a prÁtica social e a prÁtica pedagÓgica no sÉculo … · matérias escolares, é a que nos...
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A PRÁTICA SOCIAL E A PRÁTICA PEDAGÓGICA NO SÉCULO V
A.C.` doi: 10.4025/XIIjeam2013.padilha36
PADILHA, Augusta
O tema Formação, Sabedoria e Felicidade na Antiguidade e Medievo nos chama a
expor o desenvolvimento de um estudo sobre a prática pedagógica de Aristófanes no
contexto da prática social dos atenienses do século V a.C.. A razão reside no fato de que a
prática pedagógica deste poeta leva-o a examinar a realidade social como conteúdo do ato
educativo, o que nos interessa em função das demandas par a a prática pedagógica no
contexto atual. Considerando de grande significado para quem quer entender a história
pelas lutas humanas, tomamos Aristófanes e seu trabalho junto ao público como
instrumento de reflexão e compreensão da realidade de então. A nosso ver, encaminhar
estudos que favoreçam uma reformulação de nossa prática pedagógica no sentido de buscar
um novo método de trabalho1, com novos conteúdos e novas abordagens dentro das
matérias escolares, é a que nos propomos investigar.
A pretensão de estudar o contexto social grego do século V a.C. é para nós, uma
meta e, com este trabalho, denominado de A prática social e a prática pedagógica no
século V a.C., apontaremos para a diferença entre estes dois conceitos assinalando a
vinculação entre a vida e a formação humana ou o ensino que Aristófanes pretendia,
intencionalmente, encaminhar através de suas comédias.
Sabemos que esta prática pedagógica não se dava somente pelo teatro grego, mas é
neste fórum que toma corpo um interesse específico de caráter educativo, sistematizado
pelos poetas. Entendemos que as questões educativas não se objetivam em atividades
autônomas, ao contrário, são determinadas por necessidades sociais de uma determinada
época histórica. Nesse sentido, a educação, num espectro amplo, está presa a uma prática
social onde existe uma tendência da sociedade de encaminhar a educação segundo a
demanda ou as necessidades que são próprias ou específicas em cada momento histórico.
1 Damos continuidade a este estudo sobre um método alternativo para a educação atual, na dissertação de mestrado, Aristófanes: uma alternativa para a prática pedagógica atual. Universidade Estadual de Maringá, 1999.
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Para conceber “educação”, entretanto, cabe discriminar melhor o que é prática social e
prática pedagógica, pois, embora estando ambas no conjunto das relações sociais que, ao
produzirem a vida produzem a consciência e o próprio homem, têm especificidades a
serem consideradas. Faremos alguns questionamentos no decorrer do trabalho com o
objetivo de refletirmos sobre “educação” no contexto da prática social e da prática
pedagógica.
Concebendo “educação” como expressão dos processos em relação aos quais os
homens são os sujeitos, temos que qualquer fenômeno social, em particular, o educativo é
entendido como oriundo de embates próprios à sobrevivência no interior das relações
sociais, tendo como base a própria vida em movimento. A forma como uma sociedade se
organiza e se estrutura para a produção da vida, se objetiva e se expressa numa
determinada prática social que é sinônimo da tendência que a sociedade segue para sua
organização e/ou sobrevivência. Todos os homens dessa sociedade respiram a mesma
estrutura, que forma o tecido social ou a consciência. Podemos afirmar que na prática
social existe educação e que esta educação está “presa” `a tendência da sociedade em se
organizar de forma dinâmica, constante e universalizante. Qualquer homem responde, pois,
a exigências de um coletivo não personalizado que educa. Os homens não escolhem
livremente essas forças representadas pelo coletivo hegemônico mas a elas deve se
conformar em termos históricos.
Nesta questão, retornamos ao século V a.C. com o objetivo de discutir a prática
social ligada ao trabalho de todos os homens gregos e a prática pedagógica ligada ao
trabalho de um destes homens - Aristófanes. Através da análise do contexto das relações
sociais gregas procuraremos enfocar, primeiramente, o que é tendência social. Em se
tratando do povo grego nos deparamos com uma história cujo fio condutor ou valor social
maior, comum, é a preocupação em sobreviver num contexto de “guerras”.
Um patrimônio reconhecidamente útil para identificarmos esse valor maior é a
história de Tucídides.
É óbvio que a região agora chamada Hélade não era povoada estavelmente desde a mais alta antigüidade; migrações haviam sido freqüentes nos primeiros tempos, cada povo deixando facilmente suas terras sempre que forçado por ataques de qualquer tribo mais numerosa. Não havia, com efeito, movimento comercial e os povos não se aproximavam uns dos outros sem medo, seja por terra, seja por mar; cada povo arava sua própria terra apenas o bastante para obter dela os
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meios de sobrevivência, não tendo recursos excedentes e não plantando para o futuro, pois a perspectiva de saque por algum invasor, especialmente por não haver ainda muralhas, gerava incerteza. (...) Na realidade, todos os helenos costumavam portar armas, porque lugares onde viviam não eram protegidos e os contatos entre eles eram arriscados; por isso em sua vida cotidiana eles normalmente andavam armados, tal como ainda fazem os bárbaros. (...) As cidades fundadas mais recentemente, quando a navegação tornou-se mais segura, e que estavam consequentemente começando a ter recursos excedentes, foram construídas no litoral e nos istmos ocupados e isolados por muralhas, com vistas ao comércio e à proteção dos habitantes contra seus vizinhos. (...) Os diversos povos, todavia, em lugares diferentes, defrontavam-se com obstáculos à continuidade de seu crescimento; por exemplo, depois de os iônios haverem atingido grande prosperidade, Ciros e o império persa, após submeterem Cresos e todo o território entre o rio Hális e o mar, empreenderam a guerra contra eles e reduziram ao cativeiro as cidades no continente, e mais tarde Darios com o reforço da frota fenícia também as ilhas. (...) Não muitos anos após a deposição dos tiranos na Hélade pêlos lacedemônios travou-se a batalha de Maratona entre os ateniensses e os persas, e dez anos após o Bárbaro voltou à Hélade com suas hostes enormes para tentar escravizá-la. Em face do grande perigo iminente os lacedemônios, por serem os mais poderosos, assumiram o comando dos helenos reunidos para a guerra...O Bárbaro foi repelido pelo esforço comum, mas não muito tempo depois os outros helenos, tanto os que se haviam revoltado contra o Rei quanto os que se juntara à primeira coligação contra ele, dispersaram-se e se aliaram, uns com os atenienses, outros com os lacedemônios, pois estes povos se mostraram os mais poderosos, um, forte em terra, e o outro nos mares. A aliança defensiva durou pouco tempo; os lacedemônios e os atenienses se desentenderam pouco depois e, com seus respectivos aliados, passaram a hostilizar-se mutuamente, e quaisquer outros helenos que se desavinham daí em diante se bandeavam para um dos dois lados. Sendo assim, desde a invasão persa até a presente guerra, ora negociando a paz, ora lutando entre eles ou contra seus aliados revoltados, os dois povos se preparavam continuamente e da melhor maneira para a guerra e se tornaram mais experientes, exercitando-se em meio a perigos reais (grifos nossos) (Tucídides, 1986, p.19-27).
Com este relato de Tucídides (1986), torna-se claro ser a manifestação do
comportamento ou educação dos homens um produto das necessidades de uma sociedade
em constante e dinâmico movimento. A educação vai ser delimitada pelas necessidades
sociais, reais, sob o interesse de sobrevivência, básico em todos os homens que constróem
hábitos, costumes, idéias, comportamentos.
Numa situação de constantes combates, saques, guerras, configura-se uma
exigência de devotamento completo para defesa e requer um aprendizado de guardião.
Platão, no século V a.C., expõe a necessidade de uma educação condizente para a unidade
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social e não o contrário. Para tal situação, a sociedade tende a praticar o que a necessidade
imediata exige. Na obra A República, o autor mostra debates vivos de questões atuais que
expressam o conteúdo social daquela época.
- Não investiguemos por ora se a guerra produz males ou bens - prossegui. - Contentemo-nos com haver descoberto sua origem naquilo que é também causa das maiores calamidades públicas e privadas que recaem sobre as cidades. - Tens razão. - Novamente será preciso aumentar o nosso Estado; e não pouco desta vez, mas de tal modo que possa dar guarida a um exército inteiro, capaz de sair em campanha para combater os invasores e defender tudo quanto possuímos, além das pessoas que há pouco enumeramos. (...) Portanto... quanto mais importante seja a missão dos guardiães, mais tempo, arte, habilidade e zelo se exigirão deles? (grifos nossos) (Platão, 1964, p.50-1).
Em primeiro lugar está a necessidade de manter intacta a cidade. Por isso,
contraditoriamente, todos devem preocupar-se com a guerra para preservar a cidade. Tal
situação exige esforços de todos para garantir a unidade da pólis impedindo que ela seja
destruída: o comportamento de combatente é induzido pelo coletivo pensante. Torna-se um
projeto social que concomitantemente se constrói por uma prática social, tal como a
necessidade social exige. Lutar e vencer se constitui em um valor maior, universal,
estimulado e expresso no comportamento de todos, educados informalmente para atender
aos reclamos dos perigos reais. Ainda nesta obra, podemos perceber a preocupação dos
homens na busca de sistematizações para os problemas humanos:
...com isso se quer mostrar que, entre os cidadãos em geral, cada indivíduo deve ser aproveitado numa espécie de trabalho, que é aquela que se acha mais dotado, de modo que, atendendo a uma coisa só, conserve ele próprio a sua unidade e não se divida. E assim se conseguirá que a cidade inteira seja uma e não muitas. (Platão, 1964, p.105).
Para entender que as questões educativas devem ser compreendidas no contexto das
necessidades de uma época histórica, são as relações sociais na prática social, que sofrerão
análise, ou seja, o processo de transformação social, uma vez que as práticas educativas
são determinadas por necessidades sociais. Podemos constatar nos relatos do ateniense e
historiador Tucídides (465-395 a.C.) que a prática do povo grego pensar a cidade como
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ponto de partida para a sua sobrevivência e como ponto de chegada quando preservada por
todos, extrapola os limites da pura individualidade. Expressando-se nas assembléias, nos
relatos, nos argumentos, no modo de agir, as características humanas (educadas na luta
diária para auto-preservação) identificam o movimento geral da sociedade frente às
diversas necessidades.
A história mostra, pelos textos clássicos, por exemplo, a história de homens
públicos que pensam e repensam seus discursos2 e atos, que exercitam a reflexão, diante da
necessidade de dar encaminhamento às questões sociais e do qual muitos irão, com maior
ou menor consciência, participar.
A expressão - prática social - pode ser entendida, nessa perspectiva, também como
educação, pois como diz Rosa (1998, p.5), é no processo social que os homens educam-se
uns aos outros, tornando-se seres de uma época.3 Educam-se quando são convocados a
adquirir determinados comportamentos ou a responder por determinadas exigências
sociais.. É a complexidade da vida em sua dinâmica que dá conteúdo aos debates
filosófico-educativos. É o século V a.C., em toda a sua complexidade, que dá a
consistência ao trabalho de Aristófanes (445-385 a.C.). A sociedade e sua realidade
política, social e econômica, com suas instituições ou tipos sociais em crise, são os
instrumentos através dos quais Aristófanes desenvolve uma prática pedagógica,
intencional, junto ao público que acorre às suas comédias.
Em suas obras, Aristófanes expõe questões que retratam as Assembléias, as
instituições da época, os problemas da religião, dos políticos, as características dos
demagogos, os acontecimentos como a guerra, entre outros. Nesses trabalhos, podemos ver
Aristófanes encaminhando as suas reflexões, as quais chamamos de “forma ou de prática
pedagógica” porque revela um método, uma exigência lógica para fazer do ouvinte um
crítico responsável, um sujeito capaz de pensar sobre aquilo que faz. A prática social serve
como tema da prática pedagógica. É nela que Aristófanes vai buscar os conteúdos de seu
trabalho junto ao público. Em suas comédias, possibilita ao público (e ao leitor) a reflexão
sobre o que os homens estão fazendo, sobre a tendência da sociedade acerca da maior ou
2 Até porque em Atenas, o orador que propunha uma lei continuava responsável por ela mesmo após a sua aprovação pela assembléia popular, e podia ser processado, como por exemplo no caso de sua lei contrariar uma anterior. Tucídides, 1982, nota 238, p.448. 3 Expressão usada pela profª Dr.ª Silvina Rosa no texto História da Educação no Brasil: a literatura como fonte alternativa, apresentado no IV Congresso Ibero Americano de La Educacion Latino Americana, 1998, p.5.
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menor humanização das decisões tomadas. Seu projeto educativo não contempla uma mera
transmissão de conteúdos, sem questionamentos. Ele não tem a intenção da persuasão para
ratificar o que já existe, o que está, a priori determinado. Na prática pedagógica há a
intenção da reflexão para a tomada de decisão, há a exposição dos fatos como realmente
são e a denúncia de quanto os homens estão sustentando comportamentos que não elevam
a humanidade.
Aristófanes, em seu método, privilegia a realidade social como ponto de partida
para as reflexões e mostra que para compreender a realidade é preciso nela se fixar,
perceber seus traços e características de forma concreta nas suas múltiplas relações.
Salienta as contradições sociais mostrando que estas mesmas contradições devem ser
compreendidas sob pena de sua linguagem ser assumida como mera ofensa, como costuma
acontecer com as leituras que primam pela negação dos embates entre os homens com
interesses distintos. Acentua a necessidade de analisar tudo pela perspectiva da totalidade,
procurando os fatores determinantes de fatos ou fenômenos. Condena o discurso feito a
partir do individual ou da parte, o discurso que privilegia o particular, acentuando que tudo
se concretiza através de relações dinâmicas entre as pessoas. Põe ênfase nas relações
sociais, mostra que por esta perspectiva é preciso compreender o aspecto dinâmico da
produção pelo qual a sociedade é determinada. Lembra o discurso como social, como
envolvendo a todos, abrindo a possibilidade de se pensar sobre as conseqüências dos atos
humanos. E nos permite ver que, quando se elimina a concepção de que o homem é
produto de uma relação, elimina-se também a possibilidade da educação. Ora, se elimino a
idéia de que sou produto de uma relação, como vou esperar que o outro seja educado por
mim?
Acreditamos que a concepção de totalidade de Aristófanes se deve à realidade
social, histórica e contraditória, com a qual convivia e que em suas obras retrata. Para
mostrar isso, destacamos a seguir algumas considerações, alguns exemplos e relatos que
revelam, também, o conteúdo da pedagogia de Aristófanes.
Ao considerarmos o século V a.C. como fonte para entender Aristófanes e
compreender porque ele pode pensar a totalidade, é preciso considerar o acirramento das
contradições da Antigüidade que se apresentam, ora nas lutas contra o estrangeiro, ora nas
lutas contra aqueles mesmos gregos que, unidos e companheiros, haviam guerreado contra
os inimigos de outrora. Um contexto de guerra por si só é contraditório. O que é? A quem
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serve? Por quê e para quê é iniciada? Quem ganha e quem perde com a guerra? Sob quais
condições se ganha a guerra? O estado de guerra implica num único processo
composto de conquista/derrota, vida/morte, amigos/aliados/inimigos, vencer/perder,
acordos/alianças/discórdias... e faz pensar nas conseqüências concretas da guerra e da paz
para cada um e para todos, enquanto cidades destruídas. A vida de cada um, dependendo
da morte de muitos para salvação da cidade, obriga a pensar na realidade como um
conjunto de atos humanos inter-relacionados.
Péricles, ao discursar sobre as vantagens da guerra contra Estados gregos irmãos,
não se mostra interessado em que o povo entenda, estude ou reflita sobre as relações
sociais, sobre os resultados em cada indivíduo dessa guerra estimulada politicamente.
Podemos perceber, nos relatos citados, que a forma de pensar e agir dos estadistas,
generais e filósofos expressam uma prática social coerente com uma leitura linear dos fatos
e acontecimentos, nunca considerando a contradição como fato importante para a
compreensão do processo de transformação social.
O que quisemos chamar atenção até agora foi o fato de que embora uma sociedade
seja uma empreitada de todos, seja o resultado das atividades de todos em busca de
objetivos comuns, isso, enquanto se vive a prática social, passa desapercebido. Só começa
a ser analisado quando a prática social se transforma em conteúdo da prática pedagógica. E
a prática pedagógica não pode deixar de assinalar que a totalidade é feita do conjunto de
atitudes e ações pessoais. Assim sendo, perguntamos: negando a compreensão da
totalidade da realidade é possível fazer educação? Educar? Pode ser considerado cidadão
aquele que desconhece ou não compreende a realidade que determina sua vida? Como
chamar de educação uma prática que nega a análise das contradições sociais? Que esconde
o que não “interessa” ou o que pode direcionar diferentemente o “projeto social” que já
vem sendo encaminhado ?
Através da análise da prática social ou das relações sociais, encontramos o que se
constitui em problema para uma determinada sociedade e podemos refletir sobre qual
“método” poderia aclarar mais este mesmo problema para os homens o resolverem com
mais conhecimento de causa. Em Aristófanes, encontramos uma parte da resposta
procurada por nós. Ele encaminha a análise dos problemas sociais mostrando as
contradições em que os indivíduos se metem no jogo da vida. Pela nossa concepção, o
processo da educação deve se encaminhar pelo conhecimento da totalidade daquilo que é
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objeto de apreensão ou de encaminhamento. Para tanto, a análise de todos os elementos em
relação, a análise a partir da relação entre uns elementos e outros componentes da
sociedade, a relação entre os extremos, constituem-se em um método pedagógico que
prima pelo discernimento e conscientização do cidadão. Acreditamos que através do
conhecimento mais completo o homem torna-se mais humano, mais perfeito, mais capaz
de viver em sociedade. A educação, nesse sentido, encontra-se no trabalho pedagógico, no
discernimento e na conscientização, condições possíveis de serem alcançadas no homem e
não em outro animal. Por acreditar na educação do homem-cidadão é que fomos até
Aristófanes (o pedagogo) por encontrar nele o método que não encontramos em outros
personagens ilustres dessa época.
Como educar o cidadão quando os encaminhamentos políticos, através das
instituições democráticas, desconsideram à época de Aristófanes, o exame das
conseqüências das guerras contínuas? Não se examina, nas conseqüências da guerra, o
crescimento dos comportamentos individualistas, do processo de construção da riqueza, da
vitória que deixa terras arrasadas, do império que se estende pela violência, do poder
associado à bajulação, da corrupção, da delação como meio de vida, entre outros
problemas. O sistema de governo não expõe a lógica do desenvolvimento da Grécia como
um processo que traz dentro de si a destruição da própria sociedade grega. Em qualquer
conquista, há um reverso que precisa ser examinado para que o homem tenha mais clareza
da sua própria construção ou destruição. E, justamente, é contra uma direção linear de
pensamento, uma direção que só vê as ações dos homens como positivas que Aristófanes
se punha.
Dentro da prática social não há “auto-crítica”. Não se questiona o uso que se está
fazendo do tesouro de Delo; a intervenção nas Constituições de outras cidades; a
devastação dos campos e a impossibilidade de a agricultura ser bem sucedida; a destruição
da autoridade dos generais encarregados de trazer a vitória; o empobrecimento crescente; a
desobediência civil; o hábito da delação de tudo resolver por um judiciário corrupto.
Quem fala das destruições provocadas por Atenas, da Guerra do Peloponeso como
rompedora do equilíbrio do mundo grego? Mas, mesmo sem falar, mesmo deixando de
refletir sobre os dois lados de uma só moeda, a história nos fala da ruína do império
ateniense e de seu sonho de hegemonia, destruído. As transformações vão ocorrendo e
revelam o crescente estado de pobreza material e intelectual do povo, abrindo espaço para
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que o proveito individual de uns em detrimento de que outros cresça. A leitura social que
de todos depende a cidade e da cidade qualquer sujeito precisa para existir como pessoa,
não tem mais significado para as ações dos gregos que fazem a história do século V e IV
a.C.. O homem passa a ser a medida de todas as coisas quando sua consciência independe
do coletivo, quando a compreensão de si mesmo torna-se independente da sociedade que o
produziu.
Insistimos nessas colocações para dar sentido a nossa preocupação em diferenciar
prática social e prática pedagógica; também para mostrar que a concepção de totalidade de
Aristófanes – inerente à sua prática pedagógica – se deve à compreensão dessa realidade
que não se move de forma linear, que é complexa e que essa complexidade compreende
todos os elos que ligam as ações que decidem a vida em uma comunidade.
Podemos perceber, através dos exemplos citados, que, historicamente, as
contradições não discutidas vão se tornando insuportáveis e inviabilizam cada vez mais o
encaminhamento ou a direção das questões sociais. O crescente número de dificuldades
que estas contradições provocam para toda a sociedade grega e a falta de clareza dos seus
determinantes produzem a aceitação dos fatos como imutáveis e a contemplação dos
tempos difíceis por homens paralisados. Quanto menos se compreende os fatos sociais
menos se os enxerga e mais difícil torna-se sua superação porque eles começam a aparecer
aos homens como se fossem naturais, impossíveis de serem modificados por esses homens.
Difícil fica diferenciar ou definir o rumo ou o encaminhamento das questões
humanas diante da situação social nebulosa, na crise mascarada das instituições sociais,
políticas e econômicas. Ainda mais que a pobreza material instaurada pelo constante
estado de guerra, leva os homens a assumirem comportamentos cada vez mais perniciosos.
A boca que antes falava, agora pede comida. O homem que antes refletia, embora
linearmente e deliberava pelo que o coletivo da cidade exigia, agora tem nas suas
expectativas privadas e na sua sobrevivência a sua consciência. Diante do desalento, a
consciência está paralisada, embora a corrupção cresça exatamente nessas horas. Como nos
diz Mossé (1985):
[Os estrategos] Certo, eles ainda têm um grande peso na determinação da vida política na assembléia - assim Ificrates e Calistrato - seja que fortalecidos pela autoridade que exerciam sobre os seus homens ou pressionados pela necessidade, levassem a efeito a sua própria política,
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arrastando a cidade para aventuras que nem sempre tinham desejado (p.69).
É nesse quadro que Aristófanes fala e aponta os demagogos como homens que
estão a iludir o povo e a ganhar espaço na cidade examinando a decadência de costumes. O
poeta faz do teatro seu palco de atuação na vida ateniense. Aristófanes faz denúncia
pública e pedagógica, por exemplo, de Cleon (demagogo ateniense eleito pelo povo),
propondo-se à missão de levar o povo a refletir.
Contra a falta de discernimento e da dificuldade para pensar sob a perspectiva da
totalidade é que a prática pedagógica de Aristófanes se coloca e se pauta na negação
daquilo que prejudica o social, constituindo-se num grande esforço para pensar de forma
que contraria o senso comum. Fazendo-se porta-voz de muitos, Aristófanes, que domina
em compreensão a situação de crise por que passa o povo grego, assume o papel de
educador do povo, alertando os atenienses para o futuro sombrio que a guerra anuncia e
para a contingência do resultado de um combate que se arrasta, interminável.
Mesmo num momento histórico de indefinições das questões humanas no
encaminhamento das suas instituições, Aristófanes investe contra as instituições sociais,
contra os homens e aqueles que as compõem e para estes se dirige através de suas
comédias. Nessas, expõe a exploração dos políticos profissionais, demagogos que
funestamente influenciam a mentalidade e os costumes do povo obrigando os gregos a
pensarem sobre si mesmos. Aristófanes retrata, no seu trabalho, o inconformismo e o
sofrimento diante dos problemas sociais, políticos, econômicos, morais. Por meio de seu
trabalho, mobiliza a sociedade para o entendimento da crise que está sendo vivida. Faz o
espectador sentir-se dentro da ação social, vivendo-a frente a frente com os argumentos
revelados pedagogicamente. A retomada crítica da prática social converte-se em prática
pedagógica. Ao desenvolver o seu trabalho, Aristófanes nos trouxe a possibilidade de ver a
educação como um processo pelo qual o homem reflete, analisa e (re)age, de forma
dinâmica e contínua sobre sua própria vida.
Considerações Finais
Na prática social do período em análise, optamos por mostrar como a guerra, que
carateriza um largo período do século V a. C., é encaminhada e mantida pela sociedade
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sem que maiores análises sejam feitas. Na verdade, os estadistas investem nela através de
um discurso demagógico que camufla a sua própria periculosidade, impedindo, assim, ao
povo grego outros encaminhamentos que se oporiam aos dos políticos ou dos demagogos
da ocasião. Aristófanes, ao contrário, examina a gravidade de decisões políticas que
comprometem o conjunto da humanidade. A prática social existente passa a servir, nas
mãos de Aristófanes, à prática pedagógica a que ele dará corpo nas encenações teatrais. É
na realidade, pois, que ele vai buscar a trama de suas comédias e com elas vai educar o
povo, transformando-as em prática pedagógica para seu público.
Comparando a leitura dos homens comuns, dos políticos, dos estadistas, com a do
poeta, percebemos que os primeiros examinam e discursam sobre as partes de um todo,
nunca levado em consideração, da mesma forma que não levam em consideração as
contradições de qualquer processo desencadeado na sociedade. Já Aristófanes transita do
lado contrário. Nessa comparação, percebemos que Aristófanes é realmente educador, pois,
se empenha em tirar o povo do estado de compreensão superficial, de alienação,
impelindo-o à prática da autocrítica e à consciência da responsabilidade na condução da
sociedade. Na intenção do educador, a formação e o ensino exigem o entendimento da
totalidade dos nexos que podem explicar um fato ou um fenômeno. O discernimento e a
conscientização sobre como se constitui o ser social são condições para realização da
educação que se prolonga ao longo da vida, num refletir constante sobre causas,
conseqüências, posicionamentos. Quer dizer, no processo da vida, dinâmico e contínuo,
está o processo da educação (formação) voltado a possibilitar ao homem a capacidade de
refletir, analisar, (re)agir, intervir e (con)viver; apropriando-nos dos recursos didáticos de
Aristófanes para levar os homens à reflexão de sua organização social, da vida que levam,
poderemos organizar nossa intervenção na formação dos jovens de hoje.
REFERÊNCIAS:
MOSSÉ, C. Atenas: A história de uma democracia. 2 ed. Tradução de João Batista da Costa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982.
PLATÃO. Defesa de Sócrates. 1 ed. São Paulo: Victor Civita Editor, 1972. (Coleção Os Pensadores)
________ Diálogos III A República. Tradução de Leonel Vallandro. Rio de Janeiro - Porto Alegre - São Paulo: Editora Globo, 1964.
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ROSA, S. História da Educação no Brasil: a literatura como fonte alternativa. Trabalho apresentado no IV Congresso Ibero Americano de La Educacion Latino Americana, 1998.
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. 2 ed. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986.