da seletividade, ex vi do art. 194, III, CF/88, identificando aqueles que

efetivamente necessitariam do aludido benefício.

Desta premissa, até então defensável, concluiu o Tribunal que tal pretensão só poderia

ser alcançada se a seletividade tivesse como parâmetro a renda do próprio preso segurado, pois

outra interpretação que levasse em conta a renda dos dependentes, a qual teria de

obrigatoriamente incluir no rol destes os menores de 14 anos — impedidos de trabalhar, por

força do art. 227,§ 3º, I, da CF —, provocaria distorções indesejáveis, visto que abrangeria

qualquer segurado preso, independentemente de sua condição financeira, que possuísse filhos

26 Os primeiros recursos sobre o tema foram os RE 587.365, Min. Ricardo Lewandowski e RE 486.413, Min. Ricardo Lewandowski. A decisão final encontra-se no sítio do STF, no endereço http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaRepercussaoGeralMeritoJulgado/anexo/03_RG_JulgamentoMerito.pdf.

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menores de 14 anos.27

Ora, pelo decidido, dá-se a impressão que não haveria outros dependentes, como

cônjuge, pais e irmãos e, mesmo que fosse o caso de somente dependentes menores, a

inferência desejada pelo texto é teratológica, pois ainda que não se possa presumir o trabalho

de menores de 14 anos, estes certamente demandam cuidados e, por conseguinte, receita

suficiente. Se isso pudesse provocar a ampliação do benefício a todos os segurados presos com

filhos menores (o que me parece muito improvável), seria ainda plenamente defensável a

extensão, haja vista o direito a proteção especial dada aos menores pela Constituição de 1988

(art. 227, § 3º, II), que não poderia ser excluída mesmo por emenda constitucional.

Acredito que esta decisão mereça apreciação negativa, pois a restrição formulada pela

EC nº 20/98 já se mostrava questionável. Se a ideia era restringir a prestação àqueles que

efetivamente careceriam da mesma, o critério idealizado, visando à renda do segurado

instituidor, é claramente ineficiente para expor a real necessidade de seus dependentes. A

restrição a benefícios é possível, desde que justificada atuarialmente, e buscando, de modo

efetivo, a ideia de seletividade, mediante critérios razoáveis. Não é o que se vê na atualidade.

4.2.Mudança de Regime Jurídico Previdenciário

Dentre os pontos que produzem maior debate na esfera previdenciária, um tópico de

relevo é a alteração do regime jurídico vigente, especialmente quando, indiretamente, possa

produzir perdas frente às expectativas futuras dos segurados.

De modo bastante tranquilo, o STF tem reconhecido a inexistência de direito adquirido

ao regime vigente, mas somente à percepção da prestação devida nos termos da legislação em

que atingiu os requisitos previstos. Por isso não foram admitidas as ações contra as últimas

reformas da previdência, além de não ter sido admitido, pelo STF, a tentativa teratológica de

criação de regime híbrido de aposentadoria, quando determinado segurado tentava, sem

sucesso, conciliar partes de regimes jurídicos diversos, formando prestação mais vantajosa.28 O

tema também foi abordado por ocasião da reforma da previdência dos servidores, fixada pela EC

nº 41/03 e melhor tratada infra.

A posição do Tribunal, aqui também claramente deferente às mutações legislativas, é

facilmente defensável, pois as regras previdenciárias, especialmente em momentos de flagrante

insuficiência, podem e devem ser alteradas visando o equilíbrio financeiro e atuarial, que

também é um mandamento constitucional (art. 201, caput, CF/88).

Até mesmo a Corte Europeia de Direitos Humanos, como visto, posiciona-se da mesma

27 Extraído de <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo540.htm>, em 22/08/2009.28 RE 575.089, Min. Ricardo Lewandowski. O tema foi objeto de repercussão geral

(http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaRepercussaoGeralMeritoJulgado/anexo/06_RG_JulgamentoMerito.pdf).

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forma, deferente às mutações legislativas, visando eficiência e equilíbrio dos sistemas e,

excepcionalmente, até admitindo redução das prestações devidas.

Particularmente no caso brasileiro, é interessante notar que, frequentemente, regras

transitórias são criadas, de modo a preservar, dentro de alguma razoabilidade, a expectativa de

direito. Procedimento saudável, em respeito ao princípio da boa-fé e da confiança legítima, que

devem reger as relações entre Administração e administrados. Naturalmente, o STF, quando

defrontado frente à flagrante violação destas regras, tem determinado, como não poderia deixar

de ser, sua devida aplicação, como no caso concreto dos professores aposentados do Estado de

São Paulo após a EC nº. 41/03, que ainda teriam direito à paridade remuneratória com os

servidores ativos, haja vista expressa regra de transição neste sentido fixada pela EC nº. 47/05.29

Em tais decisões, a deferência do STF aos preceitos normados é irretorquível. A

previdência social possui, como conceito elementar, a necessidade do equilíbrio financeiro e

atuarial, tornando ainda mais relevante o princípio da reserva do possível, que assume também

um viés atuarial, além do financeiro. A criação do benefício previdenciário é umbilicalmente

vinculada ao seu custeio.30

4.3.Pensão por morte – majoração da renda mensal

A pensão por morte previdenciária, concedida pelo RGPS, em períodos anteriores à Lei

nº.9.032/05, para segurados em atividade quando do óbito, alternou percentuais diversos,

variando mesmo de acordo com o número de dependentes. Com a mudança legislativa de 1995,

a regra legal passa a ser a concessão do benefício no valor de 100% do salário-de-benefício.

Dentro da tradicional deferência do STF na matéria previdenciária, a posição

jurisprudencial foi alterada, superando-se a visão do STJ, que admitia a revisão dos benefícios

anteriores à Lei nº.9.032/05, com o respectivo incremento para 100%, para adotar o tempus

regit actum, ou seja, a concessão do benefício seria sempre regida pela legislação vigente à

data da concessão ou do evento determinante.

A posição da Corte é facilmente defensável, pois se, em todas as inovações favoráveis

da lei, a extensão aos casos pretéritos fosse admitida, isso certamente seria claro desestímulo a

qualquer melhoria nas regras previdenciárias, em flagrante desrespeito ao equilíbrio financeiro e

atuarial.31

29 RE 590.260, Min. Ricardo Lewandowski. O tema foi objeto de repercussão geral. Ver http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaRepercussaoGeralMeritoJulgado/anexo/29_RG_JulgamentoMerito.pdf.

30 Sobre o tema, ver o meu O Direito Fundamental à Previdência Social. In: Sarmento, Daniel; Souza Neto, Cláudio Pereira de. (Org.). Direitos Sociais: Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. Sobre o direito adquirido na previdência social e a mudança de regime jurídico, ver Luís Roberto Barroso. Constitucionalidade e Legitimidade da Reforma da Previdência (Ascensão e Queda de um Regime de Erros e Privilégios), in A Reforma da Previdência Social (Coord. Marcelo Leonardo Tavares), Rio: Lumen Juris, 2004.

31 RE 597.389-QO, Min. Gilmar Mendes. O tema foi objeto de repercussão geral. Ver

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Embora a isonomia seja um preceito elementar frente aos direitos sociais, não é

admissível a extensão pura e simples, sem o dimensionamento do custeio. As circunstâncias que

propiciam majoração de benefícios devem ser aferidas em determinado tempo e espaço,

podendo gerar diferenças entre gerações, até pelas imponderáveis flutuações econômicas e

variações de receita do sistema.

O que não se poderia admitir é a fixação de regras demasiadamente diferenciadas, a

ponto de vulnerar a dignidade dos participantes, ou mesmo prestações de renda variável para

segurados da mesma geração em situação fática idêntica. Impossível, neste tipo de análise,

escapar a algum juízo ponderativo, que deverá, prioritariamente, apreciar a adequação da

mudança, em aproximação com o equilíbrio do sistema, e eventual ausência de meio menos

gravoso.

4.4.Aposentadoria Especial para Servidores com Atividade Insalubre

A aposentadoria especial, no direito previdenciário, é tradicionalmente concedida aos

segurados que possuem atividades insalubres, as quais trazem uma redução mais acelerada da

higidez física e mental dos trabalhadores.

No RGPS, o benefício foi criado pela Lei nº. 3807/60, conhecida como Lei Orgânica da

Previdência Social. Atualmente, é disciplinada no art. 57 da Lei nº. 8.213/91. Na Constituição, a

possibilidade de tratamento diferenciado, no RGPS, é prevista no art. 201, § 1º, enquanto que,

para os servidores públicos, o tema é previsto no art. 40, § 4º da CF/88, até hoje não

regulamentado.

O Executivo federal, em exemplo de irreal descompromisso com a questão, editou a

Medida Provisória nº 2.187-13/2001, incluindo parágrafo único no art. 5º da Lei nº. 9.717/98,

prevendo a impossibilidade de concessão de aposentadorias especiais enquanto não editada lei

complementar sobre o tema, na forma do art. 40, § 4º da Constituição.32 Melhor seria elaborar,

de uma vez, projeto de lei complementar com a real disciplina do tema.

Daí a alternativa natural, para os servidores interessados, seria o mandado de injunção,

pois até a presente data, não há disciplina normativa da questão. Uma aplicação concreta desta

opção foi avalizada pelo STF, no Mandado de Injunção nº. 721/DF, Rel. Min. Marco Aurélio,

30/8/2007. Neste caso, o Tribunal julgou pedido formulado por servidora do Ministério da Saúde,

para, de forma mandamental, adotando o sistema do regime geral de previdência social,

http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaRepercussaoGeralMeritoJulgado/anexo/01_RG_ReafirmacaoJurisprudencia.pdf.

32 Art. 5º Os regimes próprios de previdência social dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos militares dos Estados e do Distrito Federal não poderão conceder benefícios distintos dos previstos no Regime Geral de Previdência Social, de que trata a Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, salvo disposição em contrário da Constituição Federal. Parágrafo único. Fica vedada a concessão de aposentadoria especial, nos termos do § 4o do art. 40 da Constituição Federal, até que lei complementar federal discipline a matéria. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.187-13, de 2001).

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assentar o direito da impetrante à aposentadoria especial de que trata o § 4º do art. 40 da

CF/88.

Como apontou o Tribunal, Na espécie, a impetrante, auxiliar de enfermagem, pleiteava

fosse suprida a falta da norma regulamentadora a que se refere o art. 40, § 4º, a fim de

possibilitar o exercício do seu direito à aposentadoria especial, haja vista ter trabalhado por

mais de 25 anos em atividade considerada insalubre.33

Aqui a decisão foi longe de ser qualificada como deferente. A Corte, corretamente,

superou a inércia de mais de 20 anos, que, propositadamente, retarda a legítima pretensão de

servidores públicos de todas as esferas de governo em obter prestações previdenciárias de

acordo com o grau de insalubridade de suas atividades.

Embora a decisão possa abrir margem para diversas outras, em todas as esferas de

governo, a omissão legislativa não mais poderia ser suportada, ignorando direitos legítimos de

servidores expostos a agentes nocivos, além de, uma vez implementada a concessão de

benefícios especiais, gerar evidente estímulo à melhoria das condições de trabalho de muitas

unidades públicas.

Como dito, em situações de iniquidade flagrante, a extensão pode ser feita, até pela

impossibilidade de restrição para os segurados do RGPS, que já possuem a questão normada.

Eventuais incrementos no gasto previdenciário podem sofrer ajustes no plano de custeio, sem

grandes complicações para o sistema. Equilíbrio financeiro e atuarial não significa fechamento

do sistema previdenciário a mudanças, ainda que algumas, extraordinariamente, sejam inseridas

pelo Judiciário.

4.5.Autonomia de Estados, DF e municípios na criação de regimes próprios de

Previdência Social

A previdência social brasileira, em seus regimes básicos, é subdividida no Regime Geral

de Previdência Social - RGPS, e nos Regimes Próprios de Previdência Social de Servidores Públicos

– RPPS. Este último, para o ingresso, demanda que a pessoa esteja investida em cargo público de

provimento efetivo.34

Não obstante, na visão da União, com base no art. 24, XII da Constituição, a

33 Ver informativos 442 e 450, STF. In verbis: Salientando o caráter mandamental e não simplesmente declaratório do mandado de injunção, asseverou-se caber ao Judiciário, por força do disposto no art. 5º, LXXI e seu § 1o, da CF/88, não apenas emitir certidão de omissão do Poder incumbido de regulamentar o direito a liberdades constitucionais, a prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, mas viabilizar, no caso concreto, o exercício desse direito, afastando as consequências da inércia do legislador.

34 Há quem entenda que os regimes especiais dos militares formariam um terceiro regime básico da previdência social, o que, no mínimo, criticável, haja vista a Constituição não prever a necessidade de equilíbrio financeiro e atuarial destes pretensos regimes, além de, em regra, a contribuição dos participantes limitar-se ao financiamento de pensões por morte. Para maiores detalhes, ver o meu Curso de Direito Previdenciário, 14 edição. Niterói: Impetus, 2009.

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competência legislativa dos demais entes federativos seria limitada, pois, além do art. 40 da

Constituição já ser bastante detalhado, fixando as regras dos benefícios mais relevantes –

aposentadorias e pensão – atribui à União a competência para fixação das normas gerais,

restando, na prática, pouca margem de ação para os legisladores estaduais, municipais e

distrital.

Adicionalmente, o art. 5º da Lei nº 9.717/98 estabelece, expressamente, que os RPPS

dos demais entes não poderão conceder benefícios distintos dos previstos no RGPS, praticamente

impedindo qualquer inovação.

É certo que a displicência de Estados e Municípios com seus respectivos RPPS é notória,

a ponto de muitos estarem em flagrante situação de desequilíbrio. Ademais, não é segredo

algum que a maioria, quando de sua criação, visava, tão-somente, a dispensa da contribuição ao

RGPS, permitindo maior redução de gasto no curto prazo, mas com reflexo claramente perverso

para o futuro.

Devido a esta clara supremacia da União sobre a regulamentação legal da previdência

dos servidores, a legislação vigente atribui a fiscalização dos RPPS, no que diz respeito ao

cumprimento das normas gerais fixadas em lei, ao Ministério da Previdência social, que realiza

esta incumbência de acordo com as regras do Processo Administrativo Previdenciário – PAP,

destinado à análise e julgamento das irregularidades em Regime Próprio de Previdência Social –

RPPS – de Estado, do Distrito Federal ou de Município, apuradas em auditoria-fiscal direta,

observando as normas contidas na Portaria MPS/GM nº 64, de fevereiro de 2006.

Apesar das acentuadas críticas referente a centralização de poder na União,

frequentemente apontada como algo incompatível ou, no mínimo, indesejado em uma

federação, a centralização em matéria previdenciária é correta, pois mesmo a escassa

autonomia dos demais entes tem se mostrado desastrosa, como se vê na situação periclitante da

grande maioria dos RPPS atuais. Ademais, não há motivo para tratamento previdenciário

diferenciado de Estados e Municípios, haja vista a igualdade de riscos cobertos (idade avançada,

doença, invalidez, morte, maternidade etc.), que não sofrem mudanças significativas.

É importante lembrar que outras federações, como os EUA têm maior autonomia para

estados, mas, nem por isso, preveem, necessariamente, regras diferenciadas para servidores em

cada estado.35 Da mesma forma, o Canadá, com autonomia ainda maior entre suas províncias,

detendo mesmo prerrogativa para criação de regimes previdenciários autônomos para seus

habitantes, optou, após longo debate sobre o tema, adotar sistema único de previdência, em

35 No sistema norte-americano, os estados, embora tenham autonomia para criar regimes próprios de previdência para seus servidores, acabam, na maioria, por firmar um convênio com o sistema federal, no conhecido Section 218 Agreement. Sobre o tema, ver Social Security Handbook – Overview of Social Security Programs. Maryland: Bernan Press, 2009, pp. 257-270. Para consultar os estados optantes, que são a maioria, ver <http://www.socialsecurity.gov/slge/student_chart.pdf> , consultado em 24/08/2009, às 22 hs.

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ampla reforma finalizada em 1998.36 Não há razão para o Brasil trilhar caminho distinto.

Daí preocupante a previsão do STF, ao expor que a atribuição da União, em estabelecer

normas gerais em matéria de RPPS, não significa total submissão aos ditames federais sobre a

matéria.37 De modo geral, pode-se dizer que a previsão é, realmente, adequada, mas o problema

será o grau de pretensa autonomia dada a Estados, DF e Municípios.

Como os RPPS devem observar o equilíbrio financeiro e atuarial, em razão de expressa

previsão constitucional (art. 40, caput), deve-se reconhecer, em tese, a possibilidade de

prestações diferenciadas em RPPS estaduais e municipais, mas somente com forte embasamento

atuarial, sob pena de perpetuar a desordem gerencial destes sistemas, o que, como de hábito,

se refletirá em insuficiência de recursos para outras áreas e perda de governança.

Neste ponto, andaria melhor o STF se, ainda que admitindo alguma autonomia dos

demais entes federados, deixasse clara a necessidade de pesado ônus de viabilidade financeira e

atuarial, o que, na atualidade, provavelmente impediria qualquer inovação, haja vista a situação

precária dos regimes estaduais e municipais.

4.6.Contribuição previdenciária de aposentados do RGPS que retornam à atividade

Em mais um exemplo de deferência da Corte ao texto legal, há a decisão relativa à

contribuição previdenciária do aposentado pelo RGPS que retorna à atividade, prevista no art.

12, § 4º, da Lei nº 8.212/91 e no art. 18, § 2º, da Lei nº 8.213/91. De acordo com os dispositivos

citados, o aposentado que permanece ou retorna à atividade remunerada, mantém o encargo

contributivo, mesmo não podendo jubilar-se novamente, e sem direito aos demais benefícios do

sistema, com exceção do salário-família, salário-maternidade e reabilitação profissional.

Devido à aparente ausência de contraprestação, os aposentados argumentavam que tal

imposição seria indevida, pois não produziria qualquer vantagem significativa em seus proventos.

Todavia, a Corte deliberou que tal exação está amparada no princípio da universalidade do

custeio da Previdência Social (CF, art. 195), corolário do princípio da solidariedade, bem como

no art. 201, § 11, da CF, que remete à lei os casos em que a contribuição repercute nos

benefícios.38

A solidariedade é a justificativa elementar para a compulsoriedade do sistema

previdenciário, pois os trabalhadores são coagidos a contribuir em razão de a cotização

individual ser necessária para a manutenção de toda a rede protetiva, e não para a tutela do

indivíduo, isoladamente considerado.

Ademais, a solidariedade é também pressuposto para a ação cooperativa da sociedade,

36 Sobre o tema, recomenda-se o excelente livro de Bruce Little. Fixing the Future – How Canada´s Usually Fractious Governments Worked Together to Rescue the Canada Pension Plan. Toronto: Rotman, 2008.

37 Sobre o tema, ver ACO 830 TA/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, 29/10/2007.38 RE 437640/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 5/9/2006.

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sendo condição fundamental para a materialização do bem-estar social, com a necessária

redução das desigualdades sociais. Ou seja, o princípio da solidariedade, dentro da seguridade

social, possui escopo de atuação mais amplo, além dos ideais tradicionais do seguro social.

No presente caso, nem seria necessário falar-se em solidariedade no seu sentido

mais amplo, como usualmente referida, frente a todo o corpo social, mas sim na tradicional

solidariedade de grupo, devida a todos que exercem atividade remunerada e, portanto,

ingressam no regime compulsório de previdência social. De qualquer forma, a nova contribuição

feita por tais segurados, após a aposentadoria, começa a ser admitida, judicialmente, para fins

de novo benefício, que sofreria um recálculo com o novo tempo contributivo, dentro do

procedimento que tornou-se conhecido como desaposentação.

4.7.Princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios

O art. 194, parágrafo único da Constituição prevê os princípios fundantes do sistema de

seguridade social brasileiro. Muito embora fale em objetivos, sabe-se que, o princípio, não

obstante a ideia de início, no direito, traduz a proposta de fim, isto é, do estado ideal de coisas

a ser atingido, da situação ideal a ser buscada.

Dentre tais princípios, há o da irredutibilidade do valor dos benefícios. A abordagem

doutrinária tradicional expõe, usualmente, que tal princípio impõe tanto um encargo negativo

como um positivo ao poder público; negativo no sentido de impor o dever de abster-se de

reduzir o valor da prestação; positivo colimando a preservação do valor real do benefício, ou

seja, mantendo-se o poder de compra, eventualmente corroído pela inflação.

No entanto, o STF, ao manifestar-se sobre o tema, apontou para uma acepção restrita

do princípio, impondo somente um dever estatal de abstenção, ao contrário da acepção ampla.

De acordo com o STF, a irredutibilidade é modalidade qualificada de direito adquirido,39 pois

apesar de não existir direito adquirido ao regime jurídico remuneratório, o montante pago é

irredutível.40

No último precedente citado, fixou o STF a irredutibilidade dos proventos dos

impetrantes, mas não assegurou a manutenção das parcelas individuais, por inexistir direito

adquirido a regime jurídico remuneratório, de modo que o valor por eles recebido será, ao longo

do tempo, indiretamente reduzido pela inflação até adequar-se ao subsídio fixado pela carreira,

pois a irredutibilidade garante somente o valor nominal. O STF, obviamente, reconhece a

necessidade da correção monetária dos benefícios, mas tal encargo se daria com base em outro

dispositivo constitucional (art. 201, § 1º).

Melhor seria conciliar uma concepção ampla do Princípio da Irredutibilidade aliada ao

39 RE 298.694, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 23/04/2004.40 MS 24.875-1, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 06/10/2006.

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reconhecimento de uma possível ponderação da garantia ao direito adquirido com outras

diretrizes constitucionais, de modo a permitir a redução ao teto fixado.

Adicionalmente, por ocasião do julgamento referente à contribuição dos servidores

inativos e pensionistas, acabou o STF por estabelecer que este mesmo princípio também não

impede tributação, mesmo a que recaia exclusivamente sobre inativos, como foi o caso. Enfim,

como não há garantia de correção monetária e nem proteção frente à tributação exclusiva sobre

proventos, mesmo com evidente finalidade redutora, restará difícil encontrar alguma

aplicabilidade prática para este princípio, ressalvada violações flagrantes, que já seriam

repelidas por outros preceitos, como a salvaguarda ao direito adquirido.

4.8.Contribuição de Servidores Inativos e Pensionistas em RPPS

Outro tema tormentoso enfrentado pela Corte foi a tributação de servidores inativos,

criada pela Emenda Constitucional nº 41/03. Tal exação já havia estabelecida, em âmbito

federal, pela Lei nº 9.783/99, publicada logo após a EC nº. 20/98, que trouxe a primeira reforma

previdenciária. Alguns entes federativos já cobravam a contribuição de inativos desde anos

anteriores.

No entanto, o STF, ao apreciar a matéria, entendeu que os servidores inativos e

pensionistas não poderiam ter redução de seus proventos mediante tributação, devido à

imunidade criada pela EC nº. 20/98, que deu nova redação ao art. 195, II da Constituição. Apesar

da previsão constitucional somente excluir a tributação de aposentados e pensionistas do RGPS,

deveria a mesma ser estendida aos servidores, devido a previsão do art. 40, § 12 da

Constituição, que estabelece que, em caso de lacuna da disciplina normativa da previdência dos

servidores, aplicar-se-ia as normas do RGPS.

Visando superar o impedimento apontado pelo STF, o novo governo, até então contrário

à tributação de inativos, obteve sua aprovação e inclusão expressa no texto constitucional, com

a EC nº. 41/03, a qual deu nova redação ao art. 40 da CF/88, dotando o texto constitucional de

previsão expressa da nova imposição aos inativos, não mais cabendo a aplicação analógica do

art. 40, § 12.

Sem embargo, a tributação exclusiva sobre os inativos seria contrária ao princípio da

irredutibilidade, pois nada mais é do que uma redução indireta da prestação. Ainda que o

princípio seja expresso no art. 201 da CF/88, que trata do RGPS, seria claramente aplicável aos

servidores, em razão do mesmo art. 40, § 12, além da irredutibilidade, como reconheceu o

próprio STF, ser derivado do direito adquirido.

Entendeu o STF que tal tributação não violaria nem o direito adquirido nem o princípio

da irredutibilidade, pois a ninguém seria licito deter um direito a “não-tributação”,

especialmente em um Estado social, no qual a dispensa do tributo de alguns fatalmente produz

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encargo para outros.

Em tese, a argumentação é precisa, pois não poderia, por exemplo, um aposentado

alegar pretensa imunidade ao imposto de renda devido a redução indireta de seus proventos.

Mas tal não foi o caso. A discussão tratava, em verdade, de tributação exclusiva sobre servidores

aposentados e pensionistas, em claro propósito de redução de gastos com servidores.

Ora, é algo que contraria o senso comum afirmar que o Estado, deliberadamente, não

poderia, por exemplo, reduzir a prestação previdenciária de 100 para 90, mas plenamente

autorizado a criar uma “tributação” exclusiva sobre estes mesmos aposentados de 10. É algo

contrário ao pensamento científico contemporâneo, que demanda alguma reaproximação com o

senso comum, especialmente na ciência do direito.41

Pessoalmente, acredito que seria mais honesto, em um ambiente de deliberação

democrática, discutir-se uma possível flexibilização do direito adquirido, que poderia ser

ponderado com outras normas constitucionais. Penso não ser contrário ao desejado pela

Constituição de 1988 a eventual redução de prestações de valores vultosos e concedidos sem

qualquer contraprestação, especialmente por meio de procedimentos ilegítimos, como as

frequentes nomeações de curtíssimo prazo, em semana anterior à aposentadoria, somente para

produzir incremento na prestação, pois, como se sabe, até fins de 1998, não havia tempo

mínimo de cargo ou mesmo de serviço público para fins de aposentadoria, a qual poderia ser de

montante igual à última remuneração. Creditar esta conta à sociedade é inaceitável, ainda que,

teoricamente, concedidas dentro da legalidade.

É tempo de buscarmos o debate sério em matéria previdenciária, sem o subterfúgio

criado com a contribuição do inativo. No contexto atual, perdura o insuperável direito adquirido,

que, ao que parece, torna-se mais inviolável que o direito à vida.

De qualquer forma, de modo a preservar a isonomia com aposentados e pensionistas do

RGPS, a tributação se manteve limitada aos valores percebidos acima do teto remuneratório do

RGPS. Por outro lado, a EC nº. 41/03 criou exação distinta para os servidores já aposentados à

época da publicação desta (31/12/03), com tributação superior, violando flagrantemente a regra

constitucional da isonomia. O STF acabou por declarar a constitucionalidade da contribuição do

servidor inativo, mas somente sobre os valores que ultrapassarem o teto do RGPS, independente

da época de obtenção do benefício, mas reconhecendo a inconstitucionalidade da regra

transitória do art. 4º da EC nº. 41/03.42

Durante o julgamento, outro ponto merece destaque – a frequente menção a

solidariedade do sistema protetivo, especialmente a prevista no caput do art. 40 da

Constituição, inserida com o evidente propósito de justificar a cotização que passa a ser exigida

41 Sobre o tema, ver Boaventura de Souza Santos. Introdução a Uma Ciência Pós-Moderna. Rio: Graal, 1989.42 ADI 3105/DF e ADI 3128/DF, Rela. Orig. Mina. Ellen Gracie, Rel. p/ Acórdão Min. Cézar Peluso, 18/8/2004.

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do servidor inativo e pensionista com o advento da EC nº 41/03. o tema é recorrente na

atualidade, pois todo regime previdenciário, como técnica de proteção social, pressupõe a

solidariedade entre seus participantes, principalmente ao adotar o regime de financiamento da

repartição simples.

Mas na atualidade, com o Estado responsável por manter prestações das mais variadas a

grupos ilimitados de pessoas, a solidariedade passa a ser de todo grupo social, e não mais de um

grupo definido. Tamanha ampliação da idéia de solidariedade impõe um repensar na dinâmica

tributária existente e mesmo uma revisão das concepções clássicas sobre capacidade

contributiva.43

No entanto, a simplicidade com que o tema tem sido abordado nos Tribunais é

preocupante. Aliás, as constantes referências à solidariedade, nos dias atuais, em muito lembra

as contínuas menções ao interesse público, o que, nos anos 80, servia, constantemente, de

subsídio para qualquer restrição de direito que fosse perpetrada pela Administração Pública e o

legislador.

É inegável que a solidariedade é um valor fundante do Estado social, o qual, ainda que

em processo de mudança para um modelo pós-social, demanda cotização da sociedade visando a

prestação de ações mínimas em favor dos hipossuficientes. No entanto, a necessidade de novas

exações deve ser claramente demonstrada, cabendo pesado ônus ao Estado, sob pena de

interferência indevida na esfera privada das pessoas. Caberia ao Judiciário, por exemplo, não se

contentar com manifestações genéricas de solidariedade como fundamento suficiente, mas,

também, clara exposição de plano de custeio desenvolvido por profissionais atuários, expondo

plano de reformulação do sistema e a necessária cotização adicional como instrumento

adequado e necessário para, quando for o caso, a preservação ou obtenção do equilíbrio

financeiro e atuarial da previdência social.

O que se vê, nos dias atuais, é o total descuido com as questões atuariais da

previdência, tanto em RGPS como em RPPS, e sempre que se faz necessário algum ajuste de

curto prazo, cria-se alguma nova imposição com base em alegações genéricas de preservação do

equilíbrio ou no manah jurídico que se transformou a solidariedade. Andará bem o Judiciário

quando demandar comprovações atuariais que justifiquem incrementos contributivos na

previdência social, obrigando Executivo e Legislativo a levar à sério a Constituição brasileira.

4.9.Direito da Concubina

Em precedente mais recente do STF, desta vez tratando de pensionistas do RGPS, a

Corte entendeu que, apesar de o Código Civil versar a união estável como núcleo familiar,

excepciona a proteção do Estado quando existente impedimento para o casamento

43 Sobre o tema, ver Ricardo Lodi Ribeiro. Temas de Direito Constitucional Tributário. Rio: Lumen Juris. 2008.

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relativamente aos integrantes da união, sendo que, se um deles é casado, esse estado civil

apenas deixa de ser óbice quando verificada a separação de fato.44

Data maxima venia, a jurisprudência que começa a se formar é gravemente equivocada,

e, muito provavelmente, acabará por estimular uma mudança no entendimento administrativo, o

qual, até então, admite a divisão entre esposa e concubina. O pensamento tipicamente civilista

não encontra respaldo pleno frente aos direitos sociais, especialmente aqueles que visam

assegurar a vida digna. Não admitir a divisão de pensão nestas hipóteses será, sem dúvida,

condenar dependentes previdenciariamente legítimos à miséria.

Não há motivo para os Tribunais insistirem na perspectiva civilista de avaliação de união

estável. Desde tempos remotos, como se pode verificar em qualquer manual de direito

previdenciário, o rol de beneficiários do sistema é dividido em segurados e dependentes, sendo

estes últimos, assim chamados devido a sua dependência econômica frente ao segurado

instituidor.

Ou seja, a ideia do seguro social é cobrir determinadas necessidades sociais que venham

a incidir não somente sobre o segurado, mas sobre as pessoas que dependam economicamente

dele. Daí, a legislação, ao prever, como dependentes, o cônjuge ou companheiro(a), não buscam

uma concepção do direito privado, mas sim aqueles que vivam com o segurado com animus

conjugal, seja lá qual for a condição civil ou orientação sexual.

Na previdência social, é totalmente irrelevante se o segurado possuía intenção de

formar sociedade conjugal visando o casamento, se a união era pública e notória, e outras

características tão caras aos civilistas. Por exemplo, não faria sentido algum excluir do direito de

pensão uma companheira que, por excesso de pudor ou convicções religiosas, não assumisse

publicamente sua união com segurado, pelo fato deste ser divorciado ou separado de fato. O que

importa é a existência da vida em comum, que, na legislação vigente, é suficiente para produzir

a presunção de dependência econômica.

Ainda que a descoberta, após a morte, da vida paralela levada pelo segurado(a), possa

produzir grande constrangimento e dor à(ao) cônjuge sobrevivente, isso não é argumento para

excluir-se a garantia de prestação pecuniária assegurada pelo sistema previdenciário.

Se a isonomia é o valor fundante do Estado social; se a partir dela foram criados os

direitos sociais e a busca da liberdade real; se é qualificada como a virtude soberana, deve ser

observada em matéria protetiva, cabendo ao Judiciário superar a visão não somente anacrônica,

mas mal situada, impondo a abordagem tipicamente civilista na seara previdenciária. As

particularidades do direito previdenciário, sempre reconhecidas na esfera teórica, mas

raramente aplicadas na prática, impõem uma interpretação peculiar, visando aspectos

finalístico-pragmáticos.

44 RE 590779/ES, rel. Min. Marco Aurélio, 10/2/2009.

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Além da finalidade protetiva – de segurados e dependentes, a hermenêutica

previdenciária é centrada em maior pragmatismo, pois o que efetivamente importa é a

dependência econômica, presumida quando da convivência em comum. Por esta mesma razão o

direito previdenciário trata, de modo igual, o cônjuge divorciado, separado judicialmente ou

mesmo separado de fato. A ideia é simples: se não mais vivem juntos, a presunção de

dependência econômica é perdida, somente cabendo benefício se comprovada. O mesmo deve

valer para a vida em comum, pouco importando o estado civil do segurado ou mesmo sua opção

sexual.

Em momento no qual até a Administração admite, sem maiores problemas, a união

homoafetiva, ignorar as relações de concubinato, para fins previdenciários, seria um retrocesso

irreparável aos dependentes previdenciários.

4.10.Critérios para a concessão do Benefício de Prestação Continuada – BPC. Conceito de

miserabilidade e extensão a estrangeiros

Visando regulamentar o art. 203, V da Constituição, que assegura benefício assistencial

de salário mínimo para todos os necessitados, a Lei nº. 8.742/93, conhecida como Lei Orgânica

da Assistência Social – LOAS, no art. 20, disciplina esta prestação, conhecida como beneficio de

prestação continuada – BPC.

Os requisitos legais são bastante rigorosos, tanto pela renda familiar, que deve, em

regra, ser inferior a ¼ (um quarto) de salário mínimo, mas também pelo requisito adicional: ser

idoso (para este fim, maior de 65 anos) ou inválido.

Os requisitos, não obstante o evidente rigor, foram validados pelo STF, na célebre ADIn

nº. 1232/DF, em novo exemplo de deferência, sob a tradicional (e verdadeira) alegação da

carência de recursos, haja vista a necessária Reserva do Possível.

Sem embargo, em razão da contínua polêmica sobre a matéria, a própria Corte

Constitucional acena com alguma mudança em sua compreensão, admitindo a validade dos

requisitos legais de miserabilidade, mas sem limitar este conceito somente àquelas condições.

Assim decidiu o Min. Gilmar Mendes, ao negar liminar em Reclamação, devido à concessão do

BPC à pessoa que não atendia aos requisitos da LOAS. Como expôs em seu decisório, não se

declara a inconstitucionalidade do art. 20, § 3º, da Lei nº 8.742/93, mas apenas se reconhece a

possibilidade de que esse parâmetro objetivo seja conjugado, no caso concreto, com outros

fatores indicativos do estado de penúria do cidadão. Em alguns casos, procede-se à

interpretação sistemática da legislação superveniente que estabelece critérios mais elásticos

para a concessão de outros benefícios assistenciais.45

Adicionalmente, cumpre lembrar que o Brasil, mais recentemente, aprovou, por meio

45 Reclamação nº. 4374-6/PE.

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do Decreto Legislativo nº. 186/08, o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com

Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007.

Pela citada convenção, os Estados-partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência a um

padrão adequado de vida para si e para suas famílias, inclusive alimentação, vestuário e moradia

adequados, bem como à melhoria constante de suas condições de vida, e deverão tomar as

providências necessárias para salvaguardar e promover a realização deste direito sem

discriminação baseada na deficiência (art. 28).

De acordo com o Preâmbulo da Convenção, deficiência é um conceito em evolução,

resultando da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras atitudinais e ambientais

que impedem sua plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de oportunidades com

as demais pessoas. Caberá ao INSS, por ocasião da concessão do BPC, adaptar-se a este novo

conceito. Naturalmente, não se pode esquecer o requisito adicional, que é a renda familiar

inferior a ¼ (um quarto) de salário mínimo.

O STF, como guardião da Constituição e, por conseguinte, encarregado da preservação

dos direitos fundamentais e do regime democrático, certamente teria a prerrogativa de,

excepcionalmente, assegurar patamar mínimo de existência, ainda que sem expressa previsão

legal, com base na força normativa do texto constitucional.

Naturalmente, o ônus argumentativo é elevado, cabendo à parte a clara demonstração

de sua condição de miserabilidade, pois a ação judicial, para este fim, é sempre excepcional,

notadamente em razão da competência do legislador ordinário para estabelecer a alocação de

recursos escassos.

No mesmo debate, sobre a extensão do BPC, há atualíssima discussão sobre a

possibilidade de concessão a estrangeiros, desde que legalmente residentes no pais. Embora,

sobre a saúde, a Constituição seja clara no que diz respeito à universalidade, o mesmo não se

pode falar da assistência social. Ademais, se os recursos são escassos, há natural predisposição a

atender os nacionais, colocando estrangeiros em segundo plano.

No entanto, se o Brasil acolheu tais estrangeiros, por qualquer motivo, permitindo sua

permanência legal no pais, é certamente duvidoso que se possa excluí-los da seguridade social

brasileira. Especialmente pelo singelo fato destas pessoas, inexoravelmente, participarem do

custeio do sistema, haja vista a inclusão das contribuições sociais nos produtos que consomem e

nos rendimentos que, porventura, venham a receber. O tema teve a repercussão geral

reconhecida pelo STF, aguardando julgamento.46

Exemplo interessante na discussão relativa à extensão de benefício assistencial a

estrangeiros residentes foi travada na África do Sul. Embora a Corte sul-africana, dentro da

praxe internacional, tenha reconhecido sua limitada capacidade de análise para ampliação de

46 RE 587.970-SP, Rel. Min. Marco Aurélio.

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direitos sociais, poderia, no caso, apreciar o tema devido ao mínimo existencial.47

A Corte sul-africana desenvolveu um teste de razoabilidade da política pública: o

programa deve ser abrangente, priorizando os mais carentes, coerente e coordenado; deve

possuir adequado financiamento e pessoal treinado; adequado e flexível para questões de curto,

médio e longo prazo; adequadamente concebido e implementado; transparente e apresentado

adequadamente ao público.48

No tema específico da extensão do benefício assistencial a estrangeiros, desde que

residentes, a Corte, com base nas premissas supracitadas, adotou a extensão, apesar da critica

estatal de possível falência do sistema. No caso, não houve provas por parte do Estado do gasto

alegado e, ao contrário, dados concretos expuseram o contrário. Ademais, a isonomia na

concessão deste tipo de prestação é especialmente importante para grupos mais carentes, mais

vulneráveis ao preconceito, além de injustificada, pois tais pessoas contribuem para o sistema,

ao arcar com tributos diretos e indiretos, assim como os nacionais.49

Por tais argumentos, salvo comprovação cabal por parte da União de flagrante falência

do sistema (e não simples alegações), não haveria qualquer motivação sustentável para a não-

extensão da prestação a estrangeiros, desde que legalmente residentes no país. Não há motivo

para tamanha discriminação, ainda mais ao se tratar de prestação necessária ao mínimo

existencial.

4.11.Aposentadoria do professor – extensão a atividades acessórias

A aposentadoria diferenciada dos professores de ensino fundamental e médio não é

exatamente nova, fundada, desde as origens, na pretensa penosidade da atividade.50 Em razão

deste fundamento é que tal benefício é, até hoje, rotulado, em diversos meios, como espécie de

aposentadoria especial. Atualmente, tal enquadramento se mostra equivocado, pois a

aposentação especial, na atual dicção do art. 57 da Lei nº 8.213/91, é nome restrito da

aposentadoria concedida aos segurados expostos a agentes nocivos, físicos, químicos ou

biológicos.

O que existe, com o advento da Constituição de 1988, é uma aposentadoria

constitucionalmente diferenciada do professor, criada em virtude do alegado desgaste maior 47 Cf. Sandra Liebenberg. The Judicial Enforcement of Social Security Rights in South Africa, in Social Security

as a Human Right – Drafting a General Comment on Article 9 ICESCR – Some Challenges. Eibe Riedel (org.). Mannheim: Springer, 2007, p. 77.

48 Cf. Sandra Liebenberg, op. cit., p. 79.49 Cf. Sandra Liebenberg, op. cit., p. 83e 84. Como afirmou a Corte, “the lack of congruence between benefits

and burdens created by a Law that denies benefits to permanent residents almost inevitably creates the impression that permanent residents are in some way inferior to citizens and less worthy of social assistance”. Khosa v. Minister of Social Development; Mahlaule v. Minister of Social Development 2004 (6) BCLR 569 (CC).

50 Daí equivocadas as premissas, mesmo do Judiciário, que apontam este benefício como fundado na relevância da docência para o desenvolvimento da personalidade humana. Sobre o tema, ver a obra de Cleci Maria Dartora. Aposentadoria do Professor – Aspectos Controvertidos. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2009.

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provocado pela função.51 O benefício do professor já fora expressamente enquadrado como

aposentadoria especial no passado, tendo tal situação sido corrigida pela EC nº 18, de

30/06/1981. Todavia, a terminologia errônea é encontrada mesmo em Tribunais Superiores,

como se vê na Súmula 726 do STF, que acaba por produzir uma definição lato sensu de

aposentadoria especial.

O professor deve comprovar, para obter a redução de 05 (cinco) anos, tempo de efetivo

exercício em função de magistério na Educação Infantil, no Ensino Fundamental ou no Ensino

Médio, durante todo o período. Caso não o faça, o tempo será considerado somente para a

aposentação normal, aos 35 ou 30 anos, conforme seja homem ou mulher, respectivamente. Até

bem pouco tempo, considerava-se função de magistério a atividade docente do professor

exercida exclusivamente em sala de aula, sendo excluídas outras ações, como atividades

administrativas, embora existissem precedentes do STF em contrário, como no caso do

especialista em educação e do orientador educacional, pois tais atividades incluem-se nas

funções de magistério.52

A despeito de a interpretação administrativa ter sempre demandado tempo de efetivo

exercício em sala de aula, a doutrina, desde longo tempo, já previa que atividades de magistério

não significariam, tão-somente, a docência, mas, também, outras atividades-meio que eram

tipicamente exercidas por professores, especialmente pela necessária experiência no ensino.53

Esta polêmica, com relação ao tempo considerado para fins de aposentadoria do

professor, foi parcialmente encerrada com a edição da Lei nº 11.301, de 10 de maio de 2006, a

qual prevê que são consideradas como funções de magistério, além das exercidas por professores

e especialistas em educação, no desempenho de atividades educativas, as executadas na direção

de unidade escolar e as de coordenação e assessoramento pedagógico.

Em razão da ampliação normativa, a citada lei foi objeto da ADI 3772- DF, Rel. Min.

Ricardo Lewandowski, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, haja vista incluir

profissionais que não exercem, em tese, atividades em sala de aula. A lei foi declarada

constitucional pelo STF, em mais um exemplo de deferência legislativa.54

Aqui, a polêmica é, de fato, acirrada, havendo quem demande uma interpretação

restritiva do preceito constitucional da aposentadoria do professor, até por ser excepcional e, na

atualidade, certamente questionável, e outros que demandam atividades de professor em geral,

51 O mesmo fundamento foi apontado quando da elaboração da Constituição vigente. Sobre o assunto, ver Ata da 178ª Sessão da Assembléia Nacional Constituinte, em 04 de Janeiro de 1988, p. 33, disponível em <http://www.senado.gov.br/sf/publicacoes/anais/constituinte/N011.pdf>.

52 RE 196.707-DF, Rel. Min. Marco Aurélio, 9/5/2000.53 Neste sentido, ver Wladimir Novaes Martinez. Comentários à Lei Básica da Previdência Social – Tomo II. 4ª

edição. São Paulo: LTr. 1997, p. 329.54 Interessante notar que, como regra, a jurisprudência do STF entendia que a aposentadoria do professor

careceria de tempo exclusivo de atividade de magistério. Precedentes: ADIn 122-SC (RTJ 142/3); ADIn 152-MG (RTJ 141/355); RE 131736-SP (RTJ 152/228); RE 171.694-SC, Rel. Min. Carlos Velloso, 12/03/96 e súmula 726 do Tribunal.

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além da docência. Pessoalmente, sempre me posicionei pela interpretação restritiva, pois não

vejo, hoje, razão para a aposentadoria diferenciada do professor.

Apesar da EC nº 20/98 já ter excluído o professor universitário da benesse, o ideal seria

a exclusão plena. É fato que, na realidade brasileira, o ensino fundamental e médio pode ser,

ainda, extremamente penoso, mas, certamente, não é a única atividade desgastante no mercado

de trabalho, e não haveria motivo para ainda manter-se este privilégio aos professores. Não se

discute que mereçam melhores condições de trabalho, mas aposentadorias precoces, típica

manobra anacrônica para compensar situações inadequadas de trabalho, já não se mostra

sustentável em um momento de busca pelo equilíbrio financeiro e atuarial.

De qualquer forma, devido à alteração legal e com o aval do STF, o tempo de efetivo

exercício em função de magistério na educação infantil, no ensino fundamental ou no ensino

médio, inclui a atividade exercida em estabelecimento de educação básica em seus diversos

níveis e modalidades, abrangidas, além do exercício da docência, as funções de direção de

unidade escolar e as de coordenação e assessoramento pedagógico.

Como noticiado pelo próprio STF, a Corte observou que a decisão abriu uma ressalva à

Súmula 726, segundo a qual para efeito de aposentadoria especial de professores não se

computa o tempo de serviço prestado fora da sala de aula, salvo o de diretor. Na verdade, não só

salvo o diretor, mas também o coordenador e o assessor pedagógico, desde que também

qualificados como professores.

4.12.Extinção do Conselho Nacional de Seguridade Social

Outro exemplo emblemático de deferência foi a aceitação, por parte da Corte, da

extinção do principal órgão colegiado da seguridade social, que é o Conselho Nacional de

Seguridade Social. Não bastasse a gravidade do fato, que deixou acéfala a seguridade social

brasileira, o veiculo normativo não poderia ter sido mais inapropriado: a Medida Provisória nº

2.216-37, de 31/08/2001 foi a responsável pela inovação.

Em atitude arbitrária, o Poder Executivo extingue o principal órgão colegiado da

seguridade brasileira, excluindo, com uma canetada, a sociedade da fixação de diretrizes e

estratégias do sistema, em flagrante violação à prerrogativa constitucional da deliberação

democrática. O tema foi objeto da ADIn nº 2065-DF, tendo afirmado o Relator que a extinção do

CNSS seria mera opção de organização administrativa do legislador (sic), que não contraria

diretiva constitucional à qual estivesse vinculado.

Na indigitada decisão, não foi ignorado somente o preceito da gestão democrática e

descentralizada da seguridade social (art. 194, p. único, VII da Constituição), mas,

especialmente, o art. 10 da CF/88, que estabelece, claramente, o direito à participação dos

trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses

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profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação. O fato é que, sem o

CNSS, a esperança de uma articulação efetiva entre os diversos setores da seguridade social

resta impossibilitada.55

Embora, na prática, o CNSS sequer estivesse em funcionamento efetivo, isso, ao

contrário do que possa parecer, não é motivo para fundamentar sua extinção, mas sim para seu

imediato desenvolvimento. A extinção do CNSS é mais um reflexo do descompromisso

governamental com as premissas atuariais sérias para a previdência social brasileira.

Conclusão

Embora a isonomia seja um argumento frequente para os Tribunais Superiores

estenderem benefícios não expressamente previstos, é fato que o equilíbrio financeiro e atuarial

do sistema também é premissa constitucional a ser observada (art. 201, caput).

Daí, o que se vê na realidade brasileira são decisões, nas instâncias ordinárias, com

interpretações das mais extensivas e mesmo benevolentes, aproveitando-se da péssima

qualidade do texto normado, enquanto o STF, com a elevada responsabilidade de exarar a última

palavra é, em regra, mais deferente ao legislador ordinário e as interpretações exaradas pelo

Executivo.

A posição de nossa Corte Constitucional é facilmente compreensível, pois se providas

todas as teses razoavelmente criadas e fundamentadas (e não são poucas), o gasto

previdenciário seria aumentado enormemente, podendo gerar o colapso do sistema.

Sem embargo, é sabido que o sistema previdenciário brasileiro não possui um plano de

custeio adequadamente dimensionado ao plano de benefício, dentro do que se espera em

qualquer regime previdenciário. O cálculo atuarial tornou-se obra de ficção, sendo o último

trabalho sério, neste sentido, desenvolvido quando da elaboração da antiga Lei Orgânica da

Previdência Social – LOPS (Lei nº 3.807/60). Desde então, a necessidade do equilíbrio atuarial

funciona somente como uma espécie de palavra de ordem, bradada pelo Executivo federal

quando se opõe a determinada tese contrária à sua visão.

Como solução para as contendas atuais, a Corte poderia, como subsídio para a decisão,

demandar demonstrativo preciso do eventual aumento de gasto alegado pelo Executivo; exigir

projeção atuarial adequada e, na ausência de impedimento matemático preciso que invalide a

universalização da pretensão, desde que fundada no melhor direito, prover o requerido, dando

validade real aos dispositivos constitucionais em matéria previdenciária.

A extensão judicial de benefícios não necessariamente é algo inviável para um sistema

previdenciário, podendo, ao revés, estimular solução adequada, a ser fixada pelo legislador

ordinário, como aumento de contribuição, elevação de requisitos para concessão de outros

55 Neste sentido, ver Wagner Balera. Sistema de Seguridade Social. 3ª Ed. São Paulo: LTr. 2003, p. 44.

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Revista Eletrônica do Ministério Público Federal

benefícios ou mesmo redução da renda mensal futura.

Enfim, a vantagem do cálculo atuarial é não ser impedimento intransponível a

mudanças, mas ser a ferramenta de ajuste, não só a novas premissas biométricas, como

aumento de expectativa de vida, mas também a interpretações dada pelos Tribunais. O que se

deve evitar, repita-se, é a extensão desenfreada das pretensões previdenciárias, em total

descompromisso com a realidade financeira.

No contexto atual, a excessiva deferência da Corte acaba por acomodar os demais

Poderes, que não se sentem compelidos a ingressar no árido e impopular debate das reformas

previdenciárias. O estímulo judicial, no caso brasileiro, terá ainda um papel relevante para o

debate honesto e a deliberação adequada sobre o futuro da previdência no Brasil. Para tanto,

compete a nosso Tribunal Constitucional não mais acatar alegações genéricas de desequilíbrios

do sistema e, ao revés, exigir comprovações adequadas, avalizadas por profissionais habilitados,

no contexto multidisciplinar típico na previdência social.

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