a presença africana na música popular brasileira - nei lopes

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  • 7/28/2019 A presena africana na msica popular brasileira - Nei Lopes

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    A presena africana na msica popular brasileira1Nei Lopes2

    Resumo: As matrizes africanas que contriburam para moldar a cultura e a msica brasileira soaqui examinadas. Das congadas ao samba, passando pelos afoxs e blocos afro, a presena deelementos musicais e religiosos provenientes da frica marcante na nossa histria, como aindahoje se evidencia nas escolas de samba e nos sambas-enredo. Mas atualmente se constatatambm uma progressiva desafricanizao da msica popular brasileira, o que aponta para ofenmeno da globalizao do gosto.Abstract: African matrixes that helped to form Brazilian music and culture are examined here.Congada, samba, afoxs and carnival afro groups indicate the strong influence of religious andmusical elements from Africa. But even though they are present in Brazils history, escolas desamba and sambas-enredo, it is possible to note a progressive deafricanization in the Brazilianpopular music, which points out the like globalization phenomenon. Palavras-chave: frica msica popular brasileira samba.Key-words: frica Brazilian popular music samba.

    A cultura brasileira e, logicamente, a rica msica que se faz e consome no pas estruturam-se apartir de duas bsicas matrizes africanas, provenientes das civilizaes conguesa e iorubana. Aprimeira sustenta a espinha dorsal dessa msica, que tem no samba sua face mais exposta. Asegunda molda, principalmente, a msica religiosa afro-brasileira e os estilos dela decorrentes.Entretanto, embora de africanidade to expressiva, a msica popular brasileira, hoje, ao contrrioda afro-cubana, por exemplo, distancia-se cada vez mais dessas matrizes. E caminha para umaglobalizao tristemente enfraquecedora.Das congadas ao samba: a matriz congoJ nos primeiros anos da colonizao, as ruas das principais cidades brasileiras assistiam sfestas de coroao dos reis do Congo, personagens que projetavam simbolicamente em nossaterra a autoridade dos muene-e-Kongo, com quem os exploradores quatrocentistas portuguesestrocaram credenciais em suas primeiras expedies frica subsaariana.

    Esses festejos, realados por muita msica e dana, seriam no s uma recriao das celebraesque marcavam a entronizao dos reis na frica como uma sobrevivncia do costume dospotentados bantos de animarem suas excurses e visitas diplomticas com danas e cnticosfestivos, em sqito aparatoso. E os nomes dos personagens, bem como os textos das cantigasentoadas nos autos dramticos em que esses cortejos culminavam, eram permeados de termos eexpresses originadas nos idiomas quicongo e quimbundo.

    Esses cortejos de reis do Congo, na forma de congadas, congados ou cucumbis (do quimbundokikumbi, festa ligada aos ritos de passagem para a puberdade), influenciados pelaespetaculosidade das procisses catlicas do Brasil colonial e imperial, constituram, certamente, a

    1 O artigo foi publicado na revista Espao Acadmico n 50, da Universidade Federal de Uberlndia, em julho

    de 2005.

    2 Compositor, cantor e pesquisador de msica popular, gravou, entre outros discos, o CD Partido ao cubo.

    Fina Flor/Rob Digital, 2004. Escritor, tem vrios livros publicados, entre os quais Enciclopdia brasileira da

    dispora africana. So Paulo: Selo Negro/Sumus, 2004

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    velocidade inicial dos maracatus, dos ranchos de reis (depois carnavalescos) e das escolas desamba que nasceram para legitimar o gnero que lhes forneceu a essncia.

    Sobre as origens africanas do samba veja-se que, no incio do sculo XX, a partir da Bahia,circulava uma lenda, gostosamente narrada pelo cronista Francisco Guimares, o Vagalume, noclssico Na roda do samba, de 1933 [1], segundo a qual o vocbulo teria nascido de dois verbosda lngua iorub: san, pagar, e gb, receber. Depois de Vagalume, muito se tentou explicar a

    origem da palavra, algum at lhe atribuindo uma estranha procedncia indgena. Mas o vocbulo, sem dvida, africanssimo. E no iorubano, mas legitimamente banto.

    Samba, entre os quiocos (chokwe) de Angola, verbo que significa cabriolar, brincar, divertir-secomo cabrito. Entre os bacongos angolanos e congueses o vocbulo designa uma espcie dedana em que um danarino bate contra o peito do outro. E essas duas formas se originam da raizmultilingustica semba, rejeitar, separar, que deu origem ao quimbundo di-semba, umbigada elemento coreogrfico fundamental do samba rural, em seu amplo leque de variantes, que inclui,entre outras formas, batuque, baiano, coco, calango, lundu, jongo etc.

    Buscando comprovar essa origem africana do samba nome que define, ento, vrias danasbrasileiras e a msica que acompanha cada uma delas , veremos que o termo foi correntetambm no Prata como sambaou semba, para designar o candombe, gnero de msica e danados negros bantos daquela regio.

    Responsveis pela introduo, no continente americano, de mltiplos instrumentos musicais, comoa cuca ou puta, o berimbau, o ganz e o reco-reco, bem como pela criao da maior parte dosfolguedos de rua at hoje brincados nas Amricas e no Caribe, foram certamente africanos dogrande grupo etnolingstico banto que legaram msica brasileira as bases do samba e a grandevariedade de manifestaes que lhe so afins.

    Dentre as danas do tipo batuque ou samba listadas pela etnomusicloga Oneyda Alvarenga [2],com exceo da tirana e da cachucha, de origem europia, todas elas trazem, no nome e nacoreografia, evidncias de origem banta, apresentando muitas afinidades com a massemba ourebita, expresso coreogrfica muito apreciada nas regies angolanas de Luanda, Malanje eBenguela, e que teve seu esplendor no sculo XIX.

    No Rio de Janeiro, a modalidade mais tradicional do samba o partido-alto, um samba cantado emforma de desafio por dois ou mais participantes e que se compe de uma parte coral e outra

    solada. Essa modalidade tem razes profundas nas canes do batuque angolano, em que asletras so sempre improvisadas de momento e consistem geralmente na narrativa de episdiosamorosos, sobrenaturais ou de faanhas guerreiras. Segundo viajantes como o portugus Alfredo

    Sarmento [3], nos sertes angolanos, no sculo XIX, havia negros que adquiriam fama de grandesimprovisadores e eram escutados com o mais religioso silncio e aplaudidos com o mais frenticoentusiasmo. A toada que cantavam era sempre a mesma, e invarivel o estribilho que todoscantavam em coro, batendo as mos em cadncia e soltando de vez em quando gritos estridentes.

    Segundo Oneyda Alvarenga, a estrofe solista improvisada, acompanhada de refro coral fixo, e adisposio coro-solo so caractersticas estruturais de origem africana ocorrentes na msica afro-brasileira. Tanto elas quanto a coreografia revelam, no antigo samba dos morros do Rio deJaneiro, a permanncia de afinidade bsicas com o samba rural disseminado por boa parte doterritrio nacional. Observe-se, ainda, que os batuques festivos de Angola e Congo certamente j

    se achavam no Brasil havia muito tempo. E pelo menos no sculo passado eles j tinham moldadoa fisionomia do nosso samba sertanejo.

    Mas at a, o batuque e o samba a que os escritores se referem so apenas dana. At que Alusio

    Azevedo, descrevendo, no romance O cortio [4], um pagode em casa da personagem RitaBaiana, nos traz uma descrio dos efeitos do chorado da Bahia, um lundu, tocado e cantado.Esse lundu a que o romancista se refere foi certamente o ancestral do samba cantado, herdeiroque era das canes dos batuques de Angola e do Congo.

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    Com a estruturao, na cidade do Rio de Janeiro, da comunidade baiana na regio conhecidahistoricamente como Pequena frica espao sciocultural que se estendia da Pedra do Sal, nomorro da Conceio, nas cercanias da atual Praa Mau, at a Cidade Nova, na vizinhana doSambdromo, hoje , o samba comea a ganhar feio urbana. Nas festas dessa comunidade adiverso era geograficamente estratificada: na sala tocava o choro, o conjunto musical compostobasicamente de flauta, cavaquinho e violo no quintal, acontecia o samba rural batido na palma damo, no pandeiro, no prato-e-faca e danado base de sapateados, peneiradas e umbigadas. Foia, ento, que ocorreu, entre o samba rural baiano e outras formas musicais, a mistura que veio darorigem ao samba urbano carioca. E esse samba s comeou a adquirir os contornos da formaatual ao chegar aos bairros do Estcio e de Osvaldo Cruz, aos morros, para onde foi empurrada apopulao de baixa renda quando, na dcada de 1910, o centro do Rio sofreu sua primeira grandeinterveno urbanstica. Nesses ncleos, para institucionalizar seu produto, ento, foi que,organizando-o, legitimando-o e tornando-o uma expresso de poder, as comunidades negrascariocas criaram as escolas de samba.

    Da que, em concluso, todos os ritmos e gneros existentes na msica popular brasileira deconsumo de massa, quando no so reprocessamento de formas estrangeiras, se originam dosamba ou so com ele aparentados.Afoxs e blocos afro: a matriz iorub

    As condies histricas da vinda macia de iorubanos para o Brasil, do fim do sculo XVIII aosprimeiros anos da centria seguinte, fizeram com que a lngua desse povo se transformasse numaespcie de lngua geral dos africanos na Bahia e seus costumes gozassem de franca hegemonia.Esse fato, aliado, posteriormente, ao trabalho de reorganizao das comunidades jeje-nagsempreendido principalmente pela ialorix Me Aninha, Ob Biyi (1869-1938) e pelo babalaMartiniano do Bonfim, Aji Mud (1858-1943), na Bahia, em Recife e no Rio de Janeiro, fez com queos iorubs passassem a ser vistos como a principal referncia no processo civilizatrio da disporaafricana no Brasil. Mas mesmo antes das aes concretas daquelas duas grandes lideranas, astradies iorubanas j faziam presena na msica. Tanto assim que, a partir do carnaval de 1897,saa s ruas de Salvador, encenando, com canto, danas e alegorias, temas da tradio nag, oclube Pndegos dfrica, considerado o primeiro afox baiano.

    O afox, cordo carnavalesco de adeptos da tradio dos orixs, e por isso outrora tambmchamado candombl de rua, apresenta-se cantando cantigas em iorub, em geral relacionadas

    ao universo do orix Oxum. Esses cnticos so tradicionalmente acompanhados por atabaques dotipo ilu, percutidos com as mos, alm de agogs e xequers, no ritmo conhecido como ijex.

    Observe-se que a etimologia dos nomes dos instrumentos citados remete sempre ao iorub (lu,agogo, skr). Da mesma forma que o vocbulo afox se origina em fose(encantao palavraeficaz, operante) e corresponde ao afro-cubano afoch, o qual significa p mgico enfeitiar comp. E a est a origem histrica do termo: os antigos afoxs procuravam encantar osconcorrentes.

    Os afoxs experimentam um perodo de vitalidade at o final da dcada de 1890, para declinaremat o trmino dos anos de 1920 e ressurgirem na dcada de 1940. O grande remanescente dessesgrupos , hoje, o afox Filhos de Gandhi, fundado na cidade de Salvador em 18 de fevereiro de1948. Criado para divulgao do culto nag, como forma de afirmao tnica, segundo seusestatutos, e originalmente constitudo por estivadores, no final da dcada de 1990, gozando do

    respaldo oficial, reunia mais de 4 mil associados, entre os quais um grande nmero de pais-de-santo. Em 12 de agosto de 1951 era fundado no Rio de Janeiro, no bairro da Sade, seuhomnimo carioca.

    Nos anos de 1980, no bojo do movimento pelos direitos dos negros, surgem em Salvador osblocos afros, com o objetivo explcito de reafricanizar o carnaval de rua da capital baiana. Usandotemas que buscam uma conexo direta com a frica e a afirmao da negritude, essasagremiaes criaram uma nova esttica. Como acentua Joo Jos Reis, eles reinventaram as ricastradies da cultura negra local, para exaltar publicamente a beleza da cor, celebrar os herisafro-brasileiros e africanos, para contar a histria dos pases da frica e das lutas negras no Brasil,

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    para denunciar a discriminao, a pobreza, a violncia no dia-a-dia do negro [5]. Alm disso,foram responsveis pela estruturao de uma nova linguagem musical, que se expressa no estilocomercialmente conhecido como ax music, transformado em produto de domnio nacional.

    A atuao de vrios blocos afro, transcendendo o mbito do carnaval, materializou-se dentro deum projeto esttico-poltico e estendeu-se ao trabalho de recuperao, preservao e valorizaoda cultura de origem africana e de desenvolvimento comunitrio. Nesse sentido, o trabalho, por

    exemplo, do Olodum e do Il Aiy ganhou dimenso e reconhecimento internacionais.Visto isso, examinemos, agora, o ponto de interseo entre as matrizes bantas e sudanesas namsica brasileira, que se verifica, exatamente, atravs da religiosidade.Msica popular e religies africanas

    A origem banta (bantu) do samba, como vimos, j est devidamente comprovada. Da mesmaforma, tambm banta a origem dos vocbulos umbanda, macumba mandinga etc,pertencentes ao universo dos cultos bantos do Brasil. Antes, porm, de entrarmos no cerne donosso objetivo, faamos o seguinte esclarecimento.

    O registro mais antigo que se conhece de cultos bantos em nosso pas o da cabula, denunciadonuma pastoral do bispo D. Joo Corra Nery no Esprito Santo, no fim do sculo retrasado.Congregando, entre 1888 e 1900, mais de 8 mil pessoas, a comunidade dos cabulistas, entretanto,

    e certamente tambm em funo da represso, no dispunha de templo organizado em espaofsico exclusivo. Suas reunies de culto eram secretas, realizando-se ora em casa de um adeptoora no meio da mata, mas com prticas, vestimentas e paramentos segundo o famoso relato do

    bispo Nery, divulgado por Nina Rodrigues [6] bastante semelhantes aos da umbanda.

    Observe-se ainda que toda a literatura que se ocupou de comparar as concepes religiosas dospovos bantos de Angola e Congo com as dos iorubs apontou uma falta de substncia daquelasem relao a estas outras. Mas o que certo que elas guardam entre si diferenas estruturais.Uma delas a no existncia de divindades intermedirias de forma humana, e sim gnios danatureza criados por Nzambi (este nome ocorre, com pequenas variantes, em quase todas aslnguas bantas), mas sem relao alguma com formas corporais humanas outra a no existnciade templos, como vimos e ainda outra a no fixao de datas certas para a celebrao decultos.

    At a virada dos sculos XIX e XX, parece que essas diferenas eram bem compreendidas, comoocorre, hoje, em Cuba. E as informaes de que dispomos sobre a cabula nos parecem bastanteesclarecedoras a esse respeito.

    No entanto, com o estabelecimento das primeiras comunidades baianas no Rio de Janeiro, nasegunda metade do sculo XIX, comea a se verificar, ao que parece, uma supremacia iorubana

    (nag), como vemos, por exemplo, nos textos de Joo do Rio [7] sobre as religies africanas naantiga capital federal. Essa prevalncia que vai, talvez, determinar o surgimento dos candomblschamados de Angola e de Congo e a iorubanizao da linha ritual conhecida como Omoloc,os quais, ao que consta, j no exprimem o sentido original das concepes religiosas dos povosbantos, mas apenas adaptam os princpios jeje-nags a um sonhado universo angolo-congus.

    Feito o esclarecimento, vamos ver que a matriz principal da umbanda nos parece ser essa cabulacapixaba, a qual deu origem ao omoloc, cuja expanso se verificou particularmente no Rio de

    Janeiro, na primeira metade do sculo XX.Pouco antes dessa expanso, a partir da segunda metade do sculo XIX, o processo gradativo quevai levar abolio da ordem escravista traz, para a terra carioca, milhares de negros livres embusca de trabalho, que vm juntar-se aos africanos, crioulos e mestios que j ganhavam a vida naantiga capital do Imprio, principalmente nas zonas central e porturia. Esses negros livres quevo constituir a j citada Pequena frica e os outros ncleos dinamizadores do samba no Rio deJaneiro.

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    Examinemos, agora, um significativo texto do sambista Aniceto do Imprio. Nascido e falecido noRio (1912-1993), Aniceto de Menezes e Silva Jr., um dos fundadores da escola de samba ImprioSerrano, destacou-se como exmio partideiro pela facilidade com que improvisava versos nas

    rodas de samba. Seu texto, letra de um samba ainda indito [8], o seguinte: Assumano, Alab,Abaca, Tio Sanin/ e Abed me batizaram/ na lei de muurumim.... Vejamos quem so essespersonagens a quem o partideiro se refere.

    Assumano, algumas vezes erroneamente grafado como Ao Humano, foi o nome atravs doqual se fez conhecido Henrique Assumano Mina do Brasil, famoso aluf radicado no Rio de Janeiroe pertencente comunidade da Pequena frica, na virada do sculo XIX para o XX. Residiu no n191 da Praa Onze e tinha como freqentadores de sua casa, entre outros, o clebre sambistaSinh e o jornalista Francisco Guimares, o Vagalume, fundador da crnica de samba no Rio. Onome Assumano o abrasileiramento do antropnimo Ansumane ou Ussumane (do rabeOthman ou Utmn), usual entre muulmanos da antiga Guin Portuguesa.

    No mesmo contexto, Joo Alab, falecido em 1926, foi um famoso babalorix, certamente baiano,radicado no Rio de Janeiro. Um dos mais prestigiados de seu tempo, sua casa era no nmero 174da rua Baro de So Flix, nas proximidades do terminal da Estrada de Ferro Central do Brasil.Seu nome marca sua origem nag (alagba, chefe do culto de Egungun pessoa venervel, derespeito ou antropnimo dado ao segundo filho que nasce depois de gmeos). Era pai de santo dalegendria Tia Ciata, tambm me-pequena de sua comunidade religiosa.

    Da mesma forma, Cipriano Abed, falecido em 1933, foi um famoso babalorix do Rio de Janeiro,no princpio do sculo XX, com casa, primeiro na rua do Propsito e depois na rua Joo Caetano,prximo Central do Brasil. O nome Abed, reduo de Alabed, designa uma das manifestaesou qualidades do orix Ogum.

    J Abaca provavelmente corruptela de Abu Bacar, nome muulmano, mas o personagem nofoi por ns identificado. Tio Sanim, por sua vez, parece ser o mesmo Bab Sanin, morador na ruados Andradas, e mencionado no j referido livro de Joo do Rio.

    O universo dos sambistas pioneiros no se restringiu, porm, apenas comunidade baiana emuitos menos ao povo de muurumim (linha ritual de influncia islmica), j que, quando essa artecomea a se expressar nas escolas de samba, grande parte dos fundadores era oriunda do Valedo Paraba e adjacncias (zona de irradiao cultural bantu), como foi o caso do principal fundador

    da escola de samba Imprio Serrano, o legendrio Mano Eli.Mano Eli foi o nome pelo qual se fez conhecido Eli Antero Dias, sambista nascido emEngenheiro Passos, RJ, em 1888, e falecido na cidade do Rio, para onde viera com 15 anos de

    idade, em 1971. Em 1936 foi eleito cidado samba [9] em concurso promovido pela Unio Geraldas Escolas de Samba do Brasil. E em 1947 ajuda a fundar a escola de samba Imprio Serrano,da qual foi presidente executivo e, depois, presidente de honra. Em 1930, Mano Eli tornou-se opioneiro do registro em disco de cnticos rituais afro-brasileiros. Nesse ano, com o Conjunto

    Africano, gravou um ponto de Exu, dois de Ogum e um de Ians. Seu companheiro nessaempreitada foi outro sambista pioneiro, o legendrio Amor, sugestivo apelido de Getlio Marinhoda Silva, nascido em Salvador, em 1889 e falecido no Rio, onde viveu desde os 6 anos de idade,em 1964. Exmio bailarino, foi mestre-sala de vrios ranchos carnavalescos. De 1940 a 1946 foi ocidado-samba do carnaval carioca. Compositor, foi co-autor da marcha junina Pula a fogueira,at hoje executada.

    O pioneirismo dos sambistas Amor e Mano Eli deve-se ao fato de eles terem levado para o discoverdadeiros cnticos rituais, executados e interpretados como autnticos pontos de macumba, comatabaques etc. Mas, antes deles, outros artistas da msica popular j tinham criado obrasbaseadas nessa tradio, como foi o caso de Chiquinha Gonzaga com Candombl (batuquecomposto em parceria com Augusto de Castro e lanado em 1888, provavelmente emcomemorao Lei urea, j que Chiquinha era ativa abolicionista), de Pember (de EduardoSouto e Joo da Praia, lanado em 1921) e de Macumba jeje (lanada por Sinh em 1923).

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    Depois de Mano Eli e Amor, vamos ter, entre muitas outras, X, curinga (Pixinguinha, Donga eJoo da Baiana), lanada em 1932 com a rubrica macumba, Ya (Pixinguinha e Gasto Viana,1938), Uma festa de Nana (Pixinguinha, 1941) Macumba de Ians e Macumba de Oxossi (deDonga e Z Espinguela, sambista e pai-de-santo, gravadas em 1940) e Benguel (Pixinguinha,1946) etc.

    Contemporneo de Amor e Mano Eli, e um verdadeiro elo entre o mundo do samba e o dos cultos

    afro, foi o tata Tancredo Silva Pinto. Compositor de Jogo proibido, de 1936, tido por muitos comoo primeiro samba de breque, e co-autor de General da banda, grande sucesso do carnaval de1949, alm de autor de vrios livros sobre a doutrina umbandista, Tancredo foi um grande lder dosamba e da umbanda. Tanto que em 1947 ajudava a fundar a Federao Brasileira das Escolas deSamba e, logo depois, criava a Confederao Umbandista do Brasil.

    Sobre a criao da Federao, Tata Tancredo (como era conhecido) contava um fato interessante,narrado no livro Culto omoloko:

    ... esse episdio passou-se na casa da minha tia Olga da Mata. L arriou Xang,no terreiro So Manuel da Luz, na Avenida Nilo Peanha, 2.153, em Duque deCaxias. Xang falou: Voc deve fundar uma sociedade para proteger osumbandistas, a exemplo da que voc fundou para os sambistas, pois eu ireiauxili-lo nesta tarefa. Imediatamente tomei a iniciativa de fazer a Confederao

    Umbandista do Brasil, sem dinheiro e sem coisa alguma. Tive uma inspirao ecompus o sambaGeneral da banda, gravado por Blecaute[10], que me deu algumdinheiro para dar os primeiros passos em favor da Confederao Umbandista do

    Brasil[11].

    Quase vinte anos depois desse sucesso de Tancredo e do cantor Blecaute, em 1965, surge para odisco Clementina de Jesus, cantora nascida em Valena, RJ, em 1901, e falecida no Rio, ondevivia desde menina, em 1987. Descoberta para a vida artstica j sexagenria, afirmou-se comouma espcie de elo perdido entre a ancestralidade musical africana e o samba urbano. Seutrabalho de maior expresso fez-se atravs da interpretao de jongos, lundus, sambas da tradiorural e cnticos rituais recriados, como o j mencionado Benguel, de Pixinguinha.

    Logo depois do surgimento de Clementina, outra importante interseo entre a msica popularbrasileira e a religiosidade africana ocorre com os afro-sambas (Canto de Ossanha, Ponto do

    Caboclo Pedra Preta etc) lanados por Baden Powell e Vincius de Moraes em 1966. E o mesmoVincius que, agora em parceria com Toquinho, vai lanar um Canto de Oxum, em 1971, e umCanto de Oxaluf, em 1972.

    Da em diante, a vertente comea a se rarefazer, com raras incurses, como a do cantor ecompositor Martinho da Vila, que, em um de seus discos do final dos anos 70, registrou umaseqncia de cantigas rituais da umbanda.As escolas de samba e os sambas-enredo Com relao s escolas de samba cariocas cujos terreiros (terreiros e no quadras, como hoje)at os anos de 1970 obedeciam a um regimento tcito semelhante ao dos barraces decandombl, com acesso roda permitido somente s mulheres, por exemplo , veja-se que elas,hoje, so, ainda, um veculo em que a temtica africana recorrente. Muito embora seus enredose sambas enfoquem a frica por uma perspectiva meramente folclorizante.

    O samba-enredo esclareamos uma modalidade de samba que consiste em letra e melodiacriadas a partir do resumo do tema elaborado como enredo de uma escola de samba. Os primeirossambas-enredo eram de livre criao: falavam da natureza, do prprio samba, da realidade dossambistas. Com a oficializao dos concursos, na dcada de 1930, veio a exaltao dirigida depersonagens e fatos histricos. Os enredos passaram a contar a histria do ponto de vista daclasse dominante, abordando os acontecimentos de forma nostlgica e ufanstica. A reversodesse quadro s comeou a vir em 1959, quando a escola de samba Acadmicos do Salgueiroapresentou, com uma homenagem ao pintor francs Debret, e com grande efeito visual, o cotidianodos negros no Brasil poca da colnia e do Imprio, o que motivou uma seqncia de enredos

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    sobre Palmares, Chica da Silva, Aleijadinho e Chico Rei, voltados para o continente africano. Mas,se a ingerncia governamental j no era to forte, pelo menos enquanto cerceamento daliberdade na criao dos temas, um outro tipo de interferncia comeava a nascer: a doscengrafos de formao erudita ou treinados no show-business, criadores desses enredos, osquais imprimiram ao carnaval das escolas a feio que ele hoje ostenta e que, direta ouindiretamente, selaram o destino dos sambas-enredo. Tanto que, no final do sculo XIX, o samba-enredo um gnero em franca decadncia. Em cerca de 60 anos de existncia, no entanto, amodalidade mostrou sua fora em dezenas de obras antolgicas.

    Entre os enredos apresentados pelas escolas de samba cariocas das vrias divises, a partir de1948, muitos fazem referncia mais direta frica, como, por exemplo: Navio negreiro (VilaIsabel, 1948, e Salgueiro, 1957), Quilombo dos Palmares (Salgueiro, 1960, Viradouro, 1970, eUnidos de Padre Miguel, 1984), Chico Rei (Unio de Vaz Lobo, 1960, Salgueiro, 1964, eViradouro, 1967), Ganga Zumba (Unidos da Tijuca, 1972), Valongo (Salgueiro, 1976, e Unidosde Padre Miguel, 1988), Galanga, o Chico Rei (Unidos de Nilpolis, 1982), Ganga Zumba, raizda liberdade (Engenho da Rainha, 1986). Isso sem falar em outros tantos temas como PorqueOxal usa ekodid, Oju Ob, Logun, prncipe de Efan, O mito sagrado de If, Oxumar, alenda do arco-ris, Alafin Oy, Prncipe Ob, rei dos descamisados, Ngola Djanga, De Daoma So Luiz, a pureza mina-jeje, Imprio negro, um sonho de liberdade, Kizomba, festa da raa,

    Preito de vassalagem a Olorum etc. [12]

    De alguns desses ttulos, selecionamos, como exemplo de abordagens, e sem maiorescomentrios, alguns trechos:

    frica... misteriosa frica/ Magia, no rufar dos tambores se fez reinar/ Raiz que se alastrou por esteimenso Brasil/ Terra dos santos que ela no viu... (Os santos que a frica no viu, Grande Rio,1996 Mais Velho, Rocco Filho, Roxidi, Helinho 107, Marquinhos e Pipoca) frica encanto emagia/ Bero da sabedoria/ Razo do meu cantar/ Nasceu a liberdade a ferro e fogo/ A Me Negraabriu o jogo/ Fez o povo delirar... (Quando o samba era samba, Portela, 1996 Wilson Cruz,Cludio Russo, Z Luiz) Vem a lua de Luanda/ Para iluminar a rua/ Nossa sede nossa sede/ Deque o apartheid se destrua... (Kizomba, festa da raa, Vila Isabel, 1988 Rodolfo, Jonas e LuizCarlos da Vila) Vivia no litoral africano/ Uma rgia tribo ordeira/ Cujo rei era smbolo/ De uma terralaboriosa e hospitaleira/ Um dia essa tranquilidade sucumbiu/ Quando os portugueses invadiram/ capturando homens/ para faz-los escravos no Brasil/ na viagem agonizante/ Houve gritos

    alucinantes/ Lamentos de dor/ , adeus baob, / , adeus meu Bengo, eu j vou... (Chico Rei, Salgueiro, 1965 Geraldo Babo, Djalma Sabi e Binha) Ilu Ai, Ilu Ai, odara! / Negro cantava na nao nag/ Depois chorou lamento de senzala/ To longe estava de sua Ilu

    Ai... (Ilu Ai, terra da vida, Portela, 1972 Cabana e Norival Reis) Bailou no ar/ O ecoar de umcanto de alegria/ Trs princesas africanas/ Na sagrada Bahia/ Ia Kal, I Adet, I Nass/ Cantaram assim a tradio nag/ Olorum, senhor do infinito/ Ordena que Obatal/ faa a criaodo mundo/ ele partir, despreando bar/ E no caminho adormecendo/ Se perdeu/ Odudua, a divinasenhora chegou... (A criao do mundo segundo a tradio nag, Beija-Flor, 1978 Neguinho daBeija-Flor, Mazinho e Gilson) Conta a lenda que a deusa Oi/ Foi aconselhar If/ A buscar a curaem Sabad/ Pra Obaluai se levantar... (O bailar dos ventos, relampejou mas no choveu,Salgueiro, 1980 Ala dos Compositores) L da frica distante/ Trouxeram o misticismo da magia/ maons e mestres alufs/ Usavam estratgia e ousadia... (Salamaleikun, a epopia dosinsubmissos mals, Unidos da Tijuca, 1984 Carlinhos Melodia, Jorge Moreira e Nogueirinha)Esta negra caprichosa/ Convidou o rei da Costa do Marfim/ E o recebeu de forma suntuosa/ A festa

    parecia no ter fim... (O rei da Costa do Marfim visita Xica da Silva em Diamantina, Imperatriz,1983 Matias de Freitas, Carlinhos Boemia e Nelson Lima) Lua alta/ Som contante/ Ressoam osatabaques/ lembrando a frica distante... (Misticismo da frica ao Brasil, Imprio da Tijuca, 1971

    Marinho da Muda).

    Sobre a predominncia, nesses sambas, de temas ligados ao universo iorubano, observe-se queisso ocorre pela maior visibilidade que essa matriz tem no Brasil, notadamente atravs da Bahia. ABahia, graas principalmente sua capital, internacionalmente conhecida pela riqueza de suastradies africanas, apropriadas como verdadeiros smbolos nacionais brasileiros. Segundoalgumas interpretaes, a visibilizao desse precioso acervo cultural teria ocorrido pela presena

  • 7/28/2019 A presena africana na msica popular brasileira - Nei Lopes

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    2 ALVARENGA, Oneyda. Msica popular brasileira. Rio de Janeiro: Globo, 1950.

    3 SARMENTO, Alfredo. Os sertes dfrica. Lisboa: Ed. Francisco Artur da Silva, 1880.

    4 AZEVEDO, Alusio. O cortio. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

    5 REIS, Joo Jos. Aprender a raa. Veja, So Paulo, Abril Cultural, 1993, p. 189-195.

    6 RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. So Paulo: Ed. Nacional, 1932.

    7 JOO DO RIO. As religies do Rio. Rio de Janeiro: Gazeta de Notcias, 1904.8 Interpretado em espetculo que cumpriu temporada na Sala Funarte, no Rio de Janeiro, em 1980.

    9 Ttulo de grande importncia no mundo dos sambistas, conferido aos mais talentosos e representativos.

    10 Pseudnimo de Otvio Henrique de Oliveira (1919-1983), cantor popular brasileiro.

    11 SILVA, Ornato Jos da. Culto omoloko. Rio de Janeiro: Rabao, s/d.

    12 Cf. Memria do carnaval. Rio de Janeiro: Riotur, 1991, onde pode ser encontrada uma extensa listagem desambas-enredo com motivos africanos.