a poesia e os deuses

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Page 1: A Poesia e Os Deuses

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“Poesia e os Deuses” — H.P. Lovecraft e Anna Helen Crofts

Fonte: “A Tumba... e Outras Histórias”. Ed. Francisco Alves. * Notas de transcrição não constam nos originais da editora.

RA UMA ÚMIDA e sombria noite de abril, logo após o fim da Grande Guerra, quando Márcia se descobriu sozinha com estranhos pensamentos e desejos, anseios inconfessáveis que

pairavam no espaçoso escritório do século XX, para fora nas profundezas do ar, e para oeste, nos olivais distantes da Arcádia1 que ela vira apenas em sonhos. Entrara no quarto em abstrações, desligara os candelabros brilhantes, e agora reclinava-se num divã confortável ao lado de uma lâmpada solitária que derramava sobre a mesa de leitura um brilho verde tão tranqüilizante quando o luar quando passava pela folhagem cercando um antigo altar. Vestida com simplicidade num vestido curto de dormir, por fora ela parecia um produto típico da civilização moderna; mas aquela noite ela sentia o golfo imensurável que separava sua alma de todo o prosaico que a cercava. Seria por causa da estranha casa onde vivia, aquele refúgio gelado onde as relações eram sempre tensas e os habitantes pouco mais que estranhos? Seria isso ou seria algum maior e menos explicável deslocamento no tempo e no espaço, por ter ela nascido muito tarde, ou muito cedo, ou muito distante dos desejos de seu espírito para jamais se harmonizar com as coisas feias da realidade contemporânea? Para dispersar o temperamento que a engolfava mais e mais a cada momento, ela pegou uma revista da mesa e procurou alguma peça suave de poesia. A poesia sempre aliviara sua mente preocupada melhor do que qualquer coisa, embora muitas coisas na poesia ela havia visto apartada da influência. Sobre as partes até mesmo dos versos mais sublimes pairava um vapor gelado de feiúra estéril e tensão, como a poeira sobre uma vidraça através da qual se assiste a um magnífico crepúsculo. Virando distraída as páginas da revista, como se procurando um tesouro elusivo, ela subitamente descobriu uma coisa que dispersou seu langor. Um observador poderia ter lido seus pensamentos e lhe dito que ela havia descoberto alguma imagem onírica que a levava mais perto de seu objetivo inalcançado do que qualquer imagem ou sonho que jamais tivera antes. Era apenas um pedaço de verso livre, aquele piedoso compromisso do poeta que entremeava a prosa mas a que faltava a divina melodia dos números; mas que possuía em si toda a música não-estudada dos bardos que vivem e sentem, que se agarram estáticos à beleza desvelada. Despidos de regularidade, ainda assim possuía a harmonia das palavras aladas, espontâneas, uma harmonia que fugia do formalismo, da prisão das convenções dos versos de que ela havia conhecido. Ao ler aquilo, tudo o que a cercava gradualmente desaparecia, e logo só havia sobre ela as neblinas do sonho, as purpúreas e estreladas neblinas além do tempo, onde somente os deuses e os sonhadores caminham.

A Lua sobre o Japão, Lua branca borboleta! Onde sonham os Budas Ao som do cuco que chama... As brancas asas de borboletas lunares Flutuam nas ruas da cidade, Calando em silêncio as lanternas inúteis Nas mãos das meninas

A Lua sobre os trópicos, Botão curvado de branco Abrindo as pétalas lentamente no calor dos céus...

1 Arcádia, região na parte central do Peloponeso, Grécia. Na mitologia grega, era a residência de Pã, deus da natureza e padroeiro dos pastores, e centro do seu culto. (Nota de Transcrição)

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O ar está cheio de odores E langorosos sons cálidos... Uma flauta zumbe sua música de inseto para a noite Sob a pétala lunar curvada dos céus... A Lua sobre a China, Lua cansada do rio do céu, O movimento da luz nos salgueiros é como o brilho de mil peixinhos de água doce Em águas escuras; Os azulejos das tumbas e templos decaídos brilham como ondas, O céu se enche de nuvens como as escamas de um dragão.

Entre as brumas do sonho a leitora gritava para as estrelas rítmicas, de seu deleite na chegada de uma nova idade da canção, um renascimento de Pã. 2 Semicerrando os olhos, ela repetia palavras cuja melodia jazia oculta como cristais no fundo de um rio antes do amanhecer, escondidas apenas para brilharem com refulgência ao nascer do dia.

A Lua sobre o Japão Lua branca borboleta!

A Lua sobre os trópicos, Botão curvado de branco Abrindo as pétalas lentamente no calor dos céus. O ar cheio de odores E langorosos sons cálidos...

A Lua sobre a China, Lua cansada no rio do céu...

Além das brumas coruscava divina a forma de um jovem, de capacete alado e sandálias,

levando na mão um caduceu3, e de uma beleza incomparável na Terra. Diante do rosto da adormecida ele três ele três vezes girou o bastão que Apolo4 havia lhe presenteado em troca pela concha de nove cordas da melodia, e sobre sua testa ele colocou uma coroa de louros e rosas. Então, adorando, Hermes5 falou: — Ó Ninfa6 mais bela que as irmãs de cabelos dourados de Ciene ou que as atlantes que habitam o céu, amada de Afrodite7 e abençoada por Palas8, descobriste de fato o segredo dos 2 Pã, na mitologia grega, deus dos bosques, dos campos e da fertilidade, filho de Hermes com uma ninfa. Sendo parte animal, com chifres, patas e orelhas de bode, era uma divindade vigorosa, deus dos pastores. (Nota de Transcrição) 3 Caduceu, bastão simbólico coroado por duas asas e com duas serpentes entrelaçadas. Entre os gregos antigos, o caduceu era levado pelos heraldos e pelos mensageiros como emblema de seu ofício e como marca de inviolabilidade pessoal, porque era o símbolo de Hermes. (Nota de Transcrição) 4 Apolo, na mitologia grega filho de Zeus e Leto. Era um músico talentoso que deliciava os deuses tocando a lira. Também ficou famoso como arqueiro e atleta veloz e foi o primeiro vencedor dos Jogos Olímpicos. Deus da agricultura e da pecuária, da luz e da verdade, ensinou aos humanos a arte da medicina. (Nota de Transcrição) 5 Hermes, na mitologia grega, mensageiro dos deuses, filho do deus Zeus e de Maia, a filha do titã Atlas. Como especial servidor e carteiro de Zeus, usava sandálias e capacete alados e levava um caduceu de ouro, ou vara mágica, com serpentes enroladas e asas na parte superior. (Nota de Transcrição) 6 Ninfas, na mitologia grega e romana, divindades menores ou espíritos da natureza, que vivem em arvoredos, fontes, bosques, pradarias, rios e águas do mar, e são representadas por jovens e belas donzelas que gostam da música e da dança. (Nota de Transcrição) 7 Afrodite, na mitologia grega, deusa do amor e da beleza, equivalente a Vênus romana. Na Ilíada de Homero aparece como filha de Zeus e Dione, uma de suas companheiras, mas em lendas posteriores é descrita brotando da espuma do mar e seu nome pode ser traduzido como "nascida da espuma". (Nota de Transcrição) 8 Atena, uma das deusas mais importantes da mitologia grega. Na mitologia romana, chegou a ser identificada com a deusa Minerva, também conhecida como Palas Atenéia. Saiu já adulta da proteção do deus Zeus e foi sua filha favorita. Ele confiou a Atena seu escudo, adornado com a horrorosa cabeça da górgona Medusa, sua “égide” e o raio, sua arma principal. (Nota de Transcrição)

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Deuses, que jazem na beleza e na canção. Ó profetisa mais adorável que a Sibilia de Cumas9 quando Apolo pela primeira vez a viu, tu falaste verdadeiramente da nova era, pois mesmo agora em Mênalo, Pã dorme inquieto seu sono, desejoso de acordar e ver ao seu redor as pequenas faunas com coroas de rosas e os antigos sátiros10. Em sua visão divinaste o que nenhum mortal, à exceção de alguns a quem o mundo rejeita, lembraste-te: que os Deuses nunca morrem, mas apenas dormem o sono e sonham os sonhos de Deuses em jardins das Hespérides11 repletos de flores de lótus além do amanhecer dourado. E agora aproxima-se a hora de se despertar, quando o frio e a feiúra perecerão, e Zeus12 se sentará uma vez mais no Olimpo13. Já o oceano sobre Pafos14 tremeu numa espuma que apenas céus antigos presenciaram antes, e à noite em Helicon15 os pastores ouvem estranhos murmúrios e notas semilembradas. Florestas e campos tremem ao crepúsculo com o tremeluzir de lívidas formas saltitantes, os oceanos imemoriais trazem curiosas visões sob pálidas luas. Os Deuses são pacientes, e dormiram muito, mas nem o homem nem os gigantes destruirão os Deuses para sempre. No Tártaro16 os Titãs17 se contorcem e sob o furioso Etna18 choramingam os filhos de Urano e Gaia19. O dia agora amanhece em que o homem deverá responder por séculos de negação, mas ao dormir os Deuses se tornaram tolerantes e não o atirarão no poço criado para os degeneradores de Deuses. Ao invés disso, sua vingança acabará com a escuridão, a falácia e a feiúra que viraram a mente homem; e sob as revoluções do barbudo Saturno20 os mortais, uma vez mais sacrificando para ele, viverão na beleza e no deleite. Esta noite tu conhecerás o favor dos Deuses, e verás no Parnaso21 os sonhos que os Deuses têm há eras enviado à Terra para mostrar que não estão

9 Cumas, cidade fortificada e costeira da antiga Campânia. Foi fundada em aproximadamente 750 a.C. por colonos de Cálcis e Cime. Segundo Estrabão, foi à primeira colônia grega estabelecida na Itália. Converteu-se em um poderoso centro comercial. A cidade foi controlada pelos romanos em aproximadamente 340 a.C. (Nota de Transcrição) 10 Sátiros, na mitologia grega, divindades dos bosques e montanhas, com chifres e caudas e às vezes com pernas de bode. Os sátiros eram os companheiros de Dionísio e passavam seu tempo perseguindo as ninfas, bebendo vinho, dançando e tocando siringa, flauta ou gaita. (Nota de Transcrição) 11 Hesperides, na mitologia grega, filhas do titã Atlas ou de Hesper, a estrela vespertina. Ajudadas por um dragão, as hesperides vigiavam uma árvore com galhos e folhas de ouro, que dava maçãs também de ouro. (Nota de Transcrição) 12 Zeus, na mitologia grega, deus do céu e soberano dos deuses olímpicos. Corresponde ao deus romano Júpiter. Segundo Homero, Zeus era considerado pai dos deuses e dos mortais. Não foi seu criador; era seu pai no sentido de proteger e ser o soberano tanto da família olímpica, como da raça humana. Zeus presidia os deuses no monte Olimpo, na Tesália. Zeus era o filho menor do titã Cronos e da titã Réia e irmão das divindades Posêidon, Hades, Héstia, Deméter e Hera. (Nota de Transcrição) 13 Olimpo, montanha de 2.917 m de altitude, a mais elevada da Grécia, situada na fronteira da Tessália com a Macedônia, próximo ao mar Egeu. Segundo a antiga mitologia grega, este era o lugar onde moravam os deuses. No cume, ficavam seus palácios, construídos por Hefesto. A entrada para o Olimpo era uma porta de nuvens protegida pelas deusas conhecidas como as Estações. (Nota de Transcrição) 14 Pigmalião, na mitologia romana, escultor de Chipre. Durante muitos meses, dedicou-se a esculpir uma mulher belíssima e acabou se apaixonando loucamente pela estátua. Suplicou então a Vênus que lhe mandasse uma mulher semelhante à sua obra. A jovem, a quem Pigmalião chamou Galatéia, correspondeu ao seu amor e lhe deu um filho, Pafos. (Nota de Transcrição) 15 O helicon é uma tuba com o tubo enrolado em forma circular, da qual o sousafone é uma variante. (Nota de Transcrição) 16 Tártaro (mitologia), na mitologia grega, a região mais baixa dos infernos. Segundo Hesíodo e Virgílio, o Tártaro é fechado por portas de ferro e está tão abaixo do mundo subterrâneo de Hades quanto a terra está em relação ao céu. (Nota de Transcrição) 17 Seres fantásticos da mitologia grega. (Nota de Transcrição) 18 Etna, vulcão do sul da Itália situado na costa oriental da Sicília. (Nota de Transcrição) 19 Urano (mitologia), na mitologia grega, deus dos céus, casado com Gaia. Era o pai dos titãs, dos ciclopes e dos hecatonquiros, gigantes de cem mãos e 50 cabeças. Os titãs, guiados pelo seu soberano, Cronos, destronaram e mutilaram Urano e do seu sangue que caiu sobre a terra surgiram as três Erínias ou Fúrias que vingaram os crimes de parricídio e perjúrio. (Nota de Transcrição) 20 Saturno (mitologia), na mitologia romana, antigo deus da agricultura. Nas lendas posteriores foi identificado com o deus grego Cronos, que depois de ter sido destronado por seu filho Zeus (Júpiter, na mitologia romana) fugiu para a Itália, onde governou durante 'a idade de ouro', um tempo de paz e felicidade completas. (Nota de Transcrição) 21 Parnaso, montanha da Grécia, de 2.457 m de altitude. Na mitologia grega, ela estava consagrada ao deus Apolo. Acreditava-se que este era o lugar predileto das musas e lugar de adoração dos deuses Pã e Dioniso. (Nota de Transcrição)

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